8. A sociologia do campo político,
por Pierre Bourdieu
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) inspirou-se em autores da tradição clássica da disciplina – sobretudo Marx e Weber – para produzir uma vasta e importante obra, especialmente no que se refere ao estudo de processos de distinção, diferenciação e reprodução social.
Central em sua obra foi o conceito de “campo” – entendido por ele como uma espécie de “microcosmo” relativamente autônomo no interior do grande mundo social, e que obedece a leis próprias. Esse conceito foi aplicado ao estudo de processos sociais que ocorrem nos campos da educação, da cultura, da arte etc. Nesta conferência de 1999, da qual foi retirado o texto deste capítulo, Bourdieu faz uma tentativa de pensar sociologicamente a política, analisando-a através do conceito de campo.
Bourdieu contrapõe à suposta igualdade formal própria do ordenamento político uma desigualdade real de acesso ao campo. Há, assim, uma minoria de “profissionais” que participa do campo político e uma massa de “profanos” que não encontra legitimidade social para a ação política e que tende, na visão de Bourdieu, a interiorizar e naturalizar sua própria impotência. O campo político, no entanto, nunca se autonomiza completamente, já que, em suas lutas internas, remete permanentemente às clientelas que lhe são externas e que podem ter a palavra final nestas disputas.
Pierre Bourdieu
Por que falar de campo político? O que isso acrescenta do ponto de vista da compreensão da política? Seria isso sobrepor à realidade do mundo político um conceito aparentemente muito próximo da intuição ordinária e de noções de que nos armamos espontaneamente para compreender o mundo político? Fala-se frequentemente de arena política, de jogo político, de lutas políticas…
A noção de campo político tem muitas vantagens: ela permite construir de maneira rigorosa essa realidade que é a política ou o jogo político. Ela permite, em seguida, comparar essa realidade construída com outras realidades como o campo religioso, o campo artístico… e, como todos sabem, nas ciências sociais, a comparação é um dos instrumentos mais eficazes, ao mesmo tempo de construção e de análise. Durkheim dizia que “a sociologia é o método comparativo”. Grandes historiadores fizeram eco dessa proposição e esforçaram-se por fazer do método comparativo o instrumento de conhecimento por excelência. Por fim, penso que é uma noção que possui virtudes negativas, o que é uma propriedade dos bons conceitos (que valem tanto pelos falsos problemas que eles eliminam como pelos problemas que permitem construir). Eis as três razões pelas quais a noção de campo me parece útil.
Procurarei proceder de maneira progressiva, pedagogicamente. Falar de campo político é dizer que o campo político (e por uma vez citarei Raymond Barre) é um microcosmo, isto é, um pequeno mundo social relativamente autônomo no interior do grande mundo social. Nele se encontrará um grande número de propriedades, relações, ações e processos que se encontram no mundo global, mas esses processos, esses fenômenos, se revestem aí de uma forma particular. É isso o que está contido na noção de autonomia: um campo é um microcosmo autônomo no interior do macrocosmo social.
Autônomo, segundo a etimologia, significa que tem sua própria lei, seu próprio nomos, que tem em si próprio o princípio e a regra de seu funcionamento. É um universo no qual operam critérios de avaliação que lhe são próprios e que não teriam validade no microcosmo vizinho. Um universo que obedece a suas próprias leis, que são diferentes das leis do mundo social ordinário. Quem quer que entre para a política, assim como alguém que ingresse em uma religião, deve operar uma transformação, uma conversão. Mesmo que esta não lhe apareça como tal, mesmo que não tenha consciência disso, ela lhe é tacitamente imposta, e a sanção em caso de transgressão é o fracasso ou a exclusão. Trata-se, portanto, de uma lei específica e que constitui um princípio de avaliação e eventualmente de exclusão. Um índice, o escândalo: quem entra para a política se compromete tacitamente a eximir-se de certos atos incompatíveis com sua dignidade, sob pena de escândalo.
Esse microcosmo é também separado do resto do mundo. Como o campo religioso, o campo político repousa sobre uma separação entre os profissionais e os profanos. No campo religioso, há os laicos e os clérigos. Não existe sempre um campo político (simplesmente enuncio esta proposição, sem argumentar a propósito). Há uma gênese do campo político, uma história social do nascimento do campo político. Coisas que nos parecem evidentes (por exemplo, o voto por maioria) foram o produto de invenções históricas extremamente longas. Essas coisas que parecem ter existido eternamente são frequentemente de invenção recente. A cabine de votação, por exemplo, é uma invenção do século XIX, que está ligada a uma conjuntura histórica. Há belos trabalhos históricos sobre essas questões.
Quais são os fundamentos da fronteira, muitas vezes invisível, entre os profissionais e os profanos? Na tradição da sociologia política, alguns sociólogos do início do século XX, que classificamos na categoria de neomaquiavelistas e que trabalham principalmente sobre os partidos socialistas alemães e italianos – Michels, para a Alemanha, e Mosca, para a Itália –, desenvolveram a ideia de que havia leis de bronze [sic] dos aparelhos políticos; isto é, que havia nos aparelhos políticos, inclusive nos partidos democráticos ou nos sindicatos representativos dos trabalhadores, uma certa tendência à concentração do poder nas mãos de um pequeno número, de uma oligarquia. É uma visão bastante pessimista da história, que equivale a dizer que há sempre dominantes e dominados, até mesmo nos partidos que se presume expressarem as forças supostamente voltadas para libertar os dominados. Para contrapor-se a essa visão pessimista, é suficiente levar em conta a distribuição estatisticamente observável dos meios de acesso ao microcosmo político. Isso é algo que se sabe suficientemente bem por meio da análise estatística do uso do voto ou da propensão a votar, ou da distribuição estatística da propensão a responder, por exemplo, a uma questão de opinião política, notadamente em uma sondagem. Sabe-se que essas propensões, essas aptidões, essas capacidades são muito desigualmente distribuídas, não por natureza (não há pessoas que estariam dispostas a fazer uso dos poderes políticos ou dos direitos de cidadania, e outras que, por natureza, seriam desprovidas de semelhante disposição), mas porque existem condições sociais de acesso à política. Sabe-se, por exemplo, que no estado atual da divisão do trabalho entre os sexos as mulheres têm uma propensão muito menor do que os homens a responder às questões políticas. Da mesma forma, as pessoas pouco instruídas têm uma propensão muito mais fraca do que as instruídas, assim como as pessoas pobres têm uma propensão muito mais fraca… Se bem que (e esta é uma observação en passant, mas extremamente importante) as democracias modernas, e em particular a democracia americana que sempre se dá como exemplo, se apoiam em um mecanismo censitário oculto. Quando mais de 50% dos cidadãos não votam, isso coloca problemas para a democracia, sobretudo quando esses 50% não se distribuem ao acaso, mas são recrutados preferencialmente entre os mais despossuídos econômica e culturalmente. Essa constatação da capacidade desigual de acesso ao campo político é extremamente importante para evitar naturalizar as desigualdades políticas (uma das grandes tarefas permanentes da sociologia é a de recolocar a história no princípio de diferenças que, espontaneamente, são tratadas como diferenças naturais). Há, portanto, condições sociais de possibilidade de acesso a esse microcosmo, como, por exemplo, o tempo livre: a primeira acumulação de capital político é característica de pessoas dotadas de um excedente econômico que lhes possibilita subtrair-se às atividades produtivas, o que lhes permite colocar-se na posição de porta-voz. Além do tempo livre, há este outro fator que é a educação.
Tendo dito isso, o que fiz foi apenas relembrar as condições sociais do funcionamento do campo político como um lugar em que certo número de pessoas, que preenchem as condições de acesso, joga um jogo particular do qual os outros estão excluídos. É importante saber que o universo político repousa sobre uma exclusão, um desapossamento. Quanto mais o campo político se constitui, mais ele se autonomiza, mais se profissionaliza, mais os profissionais tendem a ver os profanos com uma espécie de comiseração. Para que fique claro que não estou fazendo pura especulação, evocarei simplesmente o uso que certos políticos fazem da acusação de irresponsabilidade lançada contra os profanos que desejam se meter com a política: com dificuldade para suportar a intrusão dos profanos no círculo sagrado dos políticos, eles os chamam à ordem do mesmo modo que os clérigos lembravam aos leigos sua ilegitimidade. No momento da Reforma, por exemplo, um dos problemas decorria das mulheres quererem oficiar missa ou dar extrema-unção. Os clérigos defendiam o que Max Weber chama de seu “monopólio da manipulação legítima dos bens de salvação” – fórmula magnífica – e denunciavam o exercício ilegal da religião. Quando se diz a um simples cidadão que ele é politicamente irresponsável, se o está acusando de exercício ilegal da política. Uma das virtudes desses irresponsáveis – entre os quais me incluo – é a de evidenciar um pressuposto tácito da ordem política, a saber, que dela estão excluídos os profanos. … Só os políticos têm competência (uma palavra muito importante, simultaneamente técnica e jurídica) para falar de política. Cabe a eles falar de política. Eis uma proposição tácita que está inscrita na existência do campo político.
Quando evoco essa repulsa geral, esse consenso na condenação, faço-o para mostrar que o pertencer ao campo assenta-se em uma crença que ultrapassa as oposições constitutivas das lutas que nele se travam. Para estar em desacordo sobre uma fórmula política, é preciso estar de acordo sobre o terreno de desacordo. Para estar em desacordo sobre uma proposição sociológica, é preciso estar de acordo sobre o terreno de desacordo. “Que ninguém entre aqui [no domínio da geometria] se não for geômetra”, se não aceitar o jogo da geometria. É preciso preliminarmente um acordo sobre o que torna possível o desacordo, isto é, um acordo de que a política é importante, que somente os políticos podem fazer política, que somente os políticos têm competência para fazer política… Quando digo postulado, já estou falseando a realidade: trata-se de teses tácitas, ao passo que o postulado demanda explicitamente o direito de dizer alguma coisa. Um dos grandes problemas no que diz respeito aos campos, mesmo os mais sofisticados como o campo matemático (os matemáticos são os que mais procuram reduzir o implícito no fato de existir como campo), é o da axiomatização, que é um esforço para tornar explícitas as tautologias fundamentais sobre as quais repousa um campo. Em sua maioria, os campos, religioso, literário…, repousam sobre pressupostos tácitos aceitos por todos: do gênero “arte é arte”, “política é política” etc. É algo que os profanos às vezes intuem. Eles mantêm uma desconfiança em relação à delegação política, desconfiança que se baseia nesse sentimento de que as pessoas que jogam esse jogo que chamamos de política têm entre si uma espécie de cumplicidade fundamental, prévia a seu desacordo. Podemos mesmo dizer que, em decorrência de pertencerem ao campo, elas têm interesses em sua perpetuação, e esses interesses podem ser apresentados como a expressão dos interesses dos cidadãos que lhes deram a delegação para representá-los.
Em outras palavras, não é sem fundamento que há uma suspeita originária em relação aos políticos, uma suspeita que é imediatamente denunciada como pujadista ou populista, segundo a época. Uma das virtudes da noção de campo é a de tornar inteligível o fato de que certo número de ações realizadas pelas pessoas que estão nesse jogo, que eu chamo de campo político, têm seu princípio no campo político. … Dizer que há um campo político é lembrar que as pessoas que aí se encontram podem dizer ou fazer coisas que são determinadas não pela relação direta com os eleitores, mas pela relação com os outros membros do campo. Ele diz o que diz – por exemplo, uma tomada de posição a propósito da segurança ou da delinquência… – não para responder às expectativas da população em geral, ou mesmo da categoria que lhe deu voz, que o designou como mandatário, mas por referência ao que outros no campo dizem ou não dizem, fazem ou não fazem, para diferenciar-se ou, ao contrário, apropriar-se de posições que possam ameaçar a aparência de representação que ele possa ter. Dito de outra forma, a noção de campo relativamente autônomo obriga a colocar a questão do princípio das ações políticas e obriga a dizer que, se queremos compreender o que faz um político, é por certo preciso buscar saber qual é sua base eleitoral, sua origem social…, mas é preciso não esquecer de pesquisar a posição que ele ocupa no microcosmo e que explica uma boa parte do que ele faz. …
Assim, o fato de o campo político ser autônomo e ter sua lógica própria, lógica que está no princípio dos posicionamentos daqueles que nele estão envolvidos, implica que existe um interesse político específico, não automaticamente redutível aos interesses dos outorgantes do mandato. Há interesses que se definem na relação com as pessoas do mesmo partido ou contra as pessoas dos outros partidos. O funcionamento do campo produz uma espécie de fechamento. Esse efeito observável é o resultado de um processo: quanto mais um espaço político se autonomiza, mais avança segundo sua lógica própria, mais tende a funcionar em conformidade com os interesses inerentes ao campo, mais cresce a separação com relação aos profanos.
Um dos fatores dessa evolução no sentido de uma autonomia crescente e, portanto, de uma separação crescente, é o fato de que o campo político é o lugar de produção e operação de uma competência específica, de um sentido do jogo próprio de cada campo. … Há admiráveis trabalhos em curso sobre a socialização dos jovens políticos, em nível do Conselho Geral [Conseil Général],a por exemplo. É um estágio importante, um dos momentos em que se sai da política do lugarejo. O político local, de base, pode ser “natural” nos pequenos povoados ou nas cidades pequenas; pode contentar-se com uma competência política elementar, na medida em que se trata de conhecer bem seus cidadãos e de ser “bem visto” por eles. Quando se passa no nível do Conselho Geral, de uma assembleia departamental, o pertencimento ao partido começa a ter um papel e os mais antigos socializam os mais novos, ensinando-os a não reagir de maneira inflexível com uma simples política espontânea, política essa que não é uma política no sentido do campo político. Com bons sentimentos, faz-se má política. É preciso aprender a usar de evasivas ou subterfúgios, aprender os artifícios, as relações de forças, como tratar os adversários… Essa cultura específica deve ser dominada de forma prática. … Por exemplo, a forma mais erudita dessa cultura é o direito constitucional. Há momentos em que, se você não possui um mínimo de cultura em direito constitucional, você fica excluído de toda uma série de debates. Mais profundamente, o que é importante é o aprendizado de todos esses saberes e de todas essas habilidades que lhe possibilitam comportar-se normalmente, isto é, politicamente, em um campo político, que lhe abrem a possibilidade de participar no que habitualmente se chama de “a política politiqueira”. Essa percepção do jogo político é o que faz com que se possa negociar um compromisso, que se silencie a respeito de algo que habitualmente se diria, que se saiba proteger discretamente os amigos, que se saiba falar aos jornalistas…
Tudo isso contribui também para o fechamento do campo e para o fato de que ele tenda a girar no vazio. Se abandonado a sua lógica própria, ele funcionaria em última instância como um campo artístico muito avançado onde não há mais público, como a poesia ou o universo da pintura de vanguarda (na inauguração de suas exposições, os pintores dizem que só seus próprios pares são seu público). Esse fechamento é um índice muito significativo da autonomia de um campo. No campo das matemáticas, que é sem dúvida o mais autônomo dos campos, os praticantes só se relacionam com seus pares e competidores. (Entre parênteses, deve-se dizer que é isso o que faz com que as matemáticas progridam, pois, quando você só tem relacionamento com seus competidores, você está sob forte vigilância e está obrigado a refinar suas demonstrações.)
Por razões evidentes, o campo político não pode chegar a esses extremos: os que estão envolvidos nesse jogo não podem jogar entre si sem fazer referência àqueles em nome de quem se expressam e perante os quais devem prestar contas, mais ou menos ficticiamente, de tempos em tempos. Os jogos internos encontram aí o seu limite. O que mais se aproxima do campo político é o campo religioso: nesse caso também, uma parte muito importante do que nele ocorre é efeito de relações internas. Foi isso que, sem a noção de campo, Max Weber descreveu muito bem; as relações entre o padre, o profeta e o feiticeiro são determinantes do essencial daquilo que se passa no campo religioso. O padre excomunga o profeta, o profeta desrotiniza a mensagem do clero… Passam-se inúmeras coisas entre eles, mas sob a arbitragem dos leigos, que podem ou não seguir um profeta, desertar as igrejas ou continuar a frequentá-las. Nesse sentido, o campo religioso se assemelha bastante ao campo político, o qual, apesar de sua tendência ao fechamento, permanece submetido ao veredito dos leigos.
Um campo é um campo de forças, e um campo de lutas para transformar as relações de forças. Em um campo como o campo político ou o campo religioso, ou qualquer outro campo, as condutas dos agentes são determinadas por sua posição na estrutura da relação de forças característica desse campo no momento considerado. Isso coloca uma questão: qual é a definição da força? Em que consiste ela e como é possível transformar essas relações de forças? Outra questão importante: quais são os limites do campo político?
Eu disse, no momento adequado, que se tratava de um campo autônomo, de um microcosmo separado no interior do mundo social. Uma das transformações mais importantes da política, de uns vinte anos para cá, está ligada ao fato de que agentes que podiam considerar-se, ou ser considerados, como espectadores do campo político, tornaram-se agentes em primeira pessoa. Quero referir-me aos jornalistas e, especialmente, aos jornalistas de televisão e, também, aos especialistas em pesquisa de opinião. Para descrever o campo político atualmente, é preciso incluir essas categorias de agentes, pela simples razão de que eles produzem efeitos nesse campo. Perguntam-me frequentemente o que me faz reconhecer que uma instituição ou um agente faz parte de um campo. A resposta é simples: reconhece-se a presença ou existência de um agente em um campo pelo fato de que ele transforma o estado do campo (ou que, se o retiramos, as coisas se modificam significativamente). …
Acredito, e se trata de uma proposição muito geral, que em todo campo se põe a questão dos limites do campo, do pertencimento ou não pertencimento ao campo. Em um campo de sociólogos, coloca-se a questão de saber quem é sociólogo e quem não o é, e ao mesmo tempo a de quem tem o direito de se dizer sociólogo e quem não o tem (ou, em um campo de matemáticos, quem é matemático e quem não o é).
Quanto mais um campo é autônomo e instalado em sua autonomia, mais essa questão do fundamento último do campo é ocultada, esquecida, mas pode ocorrer uma revolução científica que recoloque as fronteiras em questão, o que Kuhn chama de “mudanças de paradigmas”. São situações nas quais novos ingressantes mudam de tal maneira os princípios de pertencimento ao campo que pessoas que antes faziam parte dele agora já não fazem mais, são desqualificadas, e pessoas que dele não faziam parte agora fazem. Pode-se dar um exemplo histórico, o da revolução impressionista (a revolução operada por Manet). É uma revolução dos princípios de visão e de divisão, uma revolução dos princípios segundo os quais é legítimo representar o mundo visível: os detentores da norma, do nomos, da lei fundamental, encontram-se bruscamente desqualificados, ao passo que os heréticos, ao contrário, são consagrados, canonizados.
Vê-se, pois, que o campo político tem uma particularidade: nunca pode se autonomizar completamente; está incessantemente referido a sua clientela, aos leigos, e estes têm de alguma forma a última palavra nas lutas entre os clérigos, entre os membros do campo. Por quê? O que faz com que a política não seja poesia, que o campo político não seja como o poético, é o fato de que o que está principalmente em jogo nas lutas simbólicas e políticas sobre o nomos (nomos vem do verbo némo, que significa operar uma divisão, uma partilha; comumente o termo é traduzido por “a lei”, mas significa também, mais precisamente, o que chamo de princípio de visão e de divisão fundamental, que é característico de cada campo) são a enunciação e a imposição dos “bons” princípios de visão e de divisão. No campo político, se eu disser que a divisão principal é a divisão entre ricos e pobres, obterei uma determinada estrutura social. Se disser que a principal é a divisão entre franceses e estrangeiros, obterei uma estrutura inteiramente diferente. Em outras palavras, os princípios de divisão não têm nada de fortuito. Eles são constitutivos dos grupos e, portanto, das forças sociais. A política é uma luta em prol de ideias, mas um tipo de ideias absolutamente particular, a saber, as ideias-força, ideias que dão força ao funcionar como força de mobilização. Se o princípio de divisão que proponho for reconhecido por todos, se meu nomos se tornar o nomos universal, se todos virem o mundo como eu o vejo, terei atrás de mim toda a força das pessoas que compartilham minha visão. “Proletários de todos os países, uni-vos!”b é uma declaração política que quer dizer que o princípio de divisão nacional não é muito importante em relação ao princípio internacional que opõe transnacionalmente ricos e pobres.
As lutas políticas são lutas entre responsáveis políticos, mas nessas lutas os adversários, que competem pelo monopólio da manipulação legítima dos bens políticos, têm um objeto comum em disputa, o poder sobre o Estado (que em certa medida põe fim à luta política, visto que as verdades de Estado são verdades transpolíticas, pelo menos oficialmente). As lutas pelo monopólio do princípio legítimo de visão e de divisão do mundo social opõem pessoas dotadas de poderes desiguais. Pode-se dizer que em cada campo opera um tipo de poder. Entre os matemáticos, trata-se do capital matemático: há pessoas que, em virtude de suas realizações anteriores, de suas invenções (inventaram teoremas que levam seus nomes), têm um capital específico que não seria operante na Assembleia Nacional ou na Bolsa de Valores, mas que é muito poderoso em uma assembleia de matemáticos. Cada espécie particular de capital está ligada a um campo e tem os mesmos limites de validade e de eficácia que o campo no interior do qual tem curso. Toda tentativa de impô-la para além desses limites é uma forma de tirania, no sentido de Pascal. Não é raro, por exemplo, que os políticos queiram agir diretamente sobre o campo literário. Eles criam academias sem ver que há uma lei fundamental de um campo autônomo que diz que só podem agir sobre ele as forças que ele reconhece, que são conformes ao seu nomos. Mais vale ser publicado pelas Éditions de Minuit do que estar na Academia Francesa. Quando você é presidente da República, não pode outorgar diplomas de excelência literária (conquanto todos eles procurem fazê-lo, sobretudo quando se acreditam escritores, como certos de nossos falecidos presidentes).
Há, no campo político, lutas simbólicas nas quais os adversários dispõem de armas desiguais, de capitais desiguais, de poderes simbólicos desiguais. O poder político é peculiar no sentido de se parecer com o capital literário: trata-se de um capital de reputação, ligado à notoriedade, ao fato de ser conhecido e reconhecido, notável. Daí o papel muito importante da televisão, que introduziu algo extraordinário, pois as pessoas que só eram conhecidas pelas reuniões eleitorais nos pátios das escolas não têm mais nada a ver com esses subministros que, suficientemente poderosos em seus partidos para aparecerem na televisão, têm seus rostos conhecidos por todo mundo. O capital político é, portanto, uma espécie de capital de reputação, um capital simbólico ligado à maneira de ser conhecido.
À medida que o campo político avança na história e que, notadamente com o desenvolvimento dos partidos, se institucionalizam os papéis, as tarefas políticas, a divisão do trabalho político, aparece um fenômeno muito importante: o capital político de um agente político dependerá primeiramente do peso político de seu partido e do peso que a pessoa considerada tem dentro de seu partido. Nós não damos suficiente importância a essa noção extraordinária de investidura. Atualmente, o partido é uma espécie de banco de capital político específico, e o secretário-geral de um partido é uma espécie de banqueiro (talvez não seja por acaso que todos os nossos presidentes, passados e futuros, são antigos secretários-gerais…) que controla o acesso ao capital político, burocratizado, burocrático, garantido e autenticado burocraticamente pela burocracia de um partido.
À medida que o campo político se burocratiza, o ingresso à instituição supõe direitos de acesso, e hoje esses direitos são com cada vez maior frequência outorgados pelos partidos (e pelas grandes escolas, notadamente a Escola Nacional de Administração, a ENA). Os mais tenazes conservadores de um partido são os que mais dependem dele. Em linguagem religiosa, são o que se chamava de oblatos: eram filhos de famílias pobres, que os doavam à Igreja e que, tudo devendo à Igreja, lhe davam tudo, davam tudo à Igreja que tudo lhes havia dado. Não existe ninguém mais fiel que o oblato, pois se deixa a Igreja não tem mais nada. O partido comunista muito se apoiou sobre essa fórmula. São pessoas que oferecem todas as garantias, dado que têm toda a sua legitimidade, todo o seu poder, da investidura do partido. Não são mais nada se o partido lhes retira a investidura, daí os dramas da exclusão. A exclusão é uma excomunhão (as analogias religiosas funcionam muito bem).
Os interesses políticos específicos de que eu falava há pouco tornam-se cada vez mais ligados ao pertencimento a um partido e, ao mesmo tempo, à reprodução de um partido e à reprodução assegurada pelo partido. Uma grande parte das ações realizadas pelos políticos não têm outra função que a de reproduzir o aparelho e de reproduzir os políticos ao reproduzir o aparelho que lhes assegura a reprodução. …
Ao começar, eu disse que o campo político podia ser descrito como um jogo no qual o que está em disputa é a imposição legítima dos princípios de visão e divisão do mundo social. Há os brancos e os negros, mas também os mestiços, que têm virtualmente a mesma importância; fazendo uma sociologia comparada sobre a maneira de tratar a oposição entre brancos e negros, vê-se de imediato que a situação não é a mesma no Brasil, nos Estados Unidos e na França. Um dos temas da luta política pode ser o deslocamento dessas fronteiras ou dicotomias. As lutas políticas envolvem disputas intelectuais, princípios de visão e de divisão. Como diziam os gregos, são as categorias, os princípios de classificação. O que se chama de lutas de classes são, na verdade, lutas de classificação. Mudar esses princípios de classificação não é simplesmente realizar uma ação intelectual, é também uma ação política na medida em que os princípios de classificação fazem classes, as quais são passíveis de mobilização. Durante as guerras de religião, podiam-se mobilizar exércitos com base em uma imposição de categorias. O que está em disputa no jogo político é o monopólio da capacidade de fazer ver e de fazer crer de uma maneira ou de outra. Assim se explica que a analogia religiosa seja tão poderosa. Trata-se de uma luta entre ortodoxia e heresia. Ortodoxia significa visão reta e de direita. O herético, ao contrário, é aquele que escolhe, por oposição ao que não escolhe, que acha que as coisas são como são, que o mundo está bem como está, que não há nada a dizer ou dizer de outra forma, e que é suficiente deixar continuar. Para o herético, “isso não pode durar”. As disputas do mundo político são sempre duplas; são combates por ideias, mas, como estas só são completamente políticas se se tornam ideias-força, são também combates por poderes.
Há uma espécie de ambiguidade inerente à política, donde o problema muito difícil para os intelectuais que é o entrar na política sem se tornarem políticos. Eles são imediatamente remetidos ao papel de irresponsáveis. Não me canso de repetir a fórmula de Espinosa: “não existe uma força intrínseca da ideia verdadeira”. Porque a divisão do trabalho lhes dá condições, os intelectuais e os pesquisadores, sejam eles economistas, sociólogos, historiadores, têm um acesso um pouco superior à média a verdades sobre o mundo social. Eles, por vezes, desejariam entrar no mundo político, que é um jogo de ideias-força. Mas como dar força às ideias sem entrar no campo e no jogo político? Penso que esta é uma maneira absolutamente séria de colocar o problema dos intelectuais. Não se trata de um problema abstrato. Penso ser importante que os pesquisadores possam ter algo a dizer sobre os problemas de visão e de divisão, sobre o mundo social que eles passam a vida a estudar para produzir um conhecimento. Talvez essa questão só interesse a umas poucas pessoas, mas ela me parece relativamente importante. Porém, isso não é tudo. A tentativa de dar um pouco de força política a ideias verdadeiras é particularmente difícil e arriscada em um jogo em que os poderosos tendem a imitar a verdade e a procurar dar às crenças e aos princípios de visão e de divisão que se esforçam por impor, em matéria de economia notadamente, a aparência de uma marca de verdade, de uma garantia científica. Eles não param de dizer “a ciência está conosco”, os prêmios Nobel estão conosco, como nas guerras de outrora se gritava “Deus está conosco”; e eles pedem ao povo que se oriente pelos mais competentes, pelos que possuem melhor conhecimento, que reivindicam o monopólio da manipulação dos bens de salvação política, o monopólio da definição do bom e do bem políticos, em nome do monopólio da competência e da verdade.
A esse golpe de força exercido em nome da ciência, mas com todos os meios fornecidos pelo poder econômico, temos o direito (e talvez o dever) de nos opor em nome da própria ciência. Mas, sem poder contar com outras armas a não ser as fornecidas pelo conhecimento do mundo social tal qual ele é. E talvez principalmente pelo conhecimento do jogo-duplo que é constitutivo do jogo político, no qual a força é simultaneamente a arma e o que está em jogo. E onde, não obstante, para se fortalecer, é preciso fazer ares de levar em conta e em consideração a verdade. É porque essa homenagem à virtude científica está inscrita na própria lógica do microcosmo político que a ciência – e em particular a ciência do jogo político – não é totalmente desprovida de força política, tendo ao menos uma força crítica, negativa.
QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO
Bourdieu, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.
____. Lições da aula: aula inaugural proferida no Collège de France em 23 de abril de 1982. São Paulo, Ática, 2001.
____. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, Zouk, 2007.
____. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro, EdUerj, 2002.
____. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
a O Conseil Général é o órgão legislativo do Departamento, a unidade politico-administrativa intermediária entre o nível municipal e o nível nacional. (N.T.)
b Frase final do Manifesto comunista (1848) de Marx e Engels. (N.O.)