Considerações finais
Projeto ético-político do Serviço Social e política social
A rigor, um texto didático não requer uma conclusão. Contudo, pensamos que cabem algumas considerações acerca do sentido do debate da política social para o que se costumou chamar nos anos 1990 de projeto ético-político do Serviço Social brasileiro (Netto, 1999). Francisco de Oliveira, cuja importância para o pensamento social é incontestável, faz uma afirmação contundente: “deve-se dizer que sem os assistentes sociais a criação e a invenção de direitos no Brasil não teria conhecido os avanços que registra . 1 A categoria dos assistentes sociais não constitui um bloco homogêneo, em que todos possuem a mesma concepção de direitos, cidadania e política social, mas não podemos negar que teve e tem uma participação indiscutível na construção e na defesa dos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais, nesse país onde o termo direito não faz parte do cotidiano daqueles que não têm acesso a ele por meio das políticas sociais. 2
Contudo, o Código de Ética, a Lei de Regulamentação da Profissão e as Diretrizes Curriculares da ABEPSS trazem uma determinada concepção de direitos e de cidadania, que conforma esse projeto ético-político e profissional, e que configura uma hegemonia no meio profissional. Qual é essa concepção de direitos e de cidadania? É a mesma que orientou a instituição dos Estados sociais nos países capitalistas desenvolvidos?
Nesses países, a organização e a pressão das classes trabalhadoras, bem como a instituição do padrão fordista-keynesiano sob governos democráticos, que aliou desenvolvimento econômico e social regulado pelo Estado, com claros limites impostos ao mercado e políticas voltadas para o pleno emprego, permitiram a expansão dos direitos civis, sociais, econômicos, políticos e culturais, materializados pelas políticas sociais, como vimos. Mesmo após a “crise” desse padrão de acumulação, as transformações vivenciadas pelas políticas sociais estão longe de desmantelar os direitos conquistados, embora alguns direitos sociais tenham sofrido redução na sua abrangência. Ademais, quando as ameaças de perdas mais profundas se apresentam, a reação da sociedade é forte, como bem mostram as mobilizações francesas em defesa da previdência social e contra a flexibilização das relações de trabalho.
Nos países onde tal padrão de política social se desenvolveu, tanto a pobreza absoluta quanto as desigualdades econômica e social sofreram significativa redução, sem, contudo, ser extintas. Contribuiu para isso a implementação de políticas sociais com caráter redistributivo, universais, intencionadas pelo estabelecimento de igualdade de condições e não apenas pela igualdade de oportunidades, embora saibamos que estas não foram e não são capazes de acabar com as desigualdades sociais, dada sua incapacidade de agir na estrutura de produção e reprodução do capital. Entretanto, é inegável que contribuíram para ampliar os direitos e a cidadania, para além até da marshalliana, que limitava a cidadania aos direitos civis, políticos e sociais. As políticas sociais, orientadas pela óptica da materialização de direitos legalmente reconhecidos e legitimamente assegurados, instituíram o princípio da desmercadorização dos programas, projetos e serviços, e possibilitaram aos cidadãos se manter sem depender do mercado, contribuindo, assim, para mudar a relação entre cidadania e classe social, ainda que as relações econômicas e sociais não tenham sido estruturalmente transformadas no sentido de extinguir a sociedade de classes.
Porém, não é essa concepção que sustenta nosso projeto político profissional. No Brasil — pudemos observar isso ao longo do livro — ainda estamos longe desse Estado democrático de direitos e das políticas sociais a ele correspondentes. Chegar a ele seria uma grande conquista! E os assistentes sociais têm sido partícipes dessa luta árdua. Mas o nosso projeto ético-político profissional não se contenta com o modelo capitalista do Estado de direitos. O projeto ético-político do Serviço Social brasileiro é qualificado por Netto como conjunto de
valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, institucionais e práticos) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as balizas de sua relação com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e instituições sociais. (1999: 95)
Ele é resultado de um longo e coletivo processo construído nas últimas três décadas e capitaneado pelas entidades nacionais da categoria, e tem seus valores e pilares definidos no Código de Ética Profissional, na Lei de Regulamentação da Profissão e nas Diretrizes Curriculares aprovadas pela ABEPSS em 1996, que vêm orientando a atuação do Serviço Social tanto no âmbito da formação quanto do exercício profissional.
A perspectiva de direitos e de cidadania orientada por esse projeto ético-político vem sendo assumida e defendida em diferentes dimensões. Do ponto de vista teórico, vários intelectuais, pesquisadores, professores e estudantes vêm realizando pesquisas e produções que sustentam um padrão de direitos, cujos princípios se coadunam e reforçam aqueles expressos no projeto ético-político. No âmbito político-profissional, as entidades da categoria vêm envidando esforços memoráveis na disseminação de uma concepção de direitos sintonizada e orientada pelo projeto ético-político profissional, seja pela via da organização coletiva e articulação com movimentos sociais, seja pela realização de debates e socialização de informações, seja pela inserção nos espaços coletivos de controle democrático das políticas sociais que materializam direitos, seja, por fim, pela via do acompanhamento e qualificação da intervenção profissional nos espaços sócio-ocupacionais.
Qualificar e precisar a concepção de direitos, cidadania e política social pressupõe discutir os limites e as possibilidades dos direitos no capitalismo, e a particularidade brasileira: um país historicamente heterônomo, subordinado econômica e politicamente aos ditames do capitalismo mundial e das políticas de ajuste determinadas pelas agências internacionais. É preciso entender que os direitos no capitalismo são capazes de reduzir desigualdades, mas não são e não foram até aqui capazes de acabar com a estrutura de classes e, portanto, com o motor da produção e reprodução das desigualdades, já que a existência e persistência da pobreza e das desigualdades sociais são determinadas pela estrutura capitalista de apropriação privada dos meios de produção e da riqueza socialmente produzida (Marx, 1987) e não apenas pela não distribuição eqüânime de seus produtos.
O reconhecimento desses limites não invalida a luta pelo reconhecimento e afirmação dos direitos nos marcos do capitalismo, mas sinaliza que a sua conquista integra uma agenda estratégica da luta democrática e popular, visando a construção de uma sociedade justa e igualitária. Essa conquista no âmbito do capitalismo não pode ser vista como um fim, como um projeto em si, mas como via de ingresso, de entrada, ou de transição para um padrão de civilidade que começa pelo reconhecimento e garantia de direitos no capitalismo, mas que não se esgota nele.
Ao adotar a liberdade como valor central, nosso projeto assume, o “compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais. Conseqüentemente, o projeto profissional vincula-se a um projeto societário que propõe a construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de classe, etnia, ou orientação sexual” (CFESS, 1993). Claro está, portanto, que reafirmar direitos e políticas sociais no âmbito do capitalismo e lutar por eles, tendo como projeto uma sociedade justa e igualitária, não significa contentar-se com os direitos nos marcos do capitalismo. Essa é uma estratégia para o estabelecimento de condições objetivas de construção de outra forma de sociabilidade. Quando temos clareza de seus limites, bem como de sua natureza contraditória, vemos a política social como ela é: pode assumir tanto um caráter de espaço de concretização de direitos dos trabalhadores, quanto ser funcional à acumulação do capital e à manutenção do status vigente.
Contrariando as forças que aceitam e/ou reforçam as investidas do capital especulativo, os assistentes sociais ousam permanecer na contracorrente e sustentam a defesa e a reafirmação de direitos e políticas sociais que, inseridos em um projeto societário mais amplo, são capazes de cimentar as condições econômicas, sociais e políticas que contribuem para construir as vias da igualdade, num processo que não se esgota na garantia da cidadania burguesa. A nossa concepção de cidadania pressupõe instituir direitos que se pautem pelos seguintes princípios: universalização do acesso aos direitos, com superação da lógica contratualista do seguro social que ainda marca a previdência, de modo a fazer dos direitos uma via para a eqüidade e justiça social; qualificação legal e legitimação das políticas sociais como direito, pois só por esse ângulo é possível comprometer o Estado como garantidor da cidadania (Telles, 1999); orçamento redistributivo, com ênfase na contribuição de empregadores e no orçamento fiscal de modo a onerar o capital e desonerar os trabalhadores, tornando os direitos sociais redistributivos; estruturação radicalmente democrática, descentralizada e participativa, de modo a socializar a participação política.
Esses são requisitos essenciais apontados pelo projeto ético-político do Serviço Social, em que a ampliação e a consolidação dos direitos, entendidas como tarefa de toda a sociedade, mas como dever legal do Estado na sua garantia, são vistas como condição para a ampliação da cidadania, e em que a democratização é compreendida como “socialização da participação política e socialização da riqueza socialmente produzida” (Netto, 1999: 105). Nessa acepção, a cidadania é muito mais que um conjunto de direitos concretizados por políticas sociais. Não é simples conjugação de programas, projetos, bens e serviços fragmentados, pulverizados, desconectados, desrespeitados legalmente, restritivos e provocadores de dualidades, não é apenas assegurada pela boa gestão tecnocrática. Na perspectiva do projeto ético-político profissional, a cidadania, tal como expressa em diversos documentos e exemplarmente sintetizada na Carta de Maceió (CFESS/CRESS, 2001), é um
campo de luta e de formação de consciências críticas em relação à desigualdade social no Brasil e de organização dos trabalhadores; é um terreno de embate que requer competência teórica, política e técnica; que exige uma rigorosa análise crítica da correlação de forças entre classes e segmentos de classe e que força a construção de proposições que se contraponham às reações das elites político-econômicas do país.
Essa perspectiva, que envolve a socialização da riqueza, que pressupõe a universalização dos direitos sociais, políticos, econômicos e culturais, concebe a cidadania como via de acesso, como caminho para instituir as bases de construção de uma sociedade socialista, que começa a se cimentar na sociedade capitalista, mas que parte da negação de seus pressupostos para, explorando suas contradições, construir aquela outra sociedade.
A construção, difusão e efetivação dessa concepção de direitos, de cidadania e de política social é tarefa árdua e encontra barreiras tanto estruturais quanto conjunturais. Nesse sentido, não podemos deixar de ter uma perspectiva de totalidade e reconhecer, objetivamente, os limites e condicionalidades impostos pela estrutura econômica e pela conjuntura política. Por outro lado, também não podemos nos render ao conformismo e ao desencanto, acirrados pelas dificuldades, e, com isso, correr o risco de abandonar a historicidade e de não ver a história como processo aberto e como uma “hemorragia de sentidos” (Bensaid, 1999). Assim, é importante ter claro que, hoje, diferentemente do que muitos esperavam em 2002, do ponto de vista econômico, as políticas que vêm sendo implementadas pelo atual governo não rompem com o favorecimento do capital financeiro, não assumiram uma intenção radical de reestruturar a organização do trabalho em favor dos trabalhadores e não caminham para uma efetiva socialização da riqueza produzida. Do ponto de vista político, as forças que têm hegemonia no Estado brasileiro e que vêm se cristalizando no poder há décadas são forças conservadoras, são forças de resistência a projetos de radicalização da democracia. E o governo “democrático-popular” que assumiu o poder em 2003, para se eleger, de forma pragmática, incorporou essas forças conservadoras, estreitou a agenda e restringiu o projeto de Estado e de sociedade que foram base das campanhas eleitorais em 1989 e 1994. E quando este governo chega ao poder, encontra um país cujas bases econômicas, sociais e políticas foram severamente minadas nos últimos anos, como demonstramos, sobretudo no último capítulo do livro, no que se refere à política social. Hoje, é preciso reconstruir um país que foi nacionalmente destruído. As exigências e as necessidades são muito maiores que “resgatar a dívida social e redemocratizar o país”. Hoje, temos um país econômica, moral e socialmente destroçado e precisamos de ações governamentais incisivas e radicais.
As condições políticas estabelecidas em função da agenda e das alianças levadas a termo e que conduziram o governo Lula ao poder estão longe de assegurar esse caminho necessário para a materialização do projeto ético-político, que é muito mais amplo e com um projeto de sociedade muito mais progressista que os programas de todos os candidatos que disputaram a eleição presidencial em 2002 e, mais ainda, em 2006. Na verdade, é um tanto idealista a aposta num projeto de governo como via de concretização do projeto ético-político e profissional, visto que este foi forjado nas lutas das esquerdas brasileiras a partir da década de 1980, de forma autônoma, com base na perspectiva de lutar pela construção de uma sociedade socialista, independente do governo que estiver no poder.
A estratégia de viabilização do nosso projeto passa por resgatarmos e exercitarmos algumas perspectivas que orientaram a formulação desse projeto desde sua origem. A primeira é termos uma visão histórico-processual da realidade: o que significa dizer que devemos reconhecer os limites dados pela estrutura econômica capitalista, mas devemos acreditar que todas as coisas e todas as idéias se movem, se transformam, se desenvolvem, porque são processos. Entretanto, só se tornam processos pela ação de homens e mulheres, sujeitos coletivos capazes de transformar a história e tecer cotidianamente as condições objetivas e subjetivas necessárias para materializá-lo.
Decorrente e ao mesmo tempo determinante dessa primeira estratégia, a segunda é reconhecer o Estado e a sociedade como espaços contraditórios, ainda que exista uma hegemonia conservadora. Nesse sentido, nem o Estado nem o governo que está no poder e nem a sociedade ou as instituições que a conformam são blocos monolíticos e homogêneos; eles são constituídos por forças sociais em confronto. Explorar as contradições é disputar espaços e lutar pela hegemonia, é buscar construir a contra-hegemonia; é reconhecer que a totalidade é constituída de elos indissociáveis e, que, portanto, embora não apareça no imediato, toda ação terá implicações no todo. Isso significa que, mesmo que não se consiga mudar o todo no imediato, as mudanças cotidianas e imediatas têm e terão implicações na totalidade, porque as conexões que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Desse modo, um desafio do nosso projeto é reconhecer que os limites que existem são essencialmente mutáveis, relativos, provisórios, se suprimem, se deslocam e se suprimem novamente, em função de suas contradições internas que devem ser exploradas. É preciso, também, não confundirmos Estado com governos; estes passam, o Estado fica e é a perspectiva de transformação do Estado que deve orientar nossas ações, no sentido de materializar aquela concepção de direitos, de cidadania e de política social que, inegavelmente, passa pela responsabilidade do Estado.
É nessa perspectiva que a terceira dimensão estratégica de viabilização do nosso projeto passa por uma postura político-profissional que articula fortalecimento das instituições democráticas e articulação e fortalecimento dos movimentos sociais. Quanto ao fortalecimento das instituições democráticas, ou, em outras palavras, da consolidação do Estado democrático de direito, nosso projeto orienta-se não pela negação das instituições democráticas, mas pela sua ocupação, transformação e consolidação, com a perspectiva de fortalecer os direitos amplos e irrestritos das classes trabalhadoras. Isso significa, do ponto de vista profissional, ocupar espaços públicos e estatais estratégicos que possam viabilizar a formulação e realização dos direitos, de modo a imprimir nestes os valores e princípios que defendemos. Quanto ao fortalecimento dos movimentos sociais, essa postura é essencial para não restringir a materialização do projeto ao âmbito institucional. Fazer história requer lutas coletivas, exige situar o indivíduo e a atuação profissional nas lutas mais gerais dos trabalhadores. Acreditar no projeto e investir no fortalecimento das instituições democráticas não significa lançar-se individual ou isoladamente em lutas contra “moinhos de vento”. Ao contrário, trata-se de reconhecer que a consolidação da democracia, da cidadania e das políticas sociais, como ante-sala da construção de uma sociedade socialista, requer o fortalecimento das lutas e movimentos sociais mais gerais de defesa dos interesses das classes trabalhadoras; significa não sucumbir à visão de sociedade como conjunto de organizações não-governamentais movidas por interesses solidários gerais e pretensamente desprovidas de interesses de classe; requer ver a sociedade como, parafraseando Marx, “teatro de toda história” e, portanto, prenhe de interesses contraditórios e forças em confronto. Nessa perspectiva, um desafio posto ao nosso projeto, na dimensão da intervenção política, é articular forças e construir alianças estratégicas com os que sofrem opressões econômicas e de classe, no campo racial, de orientação sexual, gênero, e outras, que têm como projeto uma sociedade justa, fraterna, igual e capaz de autodeterminar seu futuro.
____________