Numa área do Brooklyn chamada Williamsburg, na esquina um tanto desolada da Grand Street com a Morgan Avenue, ergue-se um prédio de cinco andares, construído no estilo românico adulterado que os arquitetos industriais apreciavam um século atrás. Hoje ele serve para uma mescla de usos: jovens de vinte e poucos anos dividindo lofts nas franjas de uma das áreas mais descoladas de Nova York, em meio a um punhado de pequenas empresas, a maioria na área de informática. Há cem anos, o prédio teve um único ocupante: a Sackett-Wilhelm Lithography Company. Quando paramos diante da porta da frente na Grand Street, ou examinamos as trancas nas janelas do primeiro andar e as pichações nas antigas plataformas de carga e descarga, nada indica a natureza histórica do lugar. Mas ele é histórico: a Sackett-Wilhelm Lithography Company abrigou a primeira versão eficiente de uma máquina que faria mais para transformar os padrões de povoamento dos seres humanos que qualquer outra invenção do século XX, exceto talvez o automóvel.
Em 1902, a companhia possuía um lucrativo e crescente negócio de impressão de publicações em cores, como a popular revista de humor Judge. Mas via-se diante de um problema exasperante: o ar. Pequenas alterações na umidade podiam complicar o processo de impressão em vários níveis: o papel se expandia ao absorver moléculas de água que flutuavam no ar da fábrica; a tinta fluía em velocidades diferentes e demorava mais a secar. Dias excepcionalmente úmidos podiam acarretar enorme atraso em toda a produção, tornando difícil para os executivos da Sackett-Wilhelm cumprir os prazos de entrega prometidos aos clientes.
Desde a descoberta do fogo, o ser humano vinha moderando a temperatura do ar de maneira artificial. O século XIX havia testemunhado uma crescente tendência a sistemas mecânicos de aquecimento. Alguns projetos exóticos tinham tentado refrescar o interior de prédios, mas todos envolviam o resfriamento do ar com imensas quantidades de gelo. (O Madison Square Theater em Manhattan usava quatro toneladas de gelo por dia para tornar as noites de verão suportáveis para seus frequentadores.) Mas nenhuma dessas tentativas resolvia o problema da umidade. Após duas ondas sucessivas de calor nos verões de 1900 e 1901, os proprietários da Sackett-Wilhelm entraram em contato com o escritório da Buffalo Forge Company, especializada em sistemas mecânicos de aquecimento para a grande indústria, em Nova York. Eles eram especialistas em tornar o ar mais quente. Seriam capazes de torná-lo mais seco?
Eles tiveram sorte, porque o fundador da Buffalo Forge Company, William F. Wendt, cedendo aos apelos de um ambicioso engenheiro elétrico de 25 anos chamado Willis Carrier, havia acabado de criar um “programa de pesquisa” em que o jovem poderia empreender projetos mais especulativos. O laboratório de Carrier era o lugar perfeito para o enfrentamento de um problema como a desumidificação do ar, e ele se lançou no projeto com entusiasmo. Após experimentar vários esquemas sugeridos pelos colegas, Carrier seguiu os próprios instintos e construiu um aparelho no qual a água fria passava através de uma serpentina, que usualmente transportava vapor. Usando tabelas de ponto de condensação fornecidas pelo Weather Bureau, construiu um sistema que esfriava o ar até a temperatura de condensação que produziria a umidade de 55% que a companhia Sackett-Wilhelm considerava ideal. No final do verão de 1902, um sistema projetado por Carrier estava em funcionamento na litografia. Ele extraía água de um poço artesiano e um esfriamento adicional era proporcionado por uma máquina de refrigerar de amoníaco. O efeito total de esfriamento num dia quente de verão equivalia ao derretimento de quase 50 mil quilos de gelo num único período de 24 horas.
Nos anos seguintes, Carrier continuou tentando aperfeiçoar seu sistema. O aparelho da Sackett-Wilhelm fora um sucesso, mas as serpentinas de aço tendiam a enferrujar com o uso regular. Uma noite, enquanto esperava um trem na Filadélfia, observando um forte nevoeiro avançar pela plataforma, Carrier teve um súbito lampejo. Seu sistema de condicionamento de ar poderia ser uma máquina para produzir nevoeiros em miniatura: puxando ar através de um fino spray de água dentro do aparelho, ele poderia usar a própria água como superfície de condensação. Graças àquelas resistentes ligações de hidrogênio, as moléculas de vapor de água no spray extrairiam a umidade do ar, tornando-o mais seco e eliminando o problema da ferrugem. (Como disse Carrier em sua autobiografia: “Água não enferruja.”) Carrier requereu uma patente por seu “Aparelho para tratamento do ar” em setembro de 1904, que lhe foi concedida no segundo dia de 1906. Pouco tempo depois, com um grupo de engenheiros empresariais da Buffalo Forge, Carrier desligou-se da empresa e fundou a Carrier Engineering Corporation, dedicada exclusivamente à fabricação de aparelhos de ar-condicionado. À medida que os condicionadores de ar passaram de curiosidade a item de luxo, transformando-se por fim numa necessidade da classe média, a empresa fez de Carrier um homem rico. Em 2007, a Carrier Corporation, agora parte da United Technologies, arrecadou 15 bilhões de dólares em vendas. Graças à brilhante ideia de seu fundador, a segunda metade do século XX viu uma migração em massa dentro dos Estados Unidos em direção aos climas das regiões Sul, Sudoeste e Sudeste, que haviam sido quase intoleráveis antes da adoção generalizada do ar-condicionado. Não é exagero dizer que a ideia de Carrier teve por efeito final o rearranjo do mapa social e político do país.
A HISTÓRIA DE CARRIER é o mito arquetípico da inovação moderna. Um indivíduo engenhoso, trabalhando num laboratório privado de pesquisa, impelido pela ambição e a promessa de grande riqueza, tem uma ideia brilhante num súbito lampejo e o mundo muda. Sim, a história de Carrier é ligeiramente mais complicada do que essa versão caricata sugere. A princípio ele estava mais interessado na umidade que na temperatura; a solução final levou vários anos para se consolidar; e alguns de seus recursos técnicos baseavam-se em ideias de predecessores. Mas essas objeções são irrelevantes. O caso de Carrier encaixa-se no molde clássico do empreendedor genial. Faltam-lhe quase todos os padrões que vimos nos capítulos anteriores: não há redes líquidas (nevoeiro à parte); não há exaptações em cafés; não há erros brilhantes. E termina com a triunfante obtenção de uma patente.
Tudo isso leva à pergunta inevitável: Willis Carrier é ou não uma anomalia?
A questão tem implicações políticas e sociais reais, porque a doxa do capitalismo de mercado como motor de inovação apoiou-se por muito tempo em histórias como a do milagroso aparelho de refrigeração de Willis Carrier, como uma pedra angular de sua fé.a Sob muitos aspectos, essas crenças faziam sentido, porque as alternativas implícitas eram as economias planejadas do socialismo e do comunismo. As economias dirigidas pelo Estado eram fundamentalmente hierarquias, não redes. Elas consolidavam o poder de tomar decisões num sistema de comando de cima para baixo, o que significava que novas ideias tinham de ser aprovadas pelas autoridades antes que pudessem começar a circular pela sociedade. Os mercados, em contraposição, permitiam que boas ideias brotassem em qualquer lugar no sistema. No moderno linguajar tecnológico, os mercados permitiam à inovação florescer nas bordas da rede. As economias planejadas eram mais parecidas com os antigos sistemas de computação de grande porte que antecederam a internet, em que cada participante tinha de obter autorização de uma máquina central para fazer um novo trabalho. Em 1940, quando Friedrich von Hayek propôs sua influente argumentação sobre a importância dos sinais de preço em economias de mercado, estava observando um fenômeno relacionado: o mecanismo descentralizado de estabelecimento de preços do mercado permite a um empresário estimar o valor relativo de sua inovação. Se uma pessoa descobre uma engenhoca interessante, não precisa convencer uma comissão do governo do quanto ela vale. Basta ter alguém que a compre.
Instituições e estruturas legais inteiras – sem falar em uma vasta torre de sabedoria convencional – foram construídas em torno do modelo de inovação de Carrier. Mas e se ele for uma exceção e não a regra?
Há três abordagens principais para a solução de uma questão tão complexa como essa. Podemos mergulhar fundo numa única história e tentar convencer nosso público de que ela representa uma verdade social mais ampla. (Foi a estratégia que adotei ao contar as histórias de John Snow e Joseph Priestley – e dos ambientes de inovação que moldaram seu trabalho – em meus dois livros anteriores.) A vantagem dessa abordagem é nos permitir examinar um estudo de caso em detalhes exaustivos. A desvantagem, claro, é que nosso público tem de acreditar que o estudo de caso que escolhemos é realmente representativo de uma verdade mais ampla. A segunda abordagem, que adotei nos capítulos anteriores deste livro, é construir uma argumentação em torno de várias anedotas, pinçadas de diferentes contextos e períodos históricos. A abordagem anedótica sacrifica o detalhe em prol da amplitude. Mas ela também corre o risco de ser acusada de tendenciosa. Se houver uma centena de Willis Carriers para cada Tim Berners-Lee, reunir histórias deste último num livro não prova de fato coisa alguma (na verdade, pode ser enganoso).
Para escapar das distorções potenciais das abordagens do estudo de caso e anedótica, é preciso examinar todo o campo da inovação através de uma única lente. Não há como saber se Willis Carrier é uma exceção estudando os detalhes de sua biografia. É preciso uma visão mais ampla. Façamos então um experimento com os dados disponíveis sobre a história da inovação. Tomemos cerca de duzentas das inovações e descobertas científicas mais importantes dos últimos seiscentos anos, começando com a prensa de tipos móveis de Gutenberg: todo tipo de coisa, da teoria da relatividade de Einstein à invenção do ar-condicionado e ao nascimento da World Wide Web. Vamos marcar cada descoberta em algum lugar de um dos quatro quadrantes deste diagrama:
Vamos classificar toda inovação que tenha envolvido uma equipe pequena e coordenada no seio de uma organização – ou, melhor ainda, um único inventor – como “individual”, e como “em rede” todas aquelas que se desenvolveram por meio de processos coletivos, distribuídos, com um grande número de grupos trabalhando no mesmo problema. Inventores que planejaram lucrar diretamente com as vendas ou o licenciamento de sua criação devem ser classificados como “mercado”; os que desejaram que suas ideias circulassem livremente na esfera da informação pertencem ao lado do “não mercado”. O resultado são quatro quadrantes: o primeiro relacionado à empresa privada ou ao empreendedor isolado; o segundo a um mercado em que diversas empresas interagem; o terceiro ao cientista amador ou diletante, que compartilha suas ideias livremente; e, por fim, o quarto quadrante, que corresponde a ambientes de código aberto ou acadêmicos, nos quais as ideias podem servir de base a outras e ser reimaginadas em grandes redes colaborativas.
Adotando essa perspectiva de longo prazo, podemos começar a responder à nossa questão inicial: em que medida o modelo de inovação de Willis Carrier é dominante?b Qual quadrado tem o histórico mais impressionante em matéria de geração de boas ideias?
Para nos orientarmos um pouco, nosso principal ocupante do primeiro quadrante – individual baseado no mercado – é o próprio Carrier, que conduziu sozinho a invenção do condicionador de ar e tinha claras aspirações comerciais para seu aparelho. (Gutenberg deve ser inserido aí também). Um exemplo de inovação de mercado em rede seria o tubo de vácuo, cuja criação envolveu uma rede descentralizada com dezenas de participantes fundamentais, incluindo Lee de Forest, que trabalharam quase todos como empreendedores interessados em patentes ou cientistas pesquisadores no âmbito de corporações maiores. A criação da World Wide Web por Tim Berners-Lee pertence ao quadrante individual, não baseado no mercado, ao passo que a própria internet pertence ao quarto quadrante, dado o vasto número de indivíduos e organizações do setor público envolvido na sua criação.
Cabe notar que essas classificações não refletem a natureza cumulativa de quase toda inovação. Berners-Lee precisou da plataforma aberta da internet para que sua criação do hipertexto decolasse, motivo pelo qual os muitos indivíduos que construíram a Arpanet e o TCP/IP deveriam ser vistos como colaboradores fundamentais da web. Se essas plataformas tivessem sido mais proprietárias – digamos, cobrando taxas de licença pelo privilégio de usá-las como base – é bem possível que Berners-Lee não tivesse se dado o trabalho de criar a web, uma vez que esse foi um projeto paralelo sobre o qual seus superiores quase nada sabiam.
É da natureza das boas ideias erguerem-se nos ombros de gigantes que as precederam, o que significa que, em certa medida, toda inovação importante depende fundamentalmente de uma rede. Para ficar claro, porém, convém não borrar a linha entre “indivíduo” e “rede” incluindo na discussão as inovações anteriores que inspiraram ou sustentaram a nova geração de ideias. Sim, é importante que Gutenberg tenha tomado emprestada a tecnologia da prensa de parafuso dos vinicultores, mas não podemos dizer que sua prensa de tipos móveis foi uma inovação coletiva da mesma maneira que, por exemplo, a internet foi. Por isso Gutenberg e Berners-Lee são classificados no lado individual do espectro.
Não há nenhuma fórmula matemática confiável para o estabelecimento dessas classificações, e até certo ponto todas elas têm um componente de subjetividade. Mas acredito que, vistas em conjunto, elas revelam um padrão interessante – interessante o bastante, eu diria, para que se tolere um pequeno ruído nos dados. Estamos acostumados a ver certos desenvolvimentos históricos – principalmente demográficos – nesse formato condensado de lapso de tempo. Observamos o crescimento de cidades, mercados ou populações nacionais em gráficos em que cada momento mede um século. Esses exames baseados em lapsos de tempo põem a nu verdades sobre as quais levantamentos no tempo presente ou narrativas individuais não podem lançar luz de maneira apropriada. (O Ensaio sobre os princípios da população de Malthus, que tanto inspirou Darwin e Wallace, ofereceu um dos primeiros vislumbres desse efeito especial.) Raras vezes, porém, medimos mudanças culturais dessa maneira. Assim, grande parte da história das ideias assemelha-se ao trabalho de Darwin como naturalista durante os longos anos que precederam a publicação de A origem das espécies: analisar as espécies individuais, definir suas características essenciais e colocá-las na caixa apropriada. Essa é uma ótima abordagem para compreender por que uma ideia específica surgiu num determinado momento no tempo. Mas, se quisermos enfrentar a questão um elo adiante na cadeia – como boas ideias tendem a surgir –, temos de atacar o problema de um ângulo diferente. Há momentos para se contar cracas. Porém, às vezes precisamos afastar o zoom e adotar a visão mais de longo alcance.
Ao escolher essa abordagem, estou exaptando uma técnica que o historiador literário Franco Moretti chama de “leitura distante”. Numa série de livros e ensaios influentes publicados ao longo da década passada, Moretti rompeu com a abordagem tradicional do Departamento de Literatura da “close reading”, em que textos literários individuais são analisados em exaustivo detalhe. Não importa se a leitura em questão é um tributo à moda antiga aos talentos singulares de um artista ou uma desconstrução politizada – podemos ler o texto em minúcia para revelar o gênio do autor, ou sua homofobia latente, mas em ambos os casos estamos fazendo uma leitura atenta, em que cada frase é um potencial dado em nossa análise. (“No fundo”, escreve Moretti, “é um exercício teológico – o tratamento muito solene de um número muito pequeno de textos levados muito a sério.”) A leitura distante adota uma visão de satélite da paisagem literária, procurando padrões mais vastos na história das histórias que contamos uns aos outros. Em uma análise tipicamente inventiva, Moretti rastreou a evolução dos subgêneros nos romances populares britânicos de 1740 a 1915, uma imensa taxonomia de formas narrativas – romances de espionagem, picarescos, góticos, mistério, histórias náuticas e outras tantas formas distintas. Representou num gráfico o tempo de vida de cada subgênero como uma espécie dominante no ecossistema literário britânico. O resultado está na página seguinte.
Quando adotamos a abordagem distante para a leitura de romances, somos capazes de ver padrões que simplesmente não são visíveis na escala de parágrafos e páginas, ou mesmo de livros inteiros. Podemos ler uma dúzia de silver-fork novelsc e Bildungsromans e ainda assim não perceber o fato mais notável revelado pelo gráfico de Moretti: que a diversidade de formas tem um equilíbrio impressionante entre si, devido a seus tempos de vida misteriosamente semelhantes, o que ele atribui à rotatividade geracional subjacente. A cada intervalo de 25 a trinta anos, uma nova fornada de gêneros torna-se dominante, ao mesmo tempo que uma nova geração de leitores busca novas convenções literárias. Se você estiver tentando entender o significado de uma obra individual, deve lê-la em detalhe. Mas, se estiver interessado no comportamento global do sistema literário – seus próprios padrões de inovação –, às vezes terá de ler a uma grande distância.
No estudo da inovação científica ou tecnológica, o equivalente da leitura atenta é a biografia meticulosa do grande inventor ou a história de uma única tecnologia – por exemplo, o rádio ou o computador pessoal. Por mais valiosas que sejam, essas abordagens têm suas limitações. A leitura detalhada nos deixa com as idiossincrasias de cada indivíduo ou invenção, um colorido local – mas não com as leis gerais. Quando consideramos a história da inovação à distância, o que perdemos em detalhe ganhamos em perspectiva. A classificação de duzentas boas ideias em quatro amplos quadrantes torna sem dúvida mais difícil aprender algo específico sobre cada inovação individual. Porém, nos permite responder à nossa questão inicial: que tipos de ambientes tornam a inovação possível?
Como a inovação está sujeita a mudanças históricas – muitas das quais são elas próprias resultado de influentes inovações na transmissão da informação –, os quatro quadrantes exibem formas distintas em períodos históricos diferentes. Vamos partir dessa visão das ideias revolucionárias de 1400 a 1600, começando com a prensa de Gutenberg e continuando até os primórdios do Iluminismo (ver página seguinte).
Esse é o formato que as inovações da época do Renascimento assumem, vistas de uma grande distância (conceitual). A maior parte delas se agrupa no terceiro quadrante: não mercado/individual. Um punhado de exceções se distribui de maneira bastante uniforme pelos outros três quadrantes. Esse é o padrão que se forma quando as redes de informação são lentas e não confiáveis, e as convenções econômicas empresariais estão pouco desenvolvidas. É difícil compartilhar ideias quando a imprensa e o sistema postal ainda são novidades e, na ausência de um mercado robusto de compradores e investidores, não há incentivo suficiente para comercializá-las. Por isso a era é dominada por artistas solistas: investigadores amadores, em geral abastados, que se dedicam às suas obsessões pessoais. Como não é de surpreender, esse período marca o nascimento da noção moderna do gênio inventivo, o visionário desgarrado que, de alguma maneira, enxerga além do horizonte que limita seus contemporâneos – Da Vinci, Copérnico, Galileu. Alguns desses solistas (dos quais Galileu foi o mais famoso) trabalharam fora de grupos mais amplos porque sua pesquisa ameaçava de maneira significativa os poderes estabelecidos da época. As poucas inovações que de fato emergiram de redes – os relógios portáteis de mola, que surgiram pela primeira vez em Nuremberg em 1480, e o sistema de contabilidade de dupla entrada, desenvolvido por negociantes italianos – têm suas origens geográficas em cidades, onde as redes de informação eram mais desenvolvidas. Os empreendedores solitários do primeiro quadrante, que construíam seus produtos em segredo para assegurar os ganhos finais que propiciariam, revelam-se praticamente inexistentes. Gutenberg foi uma exceção, não a regra.
Examinando os dois séculos seguintes, veremos que os padrões mudam de maneira espetacular (ver página seguinte).
A invenção solitária, amadora (quadrante três) cede grande parte de sua liderança ao poder ascendente das redes e das trocas comerciais (quadrante quatro). A mudança mais extraordinária situa-se ao longo do eixo horizontal, numa migração em massa das descobertas individuais (à esquerda) para os insights criativos em grupo (à direita). Durante o Renascimento, menos de 10% das inovações ocorrem em rede; dois séculos depois, a maioria das grandes inovações surge em ambientes colaborativos. Múltiplos desenvolvimentos provocam essa mudança, a começar pela prensa de Gutenberg, que passa a ter um impacto importante sobre a pesquisa um século e meio depois da chegada da primeira Bíblia às bancas, à medida que ideias científicas vão sendo armazenadas e compartilhadas na forma de livros e panfletos. Os sistemas postais, tão centrais para a ciência do Iluminismo, florescem por toda a Europa; as densidades populacionais aumentam nos centros urbanos; cafés e instituições formais como a Royal Society criam novos centros para a colaboração intelectual.
Muitos desses centros de inovação existem fora do mercado. As grandes mentes do período – Newton, Franklin, Priestley, Hooke, Jefferson, Locke, Lavoisier, Lineu – tinham pouca esperança de recompensa financeira por suas ideias, e faziam tudo o que estava em seu alcance para lhes dar uma circulação mais ampla. Mesmo assim, é possível perceber um movimento vertical rumo a incentivos de mercado. Quando o capitalismo industrial surge na Inglaterra no século XVIII, novas estruturas econômicas tornam os negócios de risco potencialmente mais lucrativos: compensações sedutoras atraem inovadores para a empresa privada, e a transformação das leis de patentes inglesas em código no início desse século imprime alguma confiança de que boas ideias não serão roubadas com impunidade. Apesar dessa nova proteção, a maior parte das inovações comerciais durante esse período assume uma forma colaborativa, com muitos indivíduos e empresas acrescentando melhorias e refinamentos ao produto. Os livros de história gostam de condensar esses processos evolucionários mais lentos em eurecas instantâneos de um único inventor, mas as tecnologias essenciais que potencializaram a Revolução Industrial foram, em sua maioria, exemplos do que os estudiosos chamam de “invenção coletiva”. Os livros didáticos referem-se informalmente a James Watt como o inventor da máquina a vapor, mas na verdade Watt foi um em meio a diversos inovadores que a aperfeiçoaram no curso do século XVIII.
FAÇAMOS UMA BREVE PAUSA no ápice da idade moderna e arrisquemos algumas apostas quanto ao padrão que se formará nos dois últimos séculos do milênio. Creio que a maioria de nós espera ver uma espetacular consolidação da atividade inovadora no primeiro quadrante, pois o capitalismo entra em seu período maduro, que abarca as eras da produção em massa e da sociedade de consumo. Tem-se a impressão de que todos os elementos preveem uma explosão de atividade no primeiro quadrante: um público cada vez mais próspero desejando gastar dinheiro em novas engenhocas; imposição vigorosa dos direitos de propriedade intelectual; surgimento de laboratórios de pesquisa e desenvolvimento nas grandes empresas; e um crescente grupo de empresas de capital privado disposto a financiar empreendimentos especulativos. Se o mercado competitivo do capitalismo moderno é o grande motor de inovação de nosso tempo, o primeiro quadrante deveria, por direito, dominar os dois últimos séculos de atividade.
O padrão que aparece, porém, é outro (ver abaixo).
Contra todas as probabilidades, o primeiro quadrante se revela o mais vazio da grade. Willis Carrier, afinal de contas, é uma exceção. No setor privado, a descoberta proprietária realizada num laboratório fechado torna-se uma raridade. Para cada Alfred Nobel, que inventou a dinamite em segredo nos subúrbios de Estocolmo, há meia dúzia de criações coletivas como o tubo de vácuo ou a televisão, cuja existência dependeu de várias empresas movidas pelo lucro, que conseguiram criar um novo produto importante por meio de redes descentralizadas. Reza a lenda que Edison inventou a lâmpada elétrica, mas na verdade ela surgiu através de uma complexa rede de interações entre Edison e seus rivais, cada um adicionando peças essenciais ao quebra-cabeça ao longo do processo. A invenção coletiva não é uma fantasia socialista. Empreendedores como Edison e De Forest foram muito motivados pela possibilidade de compensações financeiras e tentaram patentear tudo que puderam. Mas muitas vezes a utilidade de usar as ideias de outras pessoas como base suplantou a exclusividade de construir algo a partir do zero. Podiam-se desenvolver pequenas ideias numa sala fechada, sem acesso às intuições e insights dos concorrentes. No entanto, quando se pretendia fazer uma nova incursão de vulto no possível adjacente, era preciso ter companhia.
Mais impressionante ainda, porém, é a explosão de atividade no quarto quadrante.
Por que tantas boas ideias prosperaram no quarto quadrante, apesar da falta de incentivos econômicos? Talvez porque estes tenham uma relação muito mais complexa com o desenvolvimento e a adoção de boas ideias do que em geral imaginamos. A promessa de um lucro imenso estimula as pessoas a procurar descobrir inovações úteis, mas ao mesmo tempo as obriga a protegê-las. Os economistas definem “mercados eficientes” como aqueles em que a informação está uniformemente distribuída entre todos os compradores e vendedores no espaço. Em geral se considera a eficiência uma meta universal para qualquer economia – a menos que ela comercie ideias. Se as ideias fossem completamente liberadas, os empresários não poderiam lucrar com suas inovações, porque os concorrentes as adotariam de imediato. Assim, no que diz respeito à inovação, construímos de maneira deliberada mercados ineficientes: ambientes que protegem direitos autorais, patentes e segredos industriais, além de mil outras barreiras que erigimos para manter ideias promissoras longe do conhecimento dos outros.
Essa ineficiência deliberada não existe no quarto quadrante. Nesses ambientes não comerciais e descentralizados não há lucros enormes para motivar os participantes, mas sua abertura cria outras oportunidades poderosas para o florescimento de boas ideias. Todos os padrões de inovação que observamos nos capítulos anteriores – redes líquidas, intuições lentas, serendipidade, ruído, exaptação, plataformas emergentes – se adaptam melhor aos ambientes abertos, nos quais as ideias fluem por canais não regulados. Em ambientes mais controlados, onde o movimento natural das ideias é rigorosamente coibido, tais padrões são sufocados. Uma intuição lenta não encontra com facilidade seu caminho até outra intuição que poderia completá-la se houver uma tarifa a ser paga cada vez que ela tenta estabelecer uma nova conexão serendipitosa; dificilmente ocorrem exaptações entre disciplinas diferentes caso haja sentinelas vigiando suas fronteiras. Em ambientes abertos, no entanto, é fácil esses padrões de inovação ganharem raízes e se multiplicarem.
Como toda realidade social complexa, a criação de ambientes propícios à inovação é uma questão de escolha. Se todas as outras coisas permanecerem iguais, os incentivos financeiros irão de fato estimular a inovação. O problema é que todas as outras coisas nunca são iguais. Quando introduzimos recompensas financeiras num sistema, surgem barreiras e sigilo, e os padrões abertos de inovação passam a ter mais dificuldade para operar sua mágica. A pergunta, portanto, é: qual é o equilíbrio certo? É sem dúvida concebível que a promessa de tirar a sorte grande seja tão irresistível que mais do que compense as ineficiências introduzidas pela lei da propriedade intelectual e pelos laboratórios de P&D fechados. Em geral essa foi a suposição básica na maior parte das discussões recentes sobre as raízes da inovação, uma suposição baseada no histórico de inovação do livre mercado durante esse período. Como as economias capitalistas se provaram mais inovadoras que as economias socialistas e comunistas, dizia essa versão dos fatos, as ineficiências deliberadas da abordagem baseada no mercado deviam ter mais benefícios que custos.
Mas, como vimos, essa é uma falsa comparação. Não se trata de comparar o desempenho do mercado com o das economias planejadas. A comparação que se impõe é entre o mercado e o quarto quadrante. À medida que a grande empresa privada se desenvolvia nos dois últimos séculos, uma imagem especular dela cresceu em paralelo no setor público: a universidade moderna voltada para a pesquisa. Hoje, a maior parte da pesquisa acadêmica tem a abordagem do quarto quadrante: novas ideias são publicadas com o objetivo de permitir a outros participantes aprimorá-las e usá-las como base, sem quaisquer restrições à sua circulação além do devido reconhecimento de sua origem. Não se trata de pura anarquia, é claro. Você não pode simplesmente surrupiar a ideia de um colega sem lhe dar o devido crédito, mas há uma diferença fundamental entre processar por violação de patente e pedir uma nota de rodapé. Os pesquisadores acadêmicos obviamente recebem salários, e ideias de sucesso podem levar a cátedras muito cobiçadas, mas as recompensas econômicas são minúsculas se comparadas às do setor privado. E, o que é decisivo, tais recompensas não dependem da introdução de uma ineficiência artificial na rede de informação. É provável que um historiador que desenvolve uma teoria brilhante sobre as origens da Revolução Industrial obtenha uma cátedra numa escola da Ivy League, mas a própria teoria pode circular livremente através do ambiente, onde está sujeita a ser contestada, ampliada, exaptada e reciclada de inúmeras maneiras. O sistema universitário pode ser um negócio de grande escala hoje em dia, e as patentes por certo desempenham um papel importante em certos campos especializados, mas em geral a universidade permanece um sistema dedicado a produzir e preservar informação para as gerações presentes e futuras.
As universidades têm a reputação de serem torres de marfim, isoladas do mundo real, mas é inegável que a maioria das ideias paradigmáticas surgidas na ciência e na tecnologia durante o século XX tem raízes na pesquisa acadêmica. Isso é obviamente verdadeiro no tocante às ciências “puras”, como a física teórica, mas também no que diz respeito a linhas de pesquisa que à primeira vista parecem ter aplicações mais francamente comerciais. O contraceptivo oral, por exemplo, gerou bilhões de dólares para a Big Pharma na última metade do século XX, porém a maior parte da pesquisa decisiva que levou a seu desenvolvimento foi feita nas terras comunais intelectuais dos laboratórios de Harvard, Princeton e Stanford. Na linguagem do capítulo anterior, redes abertas de pesquisadores acadêmicos criam com frequência plataformas emergentes em que o desenvolvimento comercial se torna possível. É provável que a próxima década veja uma onda de produtos farmacêuticos que a ciência genômica tornará possível, mas essa plataforma científica subjacente – ou seja, a capacidade de sequenciar e mapear o DNA – foi quase inteiramente desenvolvida por um grupo descentralizado de cientistas acadêmicos trabalhando fora do setor privado nas décadas de 1960 e 70. Esse é um padrão que vemos a todo momento na era moderna: a inovação do quarto quadrante cria uma nova plataforma aberta na qual entidades comerciais podem se basear depois, seja para dar nova cara e aprimorar a descoberta original, seja desenvolvendo inovações sobre a plataforma subjacente.
A inovação do quarto quadrante foi ajudada também por outro desenvolvimento fundamental: o maior fluxo de informação. O transbordamento da informação precisou da densidade geográfica das cidades no Renascimento, e o sistema postal tornou possível a formação de pequenas teias disseminadas de criatividade na era do Iluminismo. Mas a internet de fato reduziu os custos do compartilhamento de boas ideias a zero. Na época de Galileu, todos os benefícios do transbordamento de informação eram tão potentes quanto hoje, mas era muito mais difícil criar o tipo de rede líquida em que colisões serendipitosas e exaptações podiam ocorrer. A conectividade da vida moderna significa que enfrentamos o problema oposto: é muito mais difícil impedir que a informação transborde do que pô-la em circulação. A consequência disso é que as empresas do setor privado decididas a proteger seus bens intelectuais têm de investir tempo e dinheiro na construção de barreiras de escassez artificial. Os participantes do quarto quadrante não têm esses custos: podem se concentrar na descoberta de nova ideias, não na construção de fortalezas em torno das velhas. E, como essas ideias podem circular livremente através da esfera da informação, outras mentes na rede podem aprimorá-las e expandi-las.
Não temos um vocabulário político pronto para o quarto quadrante, em particular para as formas não institucionais de colaboração que se desenvolveram em torno da comunidade de código aberto. Como esses sistemas abertos não dependem dos incentivos convencionais do capitalismo e resistem às restrições usuais da propriedade intelectual, a mente tende a situá-los automaticamente no lado do socialismo. No entanto, eles estão tão longe das economias estatais centralizadas que Marx e Engels ajudaram a inventar quanto da ganância do capitalismo. Embora não sejam em si produto de incentivos de mercado, criam muitas vezes ambientes em que empresas privadas prosperam, um fenômeno ao qual Lawrence Lessig alude com seu conceito de “economia híbrida”, que mescla elementos das redes abertas das terras comunais intelectuais com os muros e tarifas mais proprietários da esfera privada.
Nada disso implica que o mercado seja inimigo da inovação, ou que a competição entre empresas concorrentes não conduza com frequência a novos produtos úteis. (Afinal, o segundo quadrante está repleto de inúmeras ideias brilhantes que mudaram nossas vidas para melhor.) E burocracias inchadas continuam sendo sumidouros da inovação. Mas, felizmente para nós, a escolha não está entre mercados descentralizados e estados de comando e controle. Grande parte da história do progresso intelectual nos últimos séculos ocorreu num espaço menos formal entre esses dois regimes: no seminário da pós-graduação, no café, na casa do diletante e no quadro de avisos digital. O quarto quadrante deveria ser um lembrete de que existe mais de uma fórmula para a inovação. As maravilhas da vida moderna não se originaram exclusivamente do choque proprietário entre empresas privadas. Surgiram também de redes abertas.
ALGUNS MESES DEPOIS que Darwin publicou A origem das espécies em 1859, Karl Marx escreveu uma carta para Friedrich Engels que incluía algumas linhas endossando o radicalismo biológico de Darwin. “Embora desenvolvido no cru estilo inglês, este é o livro que contém a base na história natural para nossa concepção.” O “cru estilo inglês” era evidentemente a estranha relutância de Darwin em relacionar suas ideias científicas com a dialética hegeliana. (Hoje muitos veem isso com um dos pontos fortes de Darwin como escritor.) Sarcasmos à parte, Marx e Engels foram claramente revigorados pela controvérsia que Darwin desencadeara e o enxergaram como um espírito afim numa era que parecia à beira de múltiplas revoluções – tanto na ciência quanto na sociedade. Não está claro se Darwin nutriu os mesmos sentimentos por seus admiradores prussianos. Marx propôs dedicar o segundo volume de O capital a Darwin, que objetou: “Eu preferiria que a parte ou o volume não fosse dedicada a mim (embora lhe agradeça pela homenagem que pretendeu me fazer), pois isso iria, em certa medida, sugerir minha aprovação de toda a obra, da qual não tenho conhecimento.”
De um ponto de vista científico, Marx e Engels foram astutos ao tomar partido de Darwin tão cedo no debate sobre sua “perigosa” ideia. Mas não poderiam ter se enganado mais redondamente em suas previsões sobre o papel que a teoria desempenharia na arena político-econômica. Eles anteviram, de maneira acertada, que se fariam analogias entre a “sobrevivência dos mais aptos” de Darwin e a seleção competitiva das economias capitalistas de livre mercado, mas estavam convencidos de que elas seriam propostas como críticas ao capitalismo. Em 1865, Engels escreveu para um amigo: “Nada desacredita tanto o desenvolvimento burguês moderno quanto o fato de que ele ainda não conseguiu ir além das formas econômicas do mundo animal.”
Como se viu, ocorreu exatamente o oposto. As teorias de Darwin foram invocadas inúmeras vezes no século XX em defesa do sistema de livre mercado. O alinhamento com o mundo animal não desacreditou os mercados, como Engels previra. Ao contrário, os fez parecer algo natural. Se a Mãe Natureza produziu um planeta tão esplendidamente diverso através de um algoritmo de competição implacável entre agentes egoístas, por que nossos sistemas econômicos não haveriam de seguir as mesmas regras?
A verdadeira história da natureza, porém, não se reduz à competição implacável entre agentes egoístas, como o próprio Darwin percebeu. A origem das espécies termina com uma das passagens mais famosas na história da ciência, cujas palavras fazem eco ao verbete do diário que ele escrevera ao deixar as ilhas Cocos mais de vinte anos antes:
É interessante contemplar uma ribanceira emaranhada, forrada com muitas plantas de várias espécies, com aves a cantar nos arbustos, diversos insetos a esvoaçar por toda parte e minhocas a rastejar pela terra úmida, e refletir que essas formas intrincadamente construídas, tão diferentes entre si e em tão complexa dependência umas das outras, foram todas produzidas por leis que operam à nossa volta. … Dessa maneira, é da guerra da natureza, da fome e da morte que o mais excelso objeto que somos capazes de conceber, a saber, a produção dos animais elevados, decorre diretamente. Há uma grandeza nessa visão da vida…”
As palavras de Darwin oscilam entre duas metáforas estruturantes que governam toda a sua obra: as complexas interdependências da ribanceira emaranhada e a guerra da natureza; as conexões simbióticas de um ecossistema e a sobrevivência dos mais aptos. A caricatura difundida da teoria de Darwin enfatiza a luta competitiva acima de tudo. Contudo, muitas das descobertas que sua teoria tornou possíveis revelaram as forças colaborativas e conectivas em ação no mundo natural.
Temos convivido com uma caricatura semelhante em nossas pressuposições sobre a inovação cultural. Se olharmos para os últimos cinco séculos a partir da perspectiva distanciada, um fato salta aos olhos de imediato: a competição baseada no mercado não tem nenhum monopólio da inovação. A competição e o lucro de fato nos motivam a transformar boas ideias em produtos acabados, mas, o mais das vezes, as ideias em si vêm de outro lugar. Seja qual for sua política, o quarto quadrante tem sido um extraordinário espaço de criatividade e insight humanos. Mesmo sem as compensações econômicas da escassez artificial, os ambientes do quarto quadrante desempenharam um papel de enorme importância no cultivo e circulação de boas ideias – agora mais do que nunca. Na linguagem de Darwin, as conexões abertas da ribanceira emaranhada foram tão generativas quanto a guerra da natureza. Stephen Jay Gould defende essa ideia com vigor na alegoria de sua coleção de sandálias: “A cunha da competição tem sido, desde Darwin, o argumento canônico para o progresso em tempos normais”, escreve ele. “Mas quero afirmar que a roda da mudança funcional súbita e imprevisível (o princípio da transformação de pneus em sandálias) é a principal fonte do que chamamos de progresso em todas as escalas.” O empreendedor de Nairóbi vendendo sandálias na feira pode de fato competir com outros sapateiros, mas o que torna seu comércio possível é o ferro-velho cheio de pneus à espera de ser livremente convertidos em calçados, e o fato de que a boa ideia de converter pneus em sandálias pode ser transmitida de um sapateiro para outro pela simples observação, sem quaisquer acordos de licenciamento que restrinjam o fluxo.
EM 1813, UM DONO DE MOINHO DE BOSTON, Isaac McPherson, viu-se mergulhado numa longa e frustrante disputa por uma patente com um inventor da Filadélfia chamado Oliver Evans, que havia registrado um moinho de cereais automatizado vários anos antes. A engenhosidade de Evans só era igualada por seu amor ao litígio. Ele era conhecido por impor agressivamente suas patentes e foi um dos primeiros a tirar partido dos novos poderes restritivos do sistema federal de patentes após sua criação em 1790. A originalidade da invenção patenteada por Evans era muito discutível; o sistema do moinho baseava-se em elevadores de caçamba, esteiras transportadoras e parafusos arquimedianos – inovações que eram de domínio público havia muito tempo. Quando Evans processou McPherson por violar sua patente, o industrial de Boston decidiu recorrer ao primeiro diretor do escritório de patentes dos Estados Unidos, um ex-político e também ele um inventor, que agora morava na zona rural da Virgínia. Assim, no verão de 1813, McPherson escreveu uma carta a Thomas Jefferson, pedindo sua interpretação da reivindicação de Oliver Evans.
Jefferson respondeu no dia 13 de agosto. Ao ler a carta hoje, a amplitude da sua inteligência não deixa de ser surpreendente. Seu foco se estreita em detalhes extremamente técnicos sobre as especificidades da invenção de Evans, para se alargar depois em comentários sobre a longa pré-história das mesmas. (“O parafuso de Arquimedes é, no mínimo, tão antigo quanto a idade desse matemático, que morreu 2 mil anos atrás. Diodorus Siculus fala sobre isso, L.i., p.21, e L.v., p.217, da edição Stevens de 1559, fólio; e Vitruvius, xii.”) Ele analisa a legislação pertinente com o olhar aguçado de jurista, opinando sobre as seções que lhe parecem fundamentalmente equivocadas. Mas os trechos mais sensacionais surgem quando Jefferson passa a filosofar sobre a natureza das próprias ideias:
A propriedade estável é uma dádiva da lei social, e é estabelecida tardiamente no progresso da sociedade. Seria curioso, portanto, se uma ideia, fermentação fugidia de um cérebro individual, pudesse, por direito natural, ser reivindicada como propriedade exclusiva e estável. Se a natureza tornou uma única coisa menos suscetível de propriedade exclusiva que todas as outras, foi a ação do poder pensante chamada ideia, que um indivíduo só pode possuir enquanto a guarda para si; no momento em que é divulgada, porém, ela se impõe à posse de todos, e o receptor não pode se despojar dela. Seu caráter peculiar, também, é que ninguém a possui menos pelo fato de todos os demais a possuírem na totalidade. Aquele que recebe uma ideia de mim ganha instrução sem reduzir a minha; assim como aquele que acende sua vela na minha recebe luz sem me obscurecer. Que as ideias devam se espalhar livremente de uma pessoa para outra no planeta, para a instrução moral e mútua do homem e a melhoria de sua condição, parece ter sido peculiar e benignamente projetado pela natureza, quando ela as fez, como o fogo, que se expande por todo espaço sem que sua densidade se reduza em nenhum ponto, e como o ar que respiramos, e no qual nos movemos e temos nosso ser físico, incapaz de confinamento ou apropriação exclusiva. As invenções não podem, então, por natureza, ser objeto de propriedade.
As ideias, afirma Jefferson, têm uma atração quase gravitacional pelo quarto quadrante. O estado natural delas é fluxo, transbordamento e conexão. É a sociedade que as mantém agrilhoadas.
Quer dizer que temos de acabar com a lei da propriedade intelectual? Claro que não. O histórico de inovações do quarto quadrante não significa que deveríamos abolir as patentes e permitir que todas as formas de informação circulem livremente. Mas deveria desmentir a ortodoxia reinante segundo a qual sem a escassez artificial da propriedade intelectual a inovação cessaria pouco a pouco. Há muitas razões compreensíveis para que a lei torne mais fácil que pessoas ou organizações inovadoras lucrem com suas criações. Podemos decidir, enquanto sociedade, que as pessoas simplesmente merecem lucrar com suas boas ideias, sendo por isso necessário introduzir um pouco de escassez artificial para assegurar essas recompensas. Como alguém que vive da criação de propriedade intelectual, sou mais do que simpático a esse argumento. Mas afirmar que essas restrições irão por si mesmas, com o tempo, promover a inovação é completamente diferente.
Como Lawrence Lessig argumentou de maneira bastante convincente ao longo dos anos, não há nada de “natural” na escassez artificial gerada pela lei de propriedade intelectual. Essas leis são intervenções deliberadas produzidas pela inteligência humana e impostas quase inteiramente por poderes não comerciais. O que Jefferson defende na carta a McPherson é que, se quisermos entrar de fato num debate sobre que sistema é mais “natural”, o livre curso das ideias sempre levará a melhor sobre a escassez artificial das patentes. As ideias são intrinsecamente copiáveis, de uma maneira que alimento e combustível não são. É preciso construir represas para impedir que elas fluam.
A meu ver, a grande questão de nossa época é se as grandes organizações – públicas e privadas, governos e empresas – podem tirar melhor proveito da turbina de inovação dos sistemas do quarto quadrante. No âmbito do setor privado, o sucesso de companhias como Google, Twitter e Amazon – todas as quais, de diferentes maneiras, contribuíram e se beneficiaram da inovação do quarto quadrante – deixou claro que, pelo menos no mundo do software, uma pequena abertura leva longe. Suspeito de que essas lições se tornarão cada vez mais inevitáveis nas próximas décadas. Mas é o setor público que me parece mais interessante, porque os governos e outras instituições não comerciais por muito tempo padeceram da ineficiência das burocracias inchadas. Hoje, essas instituições têm uma oportunidade para alterar de maneira fundamental seu modo de cultivar e promover boas ideias. Quanto mais o governo pensar sobre si mesmo como uma plataforma aberta em vez de uma burocracia centralizada, melhor será para todos nós, cidadãos, ativistas e empresários.
A maravilhosa ironia é que essa oportunidade histórica se abre para os governos em parte graças a uma inovação que eles desencadearam no mundo: a internet, provavelmente o exemplo mais claro da maneira como a inovação do setor público e a do setor privado podem se complementar uma à outra. A plataforma generativa da internet (e da web) criou um espaço em que inúmeras fortunas foram feitas durante os últimos trinta anos, mas ela própria foi criada pela associação frouxa de cientistas da informática no mundo todo, financiados, em grande parte, pelo governo federal dos Estados Unidos. Existem boas ideias, e há aquelas boas ideias que tornam mais fácil ter outras boas ideias. O YouTube foi uma boa ideia que se tornou possível graças às ideias ainda melhores da internet e da web. Não foi por acaso que essas plataformas geradoras de ideias foram desenvolvidas fora do setor privado. Plataformas proprietárias que alcançam massa crítica não são completamente sem precedentes – o Microsoft Windows teve um grande sucesso, por exemplo, e a plataforma do iPhone da Apple foi extraordinariamente inovadora em seus três primeiros anos –, mas são caso raros. Plataformas generativas necessitam de todos os padrões de inovação que vimos nas páginas anteriores; precisam criar um espaço em que intuições, colisões serendipitosas, exaptações e reciclagem possam prosperar. É possível criar um espaço assim num jardim murado, mas será muito melhor se situarmos nossa plataforma numa terra comunal.
TALVEZ “TERRA COMUNAL” NÃO SEJA A EXPRESSÃO CERTA para o ambiente que estamos tentando imaginar, embora tenha uma longa e consagrada história na legislação sobre a propriedade intelectual. Há um duplo problema com sua utilização. Em primeiro lugar, foi convencionalmente usada em oposição à luta competitiva do mercado. As “terras comunais” originais da Inglaterra rural desapareceram quando foram engolidas pelos cercamentos privados do capitalismo agrário nos séculos XVII e XVIII. Apesar disso, os ambientes de inovação que exploramos não são necessariamente hostis à competição e ao lucro. Mais importante ainda, porém, é que a metáfora das terras comunais não sugere os padrões de reciclagem, exaptação e recombinação que definem tantos espaços de inovação. Quando se fala em terreno comunal, pensamos num campo limpo dominado por uma única vegetação para servir de pasto. Não pensamos num ecossistema. A terra comunal é uma monocultura, não uma ribanceira emaranhada.
Prefiro outra metáfora tomada da natureza: o recife. Basta observar um recife de coral (ou uma floresta pluvial) por alguns minutos para ver que a competição por recursos abunda nesse espaço, como Darwin bem notou. Mas não é essa a fonte de sua incrível biodiversidade. A luta pela existência é universal na natureza. Os poucos habitantes de um ecossistema desértico são, em tudo e por tudo, tão competitivos quanto seus equivalentes num recife de coral. O que torna o recife tão inventivo não é a luta entre os organismos, mas o modo como eles aprenderam a colaborar – o coral, a zooxantela e o peixe-papagaio tomando emprestado e reinventando o trabalho uns dos outros. Esta é a explicação final do paradoxo de Darwin: o recife abriu tantas portas para o possível adjacente por causa da maneira como compartilha.
O recife nos ajuda a compreender nossos outros enigmas iniciais: a inovação desenfreada das cidades e da web. Também elas são ambientes que conectam e misturam de maneira compulsiva aquele que é o mais valioso dos recursos: a informação. Como a web, a cidade é uma plataforma que muitas vezes torna o comércio privado possível, mas ela própria está fora do mercado. Fazemos negócios na grande cidade, mas ela pertence a todos. (“O ar da cidade liberta”, como diz o velho adágio.) As ideias colidem, emergem, recombinam-se; novas empresas encontram abrigo nas estruturas abandonadas por antigos hospedeiros; eixos informais permitem que diferentes disciplinas façam empréstimos umas das outras. São esses os espaços que há muito sustentam a inovação, desde aqueles primeiros povoamentos mesopotâmicos, 8 mil anos atrás, até as camadas invisíveis de software que sustentam a web nos nossos dias.
As ideias surgem em abundância, como disse Poincaré. Elas surgem em redes líquidas em que a conexão é mais valorizada que a proteção. Assim, se quisermos construir ambientes que gerem boas ideias – quer eles se situem em escolas, empresas, governos ou em nossas vidas pessoais –, precisamos manter essa história em mente, e não recair nos pressupostos fáceis segundo os quais mercados competitivos são a única fonte confiável de boas ideias. Sim, o mercado foi um grande motor de inovação. Mas o mesmo pode ser do dito recife.
Sei que a maioria de nós não pode influenciar diretamente na determinação de quais macroestruturas de informação e organização econômica prevalecem na sociedade mais ampla, embora cada um influencie esse resultado de maneira indireta, mediante um ato básico de escolher entre um emprego no setor privado ou no setor público. Mas essa é a beleza da perspectiva do zoom longo: os padrões retornam em outras escalas. Talvez não sejamos capazes de transformar nosso governo num recife de coral, mas podemos criar ambientes semelhantes no âmbito da vida cotidiana: nos nossos locais de trabalho; no modo como consumimos mídia; na maneira como aumentamos nossa memória. Os padrões são simples, mas, se adotados conjuntamente, ajudam a criar um todo mais sábio que a soma de suas partes. Faça uma caminhada; cultive intuições; anote tudo, mas mantenha suas pastas em desordem; abrace a serendipidade; cometa erros produtivos; cultive diversos hobbies; frequente cafés e outras redes líquidas; siga os links; permita que outros se baseiem em suas ideias; tome emprestado, recicle, reinvente. Construa uma ribanceira emaranhada.
a A inovação, é claro, não é a única razão de uma parte tão grande do mundo ter desafiado as previsões do Manifesto comunista e abraçado o modo de vida capitalista. Economistas e historiadores sociais documentaram múltiplos fatores que dirigiram a marcha do mercado: as economias capitalistas apresentavam um histórico melhor de aumentos de longo prazo do PIB, os atores econômicos tinham mais liberdade para fazer escolhas individuais. Embora o interesse econômico pessoal seja uma força motivadora inegável para o ser humano, poucas defesas das virtudes econômicas do capitalismo deixaram de mencionar sua força proteica. Até seus críticos reconheceram a tendência do mercado à novidade e à inovação, como na famosa teoria da “destruição criativa” de Joseph Schumpeter.
b Esta estrutura foi adaptada do livro de Yochai Benkler The Wealth of Networks. Segundo Benkler, temos vasta experiência com três das quatro combinações possíveis. As empresas privadas são centralizadas e baseadas no mercado. O próprio mercado é descentralizado e, obviamente, baseado no mercado. As economias planejadas são centralizadas e não baseadas no mercado. Mas o quadrado mágico é o quarto: o dos ambientes descentralizados, não baseados no mercado. Essa é uma combinação que não se encaixa facilmente nos compartimentos usuais do capitalismo e do socialismo. No entanto, nos últimos anos, esse quadrante tem sido uma estufa de inovação, graças em grande parte à arquitetura aberta da internet.
c Romances voltados para a descrição deslumbrada da vida das classes altas, em geral escritos pela classe média. (N.T.)