EM 12 DE ABRIL DE 1836, o HMS Beagle zarpou das ilhas Cocos depois de um idílio de duas semanas que dera a Darwin as provas decisivas de que precisava para sustentar a primeira grande ideia de sua jovem carreira. Quando o navio deixava as plácidas águas verdes da laguna, rumando de volta para a Inglaterra passando pelas ilhas Maurício, o capitão FitzRoy tentou medir a profundidade na periferia do atol com uma linha de mais de 2 mil metros de comprimento. Não encontrou o fundo. As mensurações de FitzRoy confirmaram, nas palavras de Darwin, que a “ilha forma uma montanha submarina muito elevada, com lados mais escarpados até que os do mais abrupto cone vulcânico”. O dado lhe foi fundamental, porque estava construindo em sua mente uma teoria sobre “montanhas submarinas muito elevadas” e seu legado geológico.
A teoria havia nascido anos antes como uma intuição: ocorreu-lhe que a teoria da formação dos atóis de seu mentor Charles Lyell tinha um defeito crítico que girava em torno da probabilidade estatística de que uma montanha só pudesse se elevar poucos metros acima do nível do mar. A variação da altura entre as ilhas vulcânicas era imensa: algumas terminavam em ponta uns três metros acima do nível do mar; outras, como Mauna Kea, se alçavam cerca de 3 mil metros rumo ao céu. A maioria dos picos vulcânicos situava-se centenas de metros abaixo da superfície. No entanto, Darwin, como a maioria dos geólogos de sua época, sabia que os oceanos eram povoados por um imenso número de atóis tropicais que haviam todos, de algum modo, parado de se elevar cerca de um metro acima do nível do mar. Era como espalhar cem bolas de futebol num campo e ver vinte delas se agruparem exatamente sobre a linha do meio de campo. Darwin não dispunha da teoria das placas tectônicas, mas sabia que massas de terra subiam e desciam por todo o mundo. Não fazia sentido, porém, que essas forças épicas fossem detidas de algum modo, num número significativo de casos, pela linha divisória do nível do mar. Um vulcão empurrado para cima por imensas correias transportadoras deveria, evidentemente, irromper rapidamente através da superfície do oceano e continuar subindo, como Mauna Kea e inúmeras outras ilhas vulcânicas. Pela mesma lógica, uma montanha que descesse mar adentro deveria continuar descendo. Por que tantas delas ficavam emperradas?
Não sabemos ao certo quando a resposta ocorreu a Darwin. É possível que isso tenha acontecido quando ele se encontrava nas areias brancas de uma praia das ilhas Cocos. Conhecendo Darwin, é mais provável que ela tenha se aproximado devagar, centímetro por centímetro, e que algum pedacinho dela lhe tenha chegado quando estava parado naquelas águas verdes. Embora a ideia fosse simples, era extremamente difícil visualizá-la. Começava com um princípio definidor: o solo sob os pés de Darwin não era produto de forças geológicas. Havia sido construído por um organismo.
Esse organismo era da ordem Scleractinia, composta pelos chamados escleractíneos ou corais-pétreos. Vivo, um escleractíneo individual é um pólipo mole com poucos milímetros de comprimento. Esses corais crescem em vastas colônias, com novos pólipos aparecendo como brotos ao lado dos “pais”. Numa das estranhas ironias da biologia marinha, a contribuição essencial do coral para o ecossistema submarino se dá depois de sua morte. Durante a vida, o pólipo constrói um exosqueleto à base de cálcio, produzindo um mineral chamado aragonita, vigoroso o suficiente para permanecer intacto séculos depois da morte de seu hospedeiro original. Um recife de coral, portanto, é uma espécie de vasto mausoléu submerso: milhões de esqueletos unidos para formar a dispersão alveolada, labiríntica de um recife.
Durante a quinzena passada nas ilhas Cocos, Darwin havia observado que o solo das ilhas era inteiramente desprovido de rochas tradicionais. Como escreveu em seu diário: “Em todo o grupo de ilhas, cada átomo, desde a partícula mais diminuta até grandes fragmentos de rocha, carrega a marca de um dia ter sido sujeito ao poder do arranjo orgânico.” Em sua vasta maioria, essas partículas e rochas eram esqueletos de aragonita, os restos mortais de pólipos de coral que morreram décadas ou séculos antes. Isso por si só provava que a teoria de Lyell era errônea: se Darwin estivesse parado no topo de um vulcão submarino adormecido, as rochas a seus pés deviam ser basalto, obsidiana ou púmice, rochas criadas a partir do esfriamento de lava derretida. Elas teriam sido forjadas num abrasador núcleo de magma, não excretadas por minúsculos pólipos.
O fato de o solo de um atol do oceano Índico ser de natureza orgânica, construído por corais, e não o produto de atividade vulcânica, não oferecia uma resposta satisfatória para o mistério da existência dos atóis. Por que uma colônia de corais formaria um objeto oval tão perfeito no meio de um imenso oceano, a centenas de quilômetros de outra massa de terra? Para solucionar o mistério, Darwin lançou mão da teoria original de Lyell, mas acrescentou-lhe uma alteração essencial. Transformou uma moldura imóvel num quadro em movimento. Para compreender a formação dos atóis, Darwin percebeu, era preciso imaginar uma ilha vulcânica afundando pouco a pouco no mar. À medida que desapareciam sob as ondas do oceano, as encostas do vulcão tornavam-se um terreno extremamente propício à formação de colônias de coral, que prosperam em águas rasas a profundidades de até cerca de 45 metros. (A dieta delas baseia-se sobretudo em algas fotossintéticas, que não podem sobreviver muito longe da superfície da água iluminada pelo sol.) Por fim o topo da montanha afunda no mar, deixando um círculo de água rasa definido pela periferia da cratera vulcânica. Dada a lentidão com que afunda, os corais são capazes de construir seus recifes mais rapidamente que o fim desse processo. Como empreiteiros superzelosos, as colônias de coral continuam adicionando novos pavimentos à estrutura que erigiram no topo do vulcão, limitadas apenas pela superfície da água. À medida que o pico original mergulha cada vez mais no mar, os recifes mais velhos morrem, mas continuam dando suporte estrutural aos novos e florescentes recifes acima deles. Darwin não tinha meios para medir isso com precisão, mas previu que corais fósseis deveriam se estender por até cerca de 1.500 metros abaixo do nível do mar antes de atingir uma fundação vulcânica, número que foi confirmado mais de um século depois com a moderna tecnologia de perfuração.
Enquanto o Beagle partia, Darwin registrou a natureza milagrosa dessa explicação em seu diário: “Devemos ver um atol como um monumento erigido por miríades de minúsculos arquitetos para marcar o ponto onde uma antiga terra jaz enterrada nas profundezas do oceano.”
Publicada anos mais tarde na forma de monografia, a teoria da formação do atol de Darwin marcou sua primeira contribuição significativa para a ciência, em grande parte resistindo à prova do tempo. A própria ideia surgiu de uma espécie de bate-papo de diferentes disciplinas: para solucionar o mistério, ele teve de pensar ao mesmo tempo como naturalista, biólogo marinho e geólogo. Precisou compreender o ciclo de vida das colônias de coral e observar as minúsculas evidências de escultura orgânica nas rochas das ilhas Cocos. Teve de pensar nas imensas escalas de tempo da elevação das montanhas vulcânicas e de seu afundamento no mar. E, é claro, contou com a competência técnica de FitzRoy com a sonda. A compreensão da ideia em toda a sua complexidade requereu uma espécie de inteligência investigativa, propensa a pensar nos termos dessas diferentes disciplinas e escalas. Darwin fez a melhor descrição disso no capítulo sobre suas investigações nas ilhas Cocos em A viagem do Beagle: “Ficamos surpresos quando viajantes nos falam das vastas dimensões das Pirâmides e de outras grandes ruínas, mas quão absolutamente insignificantes são as maiores delas quando comparadas a essas montanhas de pedra acumuladas pela atividade de vários animais minúsculos e tenros. Esse é um prodígio que a princípio não nos enche os olhos do corpo, e sim, após reflexão, os olhos da razão.”
Da perspectiva de Darwin, esses “animais minúsculos e tenros” haviam construído uma plataforma, no sentido mais prosaico do termo. Darwin caminhava naquele topo em forma de pires, sem se esforçar para se manter à tona na água no meio do oceano Índico, porque aqueles animais haviam construído uma plataforma em que se podia ficar estável. Mas um recife de coral é uma plataforma num sentido muito mais profundo: os montes, placas e fendas do recife criam um hábitat para milhões de outras espécies, uma metrópole submarina de imensa diversidade. Até hoje, as tentativas de medir com precisão a plena diversidade dos ecossistemas de recifes foram frustradas pela complexidade desses hábitats; os cientistas acreditam atualmente que algo entre 1 milhão e 10 milhões de espécies diferentes vivem em recifes de coral no mundo todo, embora estes só ocupem um décimo de 1% da superfície do planeta. Este é o paradoxo de Darwin: que águas tão pobres em nutrientes tenham podido gerar tanta vida maravilhosa, improvável, heterogênea.
Durante quarenta anos, os ecologistas usaram a expressão “espécie-chave” para designar um organismo que tem um impacto desproporcional sobre seu ecossistema – um carnívoro, por exemplo, que é o único predador de uma outra espécie que, na ausência dele, esmagaria o hábitat com um crescimento populacional desenfreado. Se o predador-chave for removido, o hábitat se desintegra. Cerca de vinte anos atrás, porém, Clive Jones, um cientista que trabalhava no Cary Institute of Ecosystem Studies, decidiu que a ecologia precisava de outra expressão para descrever um tipo muito específico de espécie-chave, aquele que na realidade cria o próprio hábitat. Jones chamou esses organismos de “construtores de ecossistemas”. Os castores são o exemplo clássico de construtores de ecossistemas. Derrubando choupos e salgueiros para construir represas, eles transformam, sozinhos, florestas temperadas em brejos, que depois atraem e sustentam um número extraordinário de vizinhos: os pica-paus-de-penacho furando cavidades para servir de ninho em árvores mortas; patos-carolinos e gansos-do-canadá instalando-se em tocas de castor abandonadas; garças, martins-pescadores e andorinhas desfrutando os benefícios da lagoa “artificial”, ao lado de rãs, lagartos e outras espécies de águas lentas como libélulas, mexilhões e besouros aquáticos. Tal como aquelas colônias de coral submersas, o castor cria uma plataforma que sustenta um conjunto extraordinariamente diversificado de vida.
A construção de plataformas é, por definição, uma espécie de exercício de comportamento emergente. Embora o minúsculo pólipo escleractíneo não esteja ativamente empenhado em criar uma Las Vegas submersa, sua incessante labuta – assimilando algas e erigindo aqueles esqueletos de aragonita – gera um sistema de nível mais elevado. O que havia sido um trecho muito desolado de água do mar pobre em nutrientes é transformado num resplandecente foco de atividade. O castor constrói uma represa para melhor se proteger de seus predadores, mas essa engenharia tem o efeito emergente de criar um espaço em que martins-pescadores, libélulas e besouros podem obter seu sustento. Os construtores de plataformas e de ecossistemas não apenas abrem uma porta para o possível adjacente. Eles constroem um novo pavimento inteiro.
A CAFETERIA DO LABORATÓRIO DE FÍSICA APLICADA (LFA) da Universidade Johns Hopkins em Laurel, Maryland, tinha sido por muito tempo o local de produtivas conversas profissionais entre físicos, técnicos, matemáticos e proto-hackers que ali trabalhavam. Mas a conversa no almoço da segunda-feira, dia 7 de outubro de 1957, foi excepcionalmente animada, graças às manchetes publicadas no fim de semana anunciando o lançamento pelos soviéticos do Sputnik 1, o primeiro satélite artificial a orbitar em volta da Terra. Dois jovens físicos, William Guier e George Weiffenbach, viram-se mergulhados numa acalorada discussão sobre os sinais de micro-ondas que provavelmente estariam emanando do Sputnik. Após indagar de alguns colegas, apuraram que ninguém se dera o trabalho de ir ao laboratório durante o fim de semana para ver se era possível captar sinais do satélite no equipamento do LFA. Por acaso, Weiffenbach se encontrava no meio de uma tese de doutorado sobre espectroscopia de micro-ondas e tinha um receptor de 20MHz instalado em sua sala.
Guier e Weiffenbach passaram a tarde debruçados sobre o receptor, tentando ouvir a impressão digital sonora do Sputnik. Para combater os incrédulos, que na certa levantariam a hipótese de o lançamento ser uma elaborada mistificação, mero produto da propaganda comunista, os soviéticos haviam construído o satélite de tal maneira que ele transmitisse um sinal excepcionalmente acessível: um tom ininterrupto transmitido numa margem de 1kHz perto de 20MHz. No fim da tarde, Weiffenbach e Guier tinham um firme controle do sinal. O próprio som era um pulso breve de bipes eletrônicos, mas o contexto o transformava na música mais maravilhosa que os dois homens já tinham ouvido. Parecia inacreditável: estavam sentados numa sala na suburbana Maryland, ouvindo sinais produzidos pelo homem que vinham do espaço. A notícia de que dois jovens físicos haviam captado o sinal do Sputnik começou a correr pelo LFA, e um fluxo constante de visitantes apareceu à porta de Weiffenbach para dar uma escutadinha no gorjeio do satélite.
Ao perceber que estavam ouvindo a história, Guier e Weiffenbach ligaram o receptor a um amplificador de áudio e começaram a gravar o sinal em fita de áudio. Incluíram etiquetas com o tempo em cada gravação. Enquanto ouviam e gravavam, os dois homens se deram conta de que poderiam usar o efeito Doppler para calcular a velocidade com que o satélite estava se movendo pelo espaço. Observado pela primeira vez mais de um século antes pelo físico austríaco Christian Doppler, o efeito Doppler descreve a maneira previsível como a frequência de uma forma de onda muda quando a fonte ou o receptor estão em movimento. Imagine um alto-falante tocando uma única nota, digamos o lá acima do dó central, que emite ondas de som com uma frequência de 440Hz. Se o alto-falante for fixado no capô de um carro e ele estiver se movendo em direção a você, as ondas vão se sobrepor, o que torna o intervalo entre uma e outra mais curto. Quando essas ondas comprimidas chegam ao seu tímpano, a frequência percebida é de mais de 440Hz. Quando o carro se afasta, o efeito Doppler se inverte, e a nota percebida cai abaixo do lá. Podemos ouvir o efeito Doppler cada vez que uma ambulância passa por nós com a sirene ligada; à medida que ela se afasta, o som da sirene parece ficar mais grave.
O efeito Doppler provou-se um conceito de extraordinária versatilidade: foi usado para detectar a expansão do universo, seguir a pista de tempestades elétricas e realizar ultrassons. Como o Sputnik emitia um sinal numa frequência constante e o receptor de micro-ondas era estacionário, Guier e Weiffenbach perceberam que poderiam calcular o movimento do satélite com base nas mudanças pequenas, mas constantes, na forma de onda que estavam captando. Tarde da noite, lembraram-se de mais um truque matemático: pela análise da inclinação da mudança do Doppler, poderiam determinar qual era o ponto da órbita do Sputnik mais próximo do LFA. Quase por acaso, descobriram uma técnica não só para calcular a velocidade do satélite, mas para mapear de fato a trajetória de sua órbita. Em poucas horas, os jovens cientistas haviam passado da capacidade de ouvir à de medir e rastrear o satélite russo.
Nas semanas que se seguiram, formou-se uma rede frouxa de cientistas do LFA em torno da intuição de Guier e Weiffenbach, acrescentando detalhes, pesquisando a literatura teórica sobre corpos orbitantes e propondo aperfeiçoamentos da tecnologia. Por fim, o diretor do laboratório aprovou fundos para o processamento dos números no novo computador UNIVAC. Poucos meses depois, eles tinham uma descrição completa da órbita do Sputnik, inteiramente inferida a partir daquele simples sinal de 20MHz. Guier e Weiffenbach haviam iniciado uma busca que iria definir suas carreiras profissionais, a “aventura de suas vidas”, como mais tarde a chamaram. Na primavera de 1958, Frank T. McClure, o lendário diretor interino do Laboratório de Física Aplicada, chamou Guier e Weiffenbach à sua sala. McClure tinha uma pergunta confidencial a lhes fazer: se vocês puderam usar a localização conhecida de um receptor no solo para calcular a posição de um satélite, seriam capazes de fazer o contrário? Poderiam calcular a localização de um receptor no solo se conhecessem a órbita exata do satélite? Após raciocinar por alguns minutos, Guier e Weiffenbach responderam que sim. Na verdade, deduzir a localização a partir de uma órbita conhecida – em vez de fazê-lo a partir de uma posição estacionária no solo – tornaria os resultados significativamente mais precisos. Sem explicar seu interesse final na questão, McClure disse aos dois para fazer uma rápida análise de viabilidade. Após passar alguns dias processando freneticamente os números, eles comunicaram: o “problema inverso”, como o chamaram, era eminentemente solucionável.
Logo Guier e Weiffenbach entenderiam por que o problema inverso era tão importante para McClure: as Forças Armadas estavam desenvolvendo os mísseis nucleares Polaris, destinados a ser lançados de submarinos. O cálculo de trajetórias precisas para um ataque com mísseis exigia o conhecimento da localização exata do lançamento. Era bastante fácil determinar isso em terra – digamos, para um silo de mísseis no Alasca –, mas terrivelmente difícil no caso de um submarino imerso em algum ponto do oceano Pacífico. A ideia de McClure era pegar a engenhosa solução para o caso do Sputnik e virá-la de cabeça para baixo. Os militares estabeleceriam a localização desconhecida de seus submarinos acompanhando a posição conhecida dos satélites que orbitavam acima da Terra. Assim como, durante milhares de anos, os marinheiros haviam usado as estrelas para navegar, eles guiariam seus navios usando as estrelas artificiais da tecnologia dos satélites.
O projeto foi apelidado de sistema Transit. Exatos três anos após o lançamento do Sputnik, havia cinco satélites dos Estados Unidos em órbita fornecendo dados de navegação às Forças Armadas. Em 1983, quando o voo 007 da Korean Air Lines foi derrubado a tiros após penetrar no espaço aéreo soviético por conta de defeitos em faróis de navegação baseados no solo, Ronald Reagan declarou que a navegação por satélite deveria ser um “bem comum”, aberto para uso civil. Por volta dessa época, o sistema ganhou seu nome atual, Global Positioning System, ou GPS. Meio século mais tarde, cerca de trinta satélites GPS cobrem a Terra com sinais de navegação, fornecendo orientação para os mais diversos usos, de telefones celulares a Airbus A380, passando por câmeras digitais.
Para ver em primeira mão o imprevisível poder de uma plataforma emergente, basta olhar para o que aconteceu com o GPS nos últimos cinco anos. Os engenheiros que construíram o sistema – a começar por Guier e Weiffenbach – criaram todo um ecossistema de inesperada utilidade. Frank McClure identificou que era possível utilizar a intuição original de Guier e Weiffenbach para rastrear submarinos nucleares, mas não fazia a menor ideia de que cinquenta anos depois o mesmo sistema ajudaria adolescentes a se divertir com jogos complexos em centros urbanos, ou alpinistas a explorar cadeias de montanhas traiçoeiras, ou fotógrafos a transferir suas fotos para mapas no Flickr. Como a própria internet, o GPS revelou ter imenso valor comercial, e muitas empresas com fins lucrativos estiveram envolvidas na construção da infraestrutura que fez dele uma realidade. Mas as ideias fundamentais para a tecnologia – a própria noção de satélite, os relógios atômicos em que os satélites se baseiam para informar a hora exata e, é claro, a intuição original de Guier e Weiffenbach com o Sputnik – vieram todas do setor público. A natureza generativa da plataforma do GPS reflete muito bem o ambiente que lhe deu origem. Quando solicitados a explicar como tiveram a revelação do Sputnik, Guier e Weiffenbach a atribuíam mais ao hábitat intelectual do Laboratório de Física Aplicada que a seus talentos pessoais:
O LFA era um ambiente magnífico para garotos curiosos, em especial o Centro de Pesquisas. Estimulava as pessoas a pensar de maneira ampla e geral sobre problemas de trabalho, e no qual jovens de espírito indagador sentiam-se livres para tentar satisfazer sua curiosidade. De maneira igualmente importante, era um ambiente onde garotos em início de carreira podiam recorrer a colegas versados nos mais diversos campos relevantes, e, graças ao gênio da diretoria do laboratório, a colegas que eram também instruídos em matéria de hardware, armas e necessidades de armamentos.
À sua maneira modesta, o LFA era uma plataforma que estimulava e amplificava intuições, que permitia que elas se conectassem com outras mentes que tinham conhecimento especializado pertinente. Nessa rede densa, instalou-se uma das plataformas tecnológicas mais produtivas do século XXI. O LFA não era uma plataforma puramente aberta, é claro. Afinal de contas, havia segredos militares em jogo; e, mesmo que Guier e Weiffenbach tivessem desejado compartilhar sua descoberta sobre o Sputnik com o mundo, era muito mais difícil difundir uma descoberta desse tipo numa época em que o computador mais avançado – o UNIVAC – ocupava uma sala inteira. Atrás daquelas portas fechadas, porém, William Guier e George Weiffenbach foram os beneficiários de um ambiente que estimulava as colisões casuais entre diferentes campos, um ambiente que deixava dois “garotos” topar com uma ideia na cafeteria e construir toda uma carreira em torno disso.
Espaços físicos semelhantes estão associados à maioria dos viveiros de inovação: o Homebrew Computer Club no Vale do Silício; as reuniões de quarta-feira de Freud na Berggasse, número 19; os cafés do século XVIII. Todos esses espaços foram, na escala menor que lhes era característica, plataformas emergentes. Os donos de café, como Edward Lloyd ou William Unwin, não estavam tentando inventar a indústria editorial moderna, nem a atividade seguradora; não estavam em absoluto interessados em promover o avanço científico ou a agitação política. Eram apenas homens de negócios, empenhados em faturar o suficiente para alimentar suas famílias, exatamente como aqueles castores construíam tocas para manter sua prole protegida. Mas os espaços criados por Lloyd e Unwin revelaram ter esta propriedade incomum: faziam as pessoas pensar de maneira diferente, porque geravam um ambiente em que diversos tipos de pensamento podiam colidir e se recombinar de maneira produtiva.
AS PLATAFORMAS MAIS GENERATIVAS surgem em pilhas, de maneira notória no caso da plataforma em camadas da web. (A expressão “pilha de plataformas” é ela mesma parte da linguagem comum da programação moderna.) A web pode ser imaginada como uma espécie de sítio arqueológico, com camadas sobre camadas de plataformas enterradas sob cada página. Tim Berners-Lee conseguiu projetar sozinho um novo meio porque pôde construir livremente sobre os protocolos abertos da internet. Não teve de construir um sistema inteiro para que a comunicação entre computadores se espalhasse por todo o planeta; esse problema já havia sido resolvido décadas antes. Bastou-lhe construir uma estrutura padrão para descrever páginas de hipertexto (HTML) e compartilhá-las através de canais existentes da internet (HTTP). Até o HTML baseou-se em outra plataforma já em uso, a SGML, desenvolvida na IBM nos anos 1960. Passados catorze anos, quando Hurley, Chen e Karim se reuniram para criar o YouTube, construíram o serviço costurando elementos de três plataformas diferentes: a própria web, é claro, mas também a plataforma Flash da Adobe, que lidava com a gravação e a reprodução de vídeos, e a linguagem de programação Javascript, que permitia a usuários finais incorporar videoclipes em seus próprios sites. A habilidade de construir sobre essas plataformas preexistentes explica por que três sujeitos foram capazes de criar o YouTube em seis meses, ao passo que um exército de comitês de especialistas e companhias eletrônicas levaram vinte anos para transformar a HDTV em realidade.
A cultura também se baseia em plataformas empilhadas. Os paradigmas da pesquisa de Kuhn são os equivalentes da plataforma de software no mundo científico: um conjunto de regras e convenções que governam a definição de termos, a coleta de dados e os limites da investigação para determinado campo. A argumentação de Kuhn foi muitas vezes confundida com a defesa de uma visão puramente relativista da ciência, na qual a “verdade” empírica está sempre entre aspas porque os paradigmas se substituem uns aos outros com o tempo. (Nessa concepção, a aparente solidez da verdade científica não passa de uma espécie de holograma produzido pelo aparato do paradigma.) Mas raras vezes se derrubam os paradigmas científicos modernos; o que se faz é construir sobre os mesmos. Eles criam uma plataforma que sustenta novos paradigmas sobre si. A teoria da seleção natural de Darwin era uma ideia “perigosa” – como disse Daniel Dennett – porque contestava explicações bíblicas e antropocêntricas da história da vida, mas a verdadeira medida de seu poder científico está no número de novos campos que se empilharam sobre ela ao longo do século XX: a genética mendeliana e populacional que emergiu da “síntese moderna” nos anos 1940; a revolução da genética molecular desencadeada pela descoberta do DNA por Watson e Crick; campos mais recentes como a psicologia evolucionária e o “desenvolvimento evolucionário”. Com frequência, novos campos científicos se formam apoiando-se sobre múltiplas plataformas. O campo que explicou finalmente o paradoxo de Darwin – a ecologia dos ecossistemas – se ergue sobre, entre outros, os ombros da genética populacional, da teoria dos sistemas e da bioquímica.
Até as artes criativas se desenvolvem por meio de plataformas empilhadas. Isso pode parecer surpreendente, dada nossa tendência a evocar a imagem do gênio artístico individual, isolado em seu ateliê, criando todo um mundo novo em sua cabeça a partir do zero. Por razões compreensíveis, gostamos de falar sobre inovações artísticas em termos do modo como elas rompem as regras, abrem novas portas no possível adjacente que mentes inferiores nem sequer chegam a ver. Mas gênios precisam de gêneros. Flaubert e Joyce precisaram do gênero romance de formação (bildungsroman) para contorcê-lo e solapá-lo em A educação sentimental e Retrato do artista quando jovem. Dylan precisou das convenções da música folk acústica para eletrizar o mundo com Highway 61 Revisited. Os gêneros fornecem um conjunto de regras implícitas que têm coerência suficiente para que tradicionalistas possam brincar em segurança dentro delas e artistas mais ousados possam contrariar nossas expectativas brincando com elas. Os gêneros são plataformas e paradigmas do mundo criativo. Eles quase nunca são gerados por uma única obra pioneira. Em geral, aparecem aos poucos, mediante um conjunto complexo de sinais compartilhados transmitidos entre artistas, cada um adicionando um elemento diferente à mistura. O romance policial tem sido um gênero consistente há cem anos, mas quando de fato tentamos traçar seu pedigree é difícil apontar um único doador: é um pouco de Poe, um pouco de Dickens, um pouco de Wilkie Collins, para não mencionar as dezenas de contemporâneos que, embora não tenham criado o cânone, desempenharam um papel no equilíbrio das convenções do gênero. O mesmo pode ser dito do cubismo, do sitcom, da poesia romântica, do jazz, do realismo mágico, do cinema-verdade, dos romances de aventura, dos reality shows e de praticamente qualquer gênero ou modo artístico que tenha tido alguma importância.
A pilha criativa, no entanto, é mais profunda que os gêneros, eles próprios construídos sobre convenções e tecnologias mais estáveis. Mesmo quando Miles Davis anunciou seu rompimento com as convenções de acorde e improvisação do bebop em “So What?” – a faixa de abertura de Kind of Blue –, estava trabalhando dentro das convenções da escala dórica de ré que a canção utiliza, um modo que, como seu nome sugere, remonta aos gregos dóricos. E, é claro, Davis construiu seu novo som a partir das plataformas mais antigas e estáveis dos próprios instrumentos, a começar pelo trompete de pistons que tocava. Os trompetes “naturais”– sem as válvulas complexas que permitem ao trompetista mudar de tom sem se deter – são quase tão antigos quanto o modo dórico; o moderno trompete de pistons que Davis tocava surgiu como um padrão no século XIX, depois que fabricantes de instrumentos em toda a Europa passaram décadas tentando aperfeiçoá-lo. Se Davis teve condições de explorar o possível adjacente do jazz, de ajudar a inventar todo um novo gênero que outros desenvolveriam, foi em parte por não ter precisado inventar a escala dórica de ré ou o trompete de pistons.
No mundo on-line, o estudo de caso recente mais celebrado sobre o poder inovador de plataformas empilhadas foi a rápida evolução do Twitter. Da mesma maneira que os fundadores do YouTube, os criadores desse serviço de rede social, Jack Dorsey, Evan Williams e Biz Stone, beneficiaram-se de plataformas existentes: o famoso limite de 140 caracteres é baseado nas limitações da plataforma de comunicações móveis SMS, que eles utilizam para conectar mensagens da web a telefones celulares. Mas o que o Twitter tem de mais fascinante é o quanto se construiu sobre sua plataforma em apenas três anos. Assim que surgiu, ele foi alvo de zombaria, considerado uma distração frívola cuja principal utilidade era contar aos amigos o que tínhamos comido no café da manhã. Agora é usado para organizar e compartilhar notícias sobre os protestos políticos no Irã, driblar a censura governamental, fornecer suporte técnico a clientes de grandes empresas, divulgar notícias interessantes e milhares de outras aplicações que não tinham passado pela cabeça dos fundadores quando eles inventaram o serviço em 2006. Esse não é apenas um exemplo de exaptação cultural – pessoas encontrando um novo uso para uma ferramenta projetada para fazer outra coisa. No caso do Twitter, os usuários vêm reprojetando a própria ferramenta. A convenção de responder aos outros com o símbolo @ foi inventada espontaneamente por sua base de usuários. Os primeiros usuários do serviço trouxeram uma convenção da plataforma de envio de mensagens IRC e começaram a agrupar tópicos ou eventos com hashtags, como em “#30Rock” ou “#inauguração”. A capacidade de rastrear um live stream de tweets – que provavelmente se mostrará decisiva para o modelo comercial do serviço, devido a seu potencial publicitário – foi desenvolvida por uma nova empresa completamente distinta. Graças a essas inovações, seguir um live feed de tweets sobre um evento – debates políticos ou episódios da série Lost – tornou-se parte fundamental da experiência do Twitter. Durante o primeiro ano de existência do serviço, porém, esse modo de interação não teria sido tecnicamente possível. É como inventar um forno tostador e, um ano depois, olhar em volta e descobrir que todos os seus clientes, por si sós, descobriram uma maneira de transformá-lo num micro-ondas.
Um dos fatos mais expressivos com relação à plataforma do Twitter é que a vasta maioria de seus usuários interage com o serviço por meio de softwares criados por terceiros. Centenas de aplicativos de iPhone e BlackBerry lhes permitem manejar seus feeds do Twitter, todos criados por programadores amadores e pequenas start-ups. Há serviços que ajudam os usuários a fazer upload de fotos e inserir links para elas em seus tweets; programas que mapeiam outras pessoas que estão tuitando nas proximidades geográficas deles. Ironicamente, as ferramentas que nos são oferecidas quando visitamos o site Twitter.com mudaram muito pouco nos dois últimos anos. Mas há um Wal-Mart inteiro de ferramentas para o Twitter disponível por toda parte.
A diversidade da plataforma do Twitter não é casual. Ela resulta de uma estratégia deliberada que Dorsey, Williams e Stone abraçaram desde o início: primeiro eles construíram uma plataforma, depois fundaram o Twitter. com. Uma plataforma aberta em software é muitas vezes chamada de API, que significa application programming interface. Uma API é uma espécie de língua franca que aplicativos de software podem usar de maneira confiável para se comunicar uns com os outros, um conjunto de regras e definições padronizadas que permite aos programadores criar novas ferramentas com base em outra plataforma, ou combinar informações provenientes de múltiplas plataformas. Quando usuários da web fazem mashupsa usando o Google Maps, eles escrevem programas que se comunicam com os dados geográficos do Google usando seu API de mapeamento.
Algumas APIs revelam apenas um pequeno subconjunto do código subjacente de uma plataforma, em parte por razões de simplicidade, mas também por questões proprietárias. Convencionalmente, um programador cria um software e, depois de concluí-lo, expõe uma pequena parte de sua funcionalidade para programadores de fora por meio da API. A equipe do Twitter adotou a abordagem exatamente contrária. Primeiro eles criaram a API e expuseram todos os dados essenciais para o serviço, depois criaram o Twitter.com em cima da API. Em geral, pressupõe-se que os usuários de API são cidadãos de segunda classe, aos quais não se deve dar pleno acesso ao pulo do gato do software, sob pena de perder vantagem competitiva. Os criadores do Twitter reconheceram que a abertura completa proporcionava outro tipo de vantagem competitiva: aquela que decorre de se ter o maior e mais diversificado ecossistema de aplicativos de software sendo construído sobre sua plataforma. Podemos chamá-la de vantagem cooperativa. A própria companhia deixa de arcar sozinha com a responsabilidade de descobrir boas ideias para o produto. Numa plataforma aberta, boas ideias vêm de toda parte.
Observar o modo como companhias com fins lucrativos como o Twitter e o Google usaram APIs para estimular inovação foi fascinante. Mas é no setor público que encontramos os desenvolvimentos mais intrigantes. No outono de 2008, Vivek Kundra, diretor de tecnologia no Distrito de Colúmbia, anunciou um programa chamado Apps for Democracy (no lugar do título provisório um pouco mais escandaloso, Hack the District). Desenvolvedores de software foram convidados para criar aplicativos que fizessem uso dos dados abertos que o governo municipal punha a seu dispor. Esses aplicativos poderiam assumir praticamente qualquer forma imaginável – websites, aplicativos do Facebook, do iPhone –, contanto que tentassem tornar alguma parte do acervo de dados do governo útil para moradores, visitantes, empresas ou agências governamentais. Os vencedores receberiam um prêmio de 10 mil dólares.
A cidade concedeu aos programadores apenas trinta dias para a criação de seus aplicativos, mas mesmo com esse prazo curto, 47 diferentes programas foram apresentados. Um dos dois vencedores exibia guias para caminhadas pelos sítios históricos por toda a área de Washington, D.C., e o outro fornecia ampla informação demográfica para residentes que estivessem pensando em se mudar para um bairro diferente. Candidatos apresentaram ferramentas para rastrear os gastos do governo em projetos específicos, guias para ciclistas e informação em tempo real sobre vagas em estacionamento com dados recebidos diretamente de parquímetros instalados nas ruas. Um aplicativo engenhoso e engraçado, chamado StumbleSafely, ajudava usuários embriagados a encontrar o melhor trajeto para voltar a pé para casa a partir de qualquer bar da cidade.
O experimento do Distrito de Colúmbia fez tanto sucesso que versões dele vêm proliferando em dezenas de grandes cidades no mundo todo. Na primavera de 2009, quando o D.C. repetiu o concurso, Kundra não estava por lá para entregar os prêmios, mas por um bom motivo: havia sido nomeado diretor-geral de informação do país pelo presidente Obama, ajudando a criar o ambicioso programa Data.gov, junto com o concurso Apps for America, conduzido pela Sunlight Foundation. O que essas iniciativas têm em comum é uma disposição para aprender com as plataformas de inovação do Twitter, do Google e do Facebook. Quando Al Gore se dispôs a “reinventar o governo” durante a administração Clinton, uma das metas ambiciosas desse projeto era tornar a burocracia mais inovadora. Mas as soluções de Gore eram, quase sem exceção, voltadas para dentro: criação de novas estruturas organizacionais dentro do governo; redução da burocracia; estímulo à colaboração entre departamentos. O que o Apps for Democracy sugere é uma concepção mais aberta: é provável que algumas das melhores ideias para o governo venham de fora dele. Se a comunidade de programadores externos pôde construir algo tão essencial quanto uma interface de busca para o negócio do Twitter, por que os cidadãos não podem fornecer inovações comparáveis para seu governo? Com certeza deve haver alguém por aí capaz de descobrir uma experiência de usuário melhor para o preenchimento de declarações de imposto de renda.
As burocracias governamentais têm uma longa e muito merecida reputação de liquidar inovações, mas possuem quatro elementos essenciais que podem lhes permitir beneficiar-se da máquina de inovações de uma plataforma emergente. Primeiro, são repositórios de uma vasta quantidade de informações e serviços que poderiam ter valor para pessoas comuns, contanto que pudessem ser mais bem-organizados. Segundo, as pessoas têm um interesse apaixonado pelo tipo de informação com que os governos lidam, sejam dados sobre zoneamento industrial, serviços de saúde ou taxas de criminalidade. Terceiro, existe uma longa tradição de cidadãos que dedicam tempo e energia intelectual ao enfrentamento de problemas quando algum bem cívico está em jogo. Por fim, pelo fato de não estarem no setor privado, os governos não sentem nenhuma pressão competitiva para resguardar a propriedade dos dados.
Desde a supernova que foi a campanha de Howard Dean em 2004, ficou claro que a tecnologia de rede pode ser usada para ajudar nossos líderes a disputar cargos. Ainda não vimos, porém, nenhuma prova real de que essas extraordinárias tecnologias permitem a esses líderes governar de maneira mais eficiente depois de eleitos. Mas pensar no governo como uma plataforma – para tomar emprestada uma expressão do visionário da web Tim O’Reilly – poderia ser uma maneira de cumprir a promessa da governança da era digital. A liderança política envolve alguns elementos que não convém transferir para uma rede líquida: a tomada de decisões e a oratória. Mas um bom governo é, pelo menos em parte, aquele que encontra soluções inovadoras para os problemas de seus cidadãos ou para os problemas da própria burocracia. É aí que o modelo da plataforma pode operar sua mágica.
Parte dessa mágica é econômica: plataformas emergentes podem reduzir enormemente os custos de criação. Aqueles 47 aplicativos gerados em um mês pelo primeiro concurso Apps for Democracy representaram um custo total de 50 mil dólares para o governo do Distrito de Colúmbia. Kundra estimou que, se a cidade tivesse contratado o desenvolvimento desses aplicativos usando os métodos tradicionais, o custo teria sido de mais de 2 milhões de dólares. (Além disso, o processo demoraria mais de um ano.) A mesma matemática se aplica às inovações na web no setor privado. Se Hurley, Chen e Karim tivessem sido obrigados a inventar um padrão de vídeo on-line a partir do zero, teriam levado anos e gastado dezenas de milhões de dólares apenas para chegar a uma versão beta capaz de funcionar. Até hoje, o Twitter não gastou um centavo para desenvolver um aplicativo de mapeamento para rastrear a localização de tweets, porque existem inúmeros serviços, criados e promovidos por terceiros, que fazem exatamente isso a custo zero para o próprio serviço.
Embora não sejam medidas em unidades monetárias, plataformas naturais exibem padrões semelhantes de eficiência econômica. Pica-paus-de-penacho constroem suas casas fazendo grandes buracos em árvores mortas. Não tendo recursos para matar árvores, contudo, eles dependem extremamente de descobrir árvores que tenham morrido por causas naturais. Mas, ao criar seus pântanos florestais, os castores derrubam árvores constantemente, então os pica-paus florescem no ecossistema assim construído. Eles se beneficiam da madeira mais mole e maleável de uma árvore em putrefação, sem o custo de ter de derrubá-la. Curiosamente, esses pica-paus costumam abandonar as casas que entalharam na árvore após um ano, tornando-as os espaços ideais para ninhos de aves canoras. Estas se beneficiam das cavidades criadas pelos pica-paus sem o ônus de ter de furar toda aquela madeira. O brejo criado pelo castor, tal como a florescente plataforma criada pelos fundadores do Twitter, convida à variação por ser uma plataforma aberta, em que os recursos são compartilhados na mesma medida em que são protegidos.
SE VOCÊ NAVEGAR RUMO AO LESTE por cerca de trinta quilômetros a partir do estreito do rio Indian em Delaware e mergulhar 24 metros nas águas abertas do oceano Atlântico, descobrirá uma cidade submersa florescendo no fundo do mar: grandes cardumes de linguados, robalos e bodiões-de-ostra arremessando-se em meio a gramas marinhas suavemente ondulantes. Encontrará também cerca de setecentos vagões de metrô, depositados ali pelo Departamento de Recursos Naturais e Controle Ambiental de Delaware ao longo da década passada. Os trens foram afundados ao largo da costa de Delaware para criar um recife artificial, fornecendo um abrigo duradouro para mexilhões e esponjas que, de outro modo, seriam desafiados pelos fundos arenosos do litoral nordeste. Os recifes artificiais criam importantes locais de procriação para um grupo diversificado de peixes; a biomassa nos recifes de Delaware teve um aumento de 400% desde que os primeiros vagões foram afundados. (Os recifes artificiais também têm o efeito secundário de evitar a erosão da praia.) Não mais necessários para o transporte de massa, os vagões de metrô abandonados assumiram uma nova ocupação em seus anos de aposentadoria. Agora são construtores de ecossistema.
As plataformas têm um apetite natural por lixo, resíduos e bens abandonados. Os robalos e mexilhões que se instalam num trem retirado de circulação, assim como as aves canoras que se aninham nas casas abandonadas dos pica-paus, refletem um padrão que Jane Jacobs detectou anos atrás no desenvolvimento urbano: a inovação floresce em espaços postos fora de uso. As plataformas emergentes extraem grande parte de sua criatividade da reutilização inventiva e econômica de recursos existentes, e, como qualquer citadino sabe, o recurso mais caro numa cidade grande são os bens imobiliários. “Se você olhar à sua volta, verá que apenas empresas bem-estabelecidas, que movimentam grande volume de dinheiro, padronizadas ou fortemente subsidiadas podem se permitir, em geral, arcar com os custos de uma nova construção”, escreveu Jacobs. “Cadeias de lojas, cadeias de restaurantes e bancos se instalam em construções novas. Mas bares das redondezas, restaurantes estrangeiros e casas de penhores ocupam prédios antigos. Supermercados e lojas de sapatos, o mais das vezes, se instalam em prédios novos; boas livrarias e antiquários raramente o fazem.” Uma implicação disso é que negócios mais arriscados ou de menor escala tendem a ter dificuldade em progredir em ambientes planejados, que não passaram pelo desgaste econômico do tecido urbano tradicional, em que prédios, quarteirões e bairros inteiros perdem seus habitantes e suas indústrias originais, por vezes com efeitos catastróficos. (No subúrbio, o que mais se aproxima disso é o espaço marginal da garagem, onde a Hewlett-Packard, a Apple e o Google tiveram suas raízes.) O shopping center tem apenas cinquenta anos de idade, sendo portanto relativamente jovem pela escala milenar de algumas cidades, mas até agora mesmo o shopping mais malsucedido conservou sua função original: é um lugar onde consumidores se reúnem para comprar coisas para uso pessoal. Eles ainda não foram aproveitados por trupes de artistas performáticos, start-ups de internet ou pela indústria pesada. Há ruas em West Village, Manhattan, onde Jacobs morou por tantos anos, que hoje parecem shopping centers. Mas ao longo dos dois últimos séculos aqueles velhos prédios se prestaram a uma longa série de diferentes usos: serviram como o eixo de um porto industrial; como o principal ponto de fornecimento de carne para uma cidade de 8 milhões de habitantes; como refúgio para beatniks e rebeldes; como o epicentro do movimento pelos direitos dos gays. O argumento de Jacobs era que a energia frenética de uma grande cidade, a versão urbana da destruição criativa, cria um estoque natural de ambientes mais velhos, menos desejáveis, que pode ser reocupado de maneira imaginativa pelo pequeno ou pelo excêntrico, as subculturas que Fischer considerava tão essenciais à vida urbana. Artistas, poetas e empreendedores são os peixes vibrantes que nadam em meio aos corais das ilhas Cocos: parece-lhes mais fácil viver num exosqueleto há muito abandonado por seu hospedeiro original. Como Jacobs observou:
Quanto a ideias realmente novas de qualquer tipo – não importa quão lucrativas ou bem-sucedidas sob outros aspectos algumas delas possam final mente provar ser –, não há nenhuma margem para essas tentativas, erros e experimentações casuais na economia de altas despesas operacionais da nova construção. Velhas ideias podem por vezes usar prédios novos. Ideias novas têm de usar prédios velhos.
As plataformas reciclam muito mais do que a mera arquitetura. Os ecologistas marinhos que estudaram o fluxo de energia através dos ecossistemas dos recifes de coral descobriram que eles fazem um trabalho de reciclagem de nutrientes estarrecedor. Há muito os cientistas reconheceram a importância da relação simbiótica entre o coral e uma alga microscópica chamada zooxantela. De fato, os dois organismos dependem dos resíduos um do outro: a alga capta energia do sol e produz, como resíduo, oxigênio e açúcares, os quais os pólipos de coral usam para prover de energia seu próprio crescimento. Ao mesmo tempo, os corais expelem como resíduo dióxido de carbono, nitratos e fosfatos, que alimentam o crescimento das zooxantelas. À medida que a população de zooxantelas se expande, mais energia solar é captada, tornando-se portanto disponível para ser compartilhada com o ecossistema mais amplo do recife. A zooxantela e o coral são como dois vizinhos que, milagrosamente, têm uma necessidade premente do lixo um do outro e se encontram toda noite para trocar suas lixeiras.
A reciclagem de nutrientes de um recife de coral, entretanto, vai muito além da colaboração entre o coral e a zooxantela. Em 2001, uma equipe de ecologistas alemães liderada por Claudio Richter usou endoscópios para examinar as minúsculas cavidades internas de recifes de coral no mar Vermelho. Escondida nessas diminutas grutas havia uma vasta população de esponjas que se adaptou ao interior escuro dos recifes de coral. Nessa espécie de santuário, as esponjas estão a salvo de seus predadores naturais, os ouriços-do-mar e peixes-papagaios. Ao flutuar pelas cavernas de aragonita do recife, elas consomem um outro organismo fotossintético essencial, o fitoplâncton. Como as zooxantelas, as esponjas expelem resíduos que o coral usa como nutrientes. Essas esponjas por muito tempo escondidas incorporam dois princípios da reciclagem da plataforma: ao ocupar o espaço abandonado do esqueleto de coral, elas reduzem os custos de sua própria fortificação contra predadores. Em troca, expelem nutrientes que permitem a seu hospedeiro excretar ainda mais aragonita, criando novos hábitats para mais esponjas.
Todo o ecossistema do recife de coral se caracteriza por redes de alimentação igualmente intrincadas e interdependentes, cuja complexidade só agora os cientistas começam a mapear em sua plenitude. Quando compreendemos de que modo as plataformas biológicas usam os resíduos gerados dentro do sistema como base, o paradoxo de Darwin se dissolve por completo. A relação simbiótica entre o coral e a zooxantela aumenta a energia total captada do sol, e os estreitos ciclos de nutrientes criados pela reutilização produtiva de fontes de energia por tantas espécies densamente interconectadas significam que o hábitat pode fazer muito mais com menos. Encontramos uma metrópole aquática, com assombrosa diversidade, num ambiente que por todas as razões deveria ser tão desolado quanto o arenoso atol acima do nível do mar. O que impulsiona o processo não é a competição, mas antes as colaborações inventivas da densidade. A plataforma de coral não possui a luxuriante provisão de nutrientes que encontramos nos estuários, abastecidos diariamente pelos rios de água doce, que entalham a camada superficial do solo das margens rio acima. Apesar disso, a plataforma de coral floresce, graças ao trabalho de construção do ecossistema realizado pelo coral e à maravilhosa reciclagem, tanto do abrigo quanto dos resíduos biológicos, que torna a plataforma tão vital.b Acima da linha do mar, sobre aqueles atóis desabitados, encontramos uma paisagem acentuadamente diferente, muito mais próxima dos ecossistemas destrutivos dos desertos. A maior parte da energia solar que satura os ambientes desérticos se perde, assimilada apenas pelas poucas plantas suculentas que conseguem sobreviver num clima tão hostil. Essas plantas transmitem energia suficiente para sustentar um número limitado de insetos, que, por sua vez, fornecem alimento aos répteis e às aves ocasionais, os quais acabam por alimentar as bactérias. A maior parte da energia, porém, nunca chega a ser posta em uso por vida orgânica.
SE BRENT CONSTANTZ ESTIVER CERTO, a genialidade do recife de coral para reciclar e construir plataformas acabará transformando as plataformas físicas dos povoamentos humanos. No fim dos anos 1970, quando se empenhava em obter uma dupla especialização em biologia e geologia na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, Constantz ficou fascinado pelos extraordinários poderes de biomineralização do pólipo de coral, sua capacidade de construir uma imensa estrutura de carbonato de cálcio, resistente o bastante para durar milhões de anos. O ser humano pode ter justificável orgulho de façanhas veneráveis de engenharia como as Pirâmides ou a Grande Muralha da China, mas esses monumentos empalidecem se comparados à Grande Barreira de Coral, a maior estrutura biológica do planeta. Quando cursava a graduação, Constantz sonhava em aproveitar as habilidades construtivas do coral para criar edifícios inteiros a partir de moldes pré-fabricados. Em vez de derramar concreto ou prender vigas de aço, bastaria arriar os moldes na água do mar, e o processo de construção de recife, em um passe de mágica, faria surgir um edifício nesse lugar. Naqueles anos isso era uma fantasia, mas Constantz guardou essa estranha visão no fundo de sua mente por décadas.
Em 1985, ele estava prestes a concluir seu ph.D. na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, e havia se especializado em técnicas de biomineralização. A caminho de uma expedição de pesquisa financiada por uma bolsa da National Science Foundation, parou para fazer uma visita de alguns dias aos pais, que residiam perto de Palo Alto. Ao assistir a um jogo de futebol com o pai, um médico, Constantz pegou uma revista médica e, por acaso, leu um artigo sobre as enormes despesas de saúde associadas à osteoporose, doença que reduz a densidade mineral óssea, causando fraturas dolorosas e debilitantes. Algumas semanas mais tarde, quando se encontrava no atol Rangiroa, no meio do oceano Pacífico, medindo a velocidade com que os corais constroem seus esqueletos, se lembrou do artigo sobre osteoporose. “Se pudéssemos, de alguma maneira, nos apropriar desses processos de desenvolvimento de esqueleto”, pensou, “na certa poderíamos ajudar todas aquelas velhinhas com fratura no quadril.” Dois anos depois, ele fundou sua primeira empresa, que imitava o mecanismo de desenvolvimento do coral para criar um cimento ósseo destinado a reparar fraturas. Hoje, os cimentos criados por Constantz são usados na maioria das salas de cirurgia ortopédica nos Estados Unidos e na Europa.
Constantz fundou mais duas outras empresas biomédicas de sucesso, mas aquela intuição original sobre a construção de infraestrutura física a partir de esqueletos de coral persistia no fundo de seus pensamentos. Em meados da década de 2000, quando lecionava em Stanford, ele ingressou no corpo docente transdisciplinar do Woods Institute for the Environment, onde pela primeira vez se inteirou do gigantesco impacto ambiental da fabricação de cimento Portland, a terceira maior fonte de emissões de dióxido de carbono produzida pelo homem no planeta. Em sua mente, uma nova rede de ideias começou a ganhar corpo, reacendendo o velho sonho que acalentara na graduação de desenvolver cidades aquáticas. Os recifes de coral criavam estruturas semelhantes ao cimento sem poluir o ambiente, e Constantz tinha três empresas de sucesso para mostrar que a imitação da mecânica do desenvolvimento do coral podia criar novos materiais úteis. E se usássemos essa mecânica não para reparar fraturas de quadril, mas para construir viadutos rodoviários?
A intuição lenta que Constantz estivera cultivando por 25 anos havia por fim encontrado a conexão certa. Ele levou sua ideia de um cimento “verde” para Vinod Khosla, um dos lendários investidores de risco do Vale do Silício, que concordou em financiar a companhia (que Constantz chamou de Calera) sem chegar a ver sequer um plano de negócios ou uma apresentação de PowerPoint. Constantz construiu um laboratório em Los Gatos, onde se começou a “cultivar” cimento de carbonato em carrocerias cheias de água do mar. Logo ele descobriu que o sistema gerava oito vezes mais cimento se bombeasse a água cheia de dióxido de carbono, como uma enorme água tônica salgada. Um dia, quando Khosla foi inspecionar o laboratório, Constantz virou-se para seu investidor e perguntou: “Onde podemos conseguir grandes quantidades de dióxido de carbono?” Khosla fitou-o, incrédulo. Sendo um dos mais destacados investidores em tecnologia não poluente do mundo, ele tinha plena ciência de que o planeta estava repleto de fábricas que procuravam desesperadamente um lugar onde descarregar seu dióxido de carbono. Mercados inteiros estavam surgindo em torno de tecnologias de sequestro de carbono, que permitiam aprisionar CO2 injetando-o em reservas de óleo e gás ou enterrando-o nas profundezas do oceano. Mas Constantz havia tropeçado numa ideia muito mais poderosa. Não era preciso sepultar todo aquele CO2. Era possível usá-lo na construção de matéria.
A história da Calera ainda está longe de terminar. Ainda não se sabe se as cidades do futuro serão construídas debaixo d’água por recifes de coral artificiais submetidos a uma dieta de resíduos gasosos de fábricas. Descrito assim, parece fantasioso, é claro, mas não mais do que a ideia da Grande Barreira de Coral 1 bilhão de anos atrás. Há muito a natureza constrói suas plataformas reciclando os recursos disponíveis, inclusive os resíduos gerados por outros organismos. Se temos duas coisas em abundância no planeta neste momento são poluição e água do mar. Por que não tentar construir uma cidade com elas?
A PLATAFORMA EM PILHAS DA WEB também depende da reciclagem. A palavra “ecossistema” tornou-se um termo da moda para descrever a diversificada coleção de sites e serviços associados à web 2.0. Como quase todo jargão, a metáfora aponta para uma verdade importante, se pensarmos nos fluxos de informação que atravessam a web como análogos aos fluxos de energia que correm através de um ecossistema natural. Mas, também como quase todo jargão, a metáfora generaliza demais, e seu vasto alcance torna, na verdade, mais difícil perceber o que ocorreu de mais importante na evolução da web nos últimos quinze anos. Ela não é simplesmente um ecossistema; é um tipo específico de ecossistema. Começou como um deserto e foi se transformando de maneira incessante num recife de coral.
Parte da beleza e do poder da arquitetura de Tim Berners-Lee para a web reside em sua simplicidade: os sites eram feitos de páginas de hipertexto que podiam ser conectadas a outras informações na rede mediante um conduto básico: o link. Imagine que estamos em 1995 e você decidiu postar uma breve crítica de um novo restaurante no bairro Back Bay, em Boston, em sua home page, como dizíamos na época. Ao postar essa crítica, você introduz uma nova informação no ecossistema da web. Como zooxantelas que captam a energia do sol, pega uma informação gerada originalmente fora do ambiente (nas redes neurais de seu próprio cérebro) e a agrega aos recursos informacionais disponíveis na rede.
A questão é: o que acontecia naquela época com essa informação depois que você a adicionava ao sistema? Você podia conectá-la à home page do próprio restaurante, se por sorte ele tivesse uma naquelas priscas eras. Desse momento em diante, seu site estaria conectado a essa outra página, e as pessoas que o visitassem poderiam seguir essa trilha com um simples clique do mouse. Num sentido básico, ao levar até o site original do restaurante, você estaria reciclando a informação armazenada ali, tornando sua crítica mais informativa. Outro amante de comida poderia encontrá-la por acaso e criar um link a partir do site dele, ou encaminhar a URL da sua crítica a alguns amigos numa mensagem de e-mail. Na maioria dos casos, porém, a informação adicionada ao sistema permaneceria presa à sua página original, como um cacto solitário esperando que um punhado de insetos o encontrasse.
Agora salte direto para o presente. Sentado no mesmo restaurante, tendo acabado de saborear uma deliciosa vichyssoise, você passa a mão no celular e compõe uma avaliação entusiástica da sopa em 140 caracteres, com um link para o site do restaurante, e posta no Twitter antes mesmo que a conta chegue à mesa. Tal como antes, você adiciona nova informação ao ecossistema da web com esse tweet. Mas o que acontece com ela depois que você aperta para enviar em seu telefone?
Em primeiro lugar, circula pelo ecossistema de uma maneira impensável em 1995. Segundos depois que você a compôs, a mensagem chega a todos os seus seguidores no Twitter, em alguns casos enviada diretamente para os celulares deles. Graças à convenção do re-tweeting, adotada de maneira espontânea pelos usuários, esse tweet original sobre a vichyssoise é facilmente encaminhado a outros amantes da boa comida na rede. Mas esse é apenas o começo da jornada. Com os dados geográficos anexados à postagem pelo seu celular dotado de GPS, a rede social do mundo real Foursquare distribui o tweet sobre a sopa para todos os seus usuários que tenham visitado recentemente bares, restaurantes ou outros lugares públicos nas imediações. (Até cafés!) O tweet pipoca imediatamente na forma de uma “tachinha” nos inúmeros Twittermaps criados pelos programadores nos últimos anos. A plataforma hiperlocal de notícias Outside.in (que ajudei a criar há alguns anos) analisa os dados geográficos, detecta o nome do restaurante e o anexa no mesmo instante a páginas dedicadas à discussão do próprio restaurante, àquelas que cobrem todas as notícias e comentários sobre o bairro Back Bay e às dedicadas ao cenário gastronômico de Boston. Um jornal da cidade que construiu páginas de notícias específicas dos bairros usando a plataforma aberta de edição do Outside.in exibe esse tweet numa página dedicada a comentários sobre comida em Back Bay. O Google detecta o link para o website do restaurante e o registra como um “voto” que endossa a qualidade dessa página, o que faz com que ela ascenda na página de resultados quando as pessoas fazem uma busca com o nome dela. O tweet aparece até na caixa de entrada do e-mail do dono do restaurante, que estabeleceu um Google Alert para informá-lo automaticamente quando o nome de seu restaurante for mencionado. Em muitas dessas páginas – nos sites de jornal, no Google – aparecem anúncios locais de outros estabelecimentos nas redondezas, atraídos como mariposas pela chama brilhante dos dados geográficos embutidos no tweet.
A maior parte de toda essa sequência se desdobra em minutos, sem que você tenha de pensar em qualquer outra coisa além de compor aqueles 140 caracteres e se lembrar de apertar o botão para enviar.
Não se trata aqui da velha história de que vivemos numa era conectada, em que a informação flui com mais rapidez do que nunca. A informação não apenas flui nesse sistema; é reciclada e usada para novos fins, transformada por uma rede diversificada de outras espécies no ecossistema, cada qual com sua função distinta. Você escreve um tweet sobre o que comeu no almoço – o pecado original da banalidade do Twitter – e dentro de minutos essa informação é utilizada para auxiliar um número incrível de tarefas: vizinhos estabelecendo novas conexões pessoais, gastrônomos em busca de um delicioso prato de sopa de batata com alho-poró, donos de restaurante recebendo um feedback franco de seus clientes, o Google organizando toda a informação do mundo, jornais aperfeiçoando sua cobertura dos bairros a um custo mais baixo e estabelecimentos locais procurando atrair a atenção das pessoas em sua comunidade imediata. Nada mau para 140 caracteres.
Mas o que importa, é claro, é que esses 140 caracteres tiveram ajuda. A cada passo de sua jornada pisavam em camadas de plataformas empilhadas. A simplicidade de enviar uma mensagem para uma rede social de seguidores depende da API e da base de dados subjacente do Twitter; o fato de ela chegar no mesmo instante a telefones celulares como mensagem de texto se deve ao protocolo de comunicação SMS (assim como à rede de antenas de celular e satélites); o site Outside.in distribui seus dados sobre bairros usando a plataforma aberta RSS; os dados geográficos embutidos no tweet original baseiam-se na tecnologia de inteligência militar do GPS adaptada; todos os Twittermaps envolvem chamadas de API para o serviço de mapas do Google; e, é claro, a operação inteira é sustentada pela base de corais e zooxantelas de protocolos subjacentes, como HTTP e TCP/IP. Todos esses serviços e padrões foram essenciais para a teia de informação que se beneficiou daqueles 140 caracteres, mas nenhum deles exigiu um acordo de desenvolvimento de negócios, ou uma taxa de licença, ou mesmo um antiquado aperto de mãos. Você pode construir sobre todos eles sem pedir permissão, e quando não é preciso pedir permissão a inovação floresce. Quando Guier, Weiffenbach e McClure projetavam seu sistema para ajudar submarinos americanos a lançar mísseis Polaris contra a União Soviética, nunca lhes passou pela cabeça que um dia alguém usaria aquela plataforma para tecer elogios a um prato de sopa de batata com alho-poró para estranhos que estivessem nas imediações. Plataformas empilhadas são assim: você pensa que está lutando na Guerra Fria e descobre que, na realidade, está ajudando pessoas a descobrir onde almoçar.
De maneira irônica, o benefício real das plataformas empilhadas reside no conhecimento que não precisamos mais ter. Não temos de saber como enviar sinais para satélites ou analisar dados geográficos para fazer aquele tweet circular por todo o ecossistema da web. Miles Davis não precisou construir um trompete de pistons ou inventar a escala dórica de ré para gravar Kind of Blue. Não é necessário que a ave canora abrigada num ninho de pica-pau saiba como furar um buraco num tronco de choupo, nem como derrubar uma árvore de mais de trinta metros de altura. Esse é o poder generativo das plataformas abertas. A ave canora não arca com o custo de furar e derrubar madeira porque o conhecimento de como fazer essas coisas foi abertamente fornecido por outras espécies na cadeia. Basta-lhe saber gorjear.c
a Página ou aplicação da web que usa e combina dados, apresentações ou funcionalidades de duas ou mais fontes para criar novos serviços. (N.T.)
b O mesmo padrão aparece nas florestas pluviais, exatamente por haver tantos organismos explorando cada minúsculo nicho do ciclo de nutrientes. Essa eficiência é uma das razões por que abrir clareiras em florestas tropicais é um gesto tão míope: os ciclos de nutrientes de seus ecossistemas são tão estreitos que o solo em geral é muito pobre para a agricultura – toda a energia disponível foi captada antes de atingir a terra.
c Gorjear é to tweet em inglês. (N.T.)