IV. Outras vozes

 

1. Onfray ou a fraude

Guillaume Mazeau1

Antes mesmo de sua publicação, o último livro escrito por Michel Onfray contra Freud foi objeto de um violento debate. Muito barulho por nada? A historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco não estaria exagerando ao pintar Onfray com as mais negras tintas? Muito pelo contrário. As distorções de Onfray não são novas e merecem ser levadas ao conhecimento do público.

Em 2009, Michel Onfray publicou uma apologia de Charlotte Corday, La religion du poignard.2 Apesar de curiosamente bem recebida pela imprensa, é historicamente medíocre e politicamente escandalosa. Desde Adam Lux (1765-1793), aquele cidadão de Mayence guilhotinado por ter publicado uma ode de amor em homenagem à bela Corday, a lista daqueles que o “Anjo do Crime” fez perder a cabeça não para de aumentar. Embora integre uma revitalização mais generalizada de Corday, o recém-lançado livro de Michel Onfray só pode surpreender e preocupar, ainda mais quando conta com a bênção da grande imprensa. Pois tal elogio esconde um panfleto mal-inspirado, jamais fundamentado, recheado de erros, pontuado de ataques venenosos, arbitrários – e, para resumir, populistas. Onfray quer mostrar que Charlotte Corday pode estimular todos aqueles que, cansados de uma esquerda de ressentimento impotente e erodida por ódios e invejas, permanecem fiéis à ação, à moral e à virtude.

O principal alvo de Onfray é Marat. O revolucionário supostamente personifica o cinismo dos “desgarrados do Iluminismo”, que aproveitam a Revolução para aplacar suas frustrações sociais e liberar mais pulsões:

Esse filho de padre, falsificador de diploma, médico charlatão, cientista de araque, vivissecador de fundo de quintal e arrematador de cadáveres humanos, obtém um posto de médico dos guardas do conde de Artois por influência de uma paciente cujo furor uterino ele trata expondo-se ao perigo. (La religion du poignard, p.24)

Esse fel basta: o livro jamais consegue alçar-se acima dos delírios com que a extrema direita vem nos enchendo os ouvidos há dois séculos. Como tantos outros antes dele, Onfray descreve Marat, pária da história francesa, como um cientista frustrado, um maníaco sanguinário responsável por “crimes de massa” sonhando com uma ditadura pré-totalitária. Para Marat, a Revolução Francesa não seria mais do que “a oportunidade de exprimir seu ressentimento assim como extraímos pus de um cancro!” (p.24).

Esses clichês anacrônicos, destituídos de imaginação, oriundos da propaganda contrarrevolucionária, foram há muito varridos por centenas de trabalhos científicos. Sem negar a responsabilidade de Marat nas violências, muitos historiadores contestaram, por exemplo, sua imagem de tribuno onipotente: em 1793, o Amigo do Povo era amado pelos sans-culottes, mas achava-se isolado politicamente. Não, Marat não era delator, mas partidário de uma “denúncia cívica” que permitisse defender o povo contra a corrupção política. Não, Marat não prefigura nem Stálin nem Pol Pot. É um republicano influenciado por Maquiavel que justifica a violência popular em tempos de revolução como um meio de evitar a anarquia e a propagação dos massacres. A “ditadura” por ele mencionada inspira-se eventualmente no modelo romano: provisória e colegiada, deve permitir salvar a República em épocas conturbadas. Não, Marat não era um charlatão, mas um médico e cientista renomado. Ora, todos esses trabalhos reposicionando Marat no contexto do Iluminismo são soberbamente ignorados por Onfray. Ao longo de todo o livro, o leitor é bombardeado com as citações mais violentas, totalmente inventadas. Marat evidentemente nunca disse: “Eu queria que todo o gênero humano estivesse numa bomba à qual eu atearia fogo para fazê-la explodir” (p.27). E não, o braço do Amigo do Povo nunca caiu no meio da multidão durante o cortejo fúnebre (p.79). Ao lado de tais inépcias, o escândalo de “Botul” – esse autor imaginário não obstante citado seriamente por Bernard-Henri Lévy em seu último livro3 – acaba não passando de um logro vulgar.

A propósito, a quem nossas críticas se dirigem? A Onfray, a Nietzsche, ao historiador Charles Vatel, a Jules Michelet ou a Balzac, de cujos textos o “autor” livremente faz uso? Assinado por um dos intelectuais mais midiáticos de nossa época, esse ensaio levanta a questão crucial do status do historiador.

Redigido às pressas, o texto não se fundamenta em nenhum trabalho de pesquisa. Se, por um lado, o recurso à ficção é uma prática comum, interessante e legítima da escrita da história, por outro, a mistura de gêneros é contestável quando não claramente explicitada. Cultivando a ambiguidade em torno do status de seu livro, evitando cuidadosamente esclarecer qual a sua relação com os fatos, Onfray rompe o contrato de verdade que instaurara tacitamente com seus leitores. Com efeito, seu ensaio não passa de uma colagem de interpretações e compilações do século XIX… cuja natureza ou fontes em nenhum momento são reveladas pelo “autor”. Isso autorizaria Onfray a parafrasear, por exemplo, textos pura e simplesmente apócrifos, extraídos da… tradição mais conservadora! Desse modo, os detalhes edificantes sobre os últimos momentos de Charlotte Corday, chorada por toda a direita clerical do século XIX, são repetidos ipsis litteris. Onfray, filósofo ateu e libertário por excelência, coloca-se assim, sem o saber, sob os auspícios das Memórias de Sanson4… escritas por um impúbere Balzac na aurora dos anos 1830, escritor católico e monarquista por excelência! Quanto aos múltiplos episódios que deveriam desvendar as “causas secretas” do assassinato, foram pura e simplesmente forjados meio século depois dos fatos pela sra. Maromme, fervorosa legitimista!5

Nesse ensaio, as elites, todas corruptas, não encontram mais misericórdia por parte do autor do que as classes populares, desumanizadas com um asco que quase faria corar de vergonha Gustave Le Bon e Hyppolite Taine juntos (“a malta maratista de cães em fúria abate, mata, massacra, extermina”, p.32). Cegado pelo ódio, Onfray recusa-se a ver os sans-culottes de outra forma a não ser como selvagens, brindados com uma consciência política meramente proporcional ao volume de seu estômago (“o povo não quer nem a Liberdade nem a República, quer matar sua fome, só isso”, p.10).

Porém, bastam algumas horas de pesquisa para recensearmos a longa lista dos trabalhos que descrevem sem artifícios a lenta politização dos franceses ao sabor dos múltiplos conflitos do século XVIII. Qualquer estudante de história sabe hoje em dia que os sans-culottes passaram a maior parte de seu tempo não massacrando ou devorando seus inimigos, mas elaborando práticas democráticas ou participando da manutenção da ordem. Onfray acha sinceramente que o canibalismo foi prática corriqueira durante a Revolução Francesa?6 Os clichês desfilam ao longo das páginas: como Onfray pode definir o federalismo como sendo a recusa do centralismo jacobino (p.45)? Como pode reduzir o Terror a um imenso banho de sangue provocado por serial killers como Marat ou Sade (cap.9)? Como pode, desde a primeira página, explicar a Revolução como resultado de um efeito borboleta engendrado por uma tempestade desencadeada em… 13 de julho de 1788 (p.13)?

Quanto à Charlotte Corday de Onfray, simplesmente nunca existiu… A não ser sob a pena melancólica dos historiadores dos Anos Negros,7 assombrados pela decadência e fascinados diante das figuras do nacionalismo. Assim, a heroína desse ensaio não passa de um triste avatar da Viking e da Ariana outrora celebrada pelos historiadores da Action Française e da direita colaboracionista que cuspiam no “judeu Marat”, como Jean de la Varende, Maurice d’Hartoy, fundador dos Cruzes-de-Fogo, ou Pierre Drieu La Rochelle. Na esteira daqueles que vomitaram seu asco pelo mundo encontrando refúgio no antiliberalismo, no antiparlamentarismo e no anti-Iluminismo, Onfray celebra Corday como uma virgem romana (desde quando Onfray vê a virgindade como uma virtude?)… Com a diferença de que, e isso não é a invenção menos intrigante, essa Charlote é metamorfoseada numa libertária ateia sob o único pretexto de que recusou a assistência de um padre antes do cadafalso (p.51)!

Onfray inflige-nos aqui seu maior contrassenso. Antiga interna beneditina, Corday defendia efetivamente opiniões religiosas muito conservadoras, desprezando as ordens menores e recusando qualquer contato com o clero constitucional, daí ter repelido um confessor que teria prestado juramento à Constituição civil do clero. Para Charlotte Corday, o assassinato de Marat é em parte um ato de fé destinado a transformá-la numa herdeira das mártires cristãs.

Esse livro ruim parece tender para um único objetivo: denunciar a classe política atual, apresentada como imoral, corrupta e sem substância. Adepto da “religião do punhal”, Michel Onfray trai, porém, o inventor da expressão: Jules Michelet. Em 1847, este último escolhera Charlotte Corday para fazer um elogio da resistência à opressão, reproduzindo uma ideia sugerida por Adolphe Thiers vinte anos antes.8 Mas o contexto era então bem diferente: na época esses dois historiadores viam-se confrontados com regimes monárquicos muito mais liberticidas que o nosso!

A vitória póstuma de Charlotte Corday sobre Marat na memória coletiva, inegável, é comparada por Onfray à da Resistência diante de todas as formas de opressão e “à de todos aqueles que, hoje, opõem a virtude à corrupção política” (p.81). Comparando o 13 de julho de 1793 ao 18 de junho de 1940,9 Onfray, que dedica seu livro a um ex-resistente, pretende arrancar os franceses do niilismo contemporâneo e provocar a passagem ao ato. Nossa época de crise aguda traduz-se por um profundo desejo de história. Aproveitando-se da desorientação, os agitadores menos escrupulosos de nosso tempo podem repentinamente erigir-se em visionários e atear fogo no circo graças à cumplicidade interessada da mídia. Ao lermos seu ensaio, convencemo-nos de que Michel Onfray pertence a essa categoria de autores confortavelmente instalados no proscênio, mas que representam um perigo real do ponto de vista da transmissão dos valores do saber.

1 Guillaume Mazeau é maître de conférences em história moderna no Instituto de História da Revolução Francesa (Universidade Paris-I). Publicou Le bain de l’histoire. Charlotte Corday et l’attentat contre Marat (1793-2009), Seyssel, Champ-Vallon, 2009. Outra versão do presente texto foi publicada no site do Monde.fr, 22 abr 2010.

2 Michel Onfray, La religion du poignard. Éloge de Charlotte Corday, Paris, Galilée, 2009. [Charlotte Corday (1768-1793) assassinou o deputado Jean-Paul Marat (1743-1793), editor do jornal L’Ami du Peuple e um dos revolucionários mais atuantes durante o chamado período do Terror. Ele foi morto em 13 de julho de 1793 na banheira da própria casa, tornando-se um mártir da Revolução. Charlotte Corday foi guilhotinada quatro dias após o assassinato. (N.T.)]

3 Bernard-Henri Lévy, De la guerre en philosophie, Paris, Grasset, 2010. [Em seu livro, o filósofo Bernard-Henri Lévy cita Botul como um autor importante, ao passo que se trata meramente de uma criação do escritor Frédéric Pagès. (N.T.)]

4 Charles Henri Sanson: carrasco da guilhotina na época da Revolução Francesa. (N.T.)

5 Ver Jean Casimir-Perier, “La jeunesse de Charlotte Corday”, Revue des Deux Mondes, 1° abr 1862.

6 A descrição feita por Onfray do massacre de Henri de Belsunce (11 ago 1789) é antológica: “um certo Hébert, homônimo de Cordelier, autor de Padre Duchêne e originário de Alençon, destrincha as partes carnudas do visconde e as põe na grelha …” (La religion du poignard, p.18).

7 Referência ao período 1940-44, quando a França se dividiu entre resistentes aos nazistas e colaboracionistas. (N.T.)

8 Jules Michelet, Histoire de la Révolution Française, cap.4, “Une opinion opprimée se signale presque toujours par un coup de poignard”, Paris, Chamerot, 1847-53 (Adolphe Thiers, Histoire de la Révolution Française, Paris, Lecomte et Durey, 1823-27, p.261)

9 13 de julho de 1793: dia do assassinato de Marat e véspera do quarto aniversário da queda da Bastilha; 18 de junho de 1940: data do famoso apelo à resistência aos nazistas feito por Charles de Gaulle às vésperas da assinatura do armistício pela França, no dia 22. (N.T.)

 

2. O homem da flor de cimento

Christian Godin1

A popularidade atribui ao intelectual uma responsabilidade particular, sobretudo quando fundada em uma reputação de liberdade em relação às instituições. A ideia de uma “contra-história da filosofia” havia atraído para Michel Onfray simpatias além do círculo de groupies da Universidade Popular de Caen. Agora, porém, ao lançar seu panfleto contra Freud, o incendiário acabou por se desqualificar – inclusive diante dos que não têm uma concepção limitada da filosofia.

Le crépuscule d’une idole é uma invectiva de mais de quinhentas páginas recheadas de despautérios. Para demolir o fundador da psicanálise, tudo entra ali: drogas, sexo, dinheiro. A crer em Onfray, a psicanálise não passou, no fim das contas, de um negócio lucrativo. E, para completar o quadro, acrescente-se um burguês reacionário, tentado pelo fascismo, falocrata e homofóbico.

Onfray afirma ter lido tudo de Freud. Dispomo-nos a acreditar nisso. Mas o que faz com sua leitura? Seu livro não contém nenhuma ideia: não vamos chamar de “ideias” suas afirmações. Quanto aos conceitos, teoricamente assunto específico do filósofo, é em vão que o leitor procure vestígio deles. André Malraux dizia, com propriedade, que não há grandes livros “contra”. Le crépuscule não é sequer um livro “contra”, mas um sintoma, de tal forma as obsessões ocupam nele o lugar do pensamento, e os boatos o das argumentações.

Qualquer leitor de Freud um pouquinho atento descobre em sua obra o gênio inventivo, a força de uma inteligência sempre alerta, a ampla cultura e a modéstia, bem como os escrúpulos do cientista. Se Onfray não viu nada disso é porque seu Freud não passa de um espantalho forjado pelo semeador de ervas daninhas que ele é.

Mas talvez haja algo mais grave. O fato de atacarem a psicanálise – apenas cinco anos após o sinistro Livro negro2 – como se ela fosse onipotente já assinala o grave erro de diagnóstico. Afinal, quem detém o poder em nossa sociedade são, evidentemente, as terapias de autoajuda e medicamentosas.

Como se não bastasse, para além do caso Freud, há a psicanálise, e para além da psicanálise, a ideia de inconsciente. O descarte da única força de resistência capaz de vencer a ficção e as ilusões do sujeito neoliberal que administra sua existência e seus prazeres como um executivo de empresa – é para isso que servirá o livro de Onfray, se vier a servir para alguma coisa.

Nietzsche, que Onfray reivindica e cujo título afanou, dizia “filosofar a golpes de martelo”. Mas o martelo é igualmente a ferramenta do escultor. Já Onfray avança a golpes de retroescavadeira. É assim que fazem quando os velhos quarteirões da cidade são arrasados para se construir no lugar um estacionamento ou um shopping center. Le crépuscule é um livro para esse tipo de especulador…

1 Christian Godin é maître de conférences em filosofia na universidade de Clermont-Ferrand, autor de Dictionnaire de philosophie, Paris, Fayard/Éditions du Temps, 2004, e de cerca de outros vinte livros, dos quais o mais recente é Le pain et les miettes, Col. Hourvari, Paris, Klincksieck, 2010. O título deste artigo é extraído de uma canção de Jacques Dutronc.

2 Catherine Meyer (org.), Le livre noir de la psychanalyse, Paris, Les Arènes, 2005.

 

3. As ligações perigosas
de Michel Onfray

Franck Lelièvre1

O último panfleto de Michel Onfray vem se beneficiando de uma campanha promocional digna do filme Avatar, de James Cameron. Impossível evitá-lo. O livro parece pré-vendido, pré-comprado, pré-aclamado. Para apresentar o autor, o Libération, que fala dele como da tonelagem de um navio ou de uma liquidação, estampa em negrito em sua manchete: “500 mil, este é o número de exemplares vendidos do Tratado de ateologia.”2

O livro também é “pré-lido”. Como agora é de praxe, uma série de revistas e sites disponibilizaram “páginas interessantes”. Nesse ínterim, uma crítica irrespondível, publicada em Le Monde des Livres sob a pena de Elisabeth Roudinesco,3 e simultaneamente uma versão integral disponibilizada na internet nos permitiram fazer uma ideia precisa de seu conteúdo e da polêmica anunciada, e isso antes mesmo de sua chegada às livrarias.

“Freud é realmente uma caça reservada e sua obra proibida de releitura crítica?”, responde Onfray. Em outro artigo no Le Monde4 contesta em particular a suspeita de antissemitismo,5 nega ter escrito que “Kant é um precursor de Adolf Eichmann” e declara-se capaz de surpreender sua crítica em flagrante delito de impostura.

Eu teria levado cinco meses lendo a obra completa de Freud: o prefácio assinala (p.16) que comecei minha leitura em 1973. A sra. Roudinesco afirma que meu livro não contém … “fontes bibliográficas”! Ora, se a sra. Roudinesco tivesse tido o livro nas mãos e não houvesse se contentado com suas fantasias, teria constatado que existe uma bibliografia comentada de vinte páginas com entrelinha “simples”, ou seja, verifiquei em meu arquivo 56.521 caracteres… Nada mal para uma bibliografia inexistente!

Em quem acreditar? Como fazer? Comprar um livro desse tipo é um pouco como “vender seu cérebro à Coca-Cola”; não lê-lo é faltar com as regras mais elementares da deontologia intelectual. Resta a alternativa de consultar na livraria a famosa bibliografia e tirar a limpo a coisa. O que qualquer um pode fazer por conta própria e com pouca despesa…

De fato, salta aos olhos que não se trata de uma bibliografia: nosso ex-colega evidentemente ignora as regras do método historiográfico, que exige um debate preciso sobre as fontes no fim do volume ou em notas de rodapé. O que ele nos propõe em lugar e na função de uma verdadeira bibliografia é um inventário em forma de digest destinado a seu público no qual despeja tudo o que leu, o que se deve ler e, sobretudo, algo inaudito em se tratando de uma bibliografia: o que convém não ler! Mais marcado do que ele próprio julga por seus estudos em uma instituição religiosa, enumera então as leituras recomendáveis e aponta carolamente as ruins. Como nas edições escolares, mas aqui de maneira muito mais prolixa, os títulos são acompanhados de extensíssimos comentários destinados provavelmente aos leitores que convém instruir – ou já intoxicados.

As “autoridades” em matéria de “psicanálise”, por exemplo, são divididas em dois grupos, conforme elas lhe sejam favoráveis ou desfavoráveis. Estas são reputadas ipso facto indignas de crédito e ilegíveis. Aquelas, longamente reprimidas por uma conspiração poderosíssima, são declaradas seguras, pois desmitificadoras e audaciosas. Dizem A Verdade. Entre elas encontramos em lugar privilegiado referências à extrema direita francesa, em particular aos livros de Debray-Ritzen e Bénesteau. Em posição igualmente privilegiada, o livro que despertou o autor de seu “sono dogmático”, isto é, O livro negro da psicanálise. Entre os que autorizam uma crítica, segundo ele, radical de Freud e de uma vertente distinta dessa direita cujo elogio ele não obstante acaba por pronunciar, Onfray é especialmente condescendente com Erich Fromm, Wilhelm Reich e Herbert Marcuse, que serão destaque, diz ele, em seus próximos cursos.

Vem então a lista dos filósofos que criticaram o inconsciente, de Alain a Derrida. Ele faz uma menção especial a Sartre, e julga-se esperto ao encerrar sua enumeração completamente disparatada com um excerto do diálogo de Jacques Derrida com Elisabeth Roudinesco publicado sob o título De que amanhã…6 Que relação há, porém, entre uma tradição viva, complexa e apaixonada, a do colóquio singular entre filosofia francesa e psicanálise, e um procedimento carregado de preconceitos, escândalo e afirmações peremptórias?

Que conclusão tirar da consulta a essas páginas dispostas no fim do livro?

Quando se trata de referência baseada na extrema direita francesa, Onfray recorre a um procedimento bastante curioso. Incita-nos a separar, não sabemos muito como, o joio do trigo. Preso no rebotalho das declarações exacerbadas e claramente reacionárias, defende a existência de um conteúdo de realidade, confiável, interessante e não contaminado. Em suma, pretende mostrar que podemos defender as autoestradas de Hitler sem sermos nazistas, e o aterro dos pântanos de Pontine, por Mussolini, sem sermos fascistas. E agora?

Além disso, nessa pretensa bibliografia, Onfray menciona efetivamente que releu “todo o Freud em cinco meses” (sic), detalhando inclusive os meses e o ano. Da mesma forma, seu recente livro Le songe d’Eichmann [O sonho de Eichmann] contém literalmente a afirmação mais que odiosa segundo a qual Eichmann é “um kantiano entre os nazistas”. Nesse ponto, por conseguinte, sua defesa no artigo do Le Monde é uma fraude.

Naturalmente, ninguém está proibido de pensar o que quiser sobre a eficácia da psicanálise. Mas o que dizer da equação sistemática estabelecida por Onfray: dinheiro logo ganância logo perversão? O que dizer do uso do opróbrio generalizado? Por fim, e acima de tudo, acusar um pensador judeu, não obstante ateu e materialista, de ser ganancioso, mentiroso, perverso e idealizador de uma vasta conspiração mundial visando estender seu império sobre o mundo é exatamente o que se costuma qualificar de antissemitismo, e se não for isso, sugere-o escandalosamente.

É essa proximidade, essa possível fraqueza que me preocupa pessoalmente – como filósofo. Que eu saiba, nenhum jornalista colocou a questão nesses termos para Michel Onfray. E não foi por falta de oportunidade.

1 Frank Lelièvre é professor de filosofia do curso secundário em Caen. É fundador da Sociedade Normanda de Filosofia.

2 Libération, 17 e 18 abr 2010. Cf. igualmente Les Inrocks.com, 20 abr 2010.

3 Le Monde, 15 abr 2010.

4 Le Monde.fr, 22 abr 2010.

5 Do que, aliás, ninguém o acusa.

6 Elisabeth Roudinesco e Jacques Derrida, De que amanhã… Diálogo, Rio de Janeiro, Zahar, 2004, [2001]. (N.T.)

 

4. Um golpe de esperteza

Pierre Delion1

Poder discutir sobre a psicanálise e seus limites como sistema psicopatológico e/ou de sucesso terapêutico é uma das possibilidades oferecidas pelo debate democrático. Com a condição de fazê-lo de maneira informada e rigorosa. Mas aproveitar-se de uma aura midiática para transformar o necessário debate em caricatura assemelha-se a abuso de poder. E a democracia atual, devastada por sua deriva midiática simplificadora, realmente não precisava desse golpe de esperteza.

Se me permito participar da discussão, é porque alguns esquecem, com uma estranha desenvoltura, o progresso que a psicanálise freudiana permitiu realizar em um mundo igualmente estranho, o da doença mental, o da psiquiatria.

Os progressos da reflexão de Philippe Pinel e do enfermeiro Pussin resultaram, no fim do século XVIII e início do XIX, na criação de hospícios departamentais:2 tratava-se então de sair de uma época de sinistra memória, quando os loucos eram acorrentados nas masmorras das prisões. Em seguida, esses estabelecimentos asilares, embora destinados a doentes mentais, tornaram-se estabelecimentos de confinamento. Com efeito, ao se agrupar pacientes em serviços psiquiátricos fechados para ajudá-los a redescobrir o sentido de sua existência graças a um tratamento moral, corria-se o risco de não proporcionar a todos uma relação verdadeira.

Daí o risco quase mecânico de organizar o que François Tosquelles, um dos pioneiros da psicoterapia institucional, chamou de “contratransferência institucional”: algo como um esquivamento da relação subjetiva. Assim, toda a evolução do século XIX não teria alterado nada disso se Freud não tivesse permitido a mudança desse paradigma, obrigando a psiquiatria a tomar um novo caminho: aquele que considera o doente mental um irmão em humanidade, capaz de se apoiar sobre seus próprios recursos e sobre os de sua comunidade de pertencimento para mudar a trajetória de seu destino.

A relação terapêutica com o paciente, conceituada por Freud como “relação transferencial”, oferecia, portanto, uma possibilidade de modificar profundamente a existência trágica do doente. Porém, embora Freud teorizasse sobre esses pontos de vista eminentemente dignos de interesse para as pessoas neuróticas do início do século XX, seria preciso esperar o fim da Segunda Guerra Mundial para que psiquiatras – Georges Daumézon, Lucien Bonnafé, Jean Oury e outros –, após assimilarem essas noções, estivessem em condições de propô-las ao Estado a fim de que este as colocasse em prática para os psicóticos. Por custódia, poderemos tornar habitáveis e humanos os espaços reservados aos pacientes nos serviços de psiquiatria e mudar, assim, o modo de encontro entre aquele que sofre psiquicamente e a equipe encarregada de acolhê-lo.

A primeira etapa consistiu em levar atendentes e pacientes a participar da organização de uma vida coletiva com o intuito de arrancar estes últimos de sua lendária inatividade, uma maneira de cada um pôr-se a caminho em busca de uma saída dos processos de alienação e de dependência consubstanciais ao hospício antes de Freud. Esse trabalho psiquiátrico específico, realizado por Tosquelles e seus colegas no hospital de Saint-Alban, em Lozère, serviu de modelo para uma nova forma de funcionamento, mais humana, dos serviços de psiquiatria: criação de clubes terapêuticos, desenvolvimento de atividades culturais etc. Tudo isso levaria, finalmente, as equipes de atendentes a pensar as condições da psicoterapia das pessoas psicóticas em torno de “constelações transferenciais” e “estruturas institucionais” suscetíveis de dar conta de “transferências dissociadas” e, consequentemente, a tratá-las.

Mais tarde, a partir de março de 1960, a introdução da psiquiatria de setor constituiu um marco na verdadeira revolução da psiquiatria do último século, na medida em que seria alimentada pela experiência freudiana. Entretanto, para que a doutrina do setor psiquiátrico pudesse prestar os serviços que se esperava de sua implementação, parecia necessário “habitá-la”, de maneira a que as condições de vida cotidiana oferecidas aos pacientes fossem aceitáveis. Ora, quase sempre se esquece de que foi esse “teórico-prático” que permitiu transformar radicalmente os hospícios e tratar dos pacientes sem internação, reservando-se eventualmente o direito de hospitalizá-los.

Afirmo que foram Freud e seus sucessores, e no mesmo nível coloco os fundadores da psicoterapia institucional e da psiquiatria de setor, que, juntos e distantes no tempo, permitiram essa evolução formidável ao modificarem profundamente a disposição dos atendentes e, em seguida, suas práticas.

O fato de hoje esses avanços serem ridicularizados confusamente por alguns, como Michel Onfray – que se paramenta a preço vil com a parafernália de uma verdade dita pós-nietzschiana autorrevelada –, ameaça estimular a volta à psiquiatria securitária. Por meio da destruição da psiquiatria de rosto humano, os ideais do século XIX e do confinamento fazem um retorno espetacular, ao passo que sabemos que Freud contribuiu para mudar a imagem da loucura e transformá-la em um drama humano entre outros, dando esperança a milhões de pessoas doentes e a seus atendentes.

E porque sou pedopsiquiatra, quero lembrar que apenas o pensamento de Freud, aprofundado por suas discípulas Melanie Klein e Anna Freud, permite enfrentar as prescrições medicamentosas e outras práticas educativo-comportamentais que tendem a dominar a pedopsiquiatria. A prescrição medicamentosa deve ser fornecida quando necessária, o que raramente é o caso em pedopsiquiatria, não apenas para diminuir os sintomas que entravam o desenvolvimento da criança, mas, sobretudo, para facilitar sua psicoterapia. E as psicoterapias de inspiração freudiana são, até onde sei, prolíficas em façanhas quando praticadas em boas condições, isto é, por pessoas formadas, acolhendo os pais como aliados naturais da criança e abertas a outras dimensões do sofrimento psíquico desta – tanto seus aspectos neurocientíficos como os antropológicos e socioeconômicos.

Atacar Freud sem indulgência, por provocação e em nome de um esteticismo melancólico é um erro moral. Mas fazê-lo omitindo que os livros de Freud foram queimados pelos nazistas é assumir o risco de ser assimilado aos desinformadores mais vis, o que não deixa de surpreender vindo da parte de um reputado filósofo.

E, no caso, estamos às voltas com um campeão.

1 Pierre Delion é professor de pedopsiquiatria na Faculdade de Medicina de Lille-II e professor de várias universidades. É um dos fundadores do coletivo Pas de Zéro de Conduite.

2 Ver Jacques Postel, Genèse de la psychiatrie. Les premiers écrits de Philippe Pinel, Paris, Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1998.

 

5. Filosofia do ressentimento, sociedade do espetáculo

Roland Gori1

Os franceses perderam cruelmente a esperança e a confiança no futuro e temem pelo pão cotidiano de seus filhos. Segundo algumas pesquisas, um francês em cada dois receia ver-se sem domicílio fixo, e mais de dois franceses em cada três pensam que o futuro de seus filhos será pior que o seu. Trata-se de uma crise no céu da democracia que, como a nuvem da erupção vulcânica, escurece o horizonte de nossos contemporâneos. Jean Jaurès não cansou de nos avisar: o pior, para uma democracia, é a ausência de autoconfiança. Mas, na falta de pão, nossa sociedade do espetáculo, ávida por emoções coletivas, oferece-nos uma espécie de reality show: por exemplo, nos dias de hoje, a “perda de virgindade” de Michel Onfray pelo Livro negro da psicanálise, esse pot-pourri de textos heteróclitos que nos convidava há cinco anos a “viver, pensar e melhorar sem Freud”. Que programa!

De minha parte, admito ter outras obras literárias como fontes de fantasias eróticas. Mas cada um com seu gosto. Com seu autor também. O Kant de Michel Onfray não é o meu, tampouco seu Nietzsche. E menos ainda seu Freud. Cada qual com o autor que merece.

O problema para mim, nesse caso, é o alvoroço midiático que acompanha a promoção desse panfleto. Essa encenação vem enfumaçar a paisagem filosófica e cultural do debate de ideias, das exigências sociais e das prioridades políticas que, não obstante, a situação atual exige. Muito barulho por nada… Eis o que é importante. Importante como sintoma de nossa civilização.

Importante como revelador dessa reificação das consciências característica de nossas sociedades, nas quais apenas a forma mercantil é dotada de valor, fixada por um preço e, como tal, suscetível de exercer uma influência decisiva sobre todas as manifestações da vida social e cultural.

O que valem as afirmações de Michel Onfray sobre Kant ou Freud fora do ibope que sua postura gera e que a lógica midiática levou ao proscênio?

O problema do fetichismo da mercadoria e de seu espetáculo é específico do capitalismo moderno e da sociedade que ele formata. Essa universalidade da forma mercantil e da sociedade do espetáculo está presente de ponta a ponta na estrutura e na função da encenação midiática e promocional do livro de Onfray.

De que prática terapêutica poderia autorizar-se Michel Onfray para julgar a eficácia do método psicanalítico? Em que trabalhos de exegese histórica poderia se validar senão em autores que provocaram o vespeiro do Livro negro ou das Mentiras freudianas de Bénesteau? A eficácia, nesse caso, não poderia proceder, portanto, senão da objetivação mercantil, sobre a qual um autor como Georg Lukács2 nos ensinou outrora que ela quase sempre se acompanha de uma “subjetividade” tão “fantasística” quanto a realidade à qual aspira.

Um último ponto. Lendo a resposta de Michel Onfray a Elisabeth Roudinesco, na esteira da análise crítica de seu livro, não podemos senão constatar que o nível caiu muito baixo, bem abaixo da cintura. Quando digo abaixo da cintura, estou longe de pensar naquela sexualidade que Freud eleva à dignidade de conceito a partir de um método, sexualidade que ele inscreve na genealogia do Eros platônico; tenho na cabeça o sexo e suas posições tais como as declarações libertinas dos homens os convocam no fim dos banquetes, nos bastidores das contendas esportivas ou na excitação das salas de plantão.

Se fôssemos medir o valor da reflexão intelectual e filosófica de uma sociedade pela estatura dos conceitos que ela construiu e pelos comentários críticos das obras que a precederam, poderíamos legitimamente nos preocupar com a degradação intelectual da nossa.

1 Roland Gori é psicanalista (em Marselha) e professor emérito de várias universidades. Publicou diversos livros e é fundador do movimento Appel des Appels. Uma versão mais extensa deste texto foi publicada em L’Humanité, 24 abr 2010.

2 Georg Lukács, Histoire et conscience de classe, Paris, Minuit, 1960.