II. Uma velha história
Entrevista a Sylvain Courage1
SYLVAIN COURAGE: Por que as teorias de Freud sempre despertaram certa rejeição?
ELISABETH ROUDINESCO: O ódio a Freud manifestou-se desde os seus primeiros escritos. Ele é da mesma natureza que o ódio a Darwin. Freud realizou algo que parece intolerável à humanidade. É a revolução do íntimo. É a explicação do inconsciente e da sexualidade. Eis o primeiro escândalo, e ele continua a chocar. Assim como todas as Igrejas recriminam Darwin por ter feito do homem um descendente do macaco, elas detestam Freud por ter transformado a sexualidade em uma coisa normal e não mais patológica. Quando Freud debutou, todos os psicólogos se interessavam pela sexualidade, mas para reprimir as que pareciam perversas: os verdadeiros perversos sexuais, decerto, mas também, e sobretudo, as mulheres histéricas, julgadas doentias porque desviavam o corpo da maternidade, os “invertidos”, porque recusavam a procriação, e as crianças “degeneradas”, porque se masturbavam.
Eis a grande questão em 1890-1900. Freud empenha-se em respondê-la. Afirma que para compreender a sexualidade humana cumpre emancipar-se das descrições puramente sexológicas. Em outros termos, é normal uma criança masturbar-se, o caso só é patológico quando ela não faz outra coisa na vida! Segundo Freud, a sexualidade perverso-polimorfa encontra-se potencialmente no âmago de cada um de nós. Não há, de um lado, perversos degenerados e, de outro, indivíduos normais. Há graus de norma e patologia. O ser humano, no que tem de mais monstruoso, faz parte da humanidade. E a criança mora no nosso coração. Faz-se necessário então libertar a criança e redefinir os critérios da perversão. Para libertar a mulher histérica de seus conflitos e de seu sofrimento, existe a fala.
SC: A psicanálise também sempre foi criticada por não ser uma ciência. Qual a relação de Freud com as ciências da natureza, reivindicadas por ele no início da carreira?
ER: Muito cedo, em 1896, Freud, que era médico, abandonou o modelo neurológico. Digam o que disserem os que hoje gostariam de ver nele um adepto precoce das neurociências, ele compreendeu que precisava romper com as mitologias cerebrais. Esperava que um dia a medicina do cérebro progredisse. Nada tinha contra a ciência. Mas fundou a psicanálise a partir de outra racionalidade, que não é da mesma ordem que a das ciências da natureza. Compreendeu que o homem não era apenas neuronal, mas feito de mitos, fantasias, cultura. E colocou no cerne da subjetividade a tragédia grega – a de Sófocles (Édipo) –, mas também a consciência culpada de Hamlet. Em suma, a psicanálise é uma ciência humana da mesma forma que a antropologia: não é um ramo da neurologia. E se biologizamos as ciências humanas, soçobramos no obscurantismo, e mesmo no ocultismo: detectamos causalidades ali onde elas não estão. O desencadeamento psíquico das doenças orgânicas – o câncer, por exemplo – não está de forma alguma provado cientificamente, e se confundimos tudo aterrorizamos as pessoas, fazendo-as acreditar que se tiverem uma vida psíquica “higiênica” não terão doenças, o que é contrário ao que diz a ciência médica e à ordem natural do mundo e da vida.
SC: Qual é, a seu ver, a especificidade da crítica a Freud na França?
ER: Nos Estados Unidos o puritanismo, aliado ao cientificismo, alimentou os ataques contra o freudismo. O debate historiográfico, por exemplo, incidiu sobre a sexualidade de Freud. Teria ele ido para a cama com a cunhada em 1898? Segundo o grande mexerico norte-americano, inteiramente forjado, Freud a teria engravidado e obrigado a abortar.2 Na França, esse tipo de polêmica não pega. No início, a elite intelectual apoderou-se das teses de Freud. Os surrealistas e os progressistas viram nelas uma revolução, na linha direta de Rimbaud: “eu é um outro.” No contexto do caso Dreyfus, o freudismo foi associado à ideologia de 1789. Mas nossa história tem duas faces: a França produziu Valmy e Vichy.3 Desde essa época, assistimos a uma luta feroz entre os defensores de uma psicologia francesa tendo como eixo a fisiologia – Théodule Ribot ou Pierre Janet – e o freudismo considerado uma “ciência boche”, antinacional, especulativa. Não podemos esquecer que muitos psicólogos franceses também teorizaram a desigualdade entre os povos e raças a fim de justificar a colonização. Eis por que há frequentemente na França uma mistura inconsciente entre antifreudismo, racismo, chauvinismo e antissemitismo fundada no ódio pelas elites e no populismo. Nos anos 1970, Pierre Debray-Ritzen ressuscitou o velho arsenal antijudaico-cristão ao designar a psicanálise como “ciência judaica”. No que o acompanha o panfleto antifreudiano de Jacques Bénesteau.4 Os eternos complôs e trapaças atribuídos aos psicanalistas por adeptos do conspiracionismo são duvidosos.
SC: Essas polêmicas não resultam principalmente do fato de a psicanálise ter sido superada pelo progresso médico?
ER: De forma alguma. À Segunda Guerra Mundial sucede-se a revolução dos psicotrópicos, e principalmente dos neurolépticos. Isso permite suprimir o hospício. Os medicamentos da mente puseram fim às camisas de força. Foi possível tratar, ou pelo menos estabilizar, as psicoses. Mas não as neuroses, tampouco as depressões. E os tratamentos medicamentosos não bastam em nenhum dos casos. Na verdade, para tratar as psicoses convém associar, à administração ponderada de psicotrópicos, tratamentos psíquicos baseados na fala, bem como uma assistência que permita reintegrar os doentes na cidadania. Ora, essa tripla abordagem, a única que permite progredir, é muito cara. Eis por que as sociedades ocidentais preferem abandoná-la e conformar-se a uma ideologia cientificista aparentemente mais barata.
SC: Como se manifesta essa “ideologia cientificista”?
ER: Ela prevaleceu por intermédio do Manual estatístico e diagnóstico dos transtornos mentais (DSM). De origem norte-americana, essa nova carta das classificações adotada pela Organização Mundial de Saúde deve supostamente inventariar os distúrbios psíquicos a fim de prescrever os tratamentos. Ela foi imposta a todos os médicos. Mas, a meu ver, é simples fruto de uma posição ideológica. Passou-se a acreditar que tudo deriva de um mecanismo cerebral. Ao invés de considerar o sujeito segundo o que ele vive, apenas seus comportamentos são levados em conta. O problema, por conseguinte, é que não sabemos mais quem é louco e quem não é. Você foi checar três vezes se a sua porta está bem fechada? Você é um angustiado, logo, doente mental. Ninguém se preocupa em saber a que remetem os comportamentos. O sujeito é recortado, dividido, normatizado. Ninguém quer mais saber nada sobre o íntimo. A tal ponto que a influência do DSM fomenta uma revolta dos próprios sujeitos. Notadamente contra o projeto de incluir no DSM, em preparação para 2013, as novas dependências à internet e a outras mídias como drogas nocivas. Sabemos claramente, no entanto, que para determinar se alguém é de fato alienado por sua dependência convém recorrer à fala e ouvir o que ele tem a dizer. Na próxima fornada do DSM, cogita-se incluir também os comportamentos sexuais sob o ângulo das dependências. Nesse domínio, onde está a norma? Quantas vezes por semana? Como? Vemo-nos num impasse.
SC: Rivalizando com outras abordagens, principalmente as terapias cognitivo-comportamentais (TCC), o tratamento psicanalítico clássico pode evoluir?
ER: Creio que sim. Assisti à petrificação do tratamento clássico: atualmente o silêncio do analista durante anos não é mais aceitável, se é que um dia foi. Daí o sucesso das terapias comportamentais e cognitivas, que pretendem eliminar os sintomas das enfermidades psíquicas que nos apresentam como as doenças do século: fobias, transtornos obsessivos compulsivos (TOC), perda da autoestima etc. Por comparação, os analistas se veem criticados por sua não intervenção sobre os sintomas. Ora, a análise pode responder a isso bem melhor que as TCC. Convém, entretanto, propor tratamentos curtos e dinâmicos, como os praticados pelo próprio Freud. Tudo está para ser reinventado no domínio clínico… de modo a que o tratamento seja adaptado a cada sujeito.
SC: Dividido em uma legião de grupelhos que se enfrentam, o movimento psicanalítico pode reagir?
ER: Ao se estruturar, o movimento psicanalítico tornou-se conservador, corporativista. Nos anos 1930-60, a guinada kleiniana, que evidenciou o papel central da mãe, e depois a revolução lacaniana (1950-70), que associou psicanálise e teoria da linguagem, trouxeram ideias inovadoras. Mas essas revoluções também produziram novos conformismos. Isso ficou patente quando a emancipação das mulheres, depois a dos homossexuais, veio abalar a vulgata freudiana. Fez-se claramente necessário rever o velho modelo patriarcal, revisar as antigas concepções da sexualidade feminina, permitir aos homossexuais serem psicanalistas e pais. Após ter sido atacado pela direita, o freudismo viu-se fustigado pela esquerda e por filósofos brilhantes dos quais fui bem próxima: Deleuze, Derrida, Lyotard etc. E a crítica foi fecunda. Hoje em dia, infelizmente, a maioria dos analistas parece desprezar o engajamento cidadão. São despolitizados e frequentemente ignoram sua história, o que os impede de serem eficazes na luta ideológica que os antifreudianos radicais travam contra eles. Por outro lado, diversos psis aferram-se a teses de outras eras ao condenar, por exemplo, a família monoparental, a homoparentalidade ou a “barriga de aluguel”, embora essas novas formas de filiação sejam perfeitamente concebíveis e lhes digam respeito no mais alto grau.
1 “À quoi sert la psychanalyse”, Le Nouvel Observateur, n.2.369, 1-7 abr 2010. Agradeço a Denis Olivennes por ter autorizado a publicação desta entrevista.
2 Cf. Cap.3.
3 Batalha de Valmy (20 set 1792): combate entre tropas francesas e prussianas que não se consumou, pois o exército prussiano se retirou de campo. Ainda assim, representou a primeira vitória militar da Revolução Francesa. Vichy: cidade a sudoeste de Paris que serviu de capital ao regime político que vigorou na França durante a ocupação nazista (1940-44). (N.T.)
4 Jacques Bénesteau, Mensonges freudiens. Histoire d’une disinformation séculaire, Paris, Mardaga, 2002.