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A MEDICINA E O DIREITO

Sumário: 1.1. Introdução. 1.2. O pensamento hipocrático. 1.3. Os direitos do paciente. 1.4. A quem pertence o prontuário? 1.5. Receita médica. 1.6. O consentimento do paciente. 1.7. A velha e a nova ética médica. 1.8. Os direitos do periciando. 1.9. A ética no Direito. 1.10. Fundamentos de um Código de Ética. 1.11. A estrutura do Código de Ética atual. 1.12. As razões do Código de Ética de 1988. 1.13. A medicina do futuro e seus riscos. 1.14. Referências bibliográficas.

Código de Processo Penal

Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.

Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior.

§ 1.º Na falta de perito oficial, o exame será realizado por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame.

§ 2.º Os peritos não oficiais prestarão o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo.

§ 3.º Serão facultadas ao Ministério Público, ao assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico.

§ 4.º O assistente técnico atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão.

§ 5.º Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia:

I – requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos, desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas sejam encaminhados com a antecedência mínima de 10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo complementar;

II – indicar assistentes técnicos que poderão apresentar pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência.

§ 6.º Havendo requerimento das partes, o material probatório que serviu de base à perícia será disponibilizado no ambiente do órgão oficial, que manterá sempre sua guarda, e na presença de perito oficial, para exame pelos assistentes, salvo se for impossível a sua conservação.

§ 7.º Tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, poder-se-á designar a atuação de mais de um perito oficial, e a parte indicar mais de um assistente técnico.

Art. 160. Os peritos elaborarão o laudo pericial, onde descreverão minuciosamente o que examinarem, e responderão aos quesitos formulados.

Parágrafo único. O laudo pericial será elaborado no prazo máximo de 10 dias, podendo este prazo ser prorrogado, em casos excepcionais, a requerimento dos peritos.

Art. 161. O exame de corpo de delito poderá ser feito em qualquer dia e a qualquer hora.

Art. 162. A autópsia será feita pelo menos seis horas depois do óbito, salvo se os peritos, pela evidência dos sinais de morte, julgarem que possa ser feita antes daquele prazo, o que declararão no auto.

Parágrafo único. Nos casos de morte violenta, bastará o simples exame externo do cadáver, quando não houver infração penal que apurar, ou quando as lesões externas permitirem precisar a causa de morte e não houver necessidade de exame interno para a verificação de alguma circunstância relevante.

Art. 164. Os cadáveres serão sempre fotografados na posição em que forem encontrados, bem como, na medida do possível, todas as lesões externas e vestígios deixados no local do crime.

Art. 180. Se houver divergência entre os peritos, serão consignadas no auto de exame as declarações e as respostas de um e de outro, ou cada um redigirá separadamente o seu laudo, e a autoridade nomeará um terceiro; se este divergir de ambos, a autoridade poderá mandar proceder a novo exame por outros peritos.

Art. 181. No caso de inobservância de formalidades ou no caso de omissões, obscuridades ou contradições, a autoridade judiciária mandará suprir a formalidade, complementar ou esclarecer o laudo. (Redação dada pela Lei n.º 8.862, de 28.3.1994.)

Parágrafo único. A autoridade poderá também ordenar que se proceda a novo exame, por outros peritos, se julgar conveniente.

Art. 182. O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte.

Art. 277. O perito nomeado pela autoridade será obrigado a aceitar o encargo, sob pena de multa de dez a cinquenta centavos, salvo escusa atendível.

Parágrafo único. Incorrerá na mesma multa o perito que, sem justa causa, provada imediatamente:

a) deixar de acudir à intimação ou ao chamado da autoridade;

b) não comparecer no dia e local designados para o exame;

c) não der o laudo ou concorrer para que a perícia não seja feita, nos prazos estabelecidos.

Código de Processo Civil

Art. 145. Quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico, o juiz será assistido por perito, segundo o disposto no artigo 421.

Art. 421. O juiz nomeará o perito, fixando de imediato o prazo para a entrega do laudo.

§ 1.º Incumbe às partes, dentro de cinco dias, contados da intimação do despacho de nomeação do perito:

I – indicar o assistente técnico;

II – apresentar quesitos.

§ 2.º Quando a natureza do fato o permitir, a perícia poderá consistir apenas na inquirição pelo juiz do perito e dos assistentes, por ocasião da audiência de instrução e julgamento a respeito das coisas que houverem informalmente examinado ou avaliado.

Código de Ética Médica

Capítulo I

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.

II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

III – Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa.

IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.

V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.

VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

IX – A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio.

X – O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa.

XI – O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei.

XII – O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e controle dos riscos à saúde inerentes às atividades laborais.

XIII – O médico comunicará às autoridades competentes quaisquer formas de deterioração do ecossistema, prejudiciais à saúde e à vida.

XIV – O médico empenhar-se-á em melhorar os padrões dos serviços médicos e em assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à educação sanitária e à legislação referente à saúde.

XV – O médico será solidário com os movimentos de defesa da dignidade profissional, seja por remuneração digna e justa, seja por condições de trabalho compatíveis com o exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento técnico-científico.

XVI – Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

XVII – As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente.

XVIII – O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos.

XIX – O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência.

XX – A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo.

XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.

XXIII – Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a sociedade.

XXIV – Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa.

XXV – Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada à herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.

1.1. INTRODUÇÃO

A Medicina é tão antiga quanto a dor, e seu humanismo tão velho quanto a piedade humana. Tem como finalidade precípua a investigação das mais diversas entidades nosológicas e estabelecer condutas, no sentido de manter ou restituir a saúde dos indivíduos. É também missão dessa ciência orientar e esclarecer os legisladores na elaboração das leis sobre fatos médicos e fomentar o bem social. É, em suma, uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade, sem discriminação de qualquer natureza.

Há de se convir que a Medicina não pode afastar-se de sua tradição, toda ela mergulhada em rigorosos conceitos de moral, tendo como base o mais antigo e filosófico dos documentos médicos – o Juramento de Hipócrates, escrito há mais de 2.500 anos, por esse notável homem que, arrancando dos deuses a arte de curar, a entregou aos homens.

Assim, no início, a arte médica ora estava nas mãos dos feiticeiros, ora nas dos sacerdotes, pois eram a saúde e a doença simples desígnios da divindade. Hoje, ao penetrar no período científico ou moderno, apresenta-se ela como instituição da maior necessidade e de transcendente significação.

Já o Direito tem efetivação mais recente, pois nas sociedades primitivas a norma era desconhecida. Os conflitos surgidos eram solucionados pela força e pela astúcia. Com a repetição dessas situações, foi o homem vendo que as experiências vividas eram ou não úteis e vantajosas, constituindo-se uma modalidade de decisão. Assim nasceu o costume.

Com o aparecimento do grupo familiar, criou-se a chamada responsabilidade coletiva.

À medida que os tempos passavam, foram sendo conhecidas outras formas de delito, como a culpa e a infração involuntária.

Surge, finalmente, o Estado como uma necessidade de harmonizar, em uma linha mestra, as atividades de relação das comunidades, com uma língua comum, costumes, tradição e espaço territorial, constituindo tudo isso a nacionalidade.

Dessa maneira, é fácil entender que o Direito é anterior à lei, pois esta só pode determinar aquilo que é justo.

À proporção que o Direito e a Medicina foram evoluindo, surgiram inevitavelmente certos pontos de contato, havendo necessidade de criar-se uma nova ciência. Então, surgiu a Medicina Legal, que, entre outras coisas, se propõe a explicar a um e a outra determinados aspectos que interessam sobretudo ao equilíbrio e à harmonia da vida social.

Por isso, a Medicina Legal requer conhecimentos especiais, pois que trata de assuntos exclusivamente de interesse da Medicina e do Direito, quando relacionados. Não basta ser apenas um bom médico para desempenhar bem e fielmente as funções técnico-legais. Também não deverá o estudioso da Medicina Legal ser apenas um bom relator das mais diversas lesões violentas, mas ao concluir suas decisões deve, por antecipação, prever a grande e notável contribuição que seu parecer poderá representar na interpretação e na decisão dos aplicadores da lei.

Ser simplesmente um bom relator em juízo é tarefa que qualquer um pode desempenhar, até mesmo não médicos, pois a lei admite como peritos “pessoas idôneas portadoras de diploma de curso superior, escolhidas entre os que tiverem habilitação técnica relacionada à natureza do exame”. Porém, iluminar a Justiça à altura de suas necessidades é atribuição completamente diversa, que exige, além de conhecimentos médicos e não médicos, uma profunda compreensão dos múltiplos problemas que interessam à administração da Justiça.

O juiz, não tendo a onipresença nem a onisciência de Deus, necessita de informações para fundamentar a sua sentença. Onde não há uma verdadeira contribuição da Medicina Legal, fica a Polícia Judiciária à mercê da boa vontade de um ou de outro médico, para a aquisição de um relatório médico-pericial, a fim de esclarecer um fato de interesse da lei. Será uma Polícia Judiciária desaparelhada, incapaz de atender a um mínimo necessário para o cumprimento de sua alta e nobre missão – a de esclarecer a Justiça quando da apuração dos mais complexos problemas que interessam ao interpretador da lei.

Apenas para configurar a importância indiscutível da Medicina Legal, bastaria a responsabilidade do ensino da Deontologia Médica, cujos conhecimentos da legislação e da moral são de máxima importância na vida profissional do médico, a fim de criar na consciência do iniciante o conhecimento e a compreensão do espírito hipocrático, ameaçado de submergir no terrível naufrágio da decadência moral dos tempos hodiernos. Tais ensinamentos nos dão, portanto, o conhecimento dos malefícios que a crescente renúncia aos dogmas deontológicos vem causando à nossa profissão.

Mas os deveres dos médicos, em geral, para com a sociedade não são apenas subordinados aos fatos de Medicina Legal. Hoje, a medicina curativa tornou-se uma instituição de interesse coletivo, em que o Estado passou a exigir mais dos profissionais da Medicina, como elementos de grande valia para estabelecer a ordem pública e a paz social.

Em quase todos os países do mundo, as atividades dos médicos estão estruturadas por leis, quer no terreno individual da clínica privada, quer nas instituições de caráter público. São eles solicitados por tribunais como elementos esclarecedores dos mais diversos assuntos médicos. O ginecologista atual enfrenta problemas de ordem moral ligados à contracepção, ao aborto, à esterilização cirúrgica e à fecundação artificial heteróloga; nos serviços de urgência, o médico se depara com o diagnóstico de morte, nos casos de transplante; o psiquiatra pode se ver na necessidade de responder a questões ligadas à responsabilidade penal e à capacidade civil; o investigador clínico poderá ser interpelado a respeito do emprego de um novo medicamento; o cirurgião plástico não está isento de responder civilmente por uma operação cujo resultado não satisfez seu cliente; o médico de clínica privada não poderá recusar uma declaração de diagnóstico de um paciente, quando se impõe a quebra do sigilo profissional por um imperativo de ordem legal.

A responsabilidade civil do médico vai se estruturando num sistema que, de fato e de direito, é cada vez mais rigoroso. Sua cultura, sua formação e sua ética o colocam numa situação de plena responsabilidade, que os próprios médicos não deixam de aceitar, pois a Medicina adquiriu, nestes últimos anos, segurança e perfeição técnicas suficientes para oferecer possibilidades maiores de cura, de bem-estar físico, social e psíquico. As pesadas obrigações jurídicas que surgem da evolução contemporânea são a inevitável contrapartida dos notáveis progressos da medicina moderna.

Não estamos mais no tempo em que as relações entre o médico e o paciente eram apenas de deveres do paciente, e, sim, na época em que o doente é conhecedor dos seus direitos diante da Medicina. A assistência dos planos e seguros de saúde e dos seguros tornou os pacientes profundamente perturbados acerca dos seus direitos, às vezes, muito mais que da saúde. Já não estamos mais nos tempos em que o relacionamento médico-paciente era simplesmente, no dizer de Porthes, “um diálogo entre a ciência e a consciência”.

A evolução social segue um ritmo acelerado e atualmente são muitos os problemas comuns à Medicina e ao Direito.

A evolução técnica da Medicina e o número cada vez mais crescente de especialistas tiveram como consequência uma nova estruturação nas suas relações. Disso resulta que nem sempre é fácil aos médicos aceitarem a evolução dessas estruturas, nem a intervenção judicial no exercício de uma profissão que exige condutas eminentemente pessoais, em circunstâncias as mais diversas.

A complexidade desses problemas reside na impotência da Justiça de entrar no mistério do próprio médico. Pensou-se até na criação de um tribunal composto por médicos; pois, segundo seus defensores, é necessário ter exercido a Medicina para saber o que significa essa profissão, em termos emocionais, técnicos e circunstanciais. Refutando esse argumento, os discordantes afirmam que há uma vontade sistemática de um grande número de médicos de absolver sempre as faltas de seus colegas. E alguns chegam até a declarar que é seu dever decidir invariavelmente em favor de seus companheiros de profissão.

Prevalece, no entanto, a ideia de que os tribunais civis são competentes para julgar os atos médicos, pois quando os juízes avaliam as faltas daqueles profissionais somente se manifestam após ouvirem os competentes peritos.

Quando assistimos à expansão econômica dos indivíduos, à instabilidade dos grupos sociais e ao conceito de moral, que já não se impõe com o rigor de antigamente, surge um choque de concepções, tendo de um lado a medicina e, de outro, o legislador que procura estabelecer uma ordem pública ideal.

A ideia de uma medicina acessível a todos, assentada numa legislação lógica em si mesma, encontra-se, infelizmente, em contradição com as possibilidades reais do rendimento biopsíquico do médico, possibilidades essas que a coletividade não pode apreciar com clareza. A Medicina, quaisquer que sejam as suas modalidades, exige, realmente, certa liberdade do médico.

Cada vez mais, a Medicina vai adquirindo segurança e perfeição técnica suficientes para oferecer aos doentes grandes possibilidades de cura, e esse crédito adquirido pela ciência hipocrática implica necessariamente uma responsabilidade cada vez mais rigorosa. Com o passar dos tempos, maiores são as implicações com a deontologia clássica e tradicional; todavia, o ideal médico continua o mesmo de sempre, embora a legislação evolua de modo mais pragmático.

Os grandes conflitos

A Medicina, principalmente nesses últimos trinta anos, sofreu um extraordinário e vertiginoso progresso, o que obrigou o médico a enfrentar novas situações, muitas delas em sensível conflito com sua formação e com o passado hipocrático. O médico teve sempre como guias sua consciência e uma tradição milenar; porém, dia a dia, surge a necessidade de conciliar esse pensamento e o interesse profissional com as múltiplas exigências da coletividade.

Há problemas que, embora transcorrido muito tempo, na verdade continuam a inquietar, pois difíceis são as soluções, tais como a eutanásia, o aborto e a antinatalidade. Outros existem que dependem da própria evolução das ciências biológicas e da tecnologia, entre os quais podemos destacar: 1. a reprodução assistida, com algumas dificuldades em definir sua licitude em determinadas circunstâncias, principalmente quando se discute a elevada mortalidade dos embriões e sua manipulação genética, a relação da filiação e o destino dos embriões excedentários; 2. o uso de órgãos e tecidos em transplantes, envolvendo interesses e criando choques entre doador, receptor e familiares, e, o mais importante, a dificuldade em se estabelecer uma conceituação insuspeita de morte, o que obrigou diversos organismos a se manifestarem a respeito, e o Estado a elaborar estatutos capazes de disciplinar essas intervenções; 3. a política antinatalista que começa a sair dos velhos padrões da contenção à gravidez, e chega ao campo da experimentação através de manipulações genéticas, partindo da organização molecular da matéria viva; 4. a cirurgia estética, fugindo do aspecto curativo e procurando satisfazer a vaidade e a sofisticação; 5. a experiência científica no homem, com o fim de se obter maiores benefícios para a humanidade, mas ainda presente a lembrança do fantasma de Nüremberg, onde as mais torpes e cruéis atrocidades foram praticadas em nome do mais humano e sagrado dos sacerdócios – a Medicina. Na verdade, exemplo como esse deverá ser sempre repelido pelas gerações que hão de vir, pois nenhuma ciência, nenhum princípio, nem mesmo a própria humanidade podem exigir o sacrifício especulativo de um homem, prática que somente será admitida, todavia, quando constituir um último recurso, e em benefício do próprio experimentado, conforme se manifestou a Associação Médica Mundial em 1962, através da Declaração de Helsinki; 6. a possibilidade de não prolongar a vida de um paciente considerado incurável e em doloroso sofrimento, ou seja, aquilo que passaram a chamar de “direito de morrer com dignidade”, em que a própria Igreja manifestou-se veladamente favorável, mas a que o médico deve resistir obstinadamente, uma vez que sua arte e sua ciência não podem ser colocadas a serviço da morte, mesmo omissivamente, pois a incurabilidade é e será por muito tempo apenas uma situação de falta de recursos, de tempo e de ponto de vista; 7. o segredo médico, talvez o mais antigo e tradicional princípio do postulado ético-moral da Medicina, que sofreu, nos dias atuais e nos mais diversos lugares, modificações tão graves, que às vezes chega-se a pensar que ele não mais existe; 8. a responsabilidade médica, que com o passar dos dias vai se transformando num sistema tão complexo e de tanta generosidade aos que demandam contra os médicos, que estes, em alguns países, passaram a retrair-se, pois viam em cada paciente um demandante em potencial; 9. a esterilização humana, que já conta com simpatizantes no mundo inteiro, como medida ideal de controle da natalidade, é também um pretexto à desabrida intervenção de organismos internacionais em nossa autonomia; 10. a publicidade médica, que ultrapassada em seus limites de exigência já começa a tomar uma feição comercial, em anúncios exagerados na linguagem e na forma, culminando no que se adjetivou de “mercado da personalidade”. Há um exibicionismo inescrupuloso e de orientação mercantilista em todos os veículos publicitários, que vai desde a ostentação da caridade até os sôfregos assomos da vaidade para o vedetismo, em colunas de jornais ou em aparições nas tevês, quando o que se procura, acima de tudo, é destacar uma habilidade ou recurso heroico, salvadores de determinadas situações; 11. a medicina que se denominou socializada, por seu turno, não somente despersonalizou a relação médico-paciente, mas criou, na mente dos doentes, uma ideia de estarem sendo tratados em série; 12. a medicina criativa, fundamentada na Genética, preocupando-se em criar o homem do futuro, sendo claro, no entanto, que resultados dessa natureza comprometem a dignidade humana, uma vez que não deve o homem constituir material de experimentação, não se podendo, também, estabelecer quem deva ou quem não deva ser manipulado; 13. a telemedicina como proposta de fazer com que o tratamento e o diagnóstico sejam feitos a distância; 14. e a medicina baseada em evidências que passa a aceitar apenas, como de reconhecido valor científico, as informações oriundas da pesquisa de cientistas de peso em estudos demorados e em expressivo número de pacientes observados em serviços de excelência, deixando de lado a experiência pessoal, as teorias fisiopatológicas consagradas e o resultado das investigações clínicas.

Portanto, apesar das diversidades de pontos de vista, a Medicina continuará sempre a ciência do maior interesse individual ou coletivo, exigindo-se do profissional, em todas as circunstâncias e em qualquer tempo, a proteção incondicional e a inviolabilidade da pessoa humana, devendo as decisões mais complexas encontrar apoio na inspiração da nossa consciência, e num passado que, embora distante, vive na alma de todo médico.

1.2. O PENSAMENTO HIPOCRÁTICO

Embora a doutrina hipocrática tenha resistido ao tempo, a vida do seu autor ainda continua pouco conhecida. Sabe-se que nasceu na pequena ilha de Cós, 400 anos antes de Cristo, tendo estudado em Atenas, praticado a Medicina na Trácia, Crotona, em Perinto, Salamina e Macedônia, morrendo com a idade de 104 ou 107 anos em Tessália.

O Corpus Hipocraticum, reunido por estudiosos da Escola de Alexandria nos idos do século II, ainda que mostrando pontos contraditórios, traz, no entanto, um conjunto de ideias que representa o chamado Pensamento Hipocrático.

A base fundamental do seu sistema foi exatamente afastar da Medicina as interpretações teológicas e as fantasiosas encenações da magia. “Proponho tratar a enfermidade chamada sagrada – a epilepsia. Em minha opinião, não é mais sagrada que outras doenças, senão que obedece a uma causa natural, e sua suposta origem divina está radicada na ignorância dos homens e no assombro que produz peculiar caráter.”

Para o Gênio de Cós, a doença nada mais era que simplesmente um processo natural, recebendo, inclusive, influência dos fatores externos, como clima, ambiente, dieta e gênero de vida. “O organismo tem seu próprio meio de recuperar-se; a saúde é o resultado da harmonia e simpatia mútua entre todos os humores; o homem saudável é aquele que possui um estado mental e físico em perfeito equilíbrio.”

Conduzia ele a Medicina dentro de um alto conteúdo ético. O diagnóstico deixava de ser uma inspiração divina para constituir um juízo sereno e um processo lógico, dependendo da observação cuidadosa dos sinais e sintomas. Era a morte da Medicina mágica e o nascimento da Medicina clínica.

Hipócrates fez com que a atenção do médico se voltasse exclusivamente para o doente e não para os deuses, abandonando as teorias religiosas e alguns conceitos filosóficos. Fez ver a necessidade e a utilidade da experimentação curativa, e passou a intervir nas fases mais precoces da enfermidade, evitando sua evolução. Em Epidemias descreveu com rigoroso caráter científico o desenrolar das doenças; em Ares, Águas e Lugares, criou o primeiro tratado de saúde pública e geografia médica; em Histórias Clínicas, trouxe à tona o valor do exame minucioso e a razão desse ato ser judicioso, solene e meditado; em Prognóstico, além de descrever a alteração do pulso e da temperatura como elementos importantes em determinados processos patológicos, relata com a mais alta precisão os ruídos auscultados nos derrames pleurais hidrogasosos, conhecidos até hoje como sucção hipocrática. Escreveu ainda Aforismos, Regime das Doenças Agudas, Articulações e Fraturas, Feridas da Cabeça, Medicina Antiga, entre outros.

Mas foi em Juramento que a doutrina hipocrática logrou maior relevo e maior transcendência. Mesmo não se assentando em fundamentos jurídicos, seu postulado ético-moral permanece sendo a viga mestra de todo conteúdo dogmático que conduz a Medicina, nos dias de hoje, como sacerdócio-ciência, merecedor do aplauso e da consagração que a tecnologia moderna não conseguiu destruir.

E é neste instante de maior evolução e de grandes conquistas, em que a Ética distancia-se cada vez mais desses extraordinários resultados, que se faz sentir a imperiosa interferência do Pensamento Hipocrático, pela irradiação de seu sentimento moralizador, ascético e purificador, sintetizado na sua lapidar sentença: “Conservarei puras minha vida e minha Arte.”

O pensamento do Mestre de Cós está condensado nos seguintes pontos: no agradecimento aos mestres pelos ensinamentos recebidos e constituir com eles e os seus uma família intelectual; na moralidade e numa vida profissional irretocável; no respeito ao segredo médico; no benefício incondicional ao paciente, como polo principal do exercício médico; na concepção da Medicina como uma arte da observação cuidadosa e como ciência da natureza; na libertação da Medicina das mãos dos bruxos e sacerdotes.

O Corpus Hipocraticum, em sua essência, é de um admirável e comovente humanitarismo, de compaixão e de afetividade. Mesmo mais modernamente, nos famosos acordos internacionais, tais como o Código de Nüremberg, a Declaração de Helsinki, a Declaração de Genebra e o Código Internacional de Ética Médica, ou os Códigos nacionais aceitos pelos diversos países, paira a flama do espírito hipocrático.

O pensamento do venerável Mestre de Cós, sem quaisquer dúvidas, emprestou tanta contribuição à Medicina que fez dela a mais notável e a mais meritória de todas as profissões, a ponto de fazer valer-lhe a reconhecida e justa gratidão de toda a Humanidade.

1.3. OS DIREITOS DO PACIENTE

Muita gente já admite que o próximo pleito em favor dos direitos humanos será travado num consultório médico ou numa enfermaria. E assim, em grupos ou isoladamente, os pacientes começam a levantar questões que conflitam com alguns dos postulados impostos pela Medicina, passando a contestar certos aspectos da assistência médico-hospitalar, na tentativa de participar mais ativamente das decisões tomadas em seu favor. Muitos deles chegam a afirmar que a não revelação do que deveriam saber constitui-se num golpe aos seus direitos fundamentais.

O fato não é novo. Entretanto, somente agora começa a surgir uma melhor consciência médico-paciente, assumindo forma mais franca e aberta de diálogo. Há alguns anos, criou-se nos EUA o Comitê Médico dos Direitos Humanos, cujo objetivo principal é o de permitir a participação mais ativa dos pacientes em sua assistência médica. Surgiram ainda, entre outros, o Serviço Legal de Assistência aos Pacientes e um Projeto de Libertação dos Pacientes Mentais, numa tentativa de evitar, entre outras coisas, a exploração de doentes que não sabem falar por si, mormente aqueles que são submetidos a longos períodos de internamento, alguns deles até usados como empregados.

A Associação de Hospitais Americanos (AHA) divulgou um pequeno manual intitulado A Carta de Direitos dos Pacientes. O documento estabelece, entre outros fatos:

–   informação detalhada sobre o problema do doente;

–   direito de recusar tratamento dentro do limite da lei;

–   detalhes completos para facilitar certas tomadas de posição;

–   discrição absoluta sobre seu tratamento;

–   sigilo ou omissão dos registros médicos de sua doença, quando isso possa comprometer seus interesses mais diretos;

–   não aceitação da continuidade terapêutica nos casos considerados incuráveis e de penoso sofrimento;

–   informações completas à família, nos casos mais dramáticos, em termos que possa entender etc.

É claro que muitos desses dispositivos quase nada acrescentam ao que se tem feito até agora, como também ninguém discute que algumas decisões mais cruciais ainda sejam da competência incondicional do médico, quando somente ele e Deus sabem o quanto custam.

Há ainda muitas pessoas que admitem existir entre o médico e o paciente uma penumbra mágica e misteriosa, dificultando um melhor entendimento, princípio elementar do relacionamento que se possa desejar.

Uma questão interessante dentro destes direitos do paciente é o de saber a verdade. Uns acham que uma total transparência nas suas relações, antes de representar um respeito à dignidade do paciente, ou um resguardo aos seus direitos, pode trazer-lhe, a longo prazo, mais danos que benefícios. Para estes, só em determinadas ocasiões poderia o doente participar das grandes decisões, de vez que sua sentimentalidade e sua inconsciência aos problemas técnicos poderiam acarretar-lhe, irremediavelmente, danos muito mais graves.

No entanto, o certo é que o direito de saber a verdade começa a ser mais e mais requestado, de forma insistente, por enfermos e familiares. Sabe-se que, não muito raro, os médicos mentem, ou contam meia-verdade, como forma de não perturbar emocionalmente o paciente, ou por admitirem lesar os ditames ético-morais que exigem a conveniência profissional.

Antes, nos casos de maior gravidade, a regra era mentir. Assim, diante de um agonizante ou incurável, a verdade poderia agravar seu estado, ou ferir uma sensibilidade num momento tão denso e grave. Agora, para muitos, tais pacientes são quase sempre sabedores da verdade, e a mudez dos médicos e parentes cria uma barreira de silêncio que os isola e maltrata ainda mais.

O fato é que dificilmente alguém tem uma receita de conduta nesse particular. Porém, uma coisa é certa: dizer a verdade não é sinônimo de relato frio e brutal. Ela pode ser dita com sinceridade e compaixão, entremeada de bondade e temperada de otimismo, como quem tenta fazer renascer uma esperança, porque quem ouve uma palavra de esperança é como quem escuta a voz de Deus.

Outra coisa neste aspecto dos direitos dos pacientes é o chamado “ato médico a pedido”, como, por exemplo, a via de parto. Numa leitura mais atenta, a escolha do tipo de parto é uma manifestação justa desde que a gravidez tenha sido devidamente acompanhada com informações adequadas e que não haja um sério prejuízo capaz de ser evitado por outra via.

Aqui não vamos analisar as taxas crescentes de cesarianas feitas sem indicação médica, muitas até por motivos inconfessáveis, mas uma margem permissível de uma ou outra cesariana feita a pedido, até porque, quando bem orientada, a gestante quase de forma absoluta aceita as ponderações feitas pelo seu obstetra.

A Federação Internacional das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), em consonância com a Associação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), tem revelado que não é ética a prática de cesariana sem uma indicação médica formal. Admitimos que este conceito tenha o sentido saneador de coibir as epidemias de cesáreas que, diga-se de passagem, não são vistas apenas em nosso clima.

Nesta questão é muito importante que as coisas fiquem em seu devido lugar: de um lado, as indicações médicas a serem tomadas de forma inflexível quando diante da gravidade de cada caso, e, de outro, a dignidade da mulher enaltecida e protegida cada vez mais pelos direitos humanos, principalmente quando tudo transcorreu em pré-natal de baixo risco, em idade gestacional compatível e com as permanentes e necessárias informações sobre riscos e benefícios.

Tem-se pesquisado muito estatísticas sérias de complicações decorrentes de partos cesarianos, mas poucos são os números dessas ocorrências decorrentes de partos cirúrgicos eletivos ou de urgência. Acreditamos que não é preciso muito esforço para provar que na cesariana de urgência as complicações estão mais presentes, tanto na mãe como no feto.

Deve-se levar em consideração que nas entrevistas feitas entre mulheres grávidas e não grávidas a resposta é sempre a mesma: a preferência pelo parto normal. E as que fazem opção pelo parto abdominal em geral mostram-se influenciadas pela cultura, por sofrimentos de partos anteriores ou a uma manifestação pessoal de tocofobia. Portanto, um ou outro tipo de parto a pedido e quando permitida a indicação não justificam a negação imperiosa de uma opção.

Dizer, por exemplo, que aceita a cesárea a pedido apenas fora do serviço público não parece um bom critério. Mesmo no serviço público ou nos hospitais universitários pode-se perfeitamente defender o parto vaginal como o parto natural, mas não enxergamos nenhuma ofensa à moralidade aceitar-se uma via de parto a pedido quando isto for possível. Admitimos que, mesmo diante de um risco mínimo, pode-se atender ao pedido da gestante que não aceitou o “padrão burocrático”, mesmo sendo orientada na gravidez. Não se pode atingir a autonomia da gestante baseando-se em limites de não ultrapassagem de cifras de cesarianas. O padrão não pode ser medido entre a mulher e os números, mas entre ela e seus direitos fundamentais.

O que se repete como um mantra: normal é parto natural pode ter seu sentido absoluto tendo em conta a história do homem. A literatura especializada não é unânime em relação aos riscos do parto normal e das cesarianas, tanto para as mães como para os fetos. Acreditamos que há mais arrependimento em quem não fez uma cesariana do que naquele que a realizou.

Inibir as mulheres quanto ao parto abdominal exigindo delas o recolhimento de uma taxa e por meio de Documento de Arrecadação da Receita Federal (Darf), como direito à opção de cesariana a pedido, é mais uma forma descabida de punir as mulheres pobres. Certamente tal modelo seria usado depois para outros procedimentos.

Podemos até admitir que as complicações maternas são um pouco maiores nos partos abdominais, mas esta menor prevalência vem diminuindo a cada dia a partir dos cuidados com a infecção hospitalar, com a sistematização das técnicas cirúrgicas e com a melhoria das condições de vida e de saúde da população-alvo. No que diz respeito aos fetos, quando tomadas as medidas necessárias quanto à prematuridade, o parto cirúrgico continua sendo o de menor risco. Não tardará o tempo em que riscos, benefícios e custos entre o parto dito normal e a cesariana terão a mesma equivalência e a decisão do tipo de parto será tomada sempre que possível em favor do bem-estar da mulher grávida e do seu direito de autonomia e não ao aclamado princípio da justiça, que atende aos interesses da tecnoburocracia, sempre preocupada na relação de despesa e receita. Nem o percentual de cesarianas praticadas deve ser o parâmetro para se medir a qualidade científica de um hospital obstétrico. Nem, por fim, querer estabelecer índices equivalentes entre as brasileiras nordestinas e as mulheres que habitam o continente gelado.

Quanto aos médicos, é claro, podem eles ter postura pessoal diante desse assunto. Podem até mostrar a suas pacientes as vantagens sobre um ou outro procedimento, e até indicar um deles. Isto faz parte da relação entre o médico e a paciente. O que o médico não pode nem deve usar é de meios coercitivos que venham contrariar um desejo da paciente, quando isto, é claro, não traz nenhum prejuízo a ela.

Finalmente, outro direito dos pacientes é o que se passou a chamar de “judicialização da saúde”: a prerrogativa que eles têm, algumas vezes, de ter como única forma de acesso à assistência médica – através de seus meios propedêuticos ou terapêutico – o caminho da Justiça.

Esse direito à saúde, mesmo consagrado no artigo 196 da Constituição Federal e garantido nas políticas públicas que se voltam em favor de melhoria de vida e de saúde, com acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção e recuperação, na prática nem sempre é cumprido, mesmo que essas regras tenham caráter normativo. E assim o Poder Judiciário vem assumindo um papel significativo no cumprimento daqueles princípios constitucionais.

Esse direito de requerer junto ao Judiciário, sempre que alguém venha a sentir-se prejudicado, também está assegurado no artigo 5.º, inciso XXXIV, da Constituição Federal, que estabelece: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. E o caminho mais fácil e direto é o Mandado de Segurança, que se presta a agir contra atos ilegais ou com abuso de poder praticados por autoridade, por exemplo, que deixam de fornecer medicamentos ou condutas médicas indispensáveis para o tratamento da saúde.

Faz oportuno ressaltar que a luta pelo controle dos gastos com a assistência à saúde não é uma particularidade do Brasil. Atualmente, vários países enfrentam o mesmo desafio.

Por outro lado, os administradores públicos sempre tentam reverter o direito dos solicitantes com a justificativa do princípio da “reserva do possível” em favor do Estado e que a “judicialização da saúde” representa uma interferência do judiciário nas políticas de saúde. A posição dos Tribunais, por sua vez, tem sido de que este princípio não é o suficiente para ser sempre aplicado, e sim um limite fático. Para muitos juízes, as eventuais dificuldades financeiras do Estado não devem ser motivo para a não atuação do Judiciário (Queiroz M. A. S. Judicialização dos direitos sociais prestacionais. Curitiba: Juruá Editora, 2011).

Assim:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Fornecimento de medicamento. Paciente incapaz, analfabeta e carente de recursos. Dever de assistência à saúde. Inaplicabilidade da teoria da reserva do possível quando confrontada com o mínimo existencial. Recurso desprovido.

Mesmo em relação aos pedidos de medicamentos não constantes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), em que a ação do medicamento não esteja vinculada especificamente à cura do paciente, o argumento dos limites dos recursos do Estado não tem prevalecido:

O Presidente do STJ, Ministro Edson Vidigal, negou ao Estado de São Paulo o pedido para suspender decisão que determinou o fornecimento gratuito do medicamento Gefitinibi a Célia Casseb Nahuz. A decisão garante o direito da paciente, portadora de câncer no pulmão, a receber gratuitamente o medicamento, cujo nome comercial é Iressa. (...) No pedido de suspensão de segurança, o Estado de São Paulo alegou que o Gefitinibi não possui registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), (...). (...) Em sua decisão, o ministro Edson Vidigal afirmou não ter visto, no caso examinado, nenhuma potencialidade de lesão aos bens jurídicos a serem protegidos por eventual concessão de medida como a suspensão de segurança: relevante interesse público, grave lesão à ordem, à saúde, à economia e à segurança pública. Sustentou que a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) de conceder medida de segurança em favor da paciente privilegiou a vida, protegendo, dessa forma, o bem jurídico mais importante que existe. “Diante da gravidade do caso concreto, não antevejo, no simples fato de inexistir registro do medicamento no Ministério da Saúde, ameaça de lesão e à ordem ou à saúde pública”, destacou. “Tampouco resta ameaçada, por isso, a saúde da impetrante, haja vista que a decisão condiciona o fornecimento à prescrição médica, e pela prescrição do medicamento, responde o médico requisitante.” (...). “(...) não há como concluir que o fornecimento do medicamento a uma única paciente possa causar lesão de consequências significativas e desastrosas à economia do Estado de São Paulo.” (...).27

A posição dos gestores de saúde tem sido contrária a tais pedidos, justificando sempre a situação exonômica dos municípios ou dos estados ou que pessoas que têm condições de financiar seus tratamentos venham também sendo privilegiadas nestas ações. Insistem, ainda, dizendo que a concessão quase absoluta desses pedidos vem inviabilizando o financiamento das ações de saúde e que é injusto sob o prisma do princípio de justiça distributiva, pois um único tratamento pode inviabilizar a assistência de muitas pessoas.

Sobre isso, diz a ex-Ministra do STF Ellen Gracie:

(...) a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. (...) Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudo e pesquisa. (...) Finalmente, no presente caso, poderá haver o denominado “efeito multiplicador” (SS 1.836 AgR/RJ, rel. Min. Carlos Velloso, Plenário unânime, DJ 11.10.2001), diante da existência de milhares de pessoas em situação potencialmente idêntica àquela do impetrante. Ante o exposto, defiro o pedido para suspender a execução da liminar concedida nos autos do Mandado de Segurança n. 2006.006795-0 (fls. 31-35), em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Comunique-se, com urgência.

Todavia, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reconheceu o direito de uma criança realizar tratamento de saúde no exterior, apesar de o custo superar a cifra de 150 mil dólares:

Agravo de Instrumento. Cautelar Inominada. Liminar determinando ao Estado o depósito de numerário para tratamento da distrofia muscular de Duchene em clínica norte-americana. Deferimento inaudita altera parte. Admissibilidade excepcional. Transplante de células. Resultados não comprovados cientificamente. Relutância do Poder Público em custear a terapia. Direito à saúde e à vida. Prioridade absoluta a criança e adolescentes. Arts. 196 e 227, caput, da Constituição Federal. Art. 153 da Constituição Estadual. Princípio da efetividade. Aparente conflito de normas constitucionais, prevalência da que tutela o bem jurídico mais relevante.

Mesmo considerando os limites mais extremos dos pleitos reivindicatórios, o mais importante, nestas questões ligadas à saúde, é que o Poder Judiciário tem reconhecido, na maioria das vezes, a omissão do Estado diante de suas obrigações de ordem constitucionais, dando ao paciente o devido direito diante de uma situação que se apresenta grave e séria a sua vida e sua saúde. É necessário que se assegure como direito fundamental o que toda pessoa tem consagrado como direito, e não apenas um discurso de promessas de direito.

1.4. A QUEM PERTENCE O PRONTUÁRIO?

Entende-se por prontuário médico não apenas o registro da anamnese do paciente, mas todo acervo documental padronizado, organizado e conciso, referente ao registro dos cuidados médicos prestados, assim como aos documentos pertinentes a essa assistência.

Consta de exame clínico do paciente: suas fichas de ocorrências e de prescrição terapêutica, os relatórios da enfermagem, da anestesia e da cirurgia, a ficha do registro dos resultados de exames complementares e, até mesmo, cópias de solicitação e de resultado de exames complementares.

Constituem um verdadeiro dossiê, que tanto serve para a análise da evolução da doença como para fins estatísticos que alimentam a memória do serviço e também como para a defesa do profissional, caso ele venha ser responsabilizado por algum resultado atípico ou indesejado.

Nunca admitir que o prontuário representa uma peça meramente burocrática para fins da contabilização da cobrança dos procedimentos ou das despesas hospitalares. Pensar sempre em possíveis complicações de ordem técnica, ética ou jurídica que possam eventualmente ocorrer, quando o prontuário seria um elemento de valor probante fundamental nas contestações sobre possíveis irregularidades. Um dos deveres de conduta mais cobrados pelos que avaliam um procedimento médico contestado é o dever de informar e, dentre esses, o mais arguido é o do registro dos prontuários.

Tão importante é o preenchimento correto do prontuário, que o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, através da Resolução CREMESP n.º 70/1995, criou a Comissão de Revisão de Prontuários Médicos, de caráter obrigatório, nas Unidades de Saúde onde se presta assistência médica de sua jurisdição, com tempo de mandato e processo de escolha de seus membros consignados no Regimento Interno do Corpo Clínico da instituição hospitalar.

Uma questão bem interessante: a quem pertence o prontuário? Antes pensava-se que ele pertencia ao médico assistente ou à instituição para a qual ele prestava seus serviços. Mesmo sendo o médico, indubitavelmente, o autor intelectual do dossiê por ele recolhido, é claro que este documento pertence ao paciente naquilo que é mais essencial: nas informações contidas. É de propriedade do paciente a disponibilidade permanente das informações que possam ser objeto da sua necessidade de ordem pública ou privada. Mas o médico e a instituição têm o direito de guarda.

Por outro lado, não existe nenhum dispositivo ético ou jurídico que determine ao médico ou ao diretor clínico de uma instituição de saúde entregar os originais do prontuário, de fichas de ocorrências ou de observação clínica a quem quer que seja, autoridade ou não, porque “ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

No Parecer-Consulta CFM n.º 02/1994 ficou estabelecido que as instituições de saúde não estão obrigadas a enviar, mesmo por empréstimo, os prontuários aos seus contratantes públicos ou privados e, segundo o Parecer-Consulta CFM n.º 05/1996, “o diretor clínico não pode liberar cópia de prontuários de paciente para Conselhos de Saúde, porém tem o dever de apurar quaisquer fatos comunicados, dando-lhes conhecimento de suas providências, sob pena de responsabilidade ética ou mesmo criminal”.

Nem mesmo a Justiça, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal em acórdão do Recurso Extraordinário Criminal n.º 91.218-5/SP, 2ª Turma, pode solicitar original de prontuário, pois foi decidido que a instituição ou o médico tem o direito de não atender à requisição de fichas clínicas, admitindo que apenas ao perito cabe o direito de consultá-la, mesmo assim, obrigando-o ao sigilo pericial, como forma de manter o segredo profissional (RT 562, ago. 1982, 407/425).

Em síntese, é de propriedade do paciente de forma permanente as informações que possam ser objeto da necessidade de ordem social ou de outro profissional que venha a tê-lo na sua relação, dentro da conveniência que a informação possa merecer. Do médico e da instituição, o direito de guarda.

1.5. RECEITA MÉDICA

A receita médica é parte integrante do prontuário médico e constitui-se de um documento mediante o qual indica-se uma medicação e orientam-se suas formas de administração, seja de formulação magistral (preparado artesanalmente) ou de produto industrializado. Quando essa medicação é registrada em prontuários do paciente, é chamada de prescrição médica. Ambas têm importância médica por sua relevância estatística, econômica administrativa e legal.

Podem receitar ou prescrever medicamentos os médicos e dentistas e aqueles que estejam autorizados a fazê-lo quando em programas previamente elaborados e supervisionados em que se utilizem certos e determinados remédios ou produtos medicamentosos convencionados. As receitas médicas variam de acordo com o tipo de medicamento no que diz respeito à vigilância, supervisão e controle a serem exercidos pelos estabelecimentos farmacêuticos comerciais, pelas farmácias hospitalares e pelos setores de saúde pública competentes.

A ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em relação à receita médica, leva em consideração as seguintes normas: 1. Lei n.º 5.991, de 17 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, e dá outras providências; 2. Lei n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999, que altera a Lei n.º 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária, estabelece o medicamento genérico, dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos e dá outras providências; 3. Decreto n.º 79.094, de 5 de janeiro de 1977, que Regulamenta a Lei n.º 6.360, de 23 de setembro de 1976, que submete a sistema de vigilância sanitária os medicamentos, insumos farmacêuticos, drogas, correlatos, cosméticos, produtos de higiene, saneantes e outros; 4. Portaria SVS/MS n.º 344, de 12 de maio de 1998, que aprova o Regulamento Técnico das substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial

As receitas simples ou de remédios não controlados devem conter: 1. Cabeçalho – impresso que inclui nome e endereço do profissional ou da instituição onde trabalha (clínica ou hospital); registro profissional e número de cadastro de pessoa física ou jurídica, podendo conter, ainda, a especialidade do médico. 2. Superinscrição – constituída por nome e endereço do paciente, idade, quando pertinente, e sem obrigatoriedade o uso de um símbolo representado por um “R” cortado, que para alguns seria a abreviação de (receptum = receba) e para outros uma invocação ao deus Júpiter na busca de inspiração nesse instante tão significativo). Por vezes esse símbolo é omitido, e em seu lugar anota-se “uso interno” ou “uso externo”, correspondentes ao emprego de medicamentos por vias enterais ou parenterais, respectivamente. 3. Inscrição – compreende o nome do fármaco, a forma farmacêutica e sua concentração. 4. Subscrição – designa a quantidade total a ser fornecida (em fármacos de uso controlado, essa quantidade deve ser expressa em algarismos arábicos, escritos por extenso, entre parênteses. 5. Adscrição – é composta pelas orientações do profissional para o paciente. 6. Data, assinatura e carimbo – a data deve sempre ser a da consulta. A assinatura deve constar do nome completo, embora a rubrica tenha o mesmo efeito para identificação. O carimbo não identifica o prescritor, apenas expõe o nome completo de quem subscreve a receita. O art. 35, alínea “c”, da Lei n.º 5.991, de 17 de dezembro de 1973, determina: “Somente será aviada a receita: que contém a data e a assinatura do profissional, endereço do consultório ou da residência, e o número de inscrição no respectivo Conselho profissional”. Dessa forma, não existe a exigência legal do carimbo do médico em receitas, sendo, pois, opcional a sua utilização. Sua finalidade é facilitar a leitura do nome do médico. Não devem constar do carimbo convicções pessoais do médico nem seus títulos honoríficos ou universitários. Caso seja furtado ou extraviado o carimbo, deve o médico de imediato procurar uma Delegacia de Polícia e fazer um Boletim de Ocorrência.

A entrega da receita ao paciente tem o caráter obrigatório e nela devem constar as informações mínimas necessárias para orientar o tratamento. Deve ser legível e sem rasuras. O verso da receita pode ser usado para continuação da receita ou outras recomendações que se considerem necessárias ao tratamento. A receita e a prescrição em prontuários devem ser escritas a tinta, em vernáculo, de forma clara e por extenso.

Célia Maria Dias Madruga e Eurípedes Sebastião Mendonça de Souza (Manual de orientações básicas para prescrição médica, João Pessoa: Ideia, 2009) apontam os seguintes tipos de receitas: 1. Receita de Controle Especial – utilizada para a prescrição de medicamentos à base de substâncias constantes das listas “C1” (outras substâncias sujeitas a controle especial), “C2” (retinoicas para uso tópico) e “C5” (anabolizantes). O formulário é válido em todo o território nacional, devendo ser preenchido em duas vias. Terá validade de 30 dias a partir da data de emissão. A prescrição poderá conter, em cada receita, três substâncias da lista “C1” e de suas atualizações. A quantidade prescrita de cada substância da lista “C1”, “C5” e suas atualizações é de cinco ampolas, e, para as outras formas farmacêuticas, a quantidade refere-se a 60 dias de tratamento. 2. Receita Azul ou Receita B – é um impresso, padronizado, na cor azul, utilizado na prescrição de medicamentos que contenham substâncias psicotrópicas – listas B1 e B2 e suas atualizações constantes na Portaria SVS/MS n.º 344/1998. Terá validade por 30 dias, a partir de sua emissão, e com validade apenas na unidade federativa que concedeu a numeração. Poderá conter cinco ampolas. Para as demais formas farmacêuticas o tratamento será correspondente a 60 dias. 3. Receita Amarela ou Receita A – é um impresso, na cor amarela, para a prescrição dos medicamentos das listas A1 e A2 (entorpecentes) e A3 (psicotrópicos). Poderá conter somente um produto farmacêutico. Será válida por 30 dias, a contar da data de sua emissão, em todo o território nacional. As notificações de Receita “A”, quando para aquisição em outra unidade federativa, exige-se que sejam acompanhadas de receita médica com justificativa de uso. E as farmácias, por sua vez, ficarão obrigadas a apresentá-las, dentro do prazo de 72 horas, à Autoridade Sanitária local, para averiguação e visto. 4. Receita Especial de Retinoides – lista C2 (retinoides de uso sistêmicos), com validade por um período de 30 dias e somente dentro da unidade federativa que concedeu a numeração. Poderá conter cinco ampolas. Para as demais formas farmacêuticas, a quantidade para o tratamento corresponderá no máximo a 30 dias a partir da sua emissão. 5. Receita Especial para Talidomida – lista C3, tratamento para 30 dias; validade de 15 dias. 6. Receita de Substâncias antirretrovirais – lista C4. Formulário próprio, estabelecido pelo programa de DST/AIDS.

Há ainda a Receita Renovável, que é um modelo criado para atender os doentes crônicos. Seu sentido é evitar que o paciente tenha que se deslocar com frequência aos centros de saúde e hospitais para obtenção exclusiva de receitas. Deve ser utilizada de com cuidado, levando em conta certos requisitos.

O talão de Notificação de Receita “A” é distribuído gratuitamente ao profissional do Hospital, Clínica ou autônomo, pela Autoridade Sanitária Estadual ou Municipal. Para solicitar o talão de Notificação de Receita “A” ou retirar a numeração para imprimir os blocos de Notificação de Receita “B” ou a de Retinoides de Uso Sistêmico, o profissional deverá dirigir-se pessoalmente à Autoridade Sanitária local munido de: Carteira do CRM e documentos que indiquem sua residência.

No caso de o profissional não ter disponibilidade para comparecer pessoalmente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), poderá solicitar a retirada da ficha cadastral, talão e/ou numeração, por pessoa de sua confiança, e para tal deverá autorizá-la por escrito no receituário comum do profissional, anexando cópia da documentação: Carteira do CRM e documento que indique sua residência ou domicílio.

1.6. O CONSENTIMENTO DO PACIENTE

Com o avanço cada dia mais eloquente dos direitos humanos, o ato médico só alcança sua verdadeira dimensão e o seu incontrastável destino com a obtenção do consentimento do paciente ou de seus responsáveis legais. Assim, em tese, todo procedimento profissional nesse particular necessita de uma autorização prévia. Isso atende ao princípio da autonomia ou da liberdade, pelo qual todo indivíduo tem por consagrado o direito de ser autor do seu próprio destino e de optar pelo caminho que quer dar a sua vida.

Desse modo, a ausência desse requisito pode caracterizar infrações aos ditames da Ética Médica, a não ser em delicadas situações confirmadas por iminente perigo de vida.

Além disso, exige-se não só o consentimento puro e simples, mas o consentimento esclarecido. Entende-se como tal o consentimento obtido de um indivíduo capaz civilmente e apto para entender e considerar razoavelmente uma proposta ou uma consulta, isenta de coação, influência ou indução. Não pode ser colhido através de uma simples assinatura ou de leitura apressada em textos minúsculos de formulários a caminho das salas de operação. Mas por meio de linguagem acessível ao seu nível de conhecimento e compreensão (princípio da informação adequada).

O esclarecimento não pode ter um caráter estritamente técnico em torno de detalhes de uma enfermidade ou de uma conduta. A linguagem própria dos técnicos deve ser decodificada para o leigo, se não ele tende a interpretações duvidosas e temerárias. É correto dizer ao doente não só os resultados normais, senão ainda os riscos que determinada intervenção pode trazer, sem, contudo, a minuciosidade dos detalhes mais excepcionais. É certo que o prognóstico mais grave pode ser perfeitamente analisado e omitido em cada caso, embora não o seja à família.

Deve-se levar em conta, por isso, o “paciente-padrão razoável” – aquele para quem a informação é capaz de ser entendida e que possa satisfazer as expectativas de outros pacientes de mesmas condições socioeconômico-culturais. Não há necessidade que essas informações sejam tecnicamente detalhadas e minuciosas. Apenas que sejam corretas, honestas, compreensíveis e legitimamente aproximadas da verdade que se quer informar. O consentimento presumido é discutível. Se o paciente não pode falar por si ou é incapaz de entender o ato que se vai executar, estará o médico obrigado a conseguir o consentimento de seus responsáveis legais (consentimento substituto). Deverá saber também o que é representante legal, pois nem toda espécie de parentesco qualifica um indivíduo como tal.

Deve-se considerar ainda que a capacidade de o indivíduo consentir não tem a mesma proporção entre a norma ética e a norma jurídica. A reflexão sobre o prisma ético não apresenta a inflexibilidade da lei, pois certas decisões, mesmo as de indivíduos considerados civilmente incapazes, devem ser respeitadas, principalmente quando se avalia cada situação de per si. Assim, por exemplo, os portadores de transtornos mentais, mesmo legalmente incapazes, não devem ser declarados isentos de sua capacidade de decidir.

Registre-se ainda que o primeiro consentimento (consentimento primário) não exclui a necessidade de consentimentos secundários ou continuados. Desse modo, por exemplo, um paciente que permite seu internamento num hospital não está com isso autorizando o uso de qualquer meio de tratamento ou de qualquer conduta.

Sempre que houver mudanças significativas nos procedimentos terapêuticos, deve-se obter o consentimento continuado (princípio da temporalidade), porque ele foi dado em relação a determinadas circunstâncias de tempo e de situações. Por tais razões, certos termos de responsabilidade exigidos no momento da internação por alguns hospitais, onde o paciente ou seus familiares atestam anuência aos riscos dos procedimentos que venham a ser realizados durante sua permanência nosocomial, não têm nenhum valor ético ou legal. E se tal documento foi exigido como condição imposta para o internamento, numa hora tão grave e desesperada, até que se prove o contrário, isso é uma forma indisfarçável de coação.

Admite-se também que, em qualquer momento da relação profissional, o paciente tem o direito de não mais consentir uma determinada prática ou conduta, mesmo já consentida por escrito, revogando assim a permissão outorgada (princípio da revogabilidade). O consentimento não é um ato imutável e permanente. E ao paciente não se pode imputar qualquer infração ética ou legal.

Por outro lado, há situações em que, mesmo existindo a permissão tácita ou expressa e consciente, não se justifica o ato permitido, pois a norma ética ou jurídica pode impor-se a essa vontade, e a autorização, mesmo escrita, não outorgaria esse consentimento. Nesses casos, quem legitima o ato médico é a sua indiscutível necessidade e não a simples permissão (princípio da não maleficência).

O mesmo se diga quando o paciente nega autorização diante de uma imperiosa e inadiável necessidade do ato médico salvador, frente a um iminente perigo de vida. Nesse caso estaria justificado o tratamento arbitrário, onde não se argui a antijuridicidade do constrangimento ilegal nem se pode exigir um consentimento. Diz o bom senso que, em situações dessa ordem, em que o tratamento é indispensável e inadiável, estando o próprio interesse do doente em jogo, deve o médico realizar, com meios moderados, aquilo que aconselha sua consciência e o que é melhor para o paciente (princípio da beneficência).

O consentimento do enfermo, portanto, só é considerado irrelevante quando diante de uma necessidade imperiosa e inadiável do ato médico salvador, ou quando frente a um iminente perigo de vida haja objeção do periclitante ou de seus familiares. Estaria aí justificado o tratamento arbitrário, quando não se argui a antijuridicidade do constrangimento ilegal nem se exigem maiores consentimentos.

Qual seria a conduta de um cirurgião que descobre, no transcorrer de uma operação, uma lesão mais grave ou diferente daquela prevista, e que exige uma intervenção mais complexa ou diversa da previamente estabelecida? Deve suspender a cirurgia e só continuá-la com o consentimento do paciente?

Diz o bom senso que, em casos dessa natureza, em que o tratamento é indispensável ou inadiável, estando o próprio interesse do paciente em jogo, deve o médico realizar tudo aquilo que sua ciência e sua consciência impõem. O mal deve ser remediado sem demora. A iniciativa do médico, em tais instantes, só deve considerar o seu próprio entendimento.

Outro fato: os termos de responsabilidade assinados pelos pacientes nas chamadas “altas a pedido” só têm valor se essa alta não implica graves prejuízos à vida ou à saúde do paciente. Caso contrário, comete-se simplesmente omissão de socorro.

Raro é o hospital atualmente que não exige dos familiares um termo de autorização para, em caso de morte do enfermo, realizar a necropsia clínica. Esse documento só terá valor se ratificado posteriormente pelos parentes ou quando os mesmos não são encontrados logo após o óbito. Caso esses familiares não mais permitam o exame, devem-se respeitar seus sentimentos. Um documento dessa natureza, obtido na hora desesperada e difícil de um internamento, até que se prove o contrário é uma forma indisfarçável de coação. Dificilmente se poderia dar algum valor moral ou jurídico a um documento desse jaez.

Um tribunal de Marselha atribuiu responsabilidade civil à conduta hospitalar que deu margem a que um internado se enforcasse, mesmo havendo uma declaração por escrito dos seus familiares, escusando toda e qualquer culpa por danos possíveis ao paciente. Ao internar o doente, sua esposa declarara por escrito isentar a clínica de toda responsabilidade “au case ou il se livrerait sur lui ou sur les autres à des actes de violence”. O Tribunal não aceitou essa cláusula de não responsabilidade, considerando-a “nulle comme contraire à l’ordre publique” (PONDÉ, Lafayette. “Responsabilidade Civil dos Médicos”, in Revista Forense, n.º 191, 687/688: 30-36 set./out. 1963).

1.7. A VELHA E A NOVA ÉTICA MÉDICA

A Medicina permaneceu por longo tempo no chamado período hipocrático, prisioneira dos rigores da tradição e das influências religiosas. Tal postura respondia a um modelo calcado no Corpus Hipocraticum, constituído de um elenco de normas morais imposto pelos mestres de Cós. A virtude e a prudência eram as vigas mestras desta escola.

Estes postulados, é claro, colocavam o médico muito mais perto da cortesia e da caridade que de um profissional que enfrenta no seu dia a dia uma avalanche medonha de situações muito complexas e desafiadoras. Nesta época prevalecia o princípio de que antes de tudo se deveria provar que o médico era um bom homem.

A ética do médico sempre foi inspirada na teoria das virtudes, base de todo corpo hipocrático, realçado de forma bem especial no Juramento. A prudência era a virtude mais exaltada. Antes, como a doença era colocada em nível de castigo, era comum se perguntar se cabia aos médios se opor a tais desígnios.

Hipócrates fez esta separação: “Proponho tratar a enfermidade chamada sagrada – a epilepsia. Em minha opinião não é mais sagrada que outras doenças, senão que obedece a uma causa natural, e sua suposta origem divina está radicada na ignorância dos homens e no assombro que produz peculiar caráter”, dizia ele em tom grave e solene.

O Gênio de Cós conduzia a medicina dentro de um alto conceito ético. O diagnóstico deixava de ser uma inspiração divina para constituir um juízo sereno e um processo lógico, dependendo da observação cuidadosa dos sinais e sintomas. Era a morte da medicina mágica e o nascimento da medicina clínica.

Foi em Juramento que a doutrina hipocrática logrou maior relevo e maior transcendência. Mesmo não se assentando em fundamentos jurídicos, seu postulado ético-moral continua sendo lembrado pelo seu conteúdo dogmático que faz da medicina merecedora do aplauso e da consagração que o tempo não conseguiu destruir.

É neste instante de tantas conquistas e de tantas mudanças que sempre se invoca o sentimento moralizador e purificador do Mestre, sintetizado na sua lapidar sentença: “Conservarei puras minha vida e minha arte”.

Na verdade, somente a partir do século XV é que surgiu uma ideia mais precisa de uma deontologia (deveres e obrigações) médica orientada no sentido coletivo e social, sem no entanto se desvincular da fonte hipocrática. Somente no século passado este sistema começou a entrar em crise, principalmente quando se intensificaram as demandas judiciais contra os médicos e instituições de saúde.

A medicina vem enfrentando situações novas que as fórmulas tradicionais nem sempre lhe proporcionam a segurança de uma tomada de posição consentânea. Os aspectos da moral médica no cotidiano e a responsabilidade do médico ante o indivíduo e a sociedade estruturam-se de acordo com uma necessidade que está em constante evolução.

À medida que a medicina avança em suas conquistas e investigações, maior se torna o risco desse desenvolvimento. Longe de se diluir ou atenuar a significação da ética, faz-se ela doravante mais mister do que nunca.

A ética do médico, principalmente nestes últimos trinta anos, vem assumindo dimensões políticas, sociais e econômicas bem distintas das de antigamente. Muitos acreditam que os movimentos sociais tiveram certa influência nesta mudança, quando encamparam algumas posições em favor do aborto, da eutanásia e da reprodução assistida.

Presume-se que a partir da metade do século passado a profissão médica começou a perder os vínculos com a ética clássica e seu “paternalismo” foi perdendo força, pois sua autonomia cedia espaço para outras profissões da área da saúde. Neste instante houve uma corrida no sentido de estabelecer espaços demarcados, para alguns, como uma forma de proteção corporativa.

Uma parcela da sociedade já entende que a maior desgraça de um paciente é cair nas mãos de um médico inepto, e que de nada lhe serviram a compaixão, o afeto e a tolerância sem o lastro científico. O primeiro dever do médico para essas pessoas seria a habilidade e a atualização dos seus conhecimentos junto aos avanços de sua ciência. Todavia, é elementar que a medicina não pode se resumir a simples condição técnica, apesar dos excelentes e vertiginosos triunfos, pois é em verdade uma atividade inspirada em valores ditados por uma tradição que, embora distante, conserva-se na mente de todo médico.

Nos anos 80 do século passado, foi-se vendo que a relação médico-paciente-sociedade deveria se fazer através de princípios, e onde cada caso deveria ser tratado de forma própria. A partir daí o discurso médico tradicional sofreu uma mudança bem significativa e foi se transformando pouco a pouco, premido pelas exigências do conjunto da sociedade, com acentuada conotação econômica e social.

Assim, a ética médica contemporânea vai se ajustando pouco a pouco às ânsias da sociedade e não responde tanto às imposições da moralidade histórica da medicina. Tem mais significação nos dilemas e nos reclamos de uma moralidade fora de sua tradição. A ética fundada na moralidade interna passa a ter um sentido secundário.

Por isso, o grande desafio atual é estabelecer um padrão de relação que concilie a teoria e a prática, tendo em vista que os princípios ético-morais do médico são muito abstratos e as necessidades mais prementes dos seres humanos são prementes e práticas. O ideal seria conciliar sua reflexão filosófica com as exigências emergentes do dia a dia.

O conceito que se passa a ter de ética na hora atual, portanto, tem um sentido de se adaptar a um modelo de profissionalização que vai sendo ditado por outras pessoas não médicas. Este novo conceito de ética no contexto de cuidado médico vai se aproximando de outro modelo de ética, onde a preocupação por problemas morais complementam-se fora da medicina. O rumo da ética do médico será ajustar e supervisionar o ato profissional dentro de um espaço delimitado pelos valores sociais e culturais que a sociedade admite e necessita.

Daí, a pergunta: como conviver com a realidade diária da medicina e a reflexão filosófica que se tem de uma perspectiva teórica de ética médica? O primeiro passo é analisar os diversos contextos onde se exerce a prática médica a partir de uma compreensão da moralidade interna da profissão. Estas normas internas não devem ser desvalorizadas, mas avaliadas caso a caso.

O segundo passo é interpretar a reações que surgem da moralidade externa, tendo como referência os valores, atitudes e comportamento da própria comunidade frente a cada projeto colocado em favor da vida e da saúde das pessoas. Entre estes valores estão a doença, a invalidez, o morrer com dignidade e a garantia dos níveis de saúde.

De 1970 a 1980, houve uma grande modificação no sentido de entender a ética do médico dentro do conjunto das necessidades da profissão e das exigências contemporâneas. Surgiu a ética dos princípios, trazida pelos bioeticistas, oriundos de outras tantas atividades não médicas. É claro que houve um sobressalto medonho entre os estudiosos da deontologia médica clássica.

Tudo começou quando o conhecimento médico foi invadido por uma enorme avalanche de dilemas éticos e morais advindos da biotecnologia. Era difícil não aceitar os formidáveis acenos das técnicas modernas capazes de favorecer o transplante de órgãos, a reprodução assistida e a terapia gênica. Por outro lado, a sociedade tornava-se mais e mais permissiva a certos modelos que se incorporavam aos seus costumes e necessidades.

O fato é que os filósofos antigos que tinham tomado a medicina como exemplo prático da moral e que tiveram reduzidas suas influências pelo juízo hipocrático voltaram triunfantes com o advento da Bioética, batizada em 1972 e tantas vezes sacramentada na hora atual.

Daí em diante as salas de aula dos filósofos e moralistas passaram a ser ocupadas por temas como anencefalia, pacientes terminais e transplantes de órgãos. Disso resultou se perguntar: o que exatamente têm os bioeticistas a oferecer em tais contextos? Muitos acham que eles podem trazer para o centro destas discussões uma reflexão mais neutra sobre os problemas enfrentados num hospital ou clínica médica. Mas seria certo dizer que de uma discussão em matéria filosófica sempre surgem resultados valiosos em situações práticas da medicina?

Passados os primeiros instantes de euforia e de perplexão – quando os filósofos e moralistas incursionaram livremente pelas questões da ética profissional dos médicos, sob o manto desta nova ordem chamada Bioética –, acredita-se ter chegado a hora de se analisar e refletir sobre alguns dos aspectos oriundos desta experiência.

Antes de tudo é bom que se diga que não temos nada contra alguém que fale sobre temas ligados à vida e à saúde, principalmente quando se sabe que as teorias dos filósofos da moral podem exaltar os valores que vivem no mundo interior de cada médico, porque o filósofo “pensa e age de acordo com o ser dos homens”. Porém, é preciso entender como eles poderiam influenciar na forma de decidir quando diante de dramáticas situações, notadamente numa profissão de regras tão técnicas e racionais, onde se “age e se pensa de acordo com o ser das coisas”. E mais: é da essência do filósofo criar mais problemas que soluções.

A partir dos anos setenta, a ética médica tradicional foi influenciada pela chamada teoria de princípios, onde se preconizavam a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a equidade, sempre se baseando no raciocínio de que, se um ato tem consequência boa e está ajustado a uma regra, ele é por consequência um ato eticamente recomendável.

De início, esta proposta foi discretamente aceita em virtude de não existir, à primeira vista, algo que se conflitasse com as teses deontológicas da velha teoria das virtudes. No entanto, esta teoria foi demonstrando na prática que não era suficiente para responder a muitas indagações de ordem mais pragmática, as quais exigiam respostas iminentes como, por exemplo, o aborto, a eutanásia e o descarte de embriões congelados, assuntos esses que os “principialistas” divergem abertamente. A maior falha deste sistema é a não fixação de uma hierarquia em seus princípios. Isto, justiça se faça, não quer dizer que a Bioética deixe de ser um espaço a mais para uma ampla e participativa discussão sobre temas em torno das condições de vida e do meio ambiente.

Esta doutrina hoje tem muitos adeptos em face do prestígio e da mobilização dos iniciados na Bioética, os quais vêm passando aos mais jovens seus conceitos como proposta de solução para os problemas éticos do dia a dia. Todavia, seus defensores, conhecendo as limitações dessas ideias, principalmente pela inexistência de uma base moral mais convincente, começam a defender a justificativa de que “não há princípios morais inflexíveis e que cada um deve condicionar sua postura de acordo com as nuanças de cada caso em particular”.

Hoje, pode-se dizer que iniciamos um novo período, chamado de antiprincipialista, e a justificativa moral é de que aqueles princípios se conflitam entre si, criando-se uma disputa acirrada pela hierarquia deles. Diz-se, entre outros, que aqueles princípios são insuficientes para satisfazer as necessidades dos dias de hoje e para trazer respostas aos desafios do exercício da medicina atual. Outros afirmam ainda que esses princípios são por demais abstratos e distantes das situações que se apresentam na prática do dia a dia do médico. Quando os principialistas discutem entre si, tem-se a impressão que os caminhos da ética são muitos e são diferentes.

Na verdade, o grande risco no futuro é que as profissões da saúde afastem-se de seu modelo de ciência e arte a serviço da vida individual e coletiva e passe a manipular substancialmente o homem. O progresso assombroso das ciências genéticas, por exemplo, cria essa possibilidade quando se procura selecionar o tipo de homem que desejamos. O eugenismo moderno já existe se não como uma ideologia coletiva, mas como legitimação de um eugenismo familiar quando se apregoa, por exemplo, o aborto dito eugenésico.

A verdade é que o médico vem se estruturando dentro de certas situações difíceis, onde os princípios mais tradicionais nem sempre lhe asseguram a certeza de uma correta tomada de posição. Vão se estruturando de acordo com uma necessidade que sempre está em franca evolução.

Mesmo que ele disponha de sua própria consciência, sob a inspiração de uma tradição milenar, não pode ele ficar indiferente a tudo isto que se verifica em seu redor. Tem-se a impressão que a ciência e a arte começam a fugir do seu domínio, num verdadeiro conflito de obrigações e deveres.

Enfim, não se sabe o que será possível realizar a medicina com seus poderosos computadores quase infalíveis. Não se pode imaginar o destino da arte médica nesses anos vindouros em matéria de sofisticação e recursos. Sabe-se apenas que já se iniciou a era dos grandes conflitos, desafiadores e terrivelmente confusos, a abrir veredas sombrias e duvidosas, e que há um frenesi e uma ansiedade neste exato momento de tumultuosas mudanças.

1.8. OS DIREITOS DO PERICIANDO

Aquele que se apresenta à perícia ou está sendo examinado tem, como todo cidadão, assegurados pela Constituição Federal seus direitos individuais e coletivos, sem distinção de qualquer natureza. Entre tantos, o que está expresso em seu artigo 5.º, inciso II: “ninguém está obrigado a fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Isso também se aplica a quem está sendo submetido à perícia quando envolve a sua própria pessoa na dimensão física ou moral que merece. Portanto, cabe ao investigando decidir sobre certas circunstâncias quando submetido a determinados testes ou exames, certo também que arcará com o ônus decorrente da sua negativa.

Mesmo cuidando-se de matéria de ordem criminal, onde sempre se assinala o interesse público preponderando em detrimento do particular, ainda assim mantém-se o direito individual, porque todo interesse coletivo começa pelo respeito a um indivíduo.

Assim, por exemplo, no processo penal (matéria de direito público), está pontificado que a descoberta da verdade jamais ultrapassará limites da decência do réu, que tem o direito de ficar calado, de se omitir à verdade e até de se recusar à participação da prova, sem que isso seja interpretado como prejuízo à sua defesa ou como confissão de culpa.

Se fosse diferente, ou seja, se a busca da verdade fosse irrestrita, sem barreiras, submetendo-se os examinandos a todas as formas de coações e violações quando submetidos às perícias, certamente voltaríamos à época da Inquisição. Aqui não cabe o jargão de que “os fins justificam os meios”, princípio despótico baseado nos modelos fascistas, que não encontram mais guarida em solo democrático.

Eis alguns dos seus direitos:

1. Recusar o exame no todo ou em parte. O periciando, ao manifestar a recusa de se submeter ao exame ou parte dele, não estaria cometendo o crime de desobediência, tampouco arcando com as duras consequências da confissão ficta; a uma, pela total falta de amparo legal que possa tipificá-lo no delito mencionado; a duas, porque ninguém, por autoridade que seja, poderia obrigar a alguém a submeter-se a um exame.

2. Ter conhecimento dos objetivos das perícias e dos exames. A informação é um pressuposto ou requisito prévio do “consentimiento livre e esclarecido”. É necessário que o examinando dê seu consentimento sempre de forma livre e consciente e que as informações sejam acessíveis aos seus conhecimentos para evitar a compreensão defeituosa, principalmente quando a situação é complexa e difícil de avaliar (princípio da informação adequada).

3. Ser submetido a exame em condições higiênicas e por meios adequados. Nada mais justo do que ser examinado, independentemente de sua condição de periciando, dentro de um ambiente recatado, higiênico e dotado das condições mínimas do exercício do ato pericial. Fora dessas condições, além do comprometimento da qualidade do atendimento prestado, há um evidente desrespeito à dignidade humana. Não é de hoje que se pede à administração pública pertinente a melhoria dos equipamentos, insumos básicos e recursos humanos para a efetiva prática da perícia nas instituições médico-periciais. Essa realidade vem contribuindo para justificar a má prática pericial médica e o descaso que se tem com a pessoa do examinando.

4. Ser examinado em clima de respeito e confiança. Mesmo para aqueles que cometerem ou são suspeitos de práticas de delitos, qualquer que seja sua gravidade ou intensidade, o exame legispericial deve ser procedido em um ambiente de respeito e sem a censura que possa causar a quem os examina. Se o periciando é a vítima, com muito mais razão.

5. Rejeitar determinado examinador. O examinando não tem o direito de escolher determinado examinador, mas pode, por qualquer razão apontada, ou mesmo sem explicar os motivos, rejeitar determinado examinador, por suspeição ou impedimento, ou mesmo por questões de ordem pessoal que podem ir desde a inimizade até mesmo a amizade próxima.

6. Ter suas confidências respeitadas. Certas confidências contadas pelo periciando, cujas confirmações eles não queiram ver registradas, podem ser omitidas, desde que isso não venha comprometer o exame cuja verdade deve ser apurada, algumas delas até em seu próprio favor.

7. Exigir privacidade no exame. O exame do periciando sempre deve ser realizado respeitando sua privacidade, evitando-se a presença de pessoas estranhas ao feito. Quando se tratar de estagiários, residentes ou estudantes, deve-se pedir a autorização do examinando, respeitando sempre seu pudor e permitindo a presença de pequenos grupos. Caso queira o examinando a presença de algum parente ou pessoa de sua intimidade e confiança, isso não compromete a privacidade exigida.

8. Rejeitar a presença de peritos do mesmo gênero. Esta é outra questão que se apresenta como justa e razoável. É o respeito ao pudor do examinando, seja ele homem ou mulher, atender ao pedido na escolha de um perito do seu gênero.

9. Ter um médico de sua confiança como observador durante o exame pericial. Mesmo que na fase da produção da prova ainda não seja a oportunidade de indicação do assistente técnico, não vemos nenhum óbice justificável para se impedir a presença de um médico da confiança do examinando durante a perícia, seja em um exame de lesão corporal, necropsia ou exumação.

Como se sabe, agora é facultada ao Ministério Público e às partes a indicação de assistentes técnicos durante o curso do processo judicial, que poderão apresentar seus pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência. Quando ainda no Inquérito Policial, na produção de provas, esse médico não teria as prerrogativas elencadas na Lei n.º 11.690, de 9 de junho de 2008, que altera o artigo 159 do Código de Processo Penal. Trata-se apenas de uma forma de segurança que tranquiliza o periciando ao ser examinado pela perícia oficial. Isto não é desdouro ou ofensa à credibilidade do órgão periciador, muito menos a quem o examina.

10. Exigir a presença ou a ausência de familiares e advogados durante os exames. Quanto à presença de um familiar durante o exame pericial, tudo faz crer não existir qualquer rejeição, principalmente quando isso se verifica a pedido do examinando. Todavia, no tocante à presença de um advogado, a questão é muito controvertida.

Mesmo assim, entendemos que a Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, em seu Capítulo II – Dos Direitos do Advogado, artigo 7.º, diz em seu inciso VI, letra “c”, que são direitos do advogado “ingressar livremente em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado”.

Para tanto, seria necessário que o advogado, devidamente habilitado naquela ação, se essa é a vontade do seu assistido, não lhe cause constrangimento, desde que o advogado entenda que o perito necessita exercer suas atividades com total liberdade e independência, que não pode ter participação ativa, e sim discreta e sem causar confrontos. Isto amplia a lisura e a transparência dos atos do inquérito ou do processo.

1.9. A ÉTICA NO DIREITO

Tem-se perguntado atualmente, nas questões ligadas à Bioética, se tudo cientificamente possível deva ser considerado eticamente aceitável. E se apenas as regras elaboradas a partir da moral vigente e do direito positivo são capazes de garantir ao homem o uso correto da tecnologia mais moderna.

Assim, não é inusitado dizer-se que já nos defrontamos com alguns problemas, muitos deles sem resposta imediata, como a comercialização de estruturas humanas, a intervenção fetal por desordens genéticas graves, o uso de células humanas em pesquisas ligadas à reprodução humana, a criopreservação de embriões e seus destinos após a utilização de um deles em determinada reprodução assistida, a criação de animais transgênicos para possíveis operações de transplantes no futuro, a clonagem humana.

A verdade é que as ciências da natureza são neutras para o mundo dos valores, cabendo, por isso, à nossa consciência saber distinguir o que interessa ou não interessa ao futuro da humanidade. Quando assistimos aos formidáveis resultados que a nova tecnologia traz, temos de reformular algumas condutas no mundo do comportamento dos que manipulam biologicamente.

Dentre os direitos que o homem tem de não ser biologicamente manipulado, não é só aquele que lhe assegura a Constituição no que diz respeito à sua integridade física e moral, mas a proteção incondicional que ele tem de não ser invadido na sua intimidade biológica.

Ainda que as ciências biológicas constituam um setor do conhecimento que está em permanente evolução e que toda humanidade dependa dessas conquistas, isso não torna obrigatória nossa sujeição ao que sistematicamente possa ser determinado. Esse tipo de proteção não deve ser apenas a cada indivíduo isoladamente, mas acima de tudo aos interesses ético-políticos que protejam o conjunto da sociedade.

Desde logo fique bem claro que ninguém de bom senso pode ser contra qualquer alternativa séria em favor das melhorias da vida e da saúde das pessoas e das comunidades, principalmente quando se sabe que parte da nossa população sofre de todas as injustiças. O perigo está no uso inadequado que certas tecnologias poderão causar, e cujos resultados, além de tudo, possam ultrajar a dignidade humana.

No futuro, certamente, muitas serão as situações que vão exigir do Direito respostas e soluções legais em assuntos cada vez mais intricados no campo da biotecnologia. Mesmo sabendo que algumas dessas ocorrências são recentes e que existe uma tradição na ordenação jurídica do nosso país de aceitar o que as ciências ditam, há de existir um mecanismo pelo qual eticamente as pessoas sejam protegidas. Não podemos aceitar a proposta de que se venha legislar a partir de uma neutralidade displicente, mas sobre o que advém das necessidades mais emergentes da população.

O legislador, no que se refere a muitas questões referentes à Biologia, necessita de fundamentos bioéticos precisos quando da redação das leis, evitando assim que se criem os “tribunais paralelos” agindo em interesses não tão bem explicados.

Sob outro ângulo, é muito importante que a sociedade continue vigilante e organizada, para não só saber os critérios e as pessoas envolvidas num ou noutro projeto, mas quem controlará o manipulador. Ninguém pode apenas aceitar o discurso de que os projetos de manipulação sejam tratados por regras específicas e rigorosas. É preciso entender cada vez mais que a boa qualidade da lei depende muito da opinião pública e da participação efetiva de todos como forma de obter uma norma purificada. Nunca esquecer que dessa participação dependem a sorte das liberdades individuais e o nosso próprio destino como espécie.

A inserção dos Códigos de Ética na prática médica brasileira sempre foi inspirada na tradição da medicina ocidental, que tem no Juramento sua sustentação e o seu ideário. Qualquer que seja sua versão ou a sua estrutura, paternalista (1945), humanitarista (1953), paternalista-humanitário (1965), autoritarista (1984) ou humanitarista-solidário (1988 e 2009), eles não fogem dos padrões hipocráticos, centralizados num compromisso que não deixe sufocar o frêmito da sensibilidade da velha Escola de Cós.

Mesmo que as Declarações de Princípios e os Códigos internacionais, vazados em termos seculares, venham contribuindo no ajustamento das questões mais recentes, o “pensamento hipocrático”, muito mais um compromisso dos alunos com os mestres de Cós, tem dominado com seu alto conteúdo ético, permanecendo como a viga mestra de todo substrato dogmático que conduz a medicina e o médico, a ponto de merecer o respeito e a consagração que a tecnologia hodierna não consegue destruir.

Isto não quer dizer que, vivendo numa sociedade pluralista, apenas os médicos, através do seu compromisso profissional ou histórico, venham a contribuir para a formulação de regras éticas em suas atividades. Os próprios médicos reconhecem hoje a importância e a necessidade da contribuição que a sociedade como um todo venha dar às questões cujas diretrizes e valores estão em jogo na relação cada vez mais trágica entre o médico e o paciente, principalmente com ênfase ao que se chama de “direitos dos doentes”. Tal fato está claramente evidenciado dentro de uma concepção que agora é chamada de “Bioética”. Essa concepção fez com que, no atual Código de Ética, a base dos deveres do paciente não seja mais pelo fato de ele ser doente, mas pela sua condição de ser humano. Nisso aí, houve um notável avanço na relação entre o médico e o paciente, como quem assume um compromisso mais sério em querer transformar a sociedade.

Não poderia ser diferente, pois este atual Código de Ética foi elaborado exatamente no momento em que se verificava a reestruturação da sociedade civil brasileira, após um penoso e demorado período de ditadura, e quando o desejo de todos era alcançar os pressupostos básicos de um pleno estado de direito e de uma democracia representativa.

1.10. FUNDAMENTOS DE UM CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

Se o refúgio do médico, na sua desesperada solidão, é tantas vezes o seu Código de Ética, ele não pode ser apenas um elemento de normas a partir da prática médica, dos costumes e das ideias, se não ele seria uma coisa neutra e estéril, acomodada e formalista. Este Código só será o refúgio de sua angústia e o norte da sua decisão se nele existirem novas concepções para os grandes desafios daquilo que deve ser feito em favor da sociedade e do homem, neste exato momento de tumultuosos confrontos.

Isto não afasta o caráter científico da medicina: contribuir para mudanças de uma estrutura social injusta e perversa. Ao contrário, quanto mais científica torna-se a medicina, mais ela se socializa pela maior abrangência de suas práticas e de seus métodos. Para se conquistar a saúde não é preciso apenas modificar a relação entre o homem e a natureza, senão também contribuir na mudança das relações sociais. E é neste momento que um Código de Ética pode reestruturar e redefinir valores, fazendo com que os médicos e as pessoas em geral exijam e lutem por isso.

Há algum tempo atrás, pontificava na elaboração de um Código desta natureza a simples ordenação de regras corporativas, quando os grupos mais elitizados de cada categoria imprimiam a filosofia e a tendência de sua aplicação. Atualmente, espera-se que esses estatutos ganhem mais espaço e liberdade, no sentido de não enfocar a relação do profissional com o seu assistido como uma simples conquista do corporativismo. Não há nenhum exagero em dizer-se que há motivos políticos e sociais que começam a reclamar dos profissionais uma posição mais coerente com a realidade que se vive. Assim, um Código de Ética que não for sensível às necessidades de conciliar seus fundamentos com a prática profissional digna, em favor dos pacientes e da coletividade, é um mau Código.

1.11. A ESTRUTURA DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA ATUAL

A bem da verdade, como já se esperava, não houve nenhuma mudança na estrutura doutrinária ou filosófica no novo Código de Ética Médica agora em vigor. Até porque o Código revogado guarda inteira consonância com a realidade do exercício profissional médico que se vive.

Deve-se reformular um Código, seja ele de que área profissional for, quando existam notáveis e profundas mudanças no modo de pensar e agir de uma categoria e que as normas antigas tragam empecilhos e conflitos com o exercício daquela profissão ou para a devida interpretação dos Tribunais Regionais e Superior de Ética, quando da avaliação das infrações cometidas pelos profissionais no seu exercício profissional. Assim se dá com os demais Códigos que normatizam a vida em sociedade.

Outro fato: nunca ceder a determinados impulsos políticos, ideológicos ou corporativistas na elaboração e sistematização de normas éticas, mas sempre naquilo que é fundamentado no complexo de deveres e direitos exigido do pelo ideário que sempre conduziu a medicina em favor do ser humano.

A preocupação de conceituar e estabelecer limites no chamado ato médico, por exemplo, é sem dúvida uma tendência corporativista que elitiza a profissão e afasta os demais profissionais da área sanitária, no momento em que os conceitos mais modernos do agir em saúde, individual ou coletiva, passam a ser uma proposta baseada na multidisciplinaridade e na noção de saúde integral.

Outra coisa: não legislar urbi et orbi. Ter em conta que as regras éticas, mesmo se situando numa zona fronteiriça com as normas jurídicas, as decisões dos Conselhos não podem exagerar em suas decisões extrapolando ou inovando o ordenamento jurídico, ferindo o princípio da legalidade.

Do Código de Ética Médica de 1984 para o Código de 1988, mesmo em tão pouco tempo, houve a necessidade de uma profunda mudança: passando de um código autoritarista para um código humanitarista e solidário. Havia imperativos de uma mudança, substantiva, de qualidade e em razão dos tempos que se viveu e se passava a aspirar num estado democrático e de direito.

Não se culpe o Código de 1988 pelas incertezas e divergências das decisões e das interpretações nos julgamentos dos Conselhos, pois tal reparo se faz muito mais a partir do aprimoramento da prática judicante e da discussão e do aprendizado doutrinário de temas e circunstâncias, através do debate e da publicação de matérias, capazes de contribuir para uma aplicação racional e equilibrada da chamada ética codificada.

Como a reforma ficou apenas na inserção ou modificação esporádica de um ou dispositivo ou tão somente na mudança de expressões, pode-se dizer que o Código agora em vigor guarda inteira semelhança com o anterior.

1.12. AS RAZÕES DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA DE 1988

O novo modelo codificador fugiu de uma orientação que pudesse parecer com um “código de etiquetas” ou um “manual de privilégios” corporativistas. Por isso, buscou-se um encontro mais explícito com a realidade social que se vive e com a prática médica que se exerce. Isso ficou muito evidente na Apresentação da primeira edição deste Código pelo Conselho Federal de Medicina: “... o Código de Ética Médica é um instrumento fundamental na regulação das relações do médico com a sociedade, e em particular com o paciente, e não um emblema corporativo.”

Elegeu-se a categoria de “ser humano”, e não a simples condição de paciente. Não trata apenas da restauração da saúde do doente, mas do “ser humano e da coletividade”, sem discriminação de qualquer natureza. O risco será não transformar o ser humano numa abstração e apenas o paciente como realidade.

Outro fato alentador é o reconhecimento da autonomia do paciente, em face do respeito pelos direitos humanos, quando do exercício do ato médico. Nas questões ligadas aos direitos humanos, o atual Código fundamenta melhor a relação médico-paciente e deixa transparecer que existe não apenas o respeito pela cidadania, senão, também, a manifesta vontade em contribuir com a transformação social. Fica ainda evidente a exaltação ao “humanitarismo participativo”, sem as máculas do paternalismo autoritário. O que se procurou, enfim, foi descaracterizar o indivíduo como paciente ou doente e reconhecer sua condição de ser humano, preocupando-se com a pessoa antes mesmo que ela se transforme num paciente, pois “o alvo de toda atenção do médico é a saúde do ser humano”.

Embora esteja exaltado em todo corpo codificador o princípio da autonomia, deve-se entender que o princípio hierarquicamente superior eleito neste diploma ético foi o princípio da beneficência. Isso está bem claro na parte final do enunciado do artigo 51, quando trata da greve de fome: “... Em tais casos, deve o médico fazê-lo ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá-la.”

As questões econômicas e financeiras foram tratadas de forma muito transparente, tanto quando se defende a justa remuneração (artigo 3.º) como quando se abomina o modelo comercial-lucrativo da medicina (artigo 9.º), ou a exploração do médico por terceiros com fins de lucros (artigo 10). Condena ainda o recebimento de comissões ou vantagens por paciente encaminhado ou recebido (artigo 87); a exploração do trabalho médico pelos proprietários, sócios ou dirigentes de instituições de saúde (artigo 92); o exercício lucrativo da profissão médica como proprietário de farmácia (artigo 98); o exercício simultâneo da medicina e do comércio farmacêutico (artigo 99); o recebimento de remuneração a preço vil ou extorsivo (artigo 86); ou deixar de conduzir-se com moderação na fixação de honorários (artigo 89). O caráter repreensivo do lucro desonesto, por sua vez, não afastou o legítimo direito de se defender no atual Código a questão financeira dos médicos, quando se aborda a justeza dos salários e honorários (artigos 96, 97 e 100).

Não se descuidou o Código vigente das questões técnico-científicas da medicina, como forma de atender melhor aos interesses e às necessidades dos indivíduos e da comunidade, e por isso está escrito que “compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor progresso científico em benefício do paciente” (artigo 5.º). Nos capítulos referentes aos transplantes e à pesquisa, esse compromisso fica bem evidente quando se ressalta o ajustamento do progresso da ciência médica com os reclamos de cada um, protegendo essa relação no sentido de colocar as coisas nos seus devidos lugares: no interesse irrecusável do progresso da ciência e no respeito à dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, não se deve entender como corporativismo o fato de se defender certos interesses da profissão, quando se afirma, por exemplo, que “ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão” (artigo 4.º). Tal assertiva não quer dizer outra coisa senão que esse prestígio e bom conceito dependem muito da conduta ética apropriada. O mesmo se diga quando é exigida a solidariedade “com os movimentos de defesa da dignidade profissional”. Até mesmo “por remuneração digna” e “condições de trabalho compatíveis com o exercício ético-profissional da medicina” (artigo 15). Ou requerer desagravo (art. VII do Código de Ética Médica – Resolução 1.931/2009). Ou não assumir emprego, cargo ou função, sucedendo a médico demitido ou afastado em defesa dos movimentos legítimos da categoria (arts. 48 e 49 do Código de Ética Médica – Resolução 1.931/2009). Tudo isso no interesse de resguardar a sua imagem, pelo respeito e pela confiança que devem merecer seus assistidos.

A sociedade como um todo não ficou à margem, pois a responsabilidade social do médico está bem evidente. Nas questões da saúde do trabalhador (artigo 12), no esclarecimento sobre as condições de trabalho e eliminação de riscos (no art. 12 do Código de Ética Médica – Resolução 1.931/2009), na denúncia sobre a poluição e deterioração do ecossistema (artigo XIII), nos problemas da condição de trabalho e dos padrões dos serviços médicos (artigo XIV). Portanto, muito clara é a preocupação do atual Código com as condições de vida e de saúde dos indivíduos e da comunidade.

Finalmente, pode-se dizer que o Código de Ética Médica em vigor não expressa apenas uma benignidade humanitária para com os doentes, mas antes disso uma firme disposição para a ética de engajamento em que o caminho é a busca da cidadania e a garantia irrecusável a uma ampla relação entre todos os indivíduos.

1.13. A MEDICINA DO FUTURO E SEUS RISCOS

É temerário tentar desenhar um quadro da medicina no futuro, porque se corre o risco de confundir ciência com ficção. Isto se deve, em primeiro lugar, aos vertiginosos avanços no campo da biotecnologia. Porém, esta tecnologia em saúde não pode apenas se voltar para as coisas mais fantásticas, mas se aproximar de uma política de integração em que o ser humano esteja integrado com o sistema solidário e responsável de saúde.

Todos sabem que o grande desafio no futuro estará no campo das doenças genéticas e muitas de suas desordens poderão ser diagnosticadas mesmo antes de uma proposta terapêutica, no instante em que se tenha decifrada por completo a cartografia gênica do homem. Enfim, saber como os genes trabalham na saúde e na doença.

A terapia gênica, mediante a introdução de “genes terapêuticos” corrigindo erros, já é um meio que começa a se desenvolver e dar resultados. Não há dúvida de que a medicina logo mais será marcada por intervenções específicas sobre a fisiopatologia molecular das enfermidades, a partir desses genes chamados “terapêuticos”. Mas vai depender muito da química, da física e da engenharia genética. Se pudéssemos, nesses próximos 20 anos, desvendar os mistérios da esquizofrenia, por exemplo, já seria um passo extraordinário, esta doença que arrasa milhões de pessoas no mundo inteiro.

Do cruzamento da genética com a farmacologia está surgindo uma nova disciplina: a farmacogenética. Sua proposta é trabalhar no sentido de conhecer que pontos específicos do genoma de uma pessoa são responsáveis pela resposta a um fármaco, avaliando, assim, se um indivíduo responderá ou não a determinada terapia. Isto permitirá que no futuro se venham fazer medicamentos de acordo com o material genético de cada paciente.

Não é de hoje que a comunidade científica internacional discute a possibilidade, os riscos e os aspectos éticos que incluem as pesquisas envolvendo as células-tronco de embriões humanos. Em geral, os que defendem a necessidade das pesquisas com células-tronco embrionárias afirmam que isto pode trazer resultados positivos no tratamento de muitas doenças, algumas delas ainda sem solução. Em contrapartida, há os que criticam o uso de embriões nestas pesquisas, admitindo que as células-tronco medulares adultas e as células-tronco do cordão umbilical poderiam obter os mesmos resultados, inclusive sem as objeções éticas apresentadas. Mesmo assim, todos admitem que esses resultados não são imediatos e que muito se tem a fazer até que se institua de vez uma terapêutica segura em favor do ser humano.

Outra coisa: logo mais os pacientes deixarão de ser espectadores das suas consultas e passarão a ser questionadores das propostas de tratamento que lhes são oferecidas, porque muitas são as informações que estão disponíveis a ponto de ser dizer que hoje não existe mais a possibilidade de uma segunda opinião, mas de quantas opiniões os pacientes possam ter acesso.

O aumento da capacidade de armazenamento de dados e o sistema de telecomunicações já estão revolucionando a forma de prestar serviços de saúde. A utilização dos microcomputadores de mão que podem colher e enviar informações a uma base remota já é uma realidade dos nossos dias em várias áreas e nos próximos anos se disseminarão na área de saúde.

A revolução das telecomunicações começou com a era espacial e hoje é lugar comum na nossa vida. É uma tecnologia tão consagrada que quase não percebemos mais a sua presença. Na medida em que o custo de satélites caiu, as suas aplicações ficaram cada vez mais corriqueiras. Um exemplo claro é o seu uso pelas instituições bancárias.

Pensamos na medicina do futuro como uma área em que o telemonitoramento estará cada vez mais presente. E todos, médicos, instituições e pacientes estarão interconectados 24 horas por dia. Nesta linha, a saúde será uma indústria da informação. Informação entendida como o tratamento inteligente de uma série de dados.

A telemedicina, mesmo de forma tímida, já existe e funciona. Inúmeras têm sido as oportunidades em que os médicos se valeram dos recursos tecnológicos da comunicação, a exemplo do fax, do telefone, da videoconferência e do correio eletrônico, como forma de atender e beneficiar melhor seus pacientes. Já é possível, hoje, detectar enfartes por exames através do telefone em tempo real, ter sinais vitais do paciente transmitidos ao médico pela Web e poder realizar, por especialistas internacionais, cirurgias por videoconferências. Mesmo diante de tantas necessidades, dentre as profissões técnicas, a medicina é a que até agora menos se beneficiou da tecnologia, a que menos se esforça nesse sentido e a que mais tem a se beneficiar. Para tanto, o médico terá de modificar substancialmente sua formação, qualificação e o próprio comportamento profissional.

Os desafios do futuro serão: 1. Monitorar permanentemente a qualidade do atendimento que está sendo prestado. 2. Educar a população para uma melhor qualidade de vida. 3. Construir sistemas de comunicação on-line tão eficientes – entre os vários prestadores de atenção à saúde de modo que as intervenções possam ser realizadas em tempo real, minimizando os custos. 4. Identificar na população os pacientes que apresentam uma combinação de fatores de risco, de modo que as intervenções sejam dirigidas seletivamente em alguns grupos. 5. Caracterizar melhor e armazenar as características pessoais de cada paciente, de forma que possa ser respeitada a biodiversidade e as pessoas não sejam tratadas apenas pelo rótulo da patologia, seguindo-se protocolos preestabelecidos, mesmo que em cima das chamadas “evidências científicas”.

Os grandes riscos da medicina estarão na chamada medicina preditiva. Ela caracteriza-se por práticas cuja proposta é antever o surgimento de doenças como sequência de uma predisposição individual, tendo como meta a recomendação da melhor forma de preveni-las.

Por tais projetos, como se vê, muitas são as questões levantadas, tanto pela forma anômala de sua relação médico-paciente, como pela oportunidade de revelar situações que podem comprometer a vida privada do indivíduo ou submetê-lo a uma série de constrangimentos e discriminações, muitos deles discutíveis.

Não é exagero se pensar que amanhã as companhias de seguro não venham considerar a pele branca de um indivíduo um fato encarecedor das apólices apenas por uma possibilidade vulnerável de câncer de pele? Chegará um tempo certamente, com a possibilidade cada vez maior do reconhecimento no âmbito molecular, em que o perfil do DNA venha indicar propensão a uma doença cardíaca ou à possibilidade de alcoolismo que estas companhias refutem de forma peremptória ou maximizem o prêmio, tornando-o inalcançável aos aderentes de planos.

A saúde e as liberdades individuais representam, num estado democrático de direito, os bens mais fundamentais. Sendo a saúde um bem irrevogável e indispensável, cabe ao Estado sua garantia e seus meios de organização. E a liberdade como um ganho consagrador da cidadania e da luta dos povos.

Por isso, o certo é encontrar um caminho onde se procure minimizar o sofrimento e o dano por meios assistenciais à saúde sem o risco dos limites da liberdade individual capaz de ameaçar o sentido crítico das pessoas por meio de um paternalismo secular de proteção. Não há como existir ainda a chamada “superioridade de juízo”.

É neste instante que a sociedade livre e organizada pode e deve contribuir. Ou seja, não é apenas com a garantia da autonomia e da exigência do direito ao consentimento livre e esclarecido, pois este documento por si próprio não é bastante para assegurar uma relação mais respeitosa nem basta para isentar possíveis culpas. Com isso pode-se criar uma “medicina contratual” de bases falsas.

Se não levarmos em conta a autonomia das pessoas, qualquer conceito que se tenha de saúde é ambíguo e fica difícil para o poder público impor regras sanitárias, simplesmente porque tanto a saúde como a doença exigem explicações.

1.14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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