DOIS ANOS ANTES DE MORRER em uma ousada tentativa de salvar amigos após a erupção do Vesúvio, Plínio, o Velho, lendário historiador e erudito romano, completou sua protoenciclopédia Naturalis Historiae. Nela, ele conta a história de um dispositivo que os vinicultores tinham inventado havia pouco, um novo tipo de prensa que empregava um parafuso para “concentrar a pressão sobre pranchas largas colocadas sobre as uvas, que são cobertas também com grandes pesos por cima”. Há algum debate entre os estudiosos sobre a possibilidade de que Plínio estivesse torcendo para o time de casa ao atribuir a invenção a seus compatriotas, já que evidências do uso de prensas de parafuso na produção de vinhos e azeites remontam aos gregos, vários séculos antes. Mas, seja qual for a data exata de sua origem, a utilidade prática da prensa de parafuso assegurou que, diferentemente de tantas excelentes ideias do período greco-romano, ela sobrevivesse intacta ao longo da Idade Média. Quando o Renascimento por fim floresceu, mais de um milênio depois da morte de Plínio, a Europa teve de redescobrir a astronomia ptolomaica e os segredos da construção de aquedutos, mas não precisou reaprender como prensar uvas. Na verdade, a prensa de parafuso havia recebido alterações durante todo o tempo, aperfeiçoando e otimizando seu modelo para a produção de vinhos em massa. Em meados do século XV, a região alemã da Renânia, que fora historicamente hostil à viticultura por razões climáticas, estava enfeitada de treliças de parreiras. Estimulados pelo aumento da eficiência da prensa de parafuso, os vinhedos alemães chegaram ao auge em 1500, cobrindo cerca de quatro vezes mais terra que hoje em dia. Era um trabalho árduo produzir vinho bebível numa região tão setentrional, mas a eficiência mecânica da prensa de parafuso o tornava financeiramente irresistível.
Em algum momento por volta de 1440, um jovem empresário renano começou a tentar melhorar o projeto da prensa de vinho. Ele acabava de sair de um negócio desastroso, a fabricação de espelhinhos supostamente dotados de poderes mágicos de cura, que pretendia vender a peregrinos religiosos. (O plano foi por água abaixo, em parte por causa da peste bubônica, que reduziu de maneira drástica o número de peregrinos.) Mas o fracasso do negócio das bugigangas provou-se oportuno, já que levou o empresário a um caminho muito mais ambicioso. Johannes Gutenberg mergulhou na tecnologia dos vinhateiros renanos, mas não porque estivesse interessado em vinho. Eram as palavras que o interessavam.
Como muitos estudiosos notaram, a prensa de Gutenberg foi uma inovação combinatória clássica, mais bricolagem que invenção. Todos os elementos essenciais que fizeram dela uma máquina tão transformadora – o tipo móvel, a tinta, o papel e a própria prensa – haviam sido desenvolvidos separadamente muito antes que Gutenberg imprimisse sua primeira Bíblia. O tipo móvel, por exemplo, fora concebido de maneira independente por um ferreiro chinês chamado Pi Sheng quatro séculos antes. Mas os chineses (e depois os coreanos) não conseguiram adaptar essa tecnologia para a produção em massa de textos, em grande parte porque fixavam os caracteres na página mediante a fricção das mãos, o que tornava o processo pouco mais eficiente que o trabalho do escriba medieval mediano. Graças a sua experiência como ourives, Gutenberg introduziu algumas modificações brilhantes na metalurgia subjacente ao sistema do tipo móvel; sem a própria prensa, contudo, suas meticulosas fontes de chumbo teriam sido inúteis para produzir Bíblias em massa.
Parte importante da genialidade de Gutenberg, portanto, não está em conceber uma tecnologia inteiramente nova a partir do zero, mas em tomar emprestada uma tecnologia madura de um campo inteiramente diferente e usá-la para resolver um problema de outra natureza. Não sabemos ao certo que cadeia de eventos levou Gutenberg a fazer esse elo associativo; restam poucos registros documentais de sua vida entre 1440 e 1448, período no qual reuniu os principais componentes de sua invenção. Mas está claro que ele não tinha nenhuma experiência anterior com a prensagem de uvas. A revolução radical que operou se baseou antes na onipresença da prensa de parafuso na cultura de fabricação de vinho na Renânia e em sua própria capacidade de ir além de seu campo específico de conhecimento e inventar novos usos para uma tecnologia mais antiga. Gutenberg pegou uma máquina destinada a embriagar pessoas e transformou-a numa máquina para a comunicação de massa.
OS BIÓLOGOS EVOLUCIONÁRIOS têm uma palavra para esse tipo de empréstimo, proposta pela primeira vez por Stephen Jay Gould e Elisabeth Vrba num influente ensaio publicado em 1971: exaptação. Um organismo desenvolve um traço otimizado para um uso específico, mas depois ele é apropriado para uma função completamente diferente. O exemplo clássico, destacado no ensaio de Gould e Vrba, são as penas das aves, que, segundo se acredita, foram desenvolvidas de início para fins de regulação da temperatura, ajudando dinossauros não voadores do período Cretáceo a se proteger do frio. Quando alguns de seus descendentes, entre os quais uma criatura que hoje chamamos de Archaeopteryx, começaram a fazer experiências com o voo, as penas se revelaram úteis para controlar o fluxo de ar sobre a superfície da asa, permitindo a essas primeiras aves planar.
A transformação inicial é quase acidental: uma ferramenta esculpida por pressões evolucionárias para uma finalidade passa a ter uma propriedade inesperada que ajuda o organismo a sobreviver de uma nova maneira. Mas, uma vez que essa nova propriedade é posta em uso, depois que o Archaeopteryx começa a usar suas penas para planar, o traço evolui segundo outro conjunto de critérios. Todas as penas de voo, por exemplo, têm uma acentuada assimetria: as barbas de um lado (ou lâmina) da haste central são maiores que as do lado oposto. Isso lhes permite atuar como uma espécie de aerofólio, proporcionando estabilidade durante o bater das asas. Aves que voam em velocidades muito elevadas, como os falcões, têm assimetrias mais acentuadas que aves mais lentas. No entanto, as penas da penugem, que só isolam o corpo, são perfeitamente simétricas. Quando as penas só servem para manter o organismo aquecido, não há vantagem em construí-las ligeiramente enviesadas. Mutações ou outros tipos de variabilidade geral no pool genético produzem inevitavelmente penas um pouco menos simétricas que a média, mas esses traços não se intensificam e se difundem através das gerações, pois não proporcionam nenhuma vantagem reprodutiva em relação às penas normais. Mas, uma vez que a velocidade de voo se torna uma propriedade com implicações importantes para a sobrevivência, essas barbas assimétricas revelam-se de extrema utilidade. Ali onde anteriormente a assimetria entrava e saía do pool genético, a seleção natural começa a esculpir essas penas de modo a torná-las mais aerodinâmicas. Uma pena adaptada para o aquecimento é então exaptada para o voo.
O conceito de exaptação é decisivo na refutação do clássico argumento bíblico (hoje muitas vezes chamado de “projeto inteligente”) contra o darwinismo, argumento que remonta ao furor que envolveu a publicação do livro A origem das espécies: se exemplos extraordinários de engenharia natural como olhos ou asas não são produto de um criador inteligente, como puderam esses traços sobreviver ao longo do que deve ter sido um estado de desenvolvimento de pronunciada não funcionalidade? Enquanto se desenvolve, a asa precisa passar, por definição, por um longo período em que é completamente inútil para voar. (Como diz um ditado: “De que valem 5% de uma asa?”) Como a seleção natural não “sabe” que está tentando construir uma asa, não pode impulsionar essas asas primitivas rumo à meta final de voar como um engenheiro mecânico pode fazer com um aeromodelo até que ele decole. Se essa asa incipiente não ajuda uma ave a voar, permitindo-lhe assim levar a melhor sobre seus predadores ou descobrir novas fontes de alimento, as novas mutações que tornaram esse apêndice ligeiramente mais parecido com uma asa não terão uma probabilidade maior de se espalhar pela população. A seleção natural não dá prêmios por esforço.
Mas, quando pensamos em inovações evolucionárias em termos de exaptação, a história se torna muito menos misteriosa. Mais uma vez, acaso e felizes coincidências ganham um papel central na narrativa: mutações aleatórias levam à evolução de penas selecionadas para fins de aquecimento, e por acaso elas se revelam úteis para o voo, em particular depois de modificadas para criar um aerofólio. Por vezes essas exaptações tornam-se possíveis porque outras delas estão acontecendo no seio da espécie – pensa-se que a própria asa é uma exaptação de um osso do pulso de um dinossauro, adaptado originalmente para fins de maior flexibilidade. Ao propor a metáfora da transformação de pneus em sandálias, Gould falava, em essência, sobre a maneira como a exaptação definiu os caminhos da inovação evolucionária: novas habilidades e traços surgem não por haver na biosfera uma marcha inexorável rumo à complexidade cada vez maior, mas porque a seleção natural tem o instinto do sapateiro de Nairóbi de se apropriar de peças velhas e dar-lhes novos usos.
Com frequência esses novos usos tornam-se possíveis graças a mudanças externas no ambiente de um organismo. Quando o peixe de nadadeiras lobadas Sarcopterygii começou a explorar a vida na beira da água, 400 milhões de anos atrás, a criatura tinha um pequeno leque na ponta da nadadeira, sustentado por estreitos ossículos. À medida que seus descendentes começaram a passar mais tempo fora da água, explorando as abundantes fontes de energia das plantas e dos artrópodes que já haviam conquistado a vida sobre a terra, a ponta da nadadeira lobada revelou-se útil para uma atividade que a vida aquática havia tornado inconcebível: andar. Em pouco tempo, a seleção natural remodelou o leque em autopódio, a arquitetura básica dos tornozelos e dos pés de todos os mamíferos. Com o tempo, o próprio autopódio seria exaptado de várias maneiras: criando as mãos e os dedos dos primatas, otimizados para agarrar, ou aquelas asas do Archaeopteryx. Em alguns casos, o autopódio foi até exaptado de volta para suas antigas origens, como nas nadadeiras das focas e dos leões-marinhos.
SE MUTAÇÃO, ERRO E SERENDIPIDADE abrem novas portas no possível adjacente da biosfera, a exaptação nos ajuda a explorar as novas possibilidades que se escondem atrás delas. Um fósforo que acendemos para iluminar uma sala escura vem a ter um uso completamente diferente quando abrimos a porta e descobrimos uma sala com uma pilha de lenha e uma lareira. Uma ferramenta que nos permite ver em um contexto acaba nos ajudando a nos aquecer em outro. Essa é a essência da exaptação.
É tentador presumir que o mecanismo da inovação cultural está mais próximo daquele engenheiro fazendo experiências com seu aeromodelo do que do afortunado Archaeopteryx que salta do alto da árvore e descobre que suas penas não são apenas um agasalho. Ninguém contesta o papel do projeto inteligente na história da cultura humana. Mas as exaptações abundam na história da criatividade humana. No início do século XIX, Joseph-Marie Jacquard, um tecelão francês, desenvolveu os primeiros cartões perfurados para tecer padrões complexos de seda em teares mecânicos. Algumas décadas depois, Charles Babbage tomou emprestada a invenção de Jacquard para programar a máquina analítica. Os cartões perfurados continuariam fundamentais para computadores programáveis até a década de 1970. Lee de Forest criou o Audion com um objetivo claro: detectar e amplificar sinais eletromagnéticos. Nunca lhe ocorreu que a arquitetura do tríodo poderia ser aplicada com igual facilidade à construção de uma bomba de hidrogênio. Em termos evolucionários, o tubo de vácuo foi originalmente adaptado para tornar o volume dos sinais mais alto, mas acabou sendo exaptado para transformar esses sinais em informação: zeros e uns que podiam ser manipulados de maneiras impressionantes. Um amplificador de guitarra Fender dos anos 1950, que se baseava num tubo de vácuo para aumentar o sinal dos primeiros guitarristas do rock’n’roll, era em última análise uma variação do sistema original de amplificação de De Forest. Porém, aqueles 17 mil tubos de vácuo dentro do ENIAC, fazendo os cálculos da física de uma bomba de hidrogênio, estavam servindo a uma função que jamais passou pela cabeça de De Forest, por mais imaginativo que ele fosse. Hoje, mercados emergentes de patentes, como o GreenXchange da Nike, permitem exaptações comerciais que seriam impensáveis no ambiente encastelado dos laboratórios de P&D tradicionais.
A história da World Wide Web é, em certo sentido, uma história de contínua exaptação. Tim Berners-Lee projetou os protocolos originais pensando num ambiente especificamente acadêmico, criando uma plataforma para o compartilhamento de pesquisas num formato de hipertexto. Mas, quando as primeiras páginas da web se espalharam para além dessa sopa primordial acadêmica e começaram enfrentar consumidores comuns, a invenção de Berners-Lee revelou possuir um número extraordinário de qualidades imprevistas. Exaptou-se uma plataforma adaptada para o estudo acadêmico para permitir compras, compartilhamento de fotos e observação de pornografia – junto com milhares de outros usos que teriam estarrecido Berners-Lee quando ele criou os primeiros diretórios baseados em HTML no início dos anos 1990. Quando Sergey Brin e Larry Page tiveram a ideia de usar links entre páginas da web como votos digitais que endossavam o conteúdo dessas páginas, estavam exaptando o projeto original de Berners-Lee: tomaram uma característica adaptada para a navegação – o link de hipertexto – e a usaram como um veículo de avaliação de qualidade. O resultado foi o PageRank, o algoritmo original que transformou o Google no gigante que é hoje.
O historiador da literatura Franco Moretti documentou de maneira persuasiva o papel da exaptação na evolução do romance. Um autor concebe um novo tipo de recurso narrativo para atender a uma necessidade local, específica, numa obra que está escrevendo. Alguma coisa nesse recurso atrai outros autores, e ele começa a circular através do pool genético literário. Depois, à medida que o ambiente literário muda e novas possibilidades imaginativas se tornam necessárias, o recurso passa a ter uma função diferente, muito distante de seu uso original. O romancista francês Édouard Dujardin usou pela primeira vez a técnica do “fluxo de consciência” no romance Les lauriers sont coupés, de 1888; nessa obra, a técnica fica restrita a curtos períodos de introspecção entre os principais acontecimentos da história, breves parênteses dentro da trama. Três décadas depois, porém, James Joyce pegaria a técnica e a transformaria em um dos mais memoráveis e fascinantes modos perceptivos, usando o recurso em seu romance Ulisses para capturar a agitação e a dispersão da vida mental numa cidade alvoroçada. Quando Dickens inventou seu inspetor Bucket para reunir os múltiplos fios da coincidência metropolitana em A casa abandonada, não tinha a menor ideia de que seu artifício ajudaria a criar todo um novo gênero, a ficção policial, que se estenderia de A pedra da lua de Wilkie Collins até Assassinato por escrito, passando por Sherlock Holmes. Novos gêneros requerem velhos recursos.
Exaptações retóricas ou figurativas não são propriedade exclusiva das artes. A história da inovação científica e tecnológica também está cheia delas. Em The Act of Creation, Arthur Koestler afirmou que “todos os eventos decisivos na história do pensamento científico podem ser descritos em termos de fecundação cruzada mental entre diferentes disciplinas”. Conceitos migram de um campo para outro como uma espécie de metáfora estruturante, abrindo assim uma porta secreta que por muito tempo não pudera ser vista. Em suas memórias, Francis Crick conta que atinou pela primeira vez com a ideia do sistema de replicação complementar do DNA – cada base A se conecta com uma T, e cada base C com uma G – ao pensar no modo como podemos reproduzir uma escultura fazendo uma impressão em gesso e usando-a, depois de seca, como molde para criar cópias. Johannes Kepler atribuiu suas leis do movimento planetário a uma metáfora generativa importada da religião; imaginou o Sol, as estrelas e o espaço escuro que as separa como os equivalentes celestes do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Quando pioneiros da ciência da computação como Doug Engelbart e Alan Kay inventaram a interface gráfica, importaram uma metáfora do ambiente dos escritórios no mundo real: em vez de organizar a informação na tela como uma série de entradas de linha de comando, como um programador faria, tomaram emprestada a iconografia de uma escrivaninha com pilhas de papéis em cima. Kekulé não pensou que a molécula de benzeno era literalmente uma serpente da mitologia grega, mas seu conhecimento desse símbolo antigo o ajudou a resolver um dos problemas essenciais da química orgânica.
NO INÍCIO DOS ANOS 1970, um sociólogo de Berkeley chamado Claude Fischer começou a investigar os efeitos sociais da vida em centros urbanos densos. Esse assunto interessava havia muito aos teóricos do urbanismo, entre os quais Louis Wirth, que num famoso ensaio de 1938, “Urbanism as a Way of Life”, afirmou que a vida metropolitana levava à desorganização social e à alienação, com a dissolução dos laços sociais e do conforto das comunidades menores no tumulto da cidade grande. Como a argumentação de Wirth não se confirmara com o passar do tempo – bairros densamente povoados revelavam abrigar laços sociais muito complexos e ricos, quando se procurava por eles –, Fischer dispôs-se a verificar quais padrões sociais eram de fato induzidos pelo ambiente das grandes cidades. Sua pesquisa o levou a uma conclusão impressionante, publicada num artigo seminal em 1975: cidades grandes alimentam subculturas de maneira muito mais vigorosa que subúrbios ou cidades pequenas.
Estilos de vida ou interesses que se desviam do padrão dominante precisam de massa crítica para sobreviver; em comunidades menores eles se atrofiam, não por estas serem mais repressivas, mas sim porque a probabilidade de encontrar pessoas com ideias semelhantes é muito mais baixa quando o universo de indivíduos é menor. Se um décimo de 1% da população for apaixonado por, digamos, colecionar besouros ou teatro improvisado, numa cidade de tamanho médio isso não equivale a mais que uma dúzia de indivíduos. Numa grande cidade, porém, significa milhares de pessoas. Como Fischer observou, esse acúmulo cria um ciclo de realimentação positiva, pois os residentes mais inconvencionais dos subúrbios ou áreas rurais migram para a cidade em busca de companheiros de viagem. “A teoria … explica ao mesmo tempo o que as cidades têm de ‘ruim’ e de ‘bom’”, escreveu Fischer. “A inconvencionalidade criminosa e a inovadora (por exemplo, artística) são ambas alimentadas por subculturas vibrantes.” Coletivos de poesia e gangues de rua podem parecer estar separados por quilômetros de distância, mas ambos dependem da capacidade que a cidade tem de alimentar subculturas.
O mesmo padrão se aplica a ofícios e negócios em cidades grandes. Como Jane Jacobs observou em The Death and Life of Great American Cities: “Quanto maior é a cidade, maior a variedade de sua indústria, e maior também o número e a proporção de seus pequenos fabricantes.”
Cidades pequenas e subúrbios, por exemplo, são lares naturais para enormes supermercados e pouco mais em matéria de comestíveis, para cinemas comuns ou drive-ins e outras poucas salas de espetáculo. Simplesmente não há gente suficiente para sustentar maior variedade, embora possa haver pessoas (muito poucas) que fariam uso dela, caso existisse. As cidades grandes, porém, são lares naturais de supermercados e cinemas comuns, além de delicatessens, confeitarias vienenses, lojas de comestíveis estrangeiros, cinemas de arte e assim por diante, tudo isso coexistindo, o comum com o estranho, o grande com o pequeno. Onde quer que encontremos trechos de cidades animados e apreciados, o pequeno é muito mais numeroso que o grande.
Tanto Fischer e quanto Jacobs enfatizam as férteis interações que ocorrem entre subculturas num centro urbano denso, o inevitável excesso que se produz sempre que seres humanos se aglomeram em grandes grupos. Subculturas e negócios ecléticos geram ideias, interesses e habilidades que se difundem inevitavelmente através da sociedade, influenciando outros grupos. Nas palavras de Fischer: “Quanto maior é a cidade, mais provável é que contenha, em número e unidade significativos, viciados em drogas, radicais, intelectuais, adeptos da troca de casais, entusiastas da alimentação natural ou qualquer outra coisa; e mais provável é que eles influenciem (bem como ofendam) o centro convencional da sociedade.”
As cidades são, portanto, ambientes oportunos para a exaptação, porque cultivam habilidades e interesses especializados e criam uma rede líquida em que a informação pode vazar dessas subculturas e influenciar seus vizinhos de maneiras surpreendentes. Essa é uma explicação para o escalamento superlinear na criatividade urbana. A diversidade cultural gerada por essas subculturas não é valiosa apenas por tornar a vida urbana menos monótona. O valor reside também nas migrações improváveis que ocorrem entre os diferentes grupos. Um mundo em que uma grande diversidade de profissões e paixões se superpõe é um mundo em que exaptações prosperam.
Muitas vezes esses ambientes compartilhados tomam a forma de um espaço público do mundo real, o que o sociólogo Ray Oldenburg chamou, numa expressão famosa, de o “terceiro lugar”, um ambiente conectivo distinto do mundo mais insular da casa ou do trabalho. Na era do Iluminismo, o café inglês do século XVIII fertilizou incontáveis inovações; as coisas mais diversas, desde a ciência da eletricidade até a própria democracia, passando pela indústria dos seguros. Freud mantinha um célebre salão nas noites de quarta-feira em sua casa na Berggasse, número 19, em Viena, onde médicos, filósofos e cientistas se reuniam para ajudar a moldar o recém-criado campo da psicanálise. Vale lembrar, também, os cafés de Paris, nos quais muito do modernismo nasceu; ou o lendário Homebrew Computer Club, nos anos 1970, onde um conjunto excêntrico de aficionados, adolescentes, empresários digitais e cientistas acadêmicos conseguiu deflagrar a revolução do computador. De certa forma, os participantes afluem a esses espaços pela camaradagem de outros que compartilham suas paixões, e sem dúvida essa rede de apoio aumenta o empenho e a produtividade do grupo. Mas estímulo não conduz necessariamente à criatividade. Colisões, sim – as colisões que ocorrem quando diferentes campos de conhecimento convergem num espaço físico ou intelectual compartilhado. É aí que verdadeiras centelhas voam. O modernismo dos anos 1920 exibiu tanta inovação cultural num período tão curto porque escritores, poetas, artistas e arquitetos estavam todos se acotovelando nos mesmos cafés. Não estavam afastados em ilhas separadas, conduzindo seminários de escrita criativa ou fazendo críticas de design. Essa proximidade física tornou o espaço rico em exaptação: o fluxo de consciência da literatura influenciando as novas e estonteantes perspectivas do cubismo; o abraço futurista da velocidade tecnológica na poesia moldando novos padrões de planejamento urbano.
A EXAPTAÇÃO TAMBÉM PROSPERA EM OUTRA ESCALA: o ambiente de mídia compartilhado de uma comunidade física. No final dos anos 1970, o músico e artista britânico Brian Eno mudou-se para a cidade de Nova York pela primeira vez. Ocupou um apartamento numa casa geminada convertida, no coração de Village. A cidade estava no zênite – ou mais provavelmente no nadir – de sua loucura, enfrentando motins, aterrorizada com o Filho de Sam,a flertando com a falência. Mas Eno, que tinha vivido na Londres e na Berlim dos anos 1970, estava bem-aclimatado à anarquia urbana. Na verdade, o contraste mais perturbador com seu passado europeu era a turbulenta mistura de vozes que ouvia no rádio. Após anos ouvindo as vozes graves e profissionais da BBC, os bizarros discursos do rádio americano lhe pareciam um novo universo de insanidade.
E assim ele começou a gravá-los. Como muitos músicos experimentais naquela época, Eno andara explorando as possibilidades de usar tape loops como instrumento musical. (“O gravador sempre foi o instrumento com o qual eu me sentia mais à vontade”, disse ele uma vez numa entrevista. “Depois vinham os teclados, com o baixo em um terceiro lugar bem distante.”) Os Beatles haviam reservado a faixa mais longa do Álbum Branco para uma colagem de tape loop de Lennon, “Revolution #9”, e o protossintetizador Mellotron, desenvolvido em meados dos anos 1960, tinha diferentes tape loops montados para serem acionados por teclas individuais no teclado. Nenhum desses experimentos, porém, havia realmente empregado a voz falada como elemento harmônico ou percussivo. Afinal, os zumbidos e murmúrios de “Revolution #9” mal podiam ser considerados musicais por padrões tradicionais. Mas as horas que Eno passou com os evangelizadores, os anarquistas e os recém-surgidos shock jocksb haviam enfiado aquelas vozes na sua cabeça, e, quando começou a trabalhar em colaboração com David Byrne, pôs-se a brincar com a ideia de explorar as possibilidades musicais delas. O resultado foi My Life in the Bush of Ghosts, uma mescla absolutamente original de seções de ritmo africano e instrumentos acústicos excêntricos, mas evitando de maneira notável as tensas estilizações vocais new wave de Byrne – que haviam tido um papel muito destacado nos álbuns do Talking Heads em que os dois haviam colaborado anteriormente. Em vez de canto tradicional, Byrne e Eno construíram as canções a partir de conjuntos superpostos, em loop, extraídos por Eno das ondas do rádio. Foi um estudo de caso da exaptação criativa: palavras destinadas a difundir a palavra de Jesus em um meio, ou a bradar contra o complexo militar-industrial, migraram para um novo ambiente e se tornaram música, contra todas as expectativas.
My Life in the Bush of Ghosts marcou o nascimento de certo tipo historicamente decisivo de empréstimo musical: não era apenas uma nova música, mas toda uma nova maneira de pensar sobre com que era possível fazer música. (Algo não muito diferente do modo como, cinquenta anos antes, Marcel Duchamp e seus companheiros surrealistas haviam mudado nosso entendimento das coisas com que se podia fazer arte.) Alguns anos depois, quando se sentou para gravar o álbum It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, Hank Shocklee, o produtor do Public Enemy, imitou as amostras vocais superpostas e percussivas da produção de Eno e Byrne. It Takes a Nation veio a ser um dos discos mais influentes da década, reverberando através da cultura mais ampla – em todo tipo de coisa, de toques de telefone celular aos primeiros lugares nas listas da Billboard, passando pela experimentação de vanguarda –, tal como Highway 61 Revisited e Pet Sounds haviam feito uma geração antes. A inovação de Eno foi brilhante, sem dúvida, e, à distância, quase parecia um momento eureca clássico do “gênio solitário”: o inovador trancado em seu laboratório que descobre uma ideia que transformaria a cultura popular. Porém, um elemento fundamental na história é que Eno não estava, tecnicamente falando, sozinho com seu gravador, mas inserido em uma rede das mais diferentes vozes, todas discursando em diferentes frequências. Eno não precisou de um café. Ele tinha um aparelho de rádio AM.
NO FINAL DOS ANOS 1990, Martin Ruef, professor da Stanford Business School, decidiu investigar a relação entre inovação nos negócios e diversidade. Ruef estava interessado no modelo de diversidade dos cafés, não no tipo “melting pot” político: a diversidade de profissões e disciplinas, não de raça ou orientação sexual. Ele entrevistou 766 pessoas formadas na Stanford Business School que haviam ingressado em carreiras empresariais. Criou um sistema complexo para classificar inovações com base numa combinação de fatores: a introdução de novos produtos, digamos, ou o registro de marcas e patentes. Depois acompanhou a rede social de cada sujeito – não só o número, mas o tipo de conhecidos. Alguns tinham grandes redes sociais agrupadas dentro de suas organizações; outros tinham pequenos grupos insulares dominados por amigos e parentes. Alguns tinham vastas conexões, com pessoas de fora do círculo íntimo de amigos e colegas.
O que Ruef descobriu foi uma ressonante confirmação do modelo de relacionamento social dos cafés: em seu levantamento os indivíduos mais criativos possuíam invariavelmente redes sociais amplas que se estendiam além de sua empresa e envolviam pessoas especializadas em diversas áreas. Redes sociais diversificadas e horizontais, na análise de Ruef, eram três vezes mais inovadoras que redes uniformes e verticais. Em grupos unidos por valores compartilhados e intimidade duradoura, a concordância e a convenção tendiam a suprimir quaisquer potenciais centelhas criativas. O alcance limitado da rede significava que conceitos interessantes do exterior raramente penetravam na consciência do empresário. Mas aqueles que construíam pontes para fora de suas “ilhas”, como Ruef as chamou, eram capazes de tomar emprestadas ou cooptar novas ideias desses ambientes externos e aplicá-las a um novo contexto. Um estudo semelhante conduzido por Ronald Burt, professor da escola de negócios da Universidade de Chicago, examinou a origem de boas ideias dentro da rede organizacional da Raytheon Corporation. Burt descobriu que o pensamento inovador tinha muito mais probabilidade de emergir de indivíduos que transpunham “lacunas estruturais” entre grupos muito coesos. Se comparados a outros que mantinham vínculos ativos com um grupo mais diversificado, empregados que partilhavam informação essencialmente com pessoas de sua própria divisão tinham mais dificuldade em propor sugestões úteis para os negócios da Raytheon.
Em certa medida, as pesquisas de Ruef e de Burt são uma validação do célebre argumento da “força dos laços fracos”, proposto pela primeira vez por Mark Granovetter e popularizado por Malcolm Gladwell em The Tipping Point. Mas observar os laços fracos de uma rede social extensa através das lentes da exaptação muda o quadro de uma maneira importante: os laços fracos não permitem apenas à informação viajar através da rede de maneira mais eficiente – isto é, sem ficar presa na ilha distante de um grupo muito coeso. Da perspectiva da inovação, é até mais importante que a informação que chega de um desses laços fracos venha de um contexto diferente, o que o estudioso da inovação Richard Ogle chama de um “espaço de ideias”: um complexo de ferramentas, crenças, metáforas e objetos de estudo. Uma nova tecnologia desenvolvida em um espaço de ideias pode migrar para outro espaço de ideias através dessas conexões de longa distância; nesse novo ambiente, a tecnologia pode revelar propriedades inesperadas ou provocar uma conexão que conduza a uma nova descoberta. O valor do laço fraco não se deve apenas à velocidade com que transmite informação através de uma rede; ele também promove a exaptação dessas ideias. Embora formado como metalúrgico, Gutenberg tinha laços fracos com os vinhateiros da Renânia alemã. Sem esse vínculo, teria sido apenas um tipógrafo pioneiro, fazendo pequenos aperfeiçoamentos no tipo móvel de Pi Sheng. Ao não se dedicar com exclusividade à ilha da metalurgia, tornou-se algo muito mais importante: o pai da impressão.
O modelo da exaptação baseada no laço fraco também nos ajuda a compreender uma clássica história de epifania científica do século XX: a descoberta da estrutura em hélice dupla do DNA por Watson e Crick. Como Ogle e outros observaram, na pequena comunidade científica que trabalhava com o problema do DNA no início dos anos 1950, a pessoa que tinha a visão mais clara e direta da própria molécula não era nem James Watson nem Francis Crick. Era Rosalind Franklin, uma biofísica da Universidade de Londres, que estava usando uma tecnologia de ponta, a cristalografia de raios X, para estudar os misteriosos fios do DNA. Mas a visão de Franklin era limitada por dois fatores. Em primeiro lugar, a tecnologia dos raios X era ainda imperfeita, dando-lhe apenas indícios sobre a estrutura em hélice e a simetria dos pares de bases. Franklin estava também limitada pela ilha conceitual em que baseava seu trabalho. Sua abordagem era puramente indutiva: dominar a tecnologia dos raios X e depois usar a informação obtida para construir um modelo do DNA. (“Vamos deixar que os dados nos revelem a estrutura”, disse ela a Crick numa frase famosa.) No entanto, para “ver” a hélice dupla no início dos anos 1950 não bastava analisar o DNA numa máquina de raios X. Para solucionar o mistério, Watson e Crick tiveram de juntar as peças com ferramentas tomadas de múltiplas disciplinas: bioquímica, genética, teoria da informação e matemática, para não falar nas imagens de raios X de Franklin. Até a metáfora escultural de Crick provou-se decisiva para decifrar o código. Perto de Franklin, Watson e Crick pareciam quase diletantes e amadores: Crick trocara a física pela biologia durante a pós-graduação; nenhum dos dois tinha uma compreensão abrangente de bioquímica. Mas o DNA não era um problema passível de ser resolvido no âmbito de uma única disciplina. Watson e Crick tiveram de fazer empréstimos em outras áreas para compreender a molécula. Como Ogle o expressou, “depois que ideias fundamentais, tomadas de espaços de ideias que normalmente tinham pouco contato uns com os outros, foram conectadas, elas começaram, de maneira quase autônoma, a fazer um novo sentido em relação umas com as outras, levando ao surgimento de um todo que era mais que a soma de suas partes”. A título de nota de rodapé, vale acrescentar que Watson e Crick eram conhecidos por fazer longas pausas para o cafezinho, nas quais jogavam conversa fora num ambiente mais descontraído, fora do laboratório – um costume em geral desdenhado pelos colegas mais exigentes. Com suas conexões de laço fraco com campos díspares e sua inteligência exaptativa, Watson e Crick abriram caminho para um prêmio Nobel na mesa de seu café particular.
A APLICAÇÃO DO MODELO DO CAFÉ À CRIATIVIDADE ajuda a explicar um daqueles estranhos paradoxos da inovação nos negócios no século XXI. Mesmo depois que grande parte da cultura high-tech abraçou as redes líquidas e descentralizadas em sua abordagem à inovação, a companhia sempre classificada como a mais inovadora do mundo – a Apple – permanece desafiadoramente no caminho inverso, cercando o desenvolvimento de novos produtos de um sigilo quase cômico. Você não verá Steve Jobs ou Jonathan Ive recorrendo ao crowdsourcing para desenvolver a próxima geração do iPhone. Se redes abertas e densas levam a mais inovação, como explicar o caso da Apple, que está muito mais perto da fábrica de chocolate de Willy Wonka do que da Wikipédia no que se refere à abertura? A resposta mais fácil seria que Jobs e Ive simplesmente possuem um gênio colaborativo que permitiu à companhia produzir um fluxo constante de produtos revolucionários. Não há dúvida de que os dois sejam imensamente talentosos no que fazem, mas nenhum deles poderia projetar, fabricar, programar e vender sozinho um produto tão complexo como o iPhone, da maneira como Jobs e Steve Wozniak construíram o primeiro computador Apple em sua hoje lendária garagem. É evidente que a Apple tem uma liderança sem paralelo, mas deve haver também algo no ambiente da empresa que permita que ideias tão revolucionárias cheguem ao mercado.
De fato, embora a Apple tenha adotado em grande medida uma mentalidade de fortaleza em relação ao mundo exterior, seu processo de desenvolvimento interno é estruturado de maneira explícita para facilitar choques e conexões entre diferentes perspectivas. O próprio Jobs gosta de usar a alegoria do protótipo de carro para descrever seu método. Você vai a uma exposição, vê um protótipo de carro fascinante, extremamente inovador, e pensa: “Eu compraria isto sem pestanejar.” Cinco anos depois, o carro chega enfim ao mercado e foi reduzido de uma Ferrari a um Corcel – todas as características verdadeiramente revolucionárias foram abrandadas ou eliminadas por completo, e o que sobrou mais parece o modelo do ano passado. O iPod poderia ter tido o mesmo triste destino: Ive e Jobs poderiam ter esboçado um tocador de música brilhante, revolucionário e, dois anos depois, lançado uma bobagem. O que manteve a chama acesa?
A questão é que o ciclo de desenvolvimento da Apple é mais parecido com um café do que com uma linha de montagem. A maneira tradicional de construir um produto como o iPod se resume a seguir uma cadeia linear de conhecimento especializado. Os projetistas propõem um aspecto básico e um conjunto de características, depois passam o projeto para os engenheiros, que descobrem como fazê-lo realmente funcionar. Em seguida isso é passado para a turma da fabricação, que estuda como produzi-lo em grandes números. Por fim, é enviado para o pessoal de marketing e vendas, que encontra maneiras de convencer as pessoas a comprar o produto. Esse modelo é bastante disseminado porque funciona bem em situações em que a eficiência é fundamental, mas tende a ter efeitos desastrosos sobre a criatividade, pois a ideia original é podada a cada etapa da cadeia. A equipe de engenheiros dá uma olhada no projeto original e diz: “Bem, não podemos fazer isso… mas podemos fazer 80% do que vocês querem.” E depois a equipe de produção diz: “Claro, podemos fazer uma parte disso.” No final, o projeto original foi tão adulterado que está irreconhecível.
A abordagem da Apple, em contraposição, é mais desorganizada e caótica a princípio, mas evita esse problema crônico do esvaziamento das boas ideias à medida que elas avançam pela cadeia de desenvolvimento. A empresa a chama de produção paralela ou concorrente. Todos os grupos – projeto, fabricação, engenharia, vendas – se encontram continuamente durante o ciclo de desenvolvimento do produto, fazendo brainstormings, trocando ideias e soluções, criando estratégias para a abordagem dos problemas mais prementes e em geral mantendo a conversa aberta para um leque diversificado de perspectivas. O processo é ruidoso e envolve muito mais reuniões abertas e encontros conflituosos que os ciclos de produção tradicionais – e muito mais diálogo entre pessoas versadas em diferentes disciplinas, com todas as dificuldades de tradução que isso gera. Mas os resultados falam por si.
MUITOS DOS GRANDES INOVADORES DA HISTÓRIA conseguiram construir um ambiente de café interdisciplinar dentro de suas próprias rotinas de trabalho. Conta-se muitas vezes a história de que Darwin adiou a publicação de sua teoria da evolução por temer a controvérsia que ela provocaria, em particular depois que a morte de uma filha querida, Annie, traumatizou sua religiosa mulher, Emma. Mas Darwin também tinha um imenso número de interesses paralelos para distraí-lo de sua obra: estudava recifes de coral, criava pombos, desenvolvia elaborados estudos taxonômicos de besouros e cracas, escreveu artigos importantes sobre a geologia da América do Sul, passou anos pesquisando o impacto das minhocas sobre o solo. Nenhuma dessas paixões era central para a argumentação que seria por fim publicada em A origem das espécies, mas todas forneceram úteis elos de associação e conhecimento à questão da evolução. O mesmo padrão eclético aparece em inúmeras outras biografias. Joseph Priestley saltava entre a química, a física, a teologia e a teoria política. Antes mesmo de se tornar um estadista, Benjamin Franklin realizou experimentos em eletricidade, teorizou sobre a existência da Corrente do Golfo, projetou fogões e, é claro, ganhou uma pequena fortuna como impressor. Enquanto solucionava o mistério do cólera nas ruas de Londres nos anos 1850, John Snow também inventava uma tecnologia de ponta para a administração do éter, publicando pesquisas sobre o envenenamento por chumbo e a ressuscitação de crianças recém-nascidas, sem deixar, durante todo esse tempo, de atender seus pacientes como clínico geral. Inovadores lendários como Franklin, Snow e Darwin possuem algumas qualidades intelectuais em comum – certa rapidez de raciocínio, curiosidade insaciável –, mas também com partilham outro atributo determinante. Todos têm muitos hobbies.
O historiador Howard Gruber gosta de chamar esses projetos concorrentes de “redes de empreendimentos”, mas prefiro descrevê-los usando um termo contemporâneo que tem sido muito malvisto nos últimos tempos: multitarefa. Não se trata, é claro, do multitarefa da tela do computador moderno: passar do e-mail para a planilha e dela para o Twitter em questão de segundos. O que descrevo é muito mais vagaroso que esse modo frenético da era digital; as próprias tarefas individuais podem se prolongar por dias ou semanas antes de dar lugar ao projeto seguinte. Mas há, ainda assim, uma constante variação, não apenas no assunto, mas no tipo de trabalho realizado em cada uma das tarefas. Havia modos fundamentalmente diferentes de atividade intelectual envolvidos nos diversos projetos de John Snow. A construção de engenhocas mecânicas para controlar a temperatura do clorofórmio exigiu habilidades e uma atitude mental diferentes daquelas exigidas para atender os pacientes ou escrever artigos para The Lancet. É tentador chamar esse modo de trabalho de “tarefas em série”, no sentido de que os projetos se sucedem uns aos outros, mas a ênfase na natureza seriada do trabalho obscurece um aspecto fundamental desse ambiente mental: num modo multitarefa lento, um projeto ocupa o papel central por uma série de horas ou dias, mas os demais projetos persistem o tempo todo nas margens da consciência. É essa superposição cognitiva que torna esse modo tão inovador. O projeto em curso pode exaptar ideias daqueles que estão nas margens, fazer novas conexões. Não é tanto uma questão de procurar ser original, mas de permitir à mente mover-se entre múltiplas esferas. O movimento de um campo para outro nos força a abordar barreiras intelectuais a partir de novos ângulos, ou a tomar ferramentas emprestadas de uma disciplina para resolver problemas em outra.
A história corrente sobre Snow conta que ele solucionou o problema da transmissão do cólera pela água contaminada fazendo o trabalho epidemiológico convencional durante o surto de 1854 no Soho, mas a verdade é que ele desenvolvera uma versão da teoria da transmissão pela água muito antes daquele ano. Uma razão para não se deixar enganar pela influência da teoria do “miasma” dominante na época – segundo a qual o cólera era causado pela inalação de vapores insalubres – foi que seu trabalho com anestesia lhe dera um conhecimento prático do modo como os gases se difundiam através da atmosfera. Snow raciocinou que a distribuição geográfica da mortalidade de uma doença transmitida por gás venenoso obedeceria a um padrão diferente: grande número de mortes nas proximidades imediatas dos maus odores, declinando muito rapidamente à medida que a distância da fonte original aumentasse. De maneira semelhante, a formação médica de Snow também o ajudou a descartar a visão limitada do miasma: ao tratar pacientes acometidos pelo cólera, ele observou que os efeitos da doença sobre o corpo humano indicavam que o agente fora ingerido, não inalado, uma vez que produzia quase todo o seu dano direto no sistema digestivo e quase não afetava os pulmões. Num sentido verdadeiro, para dar seu grande salto na compreensão do cólera, Snow teve de pensar como químico molecular e como médico. Graças à sua habitual alternância lenta entre tarefas, ele teve esses sistemas interpretativos prontamente disponíveis quando se voltou para o mistério do cólera. Como vimos no caso das penas do Archaeopteryx, Snow não poderia ter previsto que seus experimentos mecânicos com inaladores de clorofórmio se provariam úteis para livrar o mundo moderno de uma bactéria letal, mas esse é o poder imprevisível das exaptações. O acaso favorece a mente conectada.
a Assim era conhecido o famoso assassino em série David Richard Berkovitz, que matou pelo menos seis pessoas em Nova York de julho de 1976 a agosto de 1977, quando foi preso. (N.T.)
b Shock jock é uma gíria pejorativa aplicada a locutores de rádio cujos maneirismos, declarações e ações são ofensivos para muitos ouvintes. (N.T.)