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Além da virada cultural?
A expressão NHC parecia uma boa ideia quando foi cunhada no final da década de 1980, como foi também o caso de “nova história”, nos Estados Unidos da década de 1910. Infelizmente, a novidade é um trunfo que se esgota rapidamente. Essa “nova” história cultural tem mais de 20 anos. Na verdade, um exame da lista cronológica de publicações apresentada ao final deste volume sugere que ela já tem mais de 30 anos, uma vez que o rompimento real ocorreu no início da década de 1970, uma década antes da invenção do nome. A mesma lista sugere que, enquanto a produção de material inovador permaneceu alta na década de 1980 — basta olhar a variedade e qualidade dos livros lançados em 1988, por exemplo —, ela declina gradualmente na década de 1990. O início do século XXI parece ser um tempo de reconhecimento, em termos de volume e consolidação, em que o presente livro tem seu lugar. No entanto, é preciso dizer que este tipo de inventário geralmente se segue à fase mais criativa de um movimento cultural.
Acrescente-se a isso o fato de que a NHC tem sido objeto de críticas sérias, e é impossível fugir à seguinte questão: chegou o tempo de uma fase ainda mais nova? Ou, essa fase já começou? Podemos também nos perguntar se o que vem pela frente será um movimento ainda mais radical, ou se, pelo contrário, teremos uma reaproximação de formas mais tradicionais de história.
Como sempre, é necessário fazer distinções. Temos de distinguir entre o que queremos que aconteça e aquilo que supomos que acontecerá, bem como separar as tendências de curto e de longo prazo. No que se refere a previsões, é difícil fazer mais que extrapolar as tendências de longo prazo, embora estejamos cientes, pela experiência passada, de que o futuro será mais que uma simples continuação de tais tendências. Devemos levar em conta as possíveis reações a elas, as tentativas de voltar no tempo, embora saibamos ser impossível um simples retorno ao passado.
Neste ponto, provavelmente o mais útil a fazer é discutir cenários alternativos. Uma das possibilidades é o que se pode descrever como o “retorno de Burckhardt”, usando o nome como uma espécie de síntese, um símbolo para o renascer da história cultural tradicional. Uma segunda possibilidade é a expansão contínua da nova história cultural para outros domínios. Uma terceira é a reação contra a redução construtivista da sociedade em termos de cultura, o que pode ser chamado de “a vingança da história social”.
Em certo sentido, não podemos falar do retorno de Burckhardt porque, para começo de conversa, ele nunca foi embora de fato. Ou seja, a história da alta cultura, do Renascimento, por exemplo, ou do Iluminismo, nunca foi abandonada, mesmo na era do entusiasmo pela cultura popular, nas décadas de 1970 e 1980 — embora sofresse a competição pelos recursos acadêmicos.
Anthony Grafton é um exemplo bem conhecido de historiador cultural cujo trabalho acadêmico enfoca a tradição clássica no Renascimento e no período posterior, embora também tenha contribuído para a história da leitura e produzido uma história das notas de rodapé e sua relação com as práticas técnicas e a ideologia da profissão histórica, em The Footnote (1997).
Uma das mais conhecidas obras de história cultural publicadas nesse período em língua inglesa é Viena, fin de siècle (1979), de Carl Schorske, um estudo sobre escritores como Arthur Schnitzler e Hugo Von Hoffmannsthal, artistas como Gustav Klimt e Oskar Kokoschka, e também Sigmund Freud e Arnold Schoenberg. Schorske apresenta seu trabalho como um estudo da modernidade, definida em comparação ao historicismo do século XIX. Sua história do que ele chama de “cultura a-histórica” apresenta uma interpretação essencialmente política desse movimento, ligando-o aos “tremores da desintegração social e política” e ao declínio do liberalismo no sentido de um compromisso com a racionalidade, o realismo e o progresso. Eram esses os valores contra os quais seus protagonistas se rebelaram, cada um à sua maneira — Freud, ao chamar a atenção para as forças irracionais da psique, por exemplo; Klimt ao romper com o realismo e ofender deliberadamente a moralidade burguesa, e assim por diante.
Um futuro possível para a história cultural — pelo menos no futuro próximo — é a renovação da ênfase na história da alta cultura. Afinal, a alta cultura é uma ausência conspícua dos “estudos culturais” tal como ensinados e estudados em muitos lugares hoje. Se essa renovação ou retorno ocorrer, é improvável que a história da cultura popular definhe, mesmo que o conceito de “cultura popular” já esteja sendo questionado. Os dois tipos de história cultural provavelmente vão coexistir, juntamente com um interesse crescente em suas interações. Na verdade, a alta cultura pode ser reestruturada ou mesmo descentrada, chamando-se a atenção, por exemplo, tanto na história das mentalidades como na história da filosofia, para a recepção do Iluminismo por parte de diferentes grupos sociais ou para a domesticação do Renascimento, no sentido de seu impacto sobre a vida cotidiana — sobre o desenho de cadeiras e pratos, digamos, assim como sobre as pinturas e os palácios. Na verdade, esse deslocamento de ênfase já está acontecendo.1
Alguns exemplos importantes de NHC podem ser relidos sob esse ponto de vista; O queijo e os vermes (1976), de Ginzburg, por exemplo. Esse vigoroso retrato de um indivíduo e seu cosmos atraiu muita gente sem interesse especial pela Itália do século XVI. No entanto, ele também pode ser lido como uma contribuição à história de um importante movimento cultural, a Contrarreforma, do ângulo de sua recepção, da interação com a cultura popular tradicional. Em suma, como acontece muitas vezes na história cultural, uma tentativa de voltar ao passado produzirá algo novo. Algumas tentativas recentes de reviver — mas também de redefinir — a ideia de tradição apontam na mesma direção.
Um segundo cenário prevê a extensão da nova história cultural de modo a incluir domínios anteriormente deixados de lado, entre eles a política, a violência e as emoções.
A história cultural da política
Política e cultura estão ligados de mais de um modo. Um conjunto de conexões possíveis foi explorado por Schorske em Viena, fin de siècle. Outra abordagem pode ser descrita como a política da cultura, indo da publicidade dada às coleções dos governantes, como sinal de sua magnificência e bom gosto, às razões nacionais ou nacionalistas para a fundação de galerias, museus e teatros no século XIX.
Uma preocupação com o que algumas vezes é chamado de “administração cultural” é particularmente visível nos séculos XIX e XX. No Brasil, o regime do presidente Getúlio Vargas, especialmente entre 1930 e 1945, preocupou-se muito com a cultura nacional, embora, como sugere um estudo recente, tenha sido também um tempo de “guerras culturais” em nome da representação da identidade da nação, no sentido de competição entre ministérios, por exemplo, ou entre estilos arquitetônicos.2
No entanto, é a cultura da política que merece mais atenção aqui. Seria um equívoco sugerir que os historiadores culturais tenham sempre ignorado a política, ou que os historiadores políticos tenham deixado a cultura completamente de lado. Havia lugar para a política na história cultural tradicional, inclusive na obra de Burckhardt sobre o Estado renascentista como obra de arte, na de Marc Bloch sobre os poderes curadores atribuídos aos reis da França e da Inglaterra, e nos trabalhos de muitos estudiosos do simbolismo da monarquia — insígnias reais, coroações, funerais ou entradas formais nas cidades.
Nos estudos políticos, algumas figuras importantes, como Murray Edelman, autor de Politics as Symbolic Action (1971), deram sua “virada cultural” há uma geração, ao examinar os rituais ou quase rituais políticos e outros aspectos simbólicos do comportamento político no presente e no passado. A explicação cultural oferecida por F.S. Lyons para a conturbada história política da Irlanda já foi discutida em um capítulo anterior (ver p.47).
De qualquer forma, quando novos termos técnicos entram em uso, normalmente isso é sinal de um deslocamento de interesse ou de abordagem. O conceito de “cultura política” é uma expressão da necessidade de ligar os dois domínios, focalizando as atitudes ou noções políticas de diferentes grupos e as maneiras pelas quais essas atitudes são instiladas. Empregada pelos cientistas políticos na década de 1960, a expressão parece ter entrado no discurso dos historiadores ao final da década de 1980, a julgar pelos títulos de livros como The Political Culture of the Old Regime (1987), de Keith Baker, seja ela usada para tratar de um país inteiro, ou de um grupo, como o das mulheres.
O estudo sobre a Revolução Francesa por Lynn Hunt, uma figura importante na NHC, preocupou-se principalmente com a cultura política. Politics, Culture and Class in the French Revolution (1984) focalizou as mudanças das “regras do comportamento político”, e mais especialmente as novas “práticas simbólicas”, estudadas à maneira de Foucault. Tais práticas iam da coreografia das festas públicas ao uso do cocar tricolor ou do barrete vermelho da liberdade, ou à generalização da forma de tratamento familiar tu ou citoyen(ne) para simbolizar igualdade e fraternidade e contribuir, por meio de pequenos gestos, para a realização desses ideais. Um livro que começou como história social da política, confessa a autora, transformou-se em história cultural, embora a historiadora social se revele na cuidadosa distinção entre as maneiras como mulheres e homens, por exemplo, participaram dessa nova cultura política.
Outro exemplo recente do entrelaçamento entre história política e cultural é a obra coletiva do Grupo de Estudos Subalternos (Subaltern Studies Group), baseado na Índia e liderado por Ranajit Guha. O projeto do grupo, que provocou um amplo debate, é nada menos que reescrever a história da Índia, especialmente a história do movimento pela independência antes de 1947. O objetivo é dar aos diferentes grupos dominados (as “classes subalternas”, como chamava Gramsci) seu lugar adequado junto às elites, de cujas atividades estão cheias as histórias da independência anteriores. Sob esse aspecto, a obra de Edward Thompson — cujo pai trabalhou na Índia e simpatizava com o movimento de independência — foi uma inspiração.3
A obra publicada pelo Grupo de Estudos Subalternos é também diferenciada por sua preocupação com a cultura política, especialmente com a cultura que informa “a condição subalterna”. Tanto obras de literatura como documentos oficiais foram empregados como fontes da “mentalidade da subalternidade”. Também aqui Edward Thompson serviu de modelo, embora, diferentemente dele, o grupo sempre tenha tido grande interesse pela teoria cultural, incluindo a obra de Lévi-Strauss, Foucault e Derrida.
Para um exemplo concreto da abordagem do grupo, podemos tomar o estudo de Shahid Amin sobre a imagem de Gandi na “consciência camponesa”, que enfatiza a maneira pela qual “padrões preexistentes de crença popular” formaram essa imagem (aqui, mais uma vez, vemos o interesse pelos esquemas). Circulavam histórias descrevendo os poderes ocultos de Gandi, e o culto ao líder era uma versão leiga da devoção (bhakti) a Krishna e outros deuses. O estudo lança luz sobre algumas das questões sobre transmissão da tradição levantadas no Capítulo 5. Por um lado, podemos dizer que as tradições religiosas estavam sendo secularizadas. Por outro, é claro que as atitudes e práticas políticas eram profundamente influenciadas pelas crenças religiosas. “Hibridização cultural”, mais que “modernização da tradição” parece ser a melhor descrição do processo analisado por Amin.4
Ajudado pelo crescimento do interesse internacional em estudos pós-coloniais, o movimento atraiu uma atenção cada vez maior fora da Índia. Foi fundado um grupo de Estudos Subalternos Latino-Americanos, e um artigo escrito em 1996 examina a influência da “abordagem subalterna” nas histórias da Irlanda.5 A recepção dos trabalhos do Grupo de Estudos Subalternos é um bom exemplo da globalização dos escritos históricos que ocorre atualmente, e também serve de ilustração para os vínculos entre cultura e política, tanto no presente como no passado. Além disso, mostra como as ideias são submetidas a testes no processo de tentar empregá-las fora do contexto para o qual foram originalmente desenvolvidas.
Não obstante esses estudos de cultura política, um grande número de temas importantes ainda espera por seus historiadores culturais. Os vínculos entre política e mídia mal começam a ser explorados, com estudos sobre a “cultura da notícia” — como, por exemplo, o papel dos boletins de notícias na guerra civil inglesa ou a política dos escândalos de corte.6 As oportunidades são particularmente óbvias em relação aos séculos XIX e XX, já que a NHC vem sendo dominada por especialistas em Idade Média e começo do período moderno. Até agora, ninguém, que eu saiba, tentou escrever a antropologia histórica dos parlamentos ou do corpo diplomático moderno e seus rituais — embora tenham-se feito estudos sobre as festividades políticas na era do nacionalismo.7
A história cultural da violência
Embora não exista uma antropologia histórica do exército moderno, há pelo menos um estudo sobre a Primeira Guerra Mundial da perspectiva da história do corpo. O historiador militar John Keegan, bem conhecido por sua história social das batalhas, defende agora a posição de que a guerra é um fenômeno cultural. Um recente livro de ensaios sobre um tema tradicional da história política e militar, a Guerra dos Trinta Anos, trata-a sob a perspectiva da vida cotidiana de pessoas comuns.8 A Primeira Guerra Mundial, em particular, vem sendo discutida do ponto de vista cultural, focalizando-se a ameaça de guerra na formação da geração de 1914, por exemplo, ou seus efeitos culturais, incluindo a relação entre guerra e modernidade.9
Historiadores especializados em castelos estão agora se voltando para a cultura, rejeitando o determinismo militar — ou seja, a construção do castelo explicada puramente em termos de defesa — e enfatizando, em vez disso, a importância da exibição de riqueza, poder e hospitalidade — em outras palavras, o castelo como teatro. Até mesmo a história naval está começando a ser abordada desse ponto de vista, como mostra, por exemplo, um recente estudo sobre o mar do Norte como “teatro marítimo” para espetáculos navais montados pela Grã-Bretanha e pela Alemanha em torno de 1900, o aspecto cultural de sua corrida pelas armas.10
É muito fácil ver por que o tópico da violência hoje, mais do que nunca, atrai os historiadores culturais. A sugestão de que a violência tem uma história cultural pode parecer surpreendente, já que ela muitas vezes é vista como a erupção de um vulcão, a expressão de impulsos humanos que nada têm a ver com a cultura. O argumento de que é uma espécie de teatro pode até parecer escandaloso, já que se derrama sangue de verdade.
No entanto, a analogia do teatro não pretende negar o derramamento de sangue. O antropólogo holandês Anton Blok apontou o problema principal ao chamar atenção para a importância de se lerem as mensagens enviadas pelos violentos, isto é, os elementos simbólicos de ação (mesmo que os agentes não estejam, eles próprios, conscientes do simbolismo). A proposta da abordagem cultural é revelar o significado da violência aparentemente “sem significado”, as regras que governam seu emprego. Como observou Keith Baker: “A ação de um amotinado ao pegar uma pedra já não pode ser entendida fora do campo simbólico que lhe dá significado, da mesma forma que a ação de um padre ao elevar o cálice sacramental.” Assim, historiadores inspirados na obra dos antropólogos Mary Douglas e Victor Turner estudaram o linchamento de um sul-americano no século XIX como “um roteiro moral”, e os tumultos de Nápoles em 1647 como um “drama social”.11
A violência das multidões nas guerras religiosas francesas do final do século XVI atraiu particular atenção dos historiadores. A pioneira, aqui como em outras partes, foi Natalie Davis. Pensar no Holocausto e na violência política da década de 1960 levou-a a ver o século XVI sob nova luz. Vários historiadores franceses, especialmente Denis Crouzet, seguiram metodologia semelhante.12
Esses historiadores diferem entre si em diversos pontos, mas também têm muito em comum, particularmente Davis e Crouzet. Observam o papel importante dos jovens, e mesmo dos meninos, nos atos de violência, seja isso explicado pela licença festiva, seja pela associação tradicional entre criança e inocência. Reconstroem o repertório cultural de ações disponíveis para os participantes, um repertório tomado em parte da liturgia, em parte dos rituais da lei e em parte das peças de mistério da época. Discutem os aspectos lúdicos ou carnavalescos dos tumultos, lançando mão das ideias de Mikhail Bakhtin sobre violência festiva.
Eles também consideram os significados religiosos dos acontecimentos. Crouzet compara os amotinados às pessoas “possuídas” por deuses ou espíritos nos rituais religiosos. Davis sugere que devemos ler os tumultos como rituais de purificação, tentativas de limpar a comunidade da perversão. Voltando à discussão sobre performance, do Capítulo 5, podemos dizer que os amotinados encenavam a metáfora da purificação, e também sugerir que suas ações ajudaram a construir a comunidade, dramatizando a exclusão dos que estão de fora.13
É razoável esperar por futuros estudos sobre limpeza étnica e por aquilo que pode ser chamado de “história cultural do terrorismo”.14
A história cultural das emoções
A violência discutida na seção anterior era a expressão de emoções fortes. As emoções têm uma história? Nietzsche achava que sim. Em A gaia ciência (1882) ele se queixava de que “até agora tudo o que dá cor à existência ainda não tem uma história … onde se pode encontrar uma história do amor, da avareza, da inveja, da consciência, da piedade, ou da crueldade?”
Alguns dos historiadores discutidos nos capítulos anteriores concordariam com isso, a começar por Jacob Burckhardt, cujas referências a inveja, raiva e amor na Itália renascentista Nietzsche de algum modo não viu, embora conhecesse pessoalmente o autor.15 Em seu Outono da Idade Média, Johan Huizinga discutiu o que chamou de “alma apaixonada e violenta da época” — a oscilação emocional e a falta de autocontrole características dos indivíduos do período. Vinte anos mais tarde, Norbert Elias usou o estudo de Huizinga como base para sua própria história cultural das emoções, mais especialmente das tentativas de controlar as emoções como parte do “processo civilizatório” (ver p.72).
Apesar desses exemplos, foi há relativamente pouco tempo que a maioria dos historiadores começou a levar as emoções a sério. Uma história das lágrimas, por exemplo, seria quase inconcebível antes da década de 1980, pelo menos fora de certos círculos na França, mas hoje elas são vistas como parte da história, mais especialmente da história da “revolução afetiva” do final do século XVIII, o contexto dos lacrimejantes leitores de Rousseau. Uma das perguntas mais frequentemente formuladas nesses estudos é: quem chora? Por exemplo, quando e onde o código permite que os homens chorem? De uma forma mais geral, quais são os diversos significados e usos do choro em diferentes períodos, as diversas “economias das lágrimas”?16
No mundo de fala inglesa, o interesse pela história das emoções é particularmente associado a Peter Gay, Theodore Zeldin e Peter e Carol Stearns. Zeldin passou da política de Napoleão III para o que ele chama (seguindo os irmãos Goncourt), de a “história íntima” da ambição, do amor, da preocupação e de outras emoções na França do século XIX; e Peter Gay, seguindo sua formação em psicanálise, passou da história intelectual da Idade da Razão para a psico-história dos amores e ódios da burguesia do século XIX.17
Carol e Peter Stearns publicaram em conjunto um manifesto em prol da “emocionologia histórica”, monografias sobre a raiva e o ciúme e um estudo mais geral sobre as mudanças de “estilo” emocional nos Estados Unidos do começo do século XX, intitulado American Cool (1994). Argumentam que houve três tipos de mudanças: na ênfase dada às emoções de modo geral; na importância relativa de sentimentos específicos; e no controle ou “administração” das emoções.
Uma estrutura alternativa foi proposta recentemente por William Reddy em The Navigation of Feeling (2001). Lançando mão tanto da antropologia e da psicologia das emoções, Reddy apresenta um conjunto de conceitos interconectados. Como Carol e Peter Stearns, chama a atenção para a “administração” emocional, ou, como diz ele, a “navegação”, tanto em nível individual como social. Ligada a essa noção está sua ideia de “regime emocional”. No entanto, sua abordagem é também exemplo da recente “virada performativa” (ver p.119). Reddy discute a linguagem das emoções em termos de “elocuções performativas”. Uma declaração de amor, por exemplo, não é, ou não é apenas, uma expressão dos sentimentos. É uma estratégia de encorajamento, amplificação ou mesmo transformação dos sentimentos do ser amado.
Distanciando-nos dessas sugestões, cujas implicações ainda terão de ser trabalhadas, pode-se sugerir que os historiadores das emoções enfrentam um dilema básico. Eles precisam decidir se são maximalistas ou minimalistas, em outras palavras, se acreditam na historicidade ou na não historicidade essencial das emoções. Das duas, uma: ou as emoções específicas, ou o pacote inteiro de emoções em uma dada cultura (a “cultura de emoções” local, como chamam Carol e Peter Stearns) são submetidos a mudanças fundamentais ao longo do tempo. Ou ainda, eles permanecem essencialmente os mesmos em diferentes períodos.
Os estudiosos que escolheram o lado “minimalista” do dilema são forçados a se limitar ao estudo das atitudes conscientes com respeito às emoções. Escrevem uma história intelectual sólida, mas não se trata realmente de história das próprias emoções. Por outro lado, aqueles que preferem a opção “maximalista” são mais inovadores. O preço que pagam é que suas conclusões são muito mais difíceis de sustentar. Em documentos antigos, é fácil encontrar evidências de atitudes conscientes a respeito de raiva, medo, amor e assim por diante, mas as conclusões sobre mudanças fundamentais a longo prazo são necessariamente muito mais especulativas.
Em um famoso estudo, o classicista Eric Dodds, tomando de empréstimo uma frase de seu amigo, o poeta W.H. Auden, descreveu o final do período clássico como uma “era de ansiedade”. Pagan and Christian in an Age of Anxiety (1965) é um livro com pontos de vista perspicazes que focalizam a experiência religiosa, mas também discute os sonhos e as atitudes do corpo. No entanto, o título do livro cria um problema que o autor pouco faz para resolver. As pessoas são mais ansiosas em um período histórico que em outro ou sofrem de ansiedades diferentes? Mesmo se fosse este o caso, como um historiador poderia encontrar evidências para estabelecer tal fato?
A história cultural da percepção
O interesse crescente pela história dos sentidos corre paralelo ao interesse pelas emoções. Há uma tradição de estudos sobre a visão (o livro de Smith, por exemplo, European Vision and the South Pacific (1959), e o de Baxandall, Painting and Experience in Fifteenth-Century Italy (1972)), bem como trabalhos sobre o olhar, inspirados em Foucault. Foram feitas referências ocasionais ao som do passado por Johan Huizinga e Gilberto Freyre, que descreveu o rumor das saias nas escadas da casa-grande no Brasil colonial. Freyre, além disso, descreveu o odor dos quartos de dormir no Brasil do século XIX, uma combinação de cheiros de pés, mofo, urina e sêmen. Hoje, no entanto, encontramos tentativas ambiciosas de escrever sobre todos os sentidos em detalhes.
Em Rembrandt’s Eyes (1999), por exemplo, Simon Schama tenta, com sua audácia característica, apresentar a cidade de Amsterdã no século XVII tal como ela se apresentava aos cinco sentidos. Evoca seus cheiros, especialmente os de sal, madeira podre e fezes humanas, e, em certos lugares, de ervas e especiarias. Descreve seus sons, os carrilhões de muitos relógios, “o marulhar das águas dos canais batendo nas pontes”, o serrar das madeiras e, no que ele chama de “zona clangorosa”, onde se faziam armas, o som do martelo sobre o metal. Os leitores podem estar se perguntando quais poderiam ter sido as fontes para tal relato evocativo, de modo que vale a pena lembrar o valor, neste aspecto, dos diários de viagem, já que os viajantes são hipersensíveis a sensações a que não estão acostumados.
Cheiro e som são os domínios sobre os quais mais se escreveu nos últimos anos, com destaque para o historiador francês Alain Corbin. Em Saberes e odores (1986), um estudo sobre o que o autor chama de “imaginação social francesa”, Corbin destaca modos de percepção, sensibilidades, o simbolismo dos cheiros e as práticas higiênicas. Em uma criativa adaptação de uma ideia de Norbert Elias, Corbin liga essas práticas a um estreitamento da “fronteira” de tolerância com relação aos maus cheiros no início do século XIX, época de repulsa burguesa pelo que era percebido como o “fedor dos pobres”. Como diz outro estudioso, “cheiro é cultural”, no sentido de que “os odores estão investidos de valores culturais”, da mesma forma como o cheiro é histórico, porque suas associações mudam com o tempo.
No rastro de Corbin, e de romances como O perfume (1985), de Patrick Süskind, situado na França do século XVIII e que conta a história de um homem obcecado pelo cheiro, o tema tem atraído novos historiadores. Até agora eles vêm se concentrando na enorme distância entre a “cultura do cheiro” — mais ou menos — desodorizada do século XX e a de épocas anteriores. À medida que as pesquisas avancem, é de se esperar que surjam outras distinções importantes.18
Do cheiro, Corbin passou para a história do som, em Village Bells (1994), preocupado com o que chama de história da “paisagem sonora” (le paysage sonore) e com “a cultura sensível” (culture sensible). É apropriado que um historiador francês tenha aberto esse campo, já que Lucien Febvre sugeriu, na década de 1940, que o século XVI era a idade do ouvido. O debate sobre a primazia de diferentes sentidos em diversos períodos parece agora bastante estéril, mas Corbin mostra que a história do som pode ser escrita de outra maneira. Ele afirma, por exemplo, que os sinos eram ouvidos de forma diferente no passado porque estavam associados à piedade e ao paroquialismo — em francês, l’esprit de clocher, espírito de campanário. À medida que essas associações foram ficando mais fracas, a fronteira de tolerância tornou-se mais estreita, e as pessoas começaram a expressar objeções à invasão de seus ouvidos pelo som dos sinos. Como no caso do cheiro, Corbin estava um pouco à frente de seu tempo, mas hoje existe um conjunto significativo de estudos históricos sobre o som.19
A maioria das histórias do som concentra-se no que chamam de “ruído”, mas a história da música também pode ser abordada nessa direção, como uma forma da história da percepção. Em Listening in Paris (1995), James Johnson apresenta uma história cultural da percepção da música nos séculos XVIII e XIX, usando como evidências, por mais paradoxal que isso possa parecer, tanto imagens como textos, e argumenta em prol de uma “nova maneira de ouvir” ao final do Ancien Régime. Segundo Johnson, a revolução no modo de ouvir consistiu, em primeiro lugar, em prestar atenção à música, em vez de cochichar ou olhar para outros membros da audiência; em segundo lugar, no envolvimento emocional crescente com o som, mais que com as palavras — nesse ponto, o livro é um exemplo da virada para a história da recepção discutida antes (ver p.82, 104). Como os leitores da época, especialmente os leitores de Rousseau, as audiências parisienses ao final do século XVIII derramavam rios de lágrimas na ópera e nas salas de concertos. A moral desse exemplo é a importância de se escrever uma história geral dos sentidos, mais que uma história dividida em visão, audição, olfato e assim por diante.
Um cenário alternativo à expansão da NHC é o de uma reação contra ela, uma sensação cada vez mais forte de que seu império foi longe demais, de que muitos territórios políticos ou sociais foram perdidos para a “cultura”. A ideia de um deslocamento “da história social da cultura para a história cultural da sociedade” (ver p.99-100) não agradou a todos. A ideia da construção cultural é algumas vezes interpretada com um exemplo de “epistemologia subjetivista”, um recuo da verificação, uma crença de que “qualquer coisa serve”. Um estudo recente discute o caso de uma “história pós-social” que iria quebrar não apenas a história social tradicional como também a NHC.20
A reação contra a NHC — ou, pelo menos, contra alguns de seus aspectos — e as defesas que dela se fazem poderiam ser explicadas em termos das oscilações pendulares que acontecem tantas vezes na história, ou pela necessidade de uma nova geração de acadêmicos se definir contra um grupo mais antigo e tomar seu lugar ao sol.
De qualquer forma, é honesto admitir que a reação também decorre de fraquezas no programa da NHC, problemas que o tempo — juntamente com certas críticas — foram aos poucos expondo. Além dos limites do construtivismo, discutidos no capítulo anterior, há três problemas especialmente sérios: a definição de cultura, os métodos a serem seguidos na NHC e o perigo da fragmentação.
Outrora exclusiva demais, a definição de cultura se tornou agora muito inclusiva (ver p.42-3). Hoje é particularmente problemática a relação entre história social e história cultural. A expressão “história sociocultural” tornou-se moeda corrente. Na Grã-Bretanha, a Sociedade de História Social redefiniu seus interesses há pouco tempo, incluindo a cultura. Não importa como descrevamos o que está acontecendo, se é a história social engolindo a história cultural ou o contrário, estamos assistindo ao aparecimento de um gênero híbrido. O gênero pode ser praticado de diversas maneiras, e alguns historiadores colocam a ênfase mais na parcela cultural, enquanto outros, no aspecto social. Os historiadores da leitura, por exemplo, podem focalizar textos específicos, sem esquecer a variedade de seus leitores, ou podem concentrar-se em diferentes grupos de leitores, sem excluir o conteúdo do que estava sendo lido.
No momento, os termos “social” e “cultural” parecem estar sendo usados de maneira quase intercambiável, para descrever a história dos sonhos, por exemplo, da linguagem, do humor, da memória ou do tempo. As distinções podem ser úteis. Minha inclinação seria reservar o termo “cultural” para a história de fenômenos que parecem “naturais”, como os sonhos, a memória e o tempo. Por outro lado, como a linguagem e o humor são obviamente artefatos culturais, parece ser mais apropriado empregar o termo “social” para se referir a uma abordagem particular de sua história.
Qualquer que seja a forma que usemos os dois termos, a relação entre “cultura” e “sociedade” permanece problemática. Há uma geração, em seu ensaio “Thick Description” (Descrição densa) (ver p.51-2), um dos principais incentivadores da virada cultural, Clifford Geertz, já havia observado que o perigo da análise cultural era “perder contato com as superfícies duras da vida”, como as estruturas políticas e econômicas. Sem dúvida ele estava certo em sua previsão, e devemos esperar que, no que se pode chamar de “idade pós-pós-moderna”, as conexões sejam restabelecidas.
Por mais valioso que seja o projeto construtivista para a “história cultural da sociedade”, ele não substitui a história social da cultura, inclusive a história do próprio construtivismo. Pode muito bem ter chegado o tempo de ir além da virada cultural. Como sugeriram Victoria Bonnell e Lynn Hunt, a ideia do social não deve ser alijada, mas reconfigurada.21 Os historiadores especializados em leitura, por exemplo, precisam estudar “comunidades de interpretação”; os historiadores da religião, “comunidades de crença”; os historiadores da prática, “comunidades de prática”; historiadores da linguagem, “comunidades de fala”, e assim por diante. Na verdade, os estudos sobre a recepção de textos e imagens discutidos anteriormente (ver p.82, 104) em geral fazem a grande pergunta social: “quem?”. Em outras palavras, que tipos de pessoas estavam olhando para esses objetos em particular em um determinado espaço e tempo?
Controvérsias sobre a definição estão ligadas a controvérsias sobre o método. Como a nouvelle histoire francesa da década de 1970, a NHC ampliou o território do historiador, incluindo novos objetos de estudo, como cheiro e ruído, leituras e coleções, espaços e corpos. As fontes tradicionais não foram suficientes para tais propósitos, e tipos relativamente novos — da ficção às imagens — foram obrigados a entrar em ação. Mas novas fontes exigem suas próprias formas de críticas, e as regras para ler quadros como evidências históricas, para dar apenas um exemplo, ainda não são claras.22
A ideia de cultura como um texto que antropólogos ou historiadores possam ler é muito tentadora, mas também bastante problemática. De qualquer forma, vale a pena observar que antropólogos e historiadores não usam a metáfora da leitura da mesma forma. Como aponta Roger Chartier, Geertz estudou as brigas de galo em Bali observando brigas específicas e conversando com os participantes, enquanto Darnton analisou o massacre dos gatos com base em um texto do século XVIII que descrevia o acontecimento (ver Capítulo 3).
Um problema fundamental com a metáfora da leitura é que ela parece permitir a intuição. Quem está em posição de arbitrar quando dois leitores intuitivos discordam? É possível formular regras de leitura, ou, pelo menos, identificar leituras incorretas?
No caso dos rituais, o debate está apenas começando. Um crítico recente tentou eliminar esse conceito do vocabulário de historiadores do começo da Idade Média, argumentando que havia uma deficiência de articulação entre os modelos antropológicos e os textos dos séculos IX e X. A advertência é correta, no sentido de que, se vamos descrever certos acontecimentos como “rituais”, precisamos ter clareza a respeito dos critérios para fazê-lo. Se, por outro lado, como sugerimos acima, pensamos em termos de práticas mais ou menos ritualizadas, o problema desaparece.23
De qualquer forma, examinar o tema por meio de um único método empobrece a história cultural. Problemas diferentes exigem métodos diferentes. Abandonados por muitos estudiosos ao longo da virada cultural, os métodos quantitativos mostraram sua utilidade na história cultural tanto quanto na história social tradicional. Na obra do historiador francês Daniel Roche, por exemplo, esteja ele estudando a história das academias, dos livros ou dos vestuários (ver p.92-3), acontece uma mistura feliz de métodos quantitativos e qualitativos.
Em terceiro lugar, há o problema da fragmentação. Como vimos no Capítulo 1, os primeiros historiadores culturais tinham ambições holísticas. Gostavam de fazer conexões. Mais recentemente, alguns importantes historiadores culturais, particularmente nos Estados Unidos, defenderam a abordagem cultural como remédio para a fragmentação, “uma base possível para a reintegração da historiografia norte-americana”.24
O problema é que a cultura muitas vezes parece agir como uma força que encoraja a fragmentação, seja nos Estados Unidos, na Irlanda ou nos Bálcãs. Já discutimos a contribuição das diferenças culturais para os conflitos políticos na Irlanda (ver p.47). Argumento semelhante sobre The Disuniting of America (1992) foi apresentado por outro historiador, Arthur M. Schlesinger Junior, que chama atenção para o que se perdeu com a atual proeminência das identidades étnicas nos Estados Unidos.
Em um nível muito diferente, a ascensão da tendência intelectual descrita anteriormente como “ocasionalismo” (ver Capítulo 5) implica uma visão fragmentada dos grupos sociais ou mesmo do indivíduo. Trata-se de uma visão caracteristicamente “pós-moderna”, no sentido de ver o mundo como um lugar mais fluido, flexível e imprevisível do que parecia ser, nas décadas de 1950 e 1960, para sociólogos, antropólogos sociais e historiadores sociais. A ascensão da micro-história certamente é parte dessa tendência, embora Natalie Davis, digamos, Emmanuel Le Roy Ladurie ou Carlo Ginzburg neguem veementemente quaisquer intenções pós-modernistas.25
Como os etnógrafos, os micro-historiadores enfrentam o problema da relação entre os pequenos grupos que estudam em detalhe e o todo mais amplo. Como o próprio Geertz afirmou em “Thick Description”, o problema é “como obter, de uma coleção de miniaturas etnográficas, … as paisagens culturais da nação, da época, do continente ou da civilização”. Seu estudo sobre brigas de galo muitas vezes fala dos “balineses”, mas o leitor pode se perguntar se as atitudes discutidas são partilhadas por todos em Bali, ou apenas pelos homens, ou ainda pelos homens de certos grupos sociais, possivelmente excluindo a elite.
De maneira semelhante, como vimos, algumas críticas ao “massacre de gatos” de Darnton centravam-se na questão de saber se é permitido ao historiador tirar conclusões sobre características nacionais a partir de um único incidente menor. O estudo levanta a questão de Geertz de forma ainda mais acurada, já que o antropólogo usou um estudo sobre uma aldeia para chegar a conclusões sobre uma pequena ilha, enquanto o historiador teve de fazer uma ponte para cobrir a separação entre um grupo de aprendizes e a população da França do século XVIII. Para quem, pode-se perguntar, o massacre dos gatos era engraçado?
Em suma, não faltam problemas aos historiadores culturais. A seguir, discutirei algumas obras recentes sobre fronteiras, encontros e narrativas para ver se apresentam soluções a pelo menos alguns dos problemas acima levantados.
Em 1949, Fernand Braudel já discutia, em seu famoso livro Os homens e a herança no Mediterrâneo, a importância das “fronteiras culturais” tais como o Reno e o Danúbio, desde a Roma Antiga até a Reforma. Mas só há relativamente pouco tempo a expressão passou a ser de uso frequente em diferentes linguagens, talvez porque ofereça aos historiadores culturais um modo de enfrentar a fragmentação.
A ideia de fronteira cultural é atraente. Pode-se até mesmo dizer que é atraente demais, porque encoraja os usuários a escorregar, sem perceber, dos usos literais aos usos metafóricos da expressão, deixando de distinguir entre fronteiras geográficas e fronteiras de classes sociais, por exemplo, entre o sagrado e o profano, o sério e o cômico, a história e a ficção. O que se analisa a seguir concentra-se nos limites entre culturas.
Aqui também é necessário fazer distinções, por exemplo, entre as visões de fora e as visões de dentro de uma dada cultura. De fora, muitas vezes as fronteiras parecem ser objetivas e até mesmo mapeáveis. Quem estuda a história da alfabetização na França, particularmente entre os séculos XVII e XIX, conhece a famosa linha diagonal de St. Malo a Genebra, que separa a zona nordeste de maior alfabetização da zona sudoeste, onde menos pessoas sabiam ler. Outros mapas culturais mostram a distribuição de mosteiros, universidades e tipografias em diferentes partes da Europa, ou a distribuição dos seguidores de diversas religiões na Índia.
Mapas desse tipo são uma forma efetiva de comunicação, muitas vezes mais rápida e mais fácil de lembrar que uma paráfrase em palavras. De qualquer forma, como as palavras e os números, os mapas podem enganar. Eles parecem implicar uma homogeneidade no interior de uma dada “área de cultura” e uma distinção clara entre os diferentes espaços. O contínuo entre Alemanha e Holanda (digamos) é transformado em uma linha contínua, enquanto pequenos grupos de hinduístas em uma área predominantemente muçulmana ficam invisíveis.
A visão de fora precisa ser suplementada por outra, de dentro, destacando a experiência de cruzar as fronteiras entre “nós” e “eles”, e encontrar a Alteridade com “a” maiúsculo (e lembremo-nos de que os franceses foram os primeiros a produzir uma teoria de l’Autre). Tratamos aqui dos limites simbólicos entre comunidades imaginadas, limites que resistem aos mapeamentos. De qualquer forma, os historiadores não podem se dar ao luxo de esquecer sua existência.
Outra distinção útil se refere às funções das fronteiras culturais. Historiadores e geógrafos costumavam vê-las basicamente como barreiras. Hoje, por outro lado, a ênfase tende a cair nas fronteiras como lugares de encontro ou “zonas de contato”. Ambas as concepções têm seus usos.26
Muros e arame farpado não podem impedir o trânsito de ideias, mas daí não decorre que inexistam barreiras culturais. Há pelo menos alguns obstáculos físicos, políticos e culturais, inclusive a língua e a religião, que diminuem a velocidade dos movimentos culturais ou que os desviam para canais diferentes. Braudel estava particularmente interessado em zonas de resistência a tendências culturais, na “recusa a tomar emprestado”, como disse ele, associando essa recusa à resistência das civilizações, seu poder de sobrevivência. Os exemplos incluem a longa resistência japonesa à cadeira e à mesa e a “rejeição” à Reforma no mundo mediterrâneo.27
Outro exemplo famoso de rejeição é a resistência à imprensa no mundo islâmico, que durou até o final do século XVIII. Na verdade, o mundo do islã tem sido visto como uma barreira separando as duas zonas em que se imprimiam livros, a Ásia Oriental e a Europa. Os chamados “impérios da pólvora” (otomano, persa e mughal) não eram hostis às inovações tecnológicas, mas se mantiveram como impérios manuscritos ou “Estados caligráficos” até o ano de 1800, mais ou menos.
Um incidente ocorrido em Istambul no começo do século XVIII revela o poder dessas forças de resistência. Um húngaro convertido ao islã (que antes era pastor protestante) enviou um memorando ao sultão defendendo a importância da imprensa, e em 1726 obteve permissão para imprimir livros leigos. No entanto, líderes religiosos se opuseram a esse empreendimento. Ele imprimiu apenas alguns livros, e a tentativa não durou muito tempo. Só no século XIX o islã e a imprensa estabeleceram uma aliança.28
A segunda função de uma fronteira cultural é oposta à primeira: um lugar de encontro ou zona de contato. As fronteiras muitas vezes são regiões com uma cultura própria, claramente híbrida. No início dos Bálcãs modernos, por exemplo, alguns cristãos tinham o hábito de adorar em santuários muçulmanos, enquanto alguns muçulmanos, por sua vez, frequentavam santuários cristãos. Da mesma forma, ao longo das guerras contra os turcos nos séculos XVI e XVII, poloneses e húngaros adotaram modos turcos de lutar, tais como o uso da cimitarra, e foram eles que apresentaram ao restante da Europa o estilo otomano de cavalaria ligeira, na forma de regimentos de lanceiros e hussardos.
O épico e a balada são gêneros que floresceram especialmente nas fronteiras, entre cristãos e muçulmanos na Espanha e no Leste da Europa, por exemplo, ou entre ingleses e escoceses. As mesmas histórias de conflito muitas vezes foram cantadas em ambos os lados da fronteira, com os mesmos protagonistas (Rolando, Johnnie Armstrong ou Marko Kraljevic), embora os heróis e vilões algumas vezes mudassem de lugar. Em suma, as fronteiras são, frequentemente, palcos de encontros culturais.
Interpretação dos encontros culturais
Uma das razões pelas quais é improvável que a história cultural desapareça, apesar das possíveis reações contra ela, é a importância dos encontros culturais em nossa época, gerando uma necessidade cada vez mais urgente de compreendê-los no passado.
A expressão “encontros culturais” passou a ser usada em substituição à palavra etnocêntrica “descoberta”, especialmente a partir de 1992, com as comemorações dos 500 anos do desembarque de Colombo nas Américas. Ela está associada a novas perspectivas na história, dando atenção tanto à “visão dos vencidos”, como chamou o historiador mexicano Miguel León-Portilla, como à visão dos vencedores.29 Os historiadores tentaram reconstruir as maneiras como os habitantes do Caribe perceberam Colombo, os astecas perceberam Cortez, ou os havaianos, o capitão Cook (o plural “maneiras” enfatiza o fato de que diferentes havaianos — por exemplo, homens e mulheres, ou chefes e povo — podem ter percebido o encontro de modo diferente).
A preocupação com o mal-entendido está se tornando cada vez mais central em estudos desse tipo, embora o conceito de “mal-entendido”, implicando uma alternativa correta, muitas vezes seja contestado. Em vez disso, pode-se empregar a expressão “tradução cultural”. A ideia de que o entendimento de uma cultura estrangeira é análogo ao trabalho de tradução se tornou corrente em meados do século XX entre os antropólogos do círculo de Edward Evans-Pritchard. Hoje os historiadores culturais estão cada vez mais interessados na ideia.
Uma situação em que se torna particularmente esclarecedor pensar nesses termos é a história das missões. Quando os missionários europeus tentavam converter para o cristianismo os habitantes de outros continentes, muitas vezes buscavam apresentar sua mensagem de modo a produzir a aparência de que estavam em harmonia com a cultura local. Em outras palavras, acreditavam que era possível traduzir o cristianismo, e tentavam encontrar equivalentes locais para ideias como “salvador”, “trindade”, “mãe de Deus” e assim por diante.
Tanto quem recebia como quem transmitia se engajavam no processo de tradução. Indivíduos e grupos nativos da China, Japão, México, Peru, África e outros lugares, ao sentirem-se atraídos por aspectos particulares da cultura ocidental — do relógio mecânico à arte da perspectiva —, realizavam uma ação que já foi descrita como uma “tradução”, no sentido de que nos adaptavam à sua própria cultura, tirando esses elementos de um contexto e inserindo-os em outro. Como normalmente estavam interessados em itens específicos, e não nas estruturas em que eles originalmente se inseriam, os grupos nativos praticavam uma espécie de bricolage, seja literal, no caso de artigos da cultura material, seja metafórica, no caso das ideias. A noção de Michel de Certeau de “reutilização” (ver p.103-4) parece aqui particularmente relevante.
Um exemplo dentre os muitos possíveis vem da África do século XIX, tal como descrito no livro do historiador britânico Gwyn Prins, The Hidden Hippopotamus (1980). Prins trata de um encontro ocorrido em 1886 entre o missionário protestante francês François Coillard e o rei Lewanika de Bulozi. Coillard, fundador da missão Zambezi, acreditava estar convertendo os “pagãos” e introduzindo um novo sistema de crenças. No entanto, a caminho do encontro com o rei, foi-lhe pedido um presente, um metro de chita, e ele concordou, sem perceber que isso seria visto como a oferenda de um sacrifício ao túmulo real. Essa ação transformou-o de missionário em chefe, e abriu a possibilidade de Lewanika atribuir-lhe um lugar no sistema político local.
Um conceito alternativo, de muito sucesso nas duas últimas décadas, é o da hibridez cultural. Os termos rivais têm suas vantagens e desvantagens.
“Tradução” tem a vantagem de enfatizar o trabalho que deve ser feito por indivíduos e grupos para domesticar o estrangeiro, assim como as estratégias e as táticas empregadas. O problema é que esse trabalho de domesticação nem sempre é consciente. Quando o explorador português Vasco da Gama e seus homens entraram em um templo hindu pela primeira vez, acreditaram estar em uma igreja, e “viram” a escultura indiana de Brahma Vishnu e Shiva como uma representação da Trindade. Aplicavam um esquema perceptual de sua própria cultura para interpretar o que viam, sem perceber o que estavam fazendo. Podemos falar de tradução inconsciente?
O termo “hibridez”, por outro lado, abre espaço para esses processos inconscientes e as consequências não intencionais. A fraqueza dessa metáfora botânica é o contrário da de sua rival: ela dá facilmente a impressão de um processo tranquilo e “natural”, omitindo completamente o agenciamento humano.
Um terceiro modelo de mudança cultural vem da linguística. Nesta era de encontros culturais, os linguistas estão cada vez mais interessados no processo que descrevem como “crioulização”, ou seja, a convergência de duas línguas para criar uma terceira, muitas vezes tomando a maioria da gramática de uma e a maioria do vocabulário de outra. Os historiadores culturais estão passando a achar essa ideia muito útil para analisar as consequências de encontros nos campos de religião, música, culinária, vestuário ou até mesmo das subculturas da microfísica.30
Narrativa na história cultural
Um encontro é um acontecimento, e assim nos leva a considerar o possível lugar, na história cultural, das narrativas de acontecimentos, antes associadas à história política tradicional. Uma geração atrás, o historiador social Lawrence Stone observou com pesar o que chamou de “renovação da narrativa”. No entanto, a tendência que ele identificou poderia ser descrita com mais precisão como uma busca de novas formas de narrativa para lidar com a história social e cultural.31
Essa é uma questão paradoxal. Os historiadores sociais radicais rejeitavam a narrativa porque a associavam a uma ênfase excessiva sobre os grandes feitos de grandes homens, à importância dos indivíduos na história e especialmente à supervalorização da importância dos líderes políticos e militares em detrimento dos homens — e mulheres — comuns. Mas a narrativa retornou, junto com uma preocupação cada vez maior com as pessoas comuns e as maneiras pelas quais elas dão sentido às suas experiências, suas vidas, seus mundos.
No caso da medicina, por exemplo, os médicos têm hoje mais interesse que antes nas histórias contadas pelos pacientes a respeito de suas doenças e suas curas. No caso do direito, o que é conhecido como “legal storytelling movement” (movimento legal em prol das histórias) desenvolveu-se na década de 1980 nos Estados Unidos. O movimento está ligado a uma preocupação com grupos tradicionalmente subordinados, em especial minorias étnicas e mulheres, porque as histórias contadas pelos membros desses grupos desafiam um sistema legal criado por advogados brancos e do sexo masculino que nem sempre tiveram em mente as necessidades e interesses de outros grupos.
De maneira semelhante, o atual interesse histórico pela narrativa é, em parte, um interesse pelas práticas narrativas características de uma cultura em particular, as histórias que as pessoas naquela cultura “contam a si mesmas sobre si mesmas” (ver p.52). Tais “narrativas culturais”, como foram chamadas, oferecem pistas importantes para o mundo em que foram contadas. Um exemplo curioso e perturbador vem da Rússia, onde o mito da morte violenta do filho do czar foi encenado quatro vezes no começo do período moderno, com a “imolação de Ivan pelo pai, Ivan o Terrível, de Dimitri por Boris Godunov, de Aléxis por Pedro o Grande, de Ivan por Catarina II”.32
Também há um interesse cada vez maior pela narrativa como uma força histórica por direito próprio. O estudo de Lynn Hunt sobre a Revolução Francesa, discutido anteriormente, examinou as “estruturas narrativas” subjacentes à retórica dos revolucionários, o enredo da transição do velho regime para a nova ordem, seja como comédia seja como romance.
Estudos recentes sobre o antissemitismo na Idade Média, realizados por Ronnie Hsia e Miri Rubin, concentraram-se nos rumores recorrentes acusando os judeus de violarem a hóstia e do assassinato ritual de crianças, rumores que foram gradualmente se consolidando em uma narrativa, discurso ou mito cultural. As histórias ajudaram a definir uma identidade cristã, mas também constituíram um “ataque narrativo” aos judeus, uma forma de violência simbólica que levou à violência real, a expurgos.33 Histórias sobre feiticeiras e seus pactos com o demônio poderiam ser analisadas em termos semelhantes.
Trabalhando com um período posterior, Judith Walkowitz também está preocupada com o que chama de “desafios narrativos gerados pela nova agenda da história cultural”. Seu City of Dreadful Delight (1992) examinou a Londres do final do período vitoriano com lentes das narrativas contemporâneas, de denúncias sobre prostituição infantil em artigos como “O tributo das moças na Babilônia moderna” ao relato dos assassinatos cometidos por “Jack, o Estripador”. Tais “narrativas de risco sexual” ajudaram a produzir uma imagem de Londres como um “labirinto escuro, poderoso e sedutor”. As histórias lançavam mão de um repertório cultural, mas, por sua vez, alteravam a percepção de seus leitores.
Da mesma forma, em Ilhas de história (1985) o antropólogo Marshall Sahlins escreveu sobre o “papel característico do signo em ação”, adaptando a ideia de Kuhn de um paradigma científico desafiado por novas descobertas (ver p.68) a uma ordem cultural ameaçada por um encontro, nesse caso a chegada do capitão Cook e seus homens ao Havaí. Ele mostra os havaianos na tentativa de enquadrar Cook em suas narrativas tradicionais sobre o surgimento anual de seu deus Lono e de tratar as discrepâncias por meio de ajustes na narrativa.
Uma das consequências importantes do ensaio de Sahlins foi mostrar que é possível escrever a própria história cultural de uma forma narrativa, muito diferente dos “retratos” relativamente estáticos de épocas inteiras, como os que foram pintados por Burckhardt e Huizinga. O desafio é fazer isso sem dar à história um enredo triunfalista — como se faz nos tradicionais livros-texto da “civilização ocidental” como uma história do progresso — ou um enredo trágico, nostálgico, como uma história das perdas.
As guerras civis, por exemplo, na Grã-Bretanha do século XVII ou nos Estados Unidos do século XIX, podem ser estudadas como conflitos culturais. Desse ponto de vista, seria possível escrever uma história narrativa fascinante sobre a Guerra Civil Espanhola, apresentando-a como uma série de colisões entre culturas regionais e culturas de classe, assim como um conflito entre ideias políticas opostas. Narrativas complexas, expressando uma multiplicidade de pontos de vista, são uma maneira de tornar inteligíveis os conflitos, bem como de resistir à tendência à fragmentação anteriormente descrita.
O exemplo da China na década de 1960 encorajou alguns historiadores a pensar sobre “revoluções culturais” do passado, especialmente no caso da França em 1789, com sua nova política cultural (ver p.136) e a tentativa do regime de impor uma uniformidade igualitária no vestuário, substituindo os códigos hierárquicos da velha ordem. De maneira semelhante, na esfera da linguagem havia um plano de substituir o patois local, ou dialeto, pelo francês, “para fundir os cidadãos em uma massa nacional”.
Vale a pena examinar outras revoluções sob esse ponto de vista. Ao longo da Revolução Puritana, por exemplo, os teatros foram fechados e em alguns lugares adotaram-se novas práticas de denominação, com designações como “Louvor a Deus” para simbolizar a adesão aos novos ideais religiosos. Da mesma forma, a Revolução Russa incluiu uma “campanha civilizatória”. Leon Trotsky, por exemplo, estava preocupado com a “fala refinada”, e fez algumas tentativas de eliminar os palavrões e persuadir os oficiais do exército a usarem formas de tratamento mais educadas (Vy, como o vous francês, em vez de Ty, como tu) quando falavam com seus subordinados. Trens especiais de propaganda levavam filmes, textos e canções revolucionários às pessoas comuns de toda a Rússia.34
Uma história cultural das revoluções não deve supor que esses acontecimentos renovam tudo. Como já se observou anteriormente, a aparente inovação pode mascarar a persistência da tradição. Deve haver um lugar para as sobrevivências culturais ou mesmo para o que pode ser chamado de “retorno do reprimido”, como se viu na Inglaterra em 1660, quando a monarquia foi restaurada e os teatros reabertos. Também deve haver um lugar para as reencenações. Os líderes de uma revolução muitas vezes se viam reencenando uma revolução anterior. Os bolcheviques tinham os olhos na Revolução Francesa, por exemplo, os revolucionários franceses se viam como se reencenassem a Revolução Inglesa, e os ingleses, por sua vez, viam os acontecimentos de sua época como uma reencenação das guerras religiosas francesas do século XVI. As narrativas escritas pelos historiadores culturais precisam incorporar tais visões, sem, é claro, repeti-las acriticamente.
As reencenações não estão confinadas a revoluções. Na cultura cristã, os indivíduos algumas vezes se viram reencenando a Paixão de Cristo, de Thomas Becker nos dias anteriores a seu assassinato na catedral de Canterbury a Patrick Pearse organizando a resistência aos britânicos na agência dos correios de Dublin em 1916.
Da mesma forma, na Sri Lanka de nossos dias, alguns sinhaleses c se veem reencenando uma das narrativas religiosas centrais à sua cultura, e colocam os tamil d no papel de demônios. O que Hayden White chama de “construir o enredo” (ver p.106) pode ser encontrado não apenas na obra de historiadores, mas também nas tentativas que pessoas comuns fazem para dar sentido a seu mundo. Mais uma vez, é clara a importância de esquemas culturais ou perceptivos, mas nesse caso os esquemas informam uma narrativa, um “ataque narrativo” como aquele feito contra os judeus, de consequências destrutivas. Uma história de Sri Lanka, seja ela cultural ou política, precisa encontrar um lugar para tal narrativa, e também, é claro, para a contra narrativa tamil. Em uma era de conflitos étnicos, é mais que provável que vejamos outros casos desse tipo de história.
No sentido preciso do termo, qualquer “conclusão” deste livro estaria fora de lugar. A NHC pode estar chegando ao fim de seu ciclo de vida, mas a trajetória mais ampla da história cultural ainda está em progresso como sugere o Posfácio. Alguns campos, como o da história cultural da linguagem, estão apenas agora se abrindo para a pesquisa histórica. Problemas correntes continuam sem solução — pelo menos ainda sem solução que satisfaça a todos — e novos problemas deverão surgir. O que temos aqui, assim, não é uma conclusão formal, mas simplesmente a expressão de algumas opiniões pessoais, provavelmente — mas não necessariamente — partilhadas por outros colegas.
Na última geração, a história cultural — nos diferentes sentidos da expressão discutidos neste livro — foi a arena em que se desenvolveram algumas das discussões mais estimulantes e esclarecedoras sobre o método histórico. Ao mesmo tempo, os historiadores culturais e também os historiadores sociais vêm ampliando o território da profissão, além de tornar o assunto mais acessível para um público mais amplo.
No entanto, não defendi aqui — e, na verdade, não acredito — que a história cultural seja a melhor forma de história. É simplesmente uma parte necessária do empreendimento histórico coletivo. Como suas vizinhas — história econômica, política, intelectual, social e assim por diante —, essa abordagem ao passado dá uma contribuição indispensável à nossa visão da história como um todo, “história total”, como dizem os franceses.
A recente preferência pela história cultural vem sendo uma experiência gratificante para praticantes como eu, mas sabemos que as modas culturais não duram muito. Mais cedo ou mais tarde acontecerá uma reação contra a “cultura”. Quando ocorrer, teremos de fazer todo o possível para garantir que não se percam os ganhos recentes da percepção histórica — resultantes da virada cultural. Os historiadores, especialmente os empiricistas ou “positivistas”, costumavam sofrer de uma doença caracterizada por levar tudo ao pé da letra. Vários não eram suficientemente sensíveis ao simbolismo. Muitos tratavam os documentos históricos como transparentes, dando pouca ou nenhuma atenção à sua retórica. Muitos descartavam certas ações humanas, tais como abençoar com dois ou três dedos (ver p.95-7), como “mero” ritual, “meros” símbolos, assuntos sem importância.35 Na última geração, os historiadores culturais e também os antropólogos culturais demonstraram as fraquezas dessa abordagem positivista. Qualquer que seja o futuro dos estudos históricos, não deve haver um retorno a esse tipo de compreensão literal.
c Sinhaleses: grupo étnico dominante de Sri Lanka (Ceilão). (N.T.)
d Tamil: grupo étnico minoritário de Sri Lanka, que se considera uma nação distinta. (N.T.)