Sumário: 10.1. Introdução. 10.2. Conceito geral. 10.3. Antecedentes. 10.4. Responsabilidade profissional. 10.5. Deveres de conduta do médico. 10.5.1. Dever de informação. 10.5.2. Dever de atualização. 10.5.3. Dever de vigilância e de cuidados. 10.5.4. Dever de abstenção de abuso. 10.6. Elementos da responsabilidade. 10.7. Aspectos jurídicos. 10.8. Contrato de Prestação de Serviços Médicos. 10.9. Resultado adverso. 10.10. Erro médico. 10.11. Responsabilidade penal do médico: 10.11.1. Imprudência médica; 10.11.2. Negligência médica; 10.11.3. Imperícia médica. 10.12. Prescrição penal e prescrição civil. 10.13. Ato médico: obrigação de meios ou de resultados? 10.14. Responsabilidade civil do médico. 10.15. Consentimento esclarecido e responsabilidade civil. 10.16. Responsabilidade funcional do estudante. 10.17. Responsabilidade médica derivada. 10.18. Socialização do risco médico. 10.19. Política de prevenção de risco de erro médico; 10.19.1. Fatores de risco. 10.20. Deveres de conduta das entidades prestadoras de serviços médicos. 10.21. Responsabilidade civil das instituições de saúde do hospital e banco de sangue. 10.22. Responsabilidade civil dos laboratórios e de diagnóstico por imagem. 10.23. Como proceder diante da alegação de erro médico:10.23.1. Algumas advertências; 10.23.2. Afinal, o que se deve fazer? 10.24. Mediação, conciliação e arbitragem médica e de saúde. 10.25. A perícia do erro médico: 10.25.1. O nexo causal; 10.25.2. As concausas; 10.25.3. Os aspectos circunstanciais do ato médico; 10.25.4. O estado anterior do paciente; 10.25.5. Os padrões médico-legais. 10.26. Responsabilidade solidária. 10.27. Responsabilidade do paciente ou de terceiros. 10.28. Responsabilidade trabalhista e residência médica. 10.29. Responsabilidade dos bancos de dados de DNA. 10.30. Alta hospitalar. 10.31. Referências bibliográficas.
Código Civil
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 206. Prescreve: (...)
§ 3.º Em três anos: (...);
V – a pretensão de reparação civil.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem é obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:
I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;
II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.
Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.
Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.
Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.
Art. 951. O disposto nos artigos 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.
Código Penal
Art. 18. Diz-se o crime: (...);
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
II – ter o agente cometido o crime: (...);
g) com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão.
Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão de seis a vinte anos. (...).
§ 3.º Se o homicídio é culposo:
Pena – detenção, de um a três anos.
§ 4.º No homicídio culposo, a pena é aumentada de um terço, se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediatamente socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante.
Art. 133. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:
Pena – detenção, de seis meses a três anos.
§ 1.º Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de um a cinco anos.
§ 2.º Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos.
Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando é possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o auxílio da autoridade pública:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
Art. 135-A. Exigir cheque caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial: (Incluído pela Lei n.º 12.653, de 2012.)
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Incluído pela Lei n.º 12.653, de 2012.)
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte (Incluído pela Lei n.º 12.653, de 2012.)
Código de Ética Médica
É vedado ao médico:
Art. 1.º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.
Art. 2.º Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica.
Art. 3.º Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.
Art. 4.º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal.
Art. 5.º Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou.
Art. 6.º Atribuir seus insucessos a terceiros e a circunstâncias ocasionais, exceto nos casos em que isso possa ser devidamente comprovado.
Art. 7.º Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria.
Art. 8.º Afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes internados ou em estado grave.
Art. 9.º Deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandonálo sem a presença de substituto, salvo por justo impedimento.
Parágrafo único. Na ausência de médico plantonista substituto, a direção técnica do estabelecimento de saúde deve providenciar a substituição.
Art. 10. Acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a Medicina ou com profissionais ou instituições médicas nas quais se pratiquem atos ilícitos.
Art. 11. Receitar, atestar ou emitir laudos de forma secreta ou ilegível, sem a devida identificação de seu número de registro no Conselho Regional de Medicina da sua jurisdição, bem como assinar em branco folhas de receituários, atestados, laudos ou quaisquer outros documentos médicos.
Art. 12. Deixar de esclarecer o trabalhador sobre as condições de trabalho que ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos empregadores responsáveis.
Parágrafo único. Se o fato persistir, é dever do médico comunicar o ocorrido às autoridades competentes e ao Conselho Regional de Medicina.
Art. 13. Deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença.
Art. 14. Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País.
Art. 15. Descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou de tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação ou terapia genética.
§ 1.º No caso de procriação medicamente assistida, a fertilização não deve conduzir sistematicamente à ocorrência de embriões supranumerários.
§ 2.º O médico não deve realizar a procriação medicamente assistida com nenhum dos seguintes objetivos:
I – criar seres humanos geneticamente modificados;
II – criar embriões para investigação;
III – criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras.
§ 3.º Praticar procedimento de procriação medicamente assistida sem que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo.
Art. 16. Intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que resulte na modificação genética da descendência.
Art. 17. Deixar de cumprir, salvo por motivo justo, as normas emanadas dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina e de atender às suas requisições administrativas, intimações ou notificações no prazo determinado.
Art. 18. Desobedecer aos acórdãos e às resoluções dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina ou desrespeitá-los.
Art. 19. Deixar de assegurar, quando investido em cargo ou função de direção, os direitos dos médicos e as demais condições adequadas para o desempenho ético-profissional da Medicina.
Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade.
Art. 21. Deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente.
Não existe no momento, no mundo inteiro, outra atividade mais vulnerável que a medicina, chegando a ser uma das mais difíceis de se exercer sob o ponto de vista legal. Já se disse até, com certa razão, que a profissão médica estaria seriamente ameaçada pelo risco dos pleitos demandados pelos pacientes.
O erro presumido é uma das acusações mais frequentes. Os doentes também culpam o não esclarecimento prévio de uma intervenção mesmo quando a operação se apresenta dentro das exigências da técnica e da lei.
O pensamento do legislador nos dias que correm não está isento de dúvidas a respeito das operações cosméticas, da esterilização cirúrgica, das experiências científicas no homem, da fecundação artificial heteróloga, do descarte de embriões, do aborto eugênico ou econômico, do tratamento arbitrário e da omissão de socorro.
Na prática, vem se imputando uma impressionante variedade de erros profissionais, tais como: exame superficial do paciente e consequente diagnóstico falso; operações prematuras; omissão de tratamento ou retardamento na transferência para outro especialista; descuidos nas transfusões de sangue ou anestesias; emprego de métodos e condutas antiquados e incorretos; prescrições erradas; abandono do paciente; negligência pós-operatória; omissão de instrução necessária aos doentes; responsabilidade médica por suicídio em hospitais psiquiátricos. E ainda outros casos que dependem menos do médico do que do seu instrumental; queimaduras por raios X; infecções propagadas por instrumentos; ou o não funcionamento de um artefato qualquer no momento preciso.
Nos países hispano-americanos, são mais raros os pleitos contra profissionais da Medicina. Na Suécia, essas ações são também excepcionais, devido ao respeito tradicional à autoridade e ao alto nível social do médico, impedindo, assim, seja citado diante dos juízes.
Nos EUA, todavia, cresce diariamente o número de pacientes que pleiteiam contra seus médicos, e os tribunais americanos adotam medidas mais rigorosas do que em outros países. Existe ali certa ênfase quanto à inviolabilidade pessoal do paciente.
Whitney Kelly (apud Hermes R. de Alcântara, Responsabilidade civil e penal dos anestesiologistas, Revista Brasileira de Anestesiologia, ano 21, n. 2, abr.-jun. 1971) já dizia: “Muitos de nós estamos alarmados pelo crescente número de ações de responsabilidade médica que está sendo atribuído pela Justiça através da nação. Parece uma onda de ações de responsabilidade médica a varrer todos os Estados Unidos a partir da Califórnia”.
Existem fatores específicos responsáveis pela grande frequência de litígios contra médicos naquele país. E por isso já se chamou aquela nação de paraíso dos advogados. Esses profissionais encontram-se hoje em dia perfeitamente adestrados em conhecimentos médicos, uma vez que se publicam constantemente livros e revistas especializados para eles. Já começa assim a surgir uma nova classe de advogados – os juristas médicos.
Desse modo, não se pode estranhar o aumento excessivo dos processos nos Estados Unidos nestes últimos anos. Em 1998, chegaram a 60 mil demandas anuais. O custo da classe médica e seus seguros alcançaram uma cifra de 500 milhões de dólares por ano. No país inteiro, três de cada sete médicos já foram citados por responsabilidade médica, e, na Califórnia, três de cada quatro.
Nos outros países observam-se também tendências crescentes dos pleitos. No Japão, segundo o Prof. Koichi Bai, os tribunais, a partir de alguns anos, também começaram a favorecer de modo excessivo os pacientes.
Segundo a União de Defesa Médica da Inglaterra, o aumento dos processos por negligência médica naquele país é devido a dois fatores: a socialização da medicina, despersonalizando a relação entre médico e doente, e o aumento dos pacientes. Neil Chaquet, de Boston, afirma: “As duas mais constantes ações legais contra médicos são aquelas nas quais os motivos são a negligência e a falta de consentimento” (apud Hermes R. de Alcântara, op. cit.). Leterneau ensina que “a melhor maneira de evitar ação por responsabilidade médica é estabelecer e manter uma boa relação médico-paciente”.
Na Inglaterra, onde quase todos os hospitais eram mantidos por instituições voluntárias, logo que o Serviço Nacional de Saúde ficou com a responsabilidade de seus encargos, a partir de 1948, começaram as demandas a aumentar, pois seu pessoal técnico e administrativo era de caráter estatal.
O Prof. Hans Stoll, da Alemanha, diz que o médico era antigamente uma autoridade indiscutível, porém hoje é considerado um profissional como outro qualquer, que ganha a vida como os demais e deve pagar pelos erros cometidos. Daí o crescente número de demandas. Na Bélgica e na África do Sul comprovou-se também o evidente aumento das lides. No Canadá, segundo o Dr. A. A. Klass, “o monstro dos pleitos por negligência médica começa a crescer”.
Um aspecto que não pode ser esquecido é a mudança do relacionamento entre o médico e o paciente. O laço paternal que existia entre as famílias e os médicos de cabeceira transforma-se pouco a pouco numa relação quase impessoal, principalmente nas grandes cidades. Por outro lado, a especialização vai transformando o médico num técnico altamente adestrado e impessoal, que recebe os pacientes transferidos de outros colegas. Mais uma vez é o Prof. Stoll quem afirma: “Em lugar do velho estilo ‘de cabeceira’, o médico de hoje em dia parece depender mais de um formidável aparato instrumental, que salva vidas perdidas por seus predecessores. A imagem do pai foi substituída pelo técnico especializado” (apud S. A. Strauss, Negligência médica, Documenta Geigy, trad. do A., Basileia, 1971, p. 4).
Os resultados das intervenções atuais são mais espetaculares que o das gerações passadas. A publicidade é muito mais ampla devido aos mais modernos meios de divulgação. Os transplantes cardíacos tanto fascinaram a imaginação do mundo inteiro, que hoje se passou a esperar muito mais da Medicina.
Atualmente as intervenções são mais ousadas, em virtude de uma maior segurança. Por outro lado, porém, correspondentemente os riscos também aumentam, e quando se produzem resultados inesperados os problemas se apresentam mais graves que antigamente. Um paciente não satisfeito estará mais disposto a pleitear com um técnico frio e impessoal do que com um velho e fraternal amigo da família.
Nos Estados Unidos, realizou-se uma enquete e apurou-se que um bom número de demandantes questionava, não contra o médico, mas contra a companhia de seguros responsável. No dizer do Dr. A. A. Klass, “uma instituição astuta e desumana, com muitos milhões” (Id., ibid.).
A maioria dos advogados admitiu, no entanto, que o aumento dos processos contra médicos não dá lugar a se deduzir uma negligência mais atual, e sim um aumento de demandantes que citam seus médicos ante os tribunais.
Um dos efeitos menores será, sem dúvida, o aumento dos honorários médicos, devido principalmente às altas cotas de seguro. O mais grave será a inibição do médico no exercício de sua profissão. E os demandantes que parecem, a princípio, sair ganhando sairão certamente perdendo.
Nos Estados Unidos os pleitos são mais constantes, e já existem estados que se viram obrigados a modificar suas leis destinadas a proteger e estimular o médico, principalmente nas intervenções de urgência. Foram chamadas de “Leis do Bom Samaritano”.
Segundo o Prof. S. A. Strauss, da África do Sul, existem em algumas jurisdições americanas comitês de voluntários onde ingressam tanto médicos como advogados, a fim de efetuarem uma seleção crítica das demandas. Essas instituições contribuem para desanimar os litigantes sem fundamento, e orientam simultaneamente, com provas periciais, os demandantes com causas justificadas.
Há ainda uma corrente que defende um tribunal especializado constituído por representantes de diversas profissões, o que, todavia, não tem encontrado eco entre os advogados, que defendem ser o tribunal comum competente para tais litígios.
O certo é que num hospital onde entram dezenas de doentes haverá sempre um risco, apesar de todos os cuidados empregados em qualquer intervenção, por mais simples e trivial que ela seja. Seria injusto, pois, culpar a instituição ou o médico por um acidente inevitável.
A verdade é que somente o futuro dirá o rumo da responsabilidade médica, sabendo-se de antemão que a lei adequada é sempre aquela que vem em benefício de todos.
Há um princípio jurídico segundo o qual todas as pessoas são obrigadas a responder por danos causados a terceiros, a fim de que sejam resguardados os interesses dos indivíduos no seio da coletividade.
Alexander Lacassagne definiu a responsabilidade médica como a obrigação que podem sofrer os médicos em virtude de certas faltas por eles cometidas no exercício de sua profissão, faltas essas que geralmente comportam uma dupla ação: civil e penal. Sob este último aspecto, o médico se vê, diante de um delito, sujeito a uma determinada pena. Quanto ao aspecto civil, acarretando o dano físico um prejuízo econômico, impõe-se um pagamento em dinheiro como forma de indenização.
Existe uma corrente contrária a qualquer responsabilidade, por entender a medicina como “um mandato ilimitado junto à cabeceira do doente, ao qual só pode aproveitar essa condição” (apud Nério Rojas, Medicina legal, trad. do A., 7. ed., Buenos Aires: El Ateneo, 1961).
Entre as razões apresentadas alegam:
1. o diploma médico é uma prova inconteste de competência, e o profissional não poderá ser julgado em cada novo caso;
2. o temor às punições levaria a uma inibição e a um entrave ao progresso científico, tornando-se a Medicina uma ciência tímida e rotineira;
3. os tribunais leigos não teriam capacidade científica para julgar os feitos médicos com precisão e equidade;
4. a Medicina não é uma ciência que tem a exatidão da Matemática e, por isso, varia em seus aspectos pessoais e circunstanciais.
Esses argumentos são carentes de fundamento porque, pela simples razão de o médico ter um diploma, não se exime de seu estado de falibilidade. Por outro lado, a lei não entrava o progresso de nenhuma ciência; ao contrário, ela a ampara e protege. O que realmente compromete o progresso da Medicina é a irresponsabilidade médica. Os tribunais não são leigos nem incompetentes; pois, quando os juízes avaliam as faltas dos médicos, manifestam-se depois de ouvir os próprios médicos e os peritos, que são, na verdade, os olhos da lei. Finalmente, embora não haja na Medicina a exatidão fria da Matemática, sempre existe um critério de previsibilidade, a fim de se afastarem os danos considerados evitáveis.
A jurisprudência firmada sobre a responsabilidade médica teve ênfase na França, através do Procurador-Geral Dupin.
Em 1825, em Dromfront, o Dr. Hèlie, chamado para fazer um parto, verificou que o ombro e a mão direita da criança se encontravam no trajeto vaginal. Resolveu, então, amputar o braço do feto, a fim de facilitar sua expulsão. Em seguida notou o outro braço em situação análoga, efetuando também sua amputação. Mais tarde nascia a criança, a qual veio a sobreviver. Os pais entraram em juízo com uma ação contra o médico. Solicitou o Tribunal parecer da Academia de Medicina, a qual respondeu que “o médico não é responsável senão quando produz um dano intencionalmente, com premeditação, por pérfidos desígnios e criminosas intenções”, concluindo pela não responsabilidade do Dr. Hèlie. O Tribunal não aceitou o parecer e declarou o médico culpado, condenando-o a uma indenização sob a forma de renda vitalícia.
Em 1835, o Dr. Thouret Noroy, de Evreux, chamado a atender um paciente, praticoulhe uma sangria na prega do cotovelo, lesando a artéria. Colocou bandagens compressivas e retirou-se. Solicitado por vezes sucessivas, negou-se ao atendimento. O paciente, não suportando as dores, e sentindo os primeiros sinais de gangrena, procurou outro médico que lhe amputou o braço. O Tribunal Civil de Evreux condenou o Dr. Thouret a pagar uma indenização “por imperícia, negligência grave e falta grosseira”.
Foi então que surgiu o Procurador-Geral Dupin, rebatendo todos os argumentos, inclusive os da Academia de Medicina. Seu parecer tem um extraordinário valor histórico e jurídico. Entre outras coisas afirmava:
“O médico e o cirurgião não são indefinidamente responsáveis, porém o são às vezes; não o são sempre, mas não se pode dizer que não o sejam jamais. Fica a cargo do juiz determinar cada caso, sem afastar-se desta noção fundamental: para que um homem seja considerado responsável por um ato cometido no exercício profissional, é necessário que haja cometido uma falta nesse ato; tenha sido possível agir com mais vigilância sobre si mesmo ou sobre seus atos e que a ignorância sobre esse ponto não seja admissível em sua profissão.
Para que haja responsabilidade civil, não é necessário precisar se existiu intenção; basta que tenha havido negligência, imprudência, imperícia grosseira e, portanto, inescusáveis.
Em circunstâncias raras, que podem, porém, apresentar-se às vezes, se o médico é levado ante os tribunais, não se deve dizer que sua reputação está sem garantias. Somente seus atos são submetidos à sua equânime apreciação, como são as ações de todos os outros cidadãos, quaisquer que sejam os seus estados ou as suas condições.
Na responsabilidade, tal como se pode entender da lei civil, não se trata de capacidade, mais ou menos ampla, ou de talento mais ou menos brilhante, mais ou menos sólido, senão somente da garantia contra a imprudência, a negligência, a pressa e uma ignorância crassa a respeito daquilo que se devia necessariamente saber e praticar em uma profissão.
Os tribunais estão ali para apreciar os feitos, e nesta apreciação não devem perder de vista estes princípios: para que um homem possa ser considerado responsável por um ato em sua profissão, é necessário que haja uma falta em seu ato, que haja sido possível, com uma vigilância sobre si mesmo ou sobre seus atos, garantir-se contra ela; o que no feito se espera é que a falta seja de tal natureza, que se torne completamente inescusável o havê-lo cometido.
Desde o momento em que os feitos médicos reprovados, que por sua natureza estão exclusivamente reservados às dúvidas e discussões da ciência, saem da classe médica; desde que eles se compliquem de negligência e ignorância de coisas que se devem necessariamente saber, então a responsabilidade de direito comum existe, e a competência da justiça está aberta”.
E, depois de emitir mais alguns conceitos sobre a responsabilidade, continua:
“Aos tribunais corresponde aplicar a lei com discernimento, com moderação, deixando para a ciência toda a latitude de que se necessita, dando, porém, à justiça e ao direito comum tudo o que lhe pertence”.
E termina dizendo:
“Que os médicos se confortem: o exercício de sua arte não está em perigo; a glória e a reputação de quem a exerce com tantas vantagens para a Humanidade não serão comprometidas pela falta de um homem que falhe sob o título de doutor. Não se sacam conclusões e dificilmente se conclui partindo do particular ao geral, e de um fato isolado a casos que não oferecem nada de semelhante. Cada profissão encerra, em seu meio, homens dos quais ela se orgulha e outros que ela renega” (apud Nério Rojas, op. cit.).
Hoje a responsabilidade médica é aceita pelos magistrados, juristas e médicos, embora alguns discordem num ou noutro ponto.
Com o parecer de Dupin, fixou-se uma boa doutrina:
1. o médico, como profissional, está sujeito às sanções da lei;
2. na aplicação dessas sanções, os tribunais devem ser prudentes;
3. isso não afeta o prestígio nem o progresso da Medicina.
No mundo jurídico, pode-se considerar responsabilidade como a obrigação de reparar prejuízo decorrente de uma ação de que se é culpado, direta ou indiretamente. E por responsabilidade profissional, no âmbito do exercício da medicina, como um elenco de obrigações a que está sujeito o médico, e cujo não cumprimento o leva a sofrer as consequências impostas normativamente pelos diversos diplomas legais.
Portanto, responsabilidade é o conhecimento do que é justo e necessário, não só no sentido moral, mas também dentro de um sistema de obrigações e deveres, diante do que é lícito e devido. Ripert dizia não entender por lei moral qualquer vago ideal de justiça, mas essa lei bem precisa que rege a sociedade moderna e que é respeitada porque é imposta pela fé, a razão, a consciência e pelo respeito à dignidade das outras pessoas (A regra moral nas obrigações civis, São Paulo: Saraiva, 1937).
Assim, a expressão “responsabilidade” pode ser empregada tanto no sentido ético como no sentido jurídico, visto que, em se tratando do exercício de uma profissão liberal, intrincam-se necessariamente os valores morais e legais, pois as razões jurídicas não podem estar dissociadas das razões de ordem moral.
Antes prevalecia o conceito de ampla liberdade de agir, chegando-se ao exagero de admitir ser a medicina “um mandato ilimitado junto à cabeceira do doente, ao qual só pode aproveitar essa condição”. Exagerava-se ainda quando se afirmava que o diploma do médico era uma prova incontestável de competência e de idoneidade e que a medicina não era uma ciência exata como a matemática.
É claro que, com o passar dos anos, os imperativos de ordem pública foram se impondo pouco a pouco como conquista da organização da sociedade. Foi-se vendo que a simples razão de o médico ter um diploma não o exime de seu estado de falibilidade. Por outro lado, o fato de se considerar o médico, algumas vezes, como infrator, diante de uma ou outra conduta técnica desabonada pela lex artis, isso não quer dizer que sua reputação está sem garantias. Somente os seus atos podem ser submetidos a uma equânime apreciação, como são as ações de todos os outros cidadãos, quaisquer que sejam os seus estados ou as suas condições.
Atualmente, o princípio da responsabilidade profissional é aceito por todos – médicos, juristas e a própria sociedade –, desde que na apreciação desses feitos fique caracterizada uma conduta atípica, irregular ou inadequada contra o paciente, durante ou em face do exercício médico. Espera-se apenas que na avaliação dessa responsabilidade haja transparência no curso da apreciação e dê-se ao acusado o direito de ampla defesa, e que não se venha macular o prestígio da medicina e dos médicos pelo fato de uma conduta isolada. Aguarda-se, finalmente, que na apreciação da responsabilidade profissional do médico fique exaustivamente provada a inobservância das regras técnicas ou a atipia de conduta em sua atividade funcional.
Pergunta-se muito se o médico pode responder por erro de diagnóstico ou por erro de conduta. A maioria tem se pronunciado achando que o erro de diagnóstico não é culposo, desde que não tenha sido provocado por manifesta negligência, e que o médico não tenha examinado seu paciente segundo as regras e técnicas atualizadas e disponíveis da medicina e da sua especialidade em particular. Já os erros de conduta podem ocorrer – e são os mais comuns, mas convém que eles sejam analisados criteriosamente, pois, nesse sentido, há muitas discordâncias sobre a validade e a eficiência de cada método e de cada conduta. A verdade é que se exige muito dos médicos, ainda sabendo que sua ciência é limitada e que sua obrigação é de meios e não de resultado. Mesmo que a vida seja um bem imensurável, a supervalorização desta ciência jamais encontrará uma formula mágica e infalível.
Por fim, quando da avaliação da culpa médica, deve ficar evidente que sem a existência de um dano efetivo e real não se pode caracterizar a responsabilidade profissional, tal qual ela está inserida nos dispositivos específicos, seja por imperícia, imprudência ou negligência. A determinação concreta do dano, além de indispensável em relação à configuração da responsabilidade médica, pode estabelecer o grau da culpa e a extensão da liquidação. Mesmo assim, ainda há de se concretizar o nexo de causalidade e as condições em que se verificou o dano.
Qualquer que seja a forma de avaliar a responsabilidade de um profissional em determinado ato médico, no âmbito ético ou legal, é imprescindível que se levem em conta seus deveres de conduta.
Entende-se por responsabilidade a obrigação de reparar prejuízo decorrente de uma ação do qual se é culpado. E por dever de conduta, no exercício da medicina, um elenco de obrigações a que está sujeito o médico, e cujo não cumprimento pode levá-lo a sofrer as consequências previstas normativamente.
Desse modo, responsabilidade é o conhecimento do que é justo e necessário por imposição de um sistema de obrigações e deveres em virtude de dano causado a outrem.
A expressão responsabilidade tanto pode ser empregada no sentido ético como no sentido jurídico, visto que, em se tratando do exercício liberal de uma profissão, intrincam-se necessariamente os valores morais e legais, pois as razões de natureza jurídica não podem ser dissociadas dos motivos de ordem moral.
Antes, prevalecia o conceito da ampla liberdade de agir. Chegava-se ao exagero de considerar a medicina como “um mandato ilimitado junto à cabeceira do doente, o qual só pode aproveitar essa condição”. Exagerava-se ainda quando se dizia ser o diploma do médico uma prova inconteste de competência e idoneidade, e que a medicina não era uma ciência com a exatidão da matemática, variando em seus métodos e circunstâncias.
É claro que, com o passar dos anos, os imperativos de ordem pública foram se impondo pouco a pouco, até que surgiram as normas disciplinadoras do exercício profissional, como conquista da organização da sociedade. Foi-se vendo que a simples razão de o médico ter um diploma não o exime de seu estado de falibilidade. Por outro lado, o fato de considerar o médico, algumas vezes, como infrator diante de um erro de conduta na profissão, não quer dizer que sua reputação está sem garantia. Somente que seus atos podem e devem ser submetidos a uma equânime apreciação, como são as ações de todos os outros cidadãos, qualquer que seja seu estado ou sua condição.
Espera-se também que na avaliação dessa responsabilidade haja transparência no curso da apreciação e dê-se ao acusado o direito de ampla defesa, e que não se venha macular o prestígio da medicina e dos médicos pelo fato de uma conduta indesculpável mais isolada. Aguarda-se, portanto, que na apuração da responsabilidade profissional do médico fiquem caracterizados a inobservância de regras técnicas e científicas ou a atipia de conduta, o nexo causal entre a conduta e o dano, a relação de antijuridicidade e o resultado danoso.
Discute-se muito se o médico responde por erro de diagnóstico ou por erro de conduta. A maioria tem se pronunciado admitindo que o erro de diagnóstico não é culpável, desde que não tenha sido provocado por manifesta negligência; que o médico não tenha examinado seu paciente ou omitido as regras e técnicas atuais e disponíveis, que não tenha levado em conta as análises e resultados durante a emissão do diagnóstico, valendo-se do chamado “olho clínico”, ou que tenha optado por uma hipótese remota ou absurda.
Mais discutida ainda é a possibilidade de o médico responder por erro de prognóstico. É claro que não se pode exigir dele o conhecimento de tudo que venha acontecer em imponderáveis desdobramentos. O que se exige é prudência e reflexão.
Já os erros de conduta podem ocorrer – e são os mais comuns –, mas convém que eles sejam analisados criteriosamente, pois, nesse sentido, há muitas discordâncias sobre a validade de cada método e de cada conduta.
Enfim, para a caracterização da responsabilidade médica basta a voluntariedade de conduta e que ela seja contrária às regras vigentes e adotadas pela prudência e pelos cuidados habituais, que exista o nexo de causalidade e que o dano esteja bem evidente. As regras de conduta arguidas na avaliação da responsabilidade médica são relativas aos deveres de informação, de atualização, de vigilância e de abstenção de abuso.
São todos os esclarecimentos na relação médico-paciente que se consideram como incondicionais e obrigatórios, tais como:
a) Informação ao paciente. É fundamental que o paciente seja informado pelo médico sobre a necessidade de determinadas condutas ou intervenções e sobre seus riscos ou suas consequências. Mesmo que o paciente seja menor de idade ou incapaz e que seus pais ou responsáveis tenham tal conhecimento, ele tem o direito de ser informado e esclarecido, principalmente a respeito das precauções essenciais. O ato médico não implica um poder excepcional sobre a vida ou a saúde do paciente. O dever de informar é imperativo como requisito prévio para o consentimento.
Com o avanço cada dia mais eloquente dos direitos humanos, o ato médico só alcança sua verdadeira dimensão e seu incontestável destino com a obtenção do consentimento do paciente ou dos seus responsáveis legais. Isso atende ao princípio da autonomia ou da liberdade, pelo qual todo indivíduo tem por consagrado o direito de ser autor do seu próprio destino e de optar pelo rumo que quer dar à sua vida.
Além disso, exige-se que o consentimento seja esclarecido, entendendo-se como tal o obtido de um indivíduo capaz civilmente e apto para entender e considerar razoavelmente uma proposta ou uma conduta médica, isenta de coação, influência ou indução. Não pode ser colhido esse consentimento através de uma simples assinatura depois de leitura apressada em textos minúsculos de formulários a caminho das salas de operação, mas por meio de uma linguagem acessível ao seu nível de conhecimento e compreensão (princípio da informação adequada).
Se o paciente não pode falar por si ou é incapaz de entender o ato que se vai executar, estará o facultativo obrigado a obter o consentimento de seus responsáveis legais (consentimento substituto). Mesmo assim, saber o que é representante legal, pois nem toda espécie de parentesco qualifica um indivíduo como tal. Saber também o que se pode e o que não se pode consentir.
Deve-se considerar ainda que a capacidade de o indivíduo consentir não reflete as mesmas proporções entre a ética e a lei. O entendimento sob o prisma ético não tem a mesma inflexibilidade da lei, pois certas decisões, embora de indivíduos considerados civilmente incapazes, devem ser respeitadas principalmente quando se avaliam situações mais delicadas. Assim, por exemplo, os portadores de transtornos mentais, mesmo legalmente incapazes, não devem ser isentos de sua capacidade moral de decidir.
Sempre que houver mudanças significativas nos procedimentos terapêuticos, deve-se obter o consentimento continuado, pois a permissão dada anteriormente tinha tempo e atos definidos (princípio da temporalidade). Admite-se também que, em qualquer momento da relação profissional, o paciente tem o direito de não mais consentir certa prática ou conduta, mesmo já consentida por escrito, revogando assim a permissão outorgada (princípio da revogabilidade). O consentimento não é um ato inexorável e permanente.
Por outro lado, há situações em que, apesar de existir uma permissão tácita ou expressa, não se justifica o ato permitido. A norma ética ou jurídica pode impor-se a essa vontade, e a autorização, ainda que escrita e consciente, não outorgaria certas práticas. Nesses casos, quem legitima o ato médico é sua indiscutível e imperiosa necessidade e não apenas a permissão (princípio da não maleficência).
O mesmo se diga quando o paciente nega autorização diante da incondicional e inadiável necessidade do ato salvador, diante de um iminente perigo de vida. Em tais circunstâncias estaria justificado o tratamento arbitrário, em que não se argui a antijuridicidade do constrangimento ilegal nem se pode exigir sempre um consentimento. Diz o bom senso que, tratando-se do inadiável e do indispensável, estando o próprio interesse do paciente em jogo, deve o médico realizar, por meios moderados, aquilo que aconselha sua consciência e o que seria mais adequado para a saúde do paciente (princípio da beneficência). Aqui não há o que confundir com paternalismo médico.
b) Informações sobre as condições precárias de trabalho. Ninguém desconhece que muitos dos maus resultados na prática médica são originados das péssimas e precárias condições de trabalho, mesmo que se tenha avançado tanto em termos propedêuticos. Nesse cenário perverso, que pode parecer desproposital e alarmista, é fácil entender o que pode acontecer em certos locais de trabalho médico onde se multiplicam os danos e as vítimas, e onde o mais fácil é culpar os médicos.
Por tais razões, não se pode excluir dos deveres do médico o de informar as condições precárias de trabalho, registrando-as em locais próprios e até omitindo-se de exercer alguns atos eletivos da prática profissional, tendo, no entanto, o cuidado de conduzir-se com prudência nas situações de urgência e emergência.
Deve o médico manifestar-se sempre sobre as condições dos seus instrumentos de trabalho para não ser rotulado de negligente pelo fato dos objetos, tendo em conta a teoria subjetiva da guarda da coisa inanimada, principalmente se o dano verificou-se em decorrência da má utilização ou de conhecidos defeitos apresentados pelos equipamentos.
c) Informações registradas no prontuário. Uma das primeiras fontes de consulta e informação sobre um procedimento médico contestado é o prontuário do paciente. Por isso, é muito importante que ali estejam registradas todas as informações pertinentes e oriundas da prática profissional. Infelizmente, por questão de hábito ou de alegada economia de tempo, os médicos têm se preocupado muito pouco com a documentação do paciente, com destaque para a elaboração mais cuidadosa do prontuário.
Entende-se por prontuário médico não apenas o registro da anamnese do paciente, mas todo o acervo documental ordenado e conciso, referente às anotações e cuidados médicos prestados e aos documentos anexos. Consta do exame clínico do paciente com suas fichas de ocorrências e de prescrição terapêutica, dos relatórios da enfermagem, da anestesia e da cirurgia, da ficha de registro dos resultados de exames complementares e, até mesmo, das cópias de atestados e das solicitações de práticas subsidiárias de diagnóstico.
Nunca admitir que o prontuário representa uma peça meramente burocrática para fins de contabilização estatística ou do interesse de cobrança dos procedimentos ou das despesas hospitalares. Pensar sempre em possíveis implicações de ordem técnica, ética ou legal que possam eventualmente ocorrer, quando o prontuário seria um elemento de valor probante fundamental nas contestações das aludidas irregularidades.
Por sua vez, deve-se enfatizar que não há nenhuma inconveniência de se substituir o modelo tradicional de prontuário por um método mais moderno de registro, como, por exemplo, o da informatização, desde que seja assegurada a confidencialidade de suas informações e que estas estejam sempre disponíveis ao paciente.
d) Informações aos outros profissionais. Em princípio, o médico não pode atuar sozinho. Muitas são as oportunidades em que a participação de outros profissionais de saúde é imprescindível. Para que essa interação transcorra de forma proveitosa para o paciente, é necessário não existir sonegação de informações consideradas pertinentes.
Essa exigência não representa apenas simples cortesia entre colegas, nem requisito de caráter burocrático. São práticas recomendadas em favor dos alienáveis interesses do paciente. Deixar de enviar informações sobre o tratamento e meios complementares de diagnóstico é uma forma de deslize grave nos deveres de conduta do médico.
Acreditamos não existir qualquer forma de limitação dessas informações a outro profissional, a não ser que as desautorizem o paciente ou seus familiares. Mesmo assim, chegará um momento que o médico avaliará essa restrição de informações. Alguns acham que, em muitas oportunidades, essas omissões podem trazer insanáveis prejuízos ao próprio paciente e que não há nada que um médico não possa saber a respeito da doença ou da saúde do seu paciente, por mais confidente que seja essa informação. Outros, simplesmente, admitem que a vontade dele deve ser respeitada sempre.
O censurável, no entanto, é a omissão de informações julgadas importantes em determinado quadro clínico e cuja não revelação possa trazer irreparáveis danos ao paciente, pois o alvo de toda atenção do médico é a saúde e o bem-estar do ser humano. Muitas vezes, essas informações são sonegadas por simples capricho do profissional, que não se conforma ter seu paciente transferido para outro colega.
Outro fato, nesta mesma linha de raciocínio, é a falta de informações aos substitutos do plantão sobre pacientes internados, principalmente os mais graves, seja de forma verbal ou através do registro circunstanciado em livros de ocorrências.
O regular exercício profissional do médico não requer apenas uma habilitação legal. Implica também o aprimoramento continuado, adquirido através dos conhecimentos mais recentes de sua profissão, no que se refere às técnicas de exame e aos meios de tratamento, seja nas publicações especializadas, nos congressos, nos cursos de especialização ou nos estágios em centro hospitalares de referência. A capacidade profissional é sempre ajuizada toda vez que se discute uma responsabilidade médica.
No fundo mesmo, o que se quer saber é se naquele discutido ato profissional pode-se admitir a imperícia. Se o dano deveu-se à inobservância de normas técnicas ou despreparo profissional, em face da inadequação de conhecimentos científicos e práticos da profissão. Os erros de técnica são difíceis de serem apurados e, por isso, os magistrados devem se omitir dessa avaliação, valendo-se da experiência dos peritos, pois os métodos utilizados na prática médica são discutíveis e às vezes controversos. Por sua vez, a culpa ordinária não é difícil de comprovação, como, por exemplo, a do médico que se ausenta do plantão, vindo um paciente sofrer dano pela sua omissão. A culpa profissional, esta não, traz certo grau de dificuldade na sua apreciação, pois nem sempre há consenso na utilidade e na indicação de uma técnica ou de uma conduta.
O que se procura em tais avaliações é saber se o facultativo portou-se com falta de conhecimento e habilidades exigidos minimamente aos que exercem a profissão. Ou seja, se ele não se credenciou para o que ordinariamente se sabe na profissão, ou se poderia ter evitado o dano, caso não lhe faltasse o que ordinariamente é conhecido em suas atividades.
É muito importante na avaliação do cumprimento do dever de atualização do médico saber se aquela prática é reconhecida e aceita pelas sociedades de especialidades médicas ou ensinada nas escolas de medicina. Ou seja, se a conduta está consagrada pela experiência médica, a qual nenhum profissional deve opor-se. Em medicina, em face da sua complexidade, esse conjunto de regras técnicas chamado de lex artis deve ser aplicado a cada ato médico isoladamente, sem deixar de serem considerados os recursos materiais, o local de trabalho, as características profissionais do médico, o estado geral do paciente, a dificuldade e a importância do ato praticado.
Em suma, é muito importante que o médico se mantenha atualizado com os avanços da sua profissão. Cada dia que passa maiores são as oportunidades em que ele é chamado para prestar contas dos seus conhecimentos. Há também de existir uma forma, democrática e incentivadora, que permita a continuidade do aprendizado e que não seja apenas durante as propagandas de remédios distribuídas nos consultórios. O ensino médico continuado não deve ser apenas um direito, mas também uma obrigação.
O ato médico, quando avaliado na sua integridade e licitude, deve estar isento de qualquer tipo de omissão que venha a ser caracterizada por inércia, passividade ou descaso. Essa omissão tanto pode ser por abandono do paciente como por restrição do tratamento ou retardo no encaminhamento necessário.
É omisso do dever de vigilância o médico que não observa os reclamos de cada circunstância, concorrendo para a não realização do tratamento necessário, a troca de medicamento por letra indecifrável e o esquecimento de certos objetos em cirurgias. É omisso do dever de vigilância o profissional que permanece em salas de repouso limitando-se a prescrever sem ver o paciente, medicar por telefone sem depois confirmar o diagnóstico ou deixar de solicitar os exames necessários.
A forma mais comum de negligência é a do abandono do paciente. Uma vez estabelecida a relação contratual médico-paciente, a obrigação de continuidade do tratamento é absoluta, a não ser em situações especiais, como no acordo mútuo ou por motivo de força maior. O conceito de abandono deve ficar bem claro, como no caso em que o médico é certificado de que o paciente ainda necessita de assistência, e mesmo assim deixa de atendê-lo.
Pode o médico faltar com o dever de vigilância pela omissão de outro médico? Alguém já chamou isso de negligência vicariante. Isto é, quando certas tarefas exclusivas de um profissional são repassadas a outro, e o resultado não é satisfeito. Exemplo: um médico confiando no colega deixa o plantão na certeza de pontualidade deste, o que não vem se verificar. E, em consequência, um paciente vem sofrer danos pela ausência do profissional naquele local de trabalho. Pergunta-se: qual dos dois faltou com o dever de vigilância e de cuidados? O Código de Ética Médica dos Conselhos de Medicina do Brasil considera que ambos são infratores. O mesmo não se diga quando um médico é substituído por um colega, mesmo a seu pedido, e este age negligentemente. Seria injusto que o primeiro médico respondesse pelo descaso do outro, quando este poderia atender o paciente de maneira cuidadosa. O médico indicado para substituir outro não pode ser considerado como preposto dele. A condição de profissional liberal habilitado legal e profissionalmente afasta a possibilidade de preposição, cabendo-lhe responder pelos seus próprios atos. É patente que tal substituição deva ser realizada por outro profissional que tenha a devida qualificação, baseada no “princípio da confiança”, no qual alguém acredita que o outro venha atuar de forma correta, sempre que as circunstâncias permitam. Isso se verifica também quando se analisa a responsabilidade do membro de uma equipe, desde que ele esteja qualificado para exercer aquele tipo de tarefa. Não se deve responsabilizar um chefe de equipe se um dos seus membros faltou com o dever de vigilância para aquilo que é de sua competência.
Compreende-se também como falta do cumprimento do dever de vigilância a displicência que favorece resultados inidôneos de exames complementares, capazes de comprometer o diagnóstico e a terapêutica dos doentes, em laboratórios de anatomia patológica, patologia clínica, radioisótopos, citologia, imunologia, hematologia e serviços de radiodiagnóstico. Os responsáveis pelos resultados dos exames subsidiários executados por centros complementares de diagnóstico são seus diretores, cuja presença é imperiosa na elaboração dos laudos, mesmo que tecnicamente o exame possa ser feito sob sua supervisão. O radiologista que avalia erradamente uma fratura, o patologista que se equivoca no diagnóstico de um tumor e o hematologista que troca o resultado de um exame, vindo tais atitudes causarem dano, faltaram seus autores com o dever de cuidado, dentro dos padrões exigidos na prática profissional.
Assim, qualquer resultado incorreto por erros ou falhas humanas, tanto na elaboração técnica do exame como no controle, na coleta do material ou na atividade burocrática, permissíveis de comprometer o diagnóstico ou a terapêutica, é uma falta ao dever de cuidar, implícito na relação contratual do médico com o paciente e, por isso, motivo para as ações de arguição de responsabilidade. E o mais grave: nesta relação contratual, o responsável pelo centro de complementação de diagnóstico tem com o cliente uma obrigação de resultado e não de meios.
No mesmo raciocínio, entende-se a negligência em transfusão de sangue, desde as contaminações até as incompatibilidades, não esquecendo que o receptor não é o único sujeito aos riscos das transfusões e do uso de hemoderivados, mas também o próprio doador em decorrência da inaptidão para doar ou da contaminação do material de coleta.
Quando da avaliação do dano produzido por um ato médico, deve ficar claro, entre outros, se o profissional agiu com a cautela devida e, portanto, descaracterizada de precipitação, inoportunismo ou insensatez. Isso porque a norma penal relativa aos atos culposos exige das pessoas o cumprimento de certas regras cuja finalidade é evitar danos aos bens jurídicos protegidos.
Exceder-se na terapêutica ou nos meios propedêuticos mais arriscados é uma forma de desvio de poder e, se o dano deveu-se a isso, não há por que negar a responsabilidade profissional. Ainda que esses meios não sejam invasivos ou de grande porte, basta ficar patente sua desnecessidade. Basta que o autor assuma o risco excessivo, ultrapasse uma conduta não permitida e que no momento da ação ele conheça nela um risco para o bem tutelado. Essa capacidade de previsibilidade de dano em um indivíduo de boa qualificação profissional é o que se chama de dever subjetivo de cuidado e tem um grau mais elevado de responsabilidade. No dever subjetivo de cuidado avalia-se em cada caso o que deveria ser concretamente seguido, exigindo-se do autor um mínimo de capacidade para o exercício daquele ato e a certeza de que outro profissional em seu lugar teria condição de prever o mesmo dano. Se seguiu as regras técnicas naquele procedimento, conhecidas como lex artis, ou seja, se não se desviou dos cuidados e das técnicas normalmente exigidos.
Qualquer ato profissional mais ousado ou inovador, fora do consentimento esclarecido do paciente ou de seu representante legal, tem de ser justificado e legitimado pela imperiosa necessidade de intervir. Nisso é fundamental o respeito à vontade do paciente, consagrada pelo princípio da autonomia. E quando isso não for possível, em face do desespero da morte iminente, que se faça com sprit de finesse.
Falta com o dever de abstenção de abuso o médico que opera pelo relógio, que dispensa a devida participação do anestesista ou que delega certas práticas médicas a pessoal técnico ou a estudantes de medicina, sem sua supervisão e instrução. Nesse último caso, mesmo sendo comprovada a imprudência ou negligência deles, não se excluiu a responsabilidade do médico por culpa in vigilando.
Constitui abuso ou desvio de poder o médico fazer experiência no homem, sem necessidade terapêutica, pondo em risco sua vida e sua saúde. Isso não quer dizer que se excluam da necessidade do homem do futuro as vantagens do progresso da ciência e a efetiva participação do pesquisador. É preciso que ele não contribua com o ultraje à dignidade humana e entenda que pretensão da pesquisa é avançar em favor dos interesses da sociedade. Também não se pode julgar como insensato ou intempestivo o risco assumido em favor do paciente, superior ao habitual, o qual se poderia chamar de risco permitido ou risco-proveito.
Uma cirurgia plástica de resultado desastroso feita em menor de idade, sem autorização de seus responsáveis, no próprio consultório do médico e sem auxiliar habilitado, é um exemplo patente de imprudência médica. Está caracterizado o desvio de poder por várias razões. Primeiro, sendo o paciente menor e não se tratando de intervenção por iminente perigo de vida, necessitava o médico de autorização de quem represente o paciente. Depois, sendo uma intervenção de maior complexidade, exige-se a presença de um auxiliar médico capaz de conduzir o processo diante de uma situação inesperada. Finalmente, o consultório médico não é o local mais adequado para aquele tipo de cirurgia, principalmente quando ali não existiam as condições mínimas da prática exercida.
O dever de evitar abuso é muitas vezes comprometido pela vaidade do profissional que decide ousar em técnicas audaciosas ou recém-criadas, sem a eficiência comprovada, abandonando uma prática convencional e segura, apenas para demonstrar uma capacidade inusitada. Diante do dano em tal situação não se pode rotular o profissional de imperito, mas, com justa razão, de imprudente. Até porque num mesmo ato não pode coexistir a imperícia com imprudência: uma exclui a outra.
Na efetivação da responsabilidade médica, são requisitos indispensáveis:
1. O autor. É necessário que o profissional esteja habilitado legalmente no exercício da medicina; se não, além da responsabilidade, será punido por exercício ilegal da medicina, curandeirismo ou charlatanismo.
2. O ato. Deverá ser o resultado danoso de um ato lícito; pois, do contrário, tratar-se-á de uma infração delituosa mais grave, como, por exemplo, o aborto criminoso ou a eutanásia.
3. A culpa. Consiste na ausência do dolo, ou seja, que o autor tenha produzido o dano sem a intenção de prejudicar: por negligência, imprudência ou imperícia.
Os elementos essenciais da culpa são: previsibilidade de dano, ato voluntário inicial, ausência de previsão e voluntária omissão ou negligência.
4. O dano. Sem a existência de um dano real, efetivo e concreto, não existe responsabilidade. Esse elemento objetivo, relativamente fácil de se estabelecer, é condição indispensável.
A determinação concreta do dano, além de indispensável em relação à responsabilidade, pode estabelecer o grau da pena ou da indenização.
5. O nexo causal. É a relação entre a causa e o efeito, um elo entre o ato e o dano. Quando o ato é praticado licitamente, com moderação e a atenção devida, o resultado danoso pode ser considerado acidente.
Desses cinco elementos, os dois últimos são essencialmente da incumbência pericial.
Encontra-se na culpa o fundamento jurídico da responsabilidade médica. É necessário que o agente tenha dado causa sem ter querido o resultado, nem assumido o risco de produzi-lo, ou seja, que o tenha feito simplesmente por negligência, imprudência ou imperícia. Procede culposamente quem age sem o necessário cuidado e julga que o resultado não se dará. O limite da culpa é a previsibilidade do dano, isto é, que não seja possível escapar o fato à perspicácia comum.
Apresenta-se o crime com duas características:
1. uma conduta voluntária em oposição ao dever;
2. um resultado não desejado, mas que a lei define como crime, mesmo que o agente não possa prever. Essa é a culpa inconsciente.
A culpa consciente é aquela em que o sujeito ativo é sabedor do resultado previsto, mas não espera que ele aconteça. É um meio-termo entre a culpa e o dolo, ou melhor, quase um dolo eventual, em que o agente não quer o resultado mas assume o risco de produzi-lo.
Nossa lei não faz diferença entre as formas consciente e inconsciente, pois a primeira tem um sentido eminentemente psicológico. Não há também, em nosso texto penal, graus estabelecidos de culpa.
Assim, o conceito de culpabilidade está todo fundamentado, única e exclusivamente, na previsibilidade do resultado, pois fora disso não há crime. O que mais importa no delito culposo é justamente o momento consciente inicial.
Nosso Código não definiu a culpa, preferindo apenas enumerar suas modalidades, que são: imprudência, negligência e imperícia.
Quanto à responsabilidade civil do médico, um Comitê para os Problemas Médico-Legais da Associação Médica Americana assim se pronunciou: “Quando um médico pretende diagnosticar ou tratar um paciente, a lei requer que ele possua a habilidade e o tirocínio comumente possuídos e demonstrados por outros médicos reputáveis na mesma ou semelhante localidade. Se ele se intitula especialista, deve possuir os padrões técnicos de sua especialidade. Uma vez que tome um paciente sob seus cuidados profissionais, deve continuar prestando-lhe assistência tanto tempo quanto necessário, a menos que seja pelo mesmo dispensado, ou se afaste do caso após aviso prévio. É somente com a devida autorização, expressa ou tácita, que deve tentar qualquer diagnóstico ou processo terapêutico no paciente. A responsabilidade caracteriza-se por ato ou omissão, isto é, pela violação das obrigações legais que o médico deve ao paciente.
A existência ou alcance de tais obrigações legais não depende de terem sido pagos, ou não, os serviços profissionais do médico.
Complicações ou resultados refratários e inesperados não são raros. O mero fato de o paciente não ser curado, ou não evoluir favoravelmente, não significa, entretanto, por si só, negligência por parte do médico. Há frequentemente uma grande margem para diferenças honestas de opinião, e o médico assistente deve exercer seu melhor julgamento, o qual possa adotar. A lei presume, entrementes, que um médico atua com a perícia e o cuidado ordinários requeridos no tratamento de um paciente. Então estará ele justificado, se sua conduta, no caso, for endossada e seguida pelo menos por uma respeitável minoria de seus colegas na mesma localidade. Pode ele cometer um erro de diagnóstico ou de julgamento; pode usar remédios ou métodos de tratamento diferentes daqueles que alguns de seus colegas médicos teriam usado; pode obter um mau resultado em vez de um satisfatório, sem que nenhum desses fatos seja suficiente para estabelecer a responsabilidade”.
Portanto, numa sociedade onde os indivíduos são possuidores de direitos iguais, qualquer violação aos bens pessoais ou patrimoniais, em consequência de um dano, obrigará o agente causador a reparar esse prejuízo.
A fonte da conduta culposa na esfera penal é sempre a lei. Todavia, na responsabilidade civil a culpa médica pode originar-se da transgressão de um dever de conduta, imposto a todos os que vivem na sociedade, que é o de não violar as obrigações de atender de forma adequada o que está ajustado no contrato com o paciente, ou seja, na chamada obrigação de tratamento. Para tanto, não é imperiosa a existência de documento escrito. Assim, quando o médico aceita tratar de um paciente, está concretizada entre eles a existência de um contrato de prestação de serviços, que consiste em oferecer um bom tratamento.
Mesmo não existindo uma obrigação de curar sempre, há pelo contrato uma obrigação de usar todos os seus esforços, conhecimentos, meios e condutas. Por tal razão se diz que a obrigação fundamental nesse tipo de contrato é uma obrigação de meios, e não de resultado. Para que exista uma obrigação de resultado é preciso que o prestador de serviços tenha se obrigado a oferecer um determinado resultado.
Em tese, no exercício da profissão médica, por sua própria natureza, não há como prometer certo resultado, embora ele seja o mais desejado pelo médico e pelo paciente. O médico sabe que não pode prometer curar sempre pela complexidade da evolução das doenças e pela existência de elementos atípicos que surgem durante um tratamento, tornando difícil sua concreta realização.
A distinção nessa forma de obrigação tem importância quando se quer estabelecer o ônus da prova do dano: em obrigações de resultado presume-se a culpa sempre que o resultado não é alcançado. Nas obrigações de meio, não há presunção de culpa, e o paciente é quem deve provar a culpa do médico. Há jurisprudências que preconizam a possibilidade da inversão do ônus da prova em situações permitidas pelo Código de Defesa do Consumidor quando se quer atribuir a responsabilidade dos profissionais liberais. Segundo tal atendimento, cabe ao profissional demonstrar que agiu com o cuidado devido no cumprimento de suas obrigações diante do consumidor reclamante (STJ, REsp n.º 122.505/SP, DJ 24.08.1998). Há quem defenda que os médicos respondem pelos riscos inerentes à sua profissão, tais como riscos por erro de diagnóstico, erro terapêutico e erros de procedimentos decorrentes de fatores exógenos ou de conduta pessoal.
A primeira coisa a ser ressaltada é que nem todo resultado adverso na assistência à saúde individual ou coletiva é sinônimo de erro médico. A partir dessa premissa, deve-se começar a desfazer o preconceito que existe em torno dos resultados atípicos e indesejados na relação profissional entre médico e paciente. Os órgãos formadores de opinião poderiam contribuir muito em fazer avançar a sociedade denunciando as péssimas condições assistenciais e a desorganização dos serviços de saúde em nosso país.
Exige-se muito dos médicos, mesmo sabendo que sua ciência é inexata e que sua obrigação é de meios e não de resultados. Ainda que a vida seja um bem imensurável, a supervalorização desta ciência não encontrou uma fórmula mágica e infalível.
Por isso não se pode concordar com a alegação de que todo resultado infeliz e indesejável seja um erro médico. Nesse sentido, assinala Luiz Roberto Londres: “Sabemos que os maus resultados conhecidos não apresentam senão uma pequena parcela do que realmente ocorre (...). Não é, portanto, o erro médico o principal problema da medicina” (Erro médico/Responsabilidade médica, Arq. bras. Med., n. 62 (5), p. 523-524, 1988).
Com isso não se quer negar que o erro médico exista. Ele existe e existe até mais do que se alega. São decorrentes de uma forma anômala e inadequada de conduta profissional, contrária à lex artis e capaz de produzir danos à vida ou à saúde do paciente por imprudência ou negligência. O que se quer afirmar é que além do erro profissional existem outras causas que favorecem o mau resultado, como as péssimas condições de trabalho e a penúria dos meios indispensáveis no tratamento das pessoas.
Não deixa também de ser mau resultado o fato de os pacientes não terem leitos nos hospitais, não serem atendidos nos ambulatórios por falta de profissionais ou não poderem comprar os remédios recomendados para sua assistência. Afinal de contas, os pacientes não estão morrendo nas mãos dos médicos, mas nas filas dos hospitais, a caminho dos ambulatórios, nos ambientes insalubres de trabalho e na iniquidade da vida que levam.
Em primeiro lugar, é necessário distinguir o erro médico do acidente imprevisível e do resultado incontrolável.
O erro médico, quase sempre por culpa, é uma forma de conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica, capaz de produzir um dano à vida ou à saúde do paciente. É o dano sofrido pelo paciente que possa ser caracterizado como imperícia, negligência ou imprudência do médico, no exercício de suas atividades profissionais. Levamse em conta as condições do atendimento, a necessidade da ação e os meios empregados.
No acidente imprevisível há um resultado lesivo, supostamente oriundo de caso fortuito ou força maior, à integridade física ou psíquica do paciente durante o ato médico ou em face dele, porém incapaz de ser previsto e evitado, não só pelo autor, mas por outro qualquer em seu lugar.
O resultado incontrolável seria aquele decorrente de uma situação grave e de curso inexorável. Ou seja, aquele resultado danoso proveniente de sua própria evolução, para o qual as condições atuais da ciência e a capacidade profissional ainda não oferecem solução. Por isso, o médico tem com o paciente uma “obrigação de meios” e não uma “obrigação de resultados”. Ele assume um compromisso de prestar meios adequados, de agir com diligência e de usar seus conhecimentos na busca de um êxito favorável, o qual nem sempre é certo.
O erro médico, no campo da responsabilidade, pode ser de ordem pessoal ou de ordem estrutural. É estritamente pessoal quando o ato lesivo se deu, na ação ou na omissão, por despreparo técnico e intelectual, por grosseiro descaso ou por motivos ocasionais referentes às suas condições físicas ou emocionais. Pode também o erro médico ser procedente de falhas estruturais, quando os meios e as condições de trabalho são insuficientes ou ineficazes para uma resposta satisfatória.
Ninguém desconhece, por exemplo, o despreparo técnico e intelectual do médico que se está formando. Nem mesmo sabemos ainda o tipo de profissional que estamos necessitando para a nossa realidade. Seu aparelho formador, salvo algumas exceções, está transformado em fábricas de diplomas, carentes de recursos materiais, desfalcado de uma estrutura curricular mais séria e contando com professores, na sua maioria, despreparados e sem motivação.
Entre 1808 e 1960 foram criadas no Brasil 27 Faculdades de Medicina. De 1960 a 1970 houve uma proliferação inconsequente de Cursos Médicos, quando passaram de 27 para 75. Só no malsinado ano de 1968 foram abertas 13 escolas. Mesmo que a antiga Comissão de Ensino do MEC, após circunstanciado relatório, desaconselhasse a abertura de novas Faculdades, nos primeiros meses de 1976 era autorizada a criação de três novas escolas. Hoje deve passar de 150.
Se o aumento de vagas representasse efetivamente uma oportunidade de distribuir melhor os médicos em nosso território e, com isso, melhorar o padrão assistencial entre nós, tudo bem. No entanto, na prática, isso não se verificou, porque elas foram criadas por pressão de políticos locais e por interesses inconfessáveis de quem as autorizou.
Ninguém também desconhece que muitos desses maus resultados são originados das péssimas e precárias condições de trabalho, numa atenção à saúde cada vez mais decadente e mais anárquica como proposta, mesmo que tenhamos um número regular de médicos em relação à nossa população. Além de registrarem-se os mais baixos índices de saúde, o profissional sente, em seu dia a dia, dificuldades em exercer suas atividades, em face dos indigentes meios de trabalho. Os serviços públicos, com honrosas exceções, estão sucateados por uma política dirigida pela própria estratégia de poder, como forma deliberada de desmoralizá-los e entregá-los à iniciativa privada, a exemplo do que vem se fazendo apressadamente como política de privatização.
Nesse cenário perverso, que pode parecer desproposital ou alarmista, é fácil entender o que vem acontecendo nos locais de trabalho médico, onde se multiplicam os danos e as vítimas, e onde o mais fácil é culpar os médicos, que ética e legalmente seriam os primeiros responsáveis. Eles não são melhores nem piores que os outros profissionais, mas são os que aparecem no momento da morte e do desespero, pela natureza do seu próprio ofício.
Por trás disso, o Poder Público continua credenciando sem critérios técnicos, não fiscalizando as empresas conveniadas, escolhendo profissionais por indicação partidária, inflacionando o mercado com cerca de 12 mil médicos por ano sem o devido preparo e sem uma absorção de mão de obra, pagando salários irrisórios mesmo sabendo que é impossível alguém honestamente sobreviver desta forma.
O erro médico pode ser arguido sob duas formas de responsabilidade: a legal e a moral. A responsabilidade legal é atribuída pelos tribunais, podendo comportar, entre outras, as ações penais e civis. A responsabilidade moral é da competência dos Conselhos de Medicina, através de processos ético-disciplinares, segundo estipulam o artigo 21 e seu parágrafo único da Lei n.º 3.263, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto n.º 44.045, de 19 de julho de 1958.
O médico, como qualquer cidadão, responde penalmente quando produz um dano ao seu paciente, a não ser que prove a inexistência de sua culpabilidade.
Na doutrina penal tem prevalecido a teoria subjetivista da culpa, onde o agente não quer o resultado nem assume o risco de produzi-lo, existindo, apenas, uma previsibilidade de dano. Como essa previsão é eminentemente subjetiva, torna-se difícil atribuir ao médico uma responsabilidade criminal. Entre nós, a Justiça sempre tem se mostrado muito prudente ante uma suposta culpa, a não ser frente a uma situação indiscutível onde se possa impor o princípio da res ipsa loquitur, ou seja, onde a coisa fala por si mesma.
O crime é culposo quando o agente deixa de empregar a cautela, a atenção ou a diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado, e em face das circunstâncias não percebe o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo.
Nosso estatuto penal assim se refere: o crime é culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Imprudente é o médico que age sem a cautela necessária. É aquele cujo ato ou conduta são caracterizados pela intempestividade, precipitação, insensatez ou inconsideração. A imprudência tem sempre caráter comissivo.
O cirurgião que, podendo realizar uma operação por um método conhecido, abandona essa técnica e, como consequência, acarreta para o paciente um resultado danoso comete imprudência, e não imperícia.
A imprudência anda sempre com a negligência como faces de uma mesma moeda: uma repousando sobre a outra.
A negligência caracteriza-se pela inação, indolência, inércia, passividade. É a falta de observância aos deveres que as circunstâncias exigem. É um ato omissivo.
Pode-se configurar a negligência nas seguintes eventualidades:
1. Abandono do doente. Esse é o tipo mais clássico de negligência médica. Uma vez estabelecida a relação médico-paciente, a obrigação da continuidade de tratamento é absoluta, a não ser em casos especiais, como no acordo mútuo entre as partes ou por força maior. O conceito de abandono deve ficar bem claro, como no exemplo em que o médico é certificado de que o paciente ainda necessita de tratamento, e, mesmo assim, deixa de atendê-lo.
2. Omissão de tratamento. O médico que omite um tratamento ou retarda o encaminhamento de seu doente a outro colega para os cuidados necessários comete uma negligência. Por exemplo: um clínico ao tratar de um enfermo portador de apendicite não o transfere de imediato para um cirurgião, preferindo fazer o tratamento conservador, ou o faz já tarde, quando as complicações estão presentes. É um caso típico de negligência por omissão de tratamento.
3. Negligência de um médico pela omissão de outro. Pode o médico ser responsável por atos culposos de outros médicos? Alguém já chamou a isso de negligência vicariante. Isto é, quando certas tarefas de exclusiva responsabilidade de um são entregues a outros, e o resultado não é satisfeito. Exemplo: um médico, confiando no colega, deixa o plantão na certeza da pontualidade deste, o que não vem a se verificar. Em consequência, um paciente vem a sofrer graves danos pela ausência de um profissional naquele local de trabalho. Pergunta-se: qual dos dois é o negligente? Pensamos ser simplesmente o que abandonou o hospital. Ao segundo poderiam caber, depois de analisada a situação, apenas sanções disciplinares, em virtude de infração administrativa. No entanto, o Código de Ética Médica atual considera que ambos são infratores.
Por outro lado, mesmo que a profissão médica seja exercida com independência, há casos em que se pode atribuir a possibilidade de uma relação de comissão. Aqui, nesta hipótese, não se discute o aspecto da coautoria, que é outra coisa.
Se por doença, gozo de férias ou certos impedimentos o médico é substituído por outro colega, um ato praticado por este não se transfere ao primeiro. No entanto, se um paciente é atendido pelo médico substituto e existia uma obrigação assumida pelo substituído, e este último é beneficiado diretamente pelo trabalho de novo profissional, impõe-se a responsabilidade civil pelos atos do substituto, de que ele utilizou-se no cumprimento da prestação prometida. E tanto é certo que, cessado o impedimento, o paciente retomará os seus cuidados, caso necessite ainda de assistência.
Se um anestesista é escolhido pelo cirurgião por delegação da família ou do paciente, nenhuma responsabilidade recairá sobre o cirurgião diante de dano surgido em decorrência da anestesia. Se, porventura, o cirurgião impõe o anestesista ao doente, quando este tinha um de sua confiança, não dando assim ao paciente nenhuma condição de escolha, fica claro que entre esse doente e o anestesista não há nenhum vínculo de natureza contratual. E, se do ato anestésico surgir um dano ao paciente, quem é o responsável? O cirurgião ou o anestesista? Se o paciente não contratou diretamente com o anestesista, parece-nos que toda a responsabilidade é do cirurgião, por culpa in eligendo. Isto sob o ângulo civil. Na esfera penal e administrativa, cada um responde por sua própria culpa.
4. Prática ilegal por pessoal técnico. Em princípio, o médico não pode atuar sozinho. Em certas circunstâncias, a colaboração do pessoal auxiliar é imprescindível. Se o auxiliar subalterno exerce um ato sob ordens ou instruções, mas no qual a presença do médico é indispensável, aplica-se aqui também o princípio da negligência do superior responsável. Quando este auxiliar efetua uma tarefa em que a assistência do médico é indispensável, e disso vem a resultar dano à vida ou à saúde do paciente, responde penal ou civilmente este auxiliar ou o próprio hospital por indenização.
Exemplifiquemos: se um médico autoriza uma enfermeira a praticar uma paracentese, e disso resultam complicações ou danos ao doente, não há por que deixar de configurar, nesse caso, uma verdadeira negligência de quem autorizou. No entanto, se aquela auxiliar executa um ato próprio de sua capacidade, e natural no exercício de suas funções, é claro que ao médico não cabe atribuir-se nenhuma responsabilidade.
5. A letra do médico. Um fato, não muito raro, é o das receitas indecifráveis. Diz-se, em geral, que os médicos têm letra ruim, ilegível. Esse fato pode dar, na verdade, margem à troca de medicamentos, com risco de o paciente tomar um remédio diferente daquele prescrito. E, se dessa situação resultar um prejuízo ao paciente, quem é o responsável: o médico ou o farmacêutico?
Entendemos que a responsabilidade é de ambos. Do farmacêutico, por imprudência, pois não devia fornecer um medicamento quando não tem certeza do que se trata. Do médico, por negligência e imprudência, pela previsibilidade de seu ato poder acarretar dano ao seu paciente.
É comum afirmar que os médicos têm letra indecifrável, por pressa ou sofisticação. Todavia, isso não é verdade, pois muitos de nossos colegas escrevem de forma perfeitamente legível.
Para contornar esse problema, já se preconizou escrever as receitas à máquina de escrever ou através de computador, desde que expresse as necessidades do paciente. Muitos acham, no entanto, que a prescrição datilografada perde muito de sua beleza e de seu espírito. Melhor seria prescrevere mais devagar, procurando-se melhorar a grafia.
6. Negligência de hospitais. Era conceito antigo que o hospital não poderia ser considerado negligente, uma vez que não é ele quem cuida do paciente.
A Corte Suprema do Colorado, entretanto, condenou um hospital por negligência, em virtude de uma enfermeira ter lesado o nervo ciático de um paciente, de forma irreversível, por lhe ter administrado uma injeção. Nem foi censurado o médico nem a enfermeira, pois aquela Corte decidiu que o hospital, nas tarefas executadas pelas enfermeiras, é responsável pelos eventos técnicos, principalmente quando essas tarefas não são supervisionadas. O hospital teria direito de puni-la, mas a responsabilidade civil era toda sua.
Quanto ao médico, não cabia nenhuma imputação, pois não é ele quem deve escolher uma enfermeira, nem supervisionar seu trabalho, o que é atribuição exclusiva da administração hospitalar.
Desse modo, em face de algum dano, pode-se acionar, por negligência, o hospital nas seguintes eventualidades: rejeitar internação de um paciente sem uma devida justificação; alta prematura; lesões sofridas durante o internamento, como traumatismos por queda de cama, queimaduras por instrumentos ou artefatos, ou por erros na administração de um medicamento; infecção hospitalar.
Há até quem considere o hospital responsável pelos atos médicos, principalmente nas demandas civis. Já outros acham que ele apenas responde administrativamente, não lhe cabendo a responsabilidade por aqueles atos, uma vez que a instituição não cura ninguém: tão somente oferece meios e recursos para que o profissional o faça.
Já se cogitou, por meio da Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, uma punição considerando infração sanitária o preenchimento de receitas e prontuários médicos de forma ilegível ou que possa induzir a erro. A proposta modifica a Lei n.º 6.437/1977, que trata das infrações e penalidades na área sanitária. O relator do projeto admitia que “a letra ilegível pode causar risco à saúde, quando, ao não conseguir entender o que o médico pede, o farmacêutico vende medicamentos que não eram os prescritos”.
Além disso, argumentava que os prontuários mal preenchidos realmente impossibilitam investigações nos casos de erros e de omissões cometidos por profissionais de saúde e dificultam a sequência no tratamento por outro médico.
Afirmava, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor já regulamenta a obrigatoriedade de proteção do consumidor sobre eventuais riscos que produtos ou serviços possam oferecer e sobre a obrigatoriedade de serem prestadas informações adequadas e claras sobre produtos e serviços a ele destinados.
Na proposta, deveriam ser legíveis a prescrição de medicamentos ou de terapias, o preenchimento de prontuários hospitalares ou ambulatoriais, além de outros documentos destinados a dar informações sobre pacientes. O estabelecimento que não cumprisse a norma estaria sujeito às seguintes penas: advertência, interdição total ou parcial, cancelamento da licença para funcionamento e multa. O projeto ainda será analisado pelas comissões de Seguridade Social e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
7. Esquecimento de corpo estranho em cirurgia. O simples fato de haver esquecimento de um corpo estranho num ato operatório por si só não constitui, moral ou penalmente, um fato imputável, a menos que essas situações se repitam em relação a um determinado profissional, o que, por certo, viria configurar-se numa negligência médica.
Os mais hábeis e experimentados cirurgiões não se furtam de reconhecer a probabilidade desses acidentes e a estatística demonstra que todos aqueles que se dedicam a essa espinhosa e tumultuada atividade, e mais constantemente os profissionais de longa vivência, incorrem em tais acidentes, embora esporadicamente. Não é exagero afirmar-se que dificilmente um bom cirurgião escapou desse dissabor.
Tal fato é imprevisível e, até certo ponto, impossível de ser evitado, ainda que se empreguem os mais modernos meios e as maiores atenções. Ainda mais quando se reconhece que esses cuidados não dependem apenas do cirurgião e de sua habilidade, mas, também, dos que participam direta ou indiretamente do ato operatório, e inclusive do tipo de material utilizado nessa forma de trabalho.
Esses eventos, quando surgem, são exatamente nas operações de grande risco e de urgência comprovada, muitas delas entremeadas de acidentes graves ou vultosas hemorragias, ou ainda pelo pânico naturalmente provocado na equipe ante o angustiante estado de iminência de morte. Pelo exposto, não é nenhum absurdo esquecer certos corpos estranhos, como, por exemplo, compressas, as quais ficam mascaradas e escondidas no recôndito das cavidades. As incisões pequenas também contribuem para esses desfechos.
Outro fato conhecido pelos que militam nesse delicado setor é de que alguns corpos estranhos são totalmente inócuos ao organismo e podem permanecer por muito tempo enquistados ou, simplesmente, ser expelidos pela parede ou pelas vias naturais. Não é surpresa também frisar que esses elementos estranhos podem ser encontrados em necropsias de indivíduos operados há muito tempo, sem que esse esquecimento tenha contribuído para o resultado letal.
Outras vezes, o material deixado numa operação é encontrado num ato cirúrgico posterior, por patologia semelhante ou diversa; ou por comprovação radiológica cuja repercussão é causada de forma mais escandalosa por aqueles que o encontram. Infelizmente, para isso nem sempre tem havido coleguismo, existindo até quem encaminhe ao seu companheiro de profissão o corpo estranho encontrado, num gesto execrável de ferir-lhe a vaidade.
Apesar de ser um acidente pouco ocorrido entre os cirurgiões, as estatísticas mostram que o esquecimento de um desses corpos estranhos numa cavidade abdominal, por exemplo, tem implicação letal muito menor que outros acidentes que se verificam em cirurgia e anestesia, tais como supuração, embolia, descerebração, hemorragias, lesões de elementos nobres, muitos dos quais irreversíveis e mortais.
É inegável que, atualmente, esses acidentes estão escasseando, não apenas devido à sistematização da técnica operatória, como também pela maior tranquilidade do ato cirúrgico ou pelo sentido de equipe que se vem formando no momento. O aumento do tamanho das compressas, a aversão ao uso das gazes, a melhor iluminação e a maior capacitação dos auxiliares, a maior segurança em que se opera atualmente nos grandes centros são elementos saneadores desses acontecimentos. As longas fitas ou fitas com sinetes presos às compressas, o pessoal de enfermagem especializado na contagem do material utilizado são outros fatores de grande valor na profilaxia desses acidentes.
Se levarmos em consideração a precariedade do meio em que muitas operações são realizadas, em pequenos hospitais ou maternidades, onde os médicos operam e dão anestesia com a ajuda de um atendente ou serviçal, diante dos casos mais desesperadores e angustiantes, incorrer-se-ia num exagero se qualificasse, de modo isolado, o esquecimento de um corpo estranho como negligência médica. Seria injusto imputar-se desatenção ou desinteresse, mas, simplesmente, aceitar-se como um ato involuntário que normalmente pode fugir da vigilância e do controle, empanando o desvelo do profissional. Uma conspiração circunstancial e momentânea, própria e inexoravelmente ligada à falibilidade e à imperfeição de todo ato humano. Tudo que possa desviar a atenção ou perturbar o raciocínio e o sossego do operador é causa desses tipos de acidentes, por mais cauteloso que o cirurgião seja. E desses acidentes ninguém poderá dizer que está livre. O que não se perdoa ao médico é a relapsia para com os fatos mais triviais e mais geradores de dano.
O manuseio de compressas, e enfocamos esse elemento por ser o mais comumente deixado em cirurgias, é uma tarefa do auxiliar e da enfermagem, a qual se obriga ao trabalho de contagem, quer das utilizadas na operação, quer das colocadas à disposição do ato. Mesmo assim, essa operação meramente cerebral falha: ou por contagem aparentemente certa quando uma delas ficou na cavidade, ou, ainda, por contagem aparentemente inexata, com abertura desnecessária aos planos operatórios.
Em que pese a todos os membros de uma equipe médico-cirúrgica terem suas tarefas nitidamente definidas, a tendência de alguns doutrinadores era conferir a responsabilidade ao superior hierárquico. Será responsável o cirurgião por uma equipe que ele não escolheu, não escalou nem indicou, mas que recebe em virtude de uma escala de serviço? Ao que nos parece, não. É justo que toda irregularidade suscitada numa sala de operações seja transferida para o seu chefe? Tendo-se a ciência de que compete somente a ele a tarefa de supervisionar, seria demasiadamente injusto incriminar-lhe tudo quanto viesse a ocorrer no estranho mundo e nos complicados problemas de um palco cirúrgico. Para outros, o operador é responsável, mas não é o único. Estas teses são, sem dúvida, rigorosíssimas, pois a experiência tem demonstrado que nenhum método, por mais rígido que se afigure, é capaz de evitar esse desastroso acontecimento. A divisão das tarefas de um ato operatório dilui a responsabilidade e o coloca na posição de acidente imprevisível, inevitável pela convicção da certeza. É uma forma de engano para o qual não há garantia absoluta nem qualquer processo para evitar, mormente tendo-se em vista a dramaticidade e a urgência que caracterizam certas intervenções.
Para se qualificar o esquecimento de um corpo estranho num ato operatório como crime culposo por negligência, ter-se-ia de invocar os elementos essenciais da culpa: previsibilidade de dano, ato voluntário inicial, ausência de previsão e voluntária omissão ou negligência. Seja a culpa um vício da vontade, seja um vício da inteligência, não é caracterizada nas situações aludidas como responsabilidade médica por negligência.
A nosso ver, a imprevisibilidade de tais circunstâncias deixa de ser culposa para ser acidental, equiparando-se ao risco cirúrgico. Isto no prisma penal. E no âmbito da responsabilidade civil?
Sob o ângulo da responsabilidade civil é questão diferente, porque seus aspectos se voltam exclusivamente para o caráter político-econômico, tendo como princípio mais aceito o da “repartição dos danos”, caracterizada por uma exigência econômica em decorrência da qual qualquer dano deve ser repartido entre os interessados. Se é injusto um médico pagar uma indenização por um ato em que a culpa não foi caracterizada, maior seria a injustiça de o paciente arcar sozinho com o seu infortúnio. O que se pretende na responsabilidade civil – quase ilimitada – é tão somente assegurar o equilíbrio social, quando um prejuízo produzido poderia causar danos a um dos membros da comunidade. Embora o fundamento moral da responsabilidade civil seja o mesmo da responsabilidade penal, diferentes se mostram na maneira de reparação.
Além do ato médico, pode existir outra causa que concorra para o resultado, contanto que não imputável a outrem. Desta forma decidiu a Corte de Paris, em 5 de março de 1957: “O esquecimento de uma compressa no corpo de um operado, pelo cirurgião, nem sempre é culposo. Mas, ainda quando o seja, ao cirurgião é possível excluir sua responsabilidade, demonstrando que a compressa nenhuma influência teve na morte do cliente. Foi o que tentou, sem êxito, um cirurgião perante esta Corte. No caso, resultava dos exames periciais que a doente tinha falecido de uma infecção peritoneal, e que esta infecção não fora devido à compressa. Mas a Corte assinalou que ‘a permanência da compressa durante dois dias na cavidade abdominal já infectada, constituindo um foco suplementar de inflamação, não poderia deixar de agravar e acelerar o curso da infecção peritoneal existente”. Em suma, se a paciente tivesse boa saúde, teria suportado a permanência da compressa durante dois dias. Teria sido então o esquecimento dessa compressa a causa da morte? É incontestável que não foi ele a causa única. Houve outra: a doença preexistente. Mas esta doença não é um evento imputável à vítima. Ora, quando um dano tem duas causas – culpa do acusado e um evento não imputável a ninguém –, aquele responde pela responsabilidade integral” (Pondé, Lafayette. Responsabilidade civil dos médicos, Revista Forense, n. 191 (687/688), p. 30-36, set.-out. 1963).
A inclinação dos tribunais civis é admitir sempre a reparação do dano, pouco lhes importando que o resultado seja demonstrado por uma falha instrumental ou da ciência, quando a culpa médica não chega a ser nem comprovada. Segundo eles, a vítima não poderia arcar sozinha com seus prejuízos. Essa é a teoria do dano sofrido, amparada pelo princípio da responsabilidade sem culpa.
Esta responsabilidade do médico está presa pelo aspecto contratual, que faz da relação médico-paciente um contrato de locação de serviços entre ambos, ainda que esse atendimento seja gratuito. Os julgadores não estão muito interessados em examinar profundamente as razões subjetivas da culpa, senão apenas em reparar o dano. Houve até quem sentenciasse: “Não há nada de imoral, mesmo na ausência da culpa, em obrigar à reparação a coletividade pública causadora do dano por atos de seus agentes”. E o médico é um desses autores.
Destarte, assim como é raro atribuir ao médico a responsabilidade penal pelo esquecimento de um corpo estranho num ato operatório, dificilmente poderá ele eximir-se da obrigação de reparar civilmente seu paciente quando desse esquecimento resultou para este um dano à vida ou à saúde, ou lhe impôs novos gastos por intervenções complementares.
8. Cirurgia do lado errado ou da pessoa errada. As cirurgias erradas, quanto ao lado ou quanto à pessoa errada, embora muito raras, não se pode dizer que elas não ocorram, embora hoje, com a sistematização do ato operatório e a inserção das equipes até multidisciplinares, há uma tendência a reduzi-las a um número bem insignificante. Mesmo assim, se não houver uma política séria de prevenção nesse sentido, tais situações ainda trarão terríveis constrangimentos.
Dessa forma, alguém ser operado do joelho esquerdo em vez do direito ou se submeter a uma histerectomia e ter seu apêndice extirpado são situações que dificilmente têm uma justificativa de ausência de culpa por tal resultado tão devastador; sendo a cirurgia do lado errado muito mais grave no que diz respeito ao seu resultado lesivo. São nas áreas de maior complexidade e de maior utilização tecnológica, como nas salas de cirurgia, nas unidades de terapia intensiva e nas emergências, onde se verificam mais esses resultados tão inesperados.
Mesmo que o cirurgião seja o responsável pelo ato operatório e caiba a ele todos os cuidados de avaliação pré, trans e pós-operatório, não se pode dizer que todo resultado dessa natureza tenha por responsável sua negligência. Assim definiu, nos Estados Unidos, a Joint Commission on Accreditation of Health Care Organizations ao analisar 126 casos com tais resultados adversos, inclusive apresentando o “protocolo universal para prevenir a cirurgia do local errado, do procedimento errado e da pessoa errada”.
Esse protocolo praticamente baseia-se nos seguintes cuidados: 1 – Identificar os pacientes corretamente no agendamento da cirurgia. 2 – Melhorar a efetividade da comunicação entre profissionais e pacientes. 3 – Introduzir um programa de avaliação de riscos. 4 – Instituir visitas pré-operatórias em equipe. 5 – Listagem exposta de pacientes e procedimento no bloco cirúrgico. 6 – Exames de imagens e outros itens necessários e visíveis na sala de cirurgia que identifiquem o paciente. 7 – Marcar o local da cirurgia com tinta indelével. 8 – Identificar no pré-operatório imediato o paciente correto, o procedimento correto e local correto pelos membros da equipe. 9 – Quando possível ter a confirmação do pacientes antes de começar a operação.
Embora haja em todo ato operatório uma responsabilidade que é de todos, a tendência atual é dividir o ônus dos cuidados por determinados agentes, aos quais cabe a tarefa de supervisionar e a responsabilidade por cada procedimento. A tendência hoje é a de se atribuir a cada indivíduo um tipo de compromisso e um grau de responsabilidade. Não estamos mais no tempo da responsabilidade exclusiva ser do superior hierárquico.
A compreensão que se tem no momento é que a cirurgia de lado errado ou de pessoa errada não pode mais ser considerada como uma fatalidade. Há sempre uma culpa a ser declarada.
Entende a doutrina que imperícia é a falta de observação das normas, por despreparo prático ou por insuficiência de conhecimentos técnicos. É a carência de aptidão, prática ou teórica, para o desempenho de uma tarefa técnica. Chama-se ainda imperícia a incapacidade ou inabilitação para exercer determinado ofício, por falta de habilidade ou pela ausência dos conhecimentos rudimentares exigidos numa profissão.
Diagnóstico errado nem sempre é imperícia. O médico, como todas as pessoas, tem de aprender através da experiência e da observação, e estas, sabe Deus, representam, às vezes, a tarefa mais árdua e difícil. Não é ele infalível, nem pode garantir a recuperação de todos os pacientes, pois as situações que se apresentam são, em algumas circunstâncias, graves e confusas. Assim, numa dessas eventualidades, o erro não pode ser sinônimo de imperícia. Por isso, existe até aquilo a que chamamos de erro honesto.
No entanto, diz-se imperito um médico responsável pela morte de um paciente em consequência de um ato operatório, quando esse profissional não se encontrava em perfeito domínio técnico de realizá-lo, e por falta de conhecimentos anatômicos veio a lesar um elemento nobre. Seria isso imperícia, ou a imprudência de quem não estava apto a fazer tal operação, realizando-a mesmo sabendo de sua falta de condições?
Nosso pensamento é que o médico habilitado – profissional e legalmente – não pode ser considerado imperito em nenhuma circunstância, por mais palpável que seja essa situação, uma vez que consideramos imperícia a falta de habilidade no exercício de uma tarefa, ou a ausência de conhecimentos necessários para desempenhar uma atividade. Consiste ela justamente na incapacidade para determinado ofício. É a falta de prática rudimentar exigida numa determinada profissão, pois sabemos que todas elas possuem alguns princípios primários, os quais devem ser conhecidos por todos aqueles que a ela se dediquem.
Ora, se um homem tem nas mãos um diploma que lhe confere um grau de doutor e uma habilitação legal, será extremamente difícil a alguém provar que essa pessoa seja incapaz. Ou se é capaz, ou não. Não é lógico atribuir-se imperícia, em uma situação isolada, a um profissional habilitado e com provas de acerto em outras tantas situações.
O cirurgião que, podendo fazer uma operação por um processo simples e rotineiro, emprega um meio mais difícil e complexo, resultando disso morte ou dano à saúde de um paciente, não pode ser considerado imperito, e, sim, imprudente.
Mesmo o médico do interior que, longe da civilização e sem condições de atualizar-se, emprega métodos ineficazes que venham a causar a morte de um doente, ainda assim não se lhe pode atribuir culpabilidade, pois ele imprudentemente aplicou técnica para a qual estava habilitado.
Seria sempre tarefa dificultosa atribuir-se ignorância a quem é portador de um título que lhe garante o pleno exercício profissional e o conhecimento regular da Medicina, título esse conseguido através de prestação de exames exigidos nos currículos universitários.
Onde não há ignorância não pode haver imperícia.
Sabemos que o diploma de médico não pode ser um atestado de imunidade que lhe permite cometer impunemente toda espécie de negligência ou imprudência. Por outro lado, será sempre necessário que se trace um limite preciso entre a imprudência e a negligência, e a imperícia.
Nas faltas mais grosseiras, mesmo sabendo-se que o médico não é infalível, deveremos sempre estar diante de uma imprudência ou de uma negligência, por mais que pareça à primeira vista tratar-se de um caso de imperícia. Entendemos que juridicamente tal situação é insustentável, pois o diploma e o seu registro nas repartições competentes outorgam uma habilitação que torna o médico legalmente imune à imperícia.
Dizer-se que alguém sempre foi razoavelmente um bom profissional, e num caso isolado atribuir-lhe falta de conhecimentos, é um verdadeiro contrassenso.
Seria injusto e absurdo considerar um médico responsável por resultados atribuídos à ignorância ou à imperícia. Por outro lado, seria perigoso e temerário aceitar o princípio geral da não responsabilidade, quando diante de uma imprudência ou negligência.
“Responsabilizar e condenar o médico por imperícia seria punir a ignorância, o que constituiria uma injustiça” (Vila Nova e Morales).
Se um médico conhece superficialmente a composição de um medicamento, ou uma técnica mais sofisticada, e a aplica em seu paciente, é lógico que agiu com imprudência, impelido pela tentação audaciosa. Se um outro causa dano ao seu cliente por troca de medicamentos em receita de letra indecifrável, não há negar ter agido negligentemente.
Não podemos negar que há situações em que chegamos quase a acreditar num erro grave por imperícia, mas em face da razão e da lógica só se pode estar em duas situações: a de habilidade ou a de inabilidade. E o título é a prova inconteste de uma habilidade legalizada.
Por isso, será sempre difícil, e até certo ponto muito delicado, atribuir-se crime de imperícia a um médico, tendo o mesmo em seu poder um certificado que lhe confere o livre exercício da profissão.
O diploma médico será sempre uma prova insofismável de capacitação, para o qual o estado exigiu exames e treinamento universitário, pois quem não os obtém não pode deixar a Universidade. A habilitação médica não deve, portanto, ser discutida em cada novo caso, a não ser que o médico procure os caminhos escusos que levam à marginalização profissional.
Por responsabilidade médica não se entende, então, uma capacidade mais ou menos brilhante, ou um conhecimento mais ou menos profundo, mas apenas a possibilidade da imprudência ou da negligência, ou seja, a falta do dever de evitar abuso ou de vigilância.
A um médico que perfura um útero numa curetagem, ou que lesa um vaso importante numa cirurgia que não está capacitado a fazer, atribui-se o crime de imprudência, pois tais condutas não estão alicerçadas na sua experiência.
Por isso, repetimos, é extremamente difícil alguém pensar em imperícia de um homem que traz nas mãos um diploma de doutor; pois, para obtê-lo, foi necessária uma penosa triagem de vários anos, em várias disciplinas, tendo conseguido, sem dúvida, aprovação em todas elas.
O diploma universitário, pelo menos legalmente, presume no seu dono o conhecimento primário da profissão e o seu aprendizado mais elementar. E, ainda mais, é muito difícil o acúmulo de vastos conhecimentos que deem ao médico autoridade de um grande saber, numa ciência tão complexa como a Medicina.
Entre a negligência e a imprudência, existem indícios de grave culpabilidade, ao passo que na imperícia presume-se a falta de aprimoramento, relativo à pessoa que desempenha determinada profissão. Porém, nunca se poderia supor incompetência profissional em quem é portador de um diploma que lhe outorga condições de livre desempenho de sua atividade.
Imputar ao médico o desconhecimento das coisas mais triviais de sua técnica e ciência, o que poria em risco a vida e a saúde de seus pacientes, e sabendo-se de antemão que o mesmo é portador de um título idôneo conferido por uma instituição oficial ou reconhecida, é simplesmente considerar tal instituição como desonesta e leviana.
A administração de uma dose tóxica é, antes de tudo, imprudência de quem a usa sem conhecimento da composição de determinada substância. A quem não conhece o emprego de certas drogas ou de certas técnicas, e as aplica em alguém, seria muito pouco imputar imperícia, senão aquilo que se deve considerar muito mais grave: a imprudência. Portanto, as faltas dos médicos, consideradas sob o princípio da responsabilidade culposa, são, em quaisquer circunstâncias, resultado de imprudência ou de negligência, e jamais de imperícia.
Mais: todos nós somos ignorantes para alguma coisa. No entanto, não andamos por aí cometendo danos. O que nos faz diferentes é respeitar o limite da nossa capacidade. Quem não respeita esse limite é tão somente imprudente.
Se um médico, num grande centro, desatualiza-se e comete sucessivamente erros no desempenho de seu ofício, não se poderá chamar a isso de imperícia, mas de negligência, pois é princípio elementar que todo profissional deve procurar estar informado dos progressos relativos ao seu mister.
Essa necessidade não é apenas de ordem moral, mas uma obrigação de todo homem de ciência.
Por isso, já se faz sentir uma seleção mais rigorosa dos candidatos à profissão médica, bem como a instituição de cursos, seminários e mesas-redondas, de caráter obrigatório, pelas associações médicas. Não se pode negar que esta medida seja, até certo ponto, antipática, mas, por certo, trará indiscutíveis compensações.
Sabemos que nenhuma disposição legal permite inspeção contínua e sistemática da atividade médica, e a solução mais plausível será uma paciente e habilidosa maneira de sensibilizar os médicos mais velhos que negligenciaram no aprimoramento de sua arte, e um maior cuidado na seleção dos mais jovens, quando do ingresso nos serviços médicos.
Entende-se por centros complementares de diagnóstico os estabelecimentos responsáveis pela elaboração de exames subsidiários solicitados pelos profissionais de saúde encarregados do diagnóstico e da terapêutica dos pacientes. Na prática, são os laboratórios de anatomia patológica, patologia clínica, radioisótopos, citologia, imunologia, hematologia e os serviços de radiodiagnóstico.
Podem ser responsáveis pelos laboratórios de patologia clínica ou de análise o médico, o farmacêutico, o bioquímico e o biomédico. Todavia, quando o resultado dos exames exigir interpretação e análise, a responsabilidade será do médico, conforme determina o artigo 43, § 1.º, do Decreto n.º 12.467, de 17 de outubro de 1978. Por outro lado, o diagnóstico em raios X, citologia, hematologia e anatomia patológica é sempre de exclusiva competência do médico.
Os responsáveis pelos resultados dos exames subsidiários elaborados por esses centros complementares de diagnóstico são seus diretores, cuja presença é imperiosa na execução e na confecção dos laudos, mesmo que tecnicamente possam ser feitos sob sua supervisão.
Dessa forma, qualquer resultado incorreto por erros ou falhas humanas, tanto na elaboração técnica do exame como no controle, na coleta do material ou na atividade burocrática, capazes de comprometer o diagnóstico e a terapêutica, pode ser motivo de uma ação civil de indenização como forma de reparar o dano do paciente. O responsável pelo centro de complementação diagnóstica poderá ser arguido sobre o resultado indevido, em face de existir entre ele e o cliente uma obrigação de resultado e não de meios. Ressalve-se o resultado falso-negativo ou falso-positivo, como, por exemplo, no teste de gravidez.
Hoje, com a vigência do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, é mais fácil levantar a responsabilidade objetiva das empresas públicas ou privadas prestadoras de serviços complementares de diagnóstico, a fim de se obter a reparação do dano, pois esses setores enquadram-se perfeitamente dentro do espírito dessa nova legislação.
Após as atribuições constitucionais que outorgam ao estado controlar, fiscalizar e participar da transfusão de sangue, componentes e derivados, e a Lei no 7.649/1988 obrigar o cadastramento dos doadores, assim como a realização de exames de laboratório no sangue coletado, pode-se celebrar com certeza uma melhoria inestimável na prestação desses serviços.
Com a implantação do Sistema Único de Saúde e sua competência sobre esse setor, verificou-se uma mudança bem significativa na dinâmica da responsabilidade civil por dano ao paciente, quando deixou, em parte, de ser dos médicos, passando essa responsabilidade objetiva para o estado por deficiência do serviço. Assim, por exemplo, a contaminação do sangue transfundido é sempre do Banco, através da pessoa jurídica que o mantém ou o conveniou. E mais: de forma alguma, pode-se atribuir culpa ao médico que indicou uma transfusão de sangue.
Mesmo assim, não podem ser omitidos os riscos e as complicações, apesar do máximo zelo e dos redobrados cuidados na avaliação dos doadores e receptores e dos métodos de coleta e estocagem, maus resultados esses que vão desde as reações hemolíticas até as contaminações do sangue e de seus derivados por malária, hepatite ou AIDS.
Os danos produzidos, geralmente por negligência, nas transfusões de sangue podem ser ressarcidos através de ações civis de indenização contra o estado, baseadas na culpa in eligendo ou in vigilando. A prática hemoterápica é entendida por muitos como uma obrigação de resultado, por sua indicação precisa e indiscutível a um bom resultado.
Depois da vigência da Lei n.º 8.079, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, questões como essas ficaram mais claras.
Por fim, não esquecer que o receptor não é o único sujeito aos riscos da transfusão, mas, também, o próprio doador, em decorrência da inaptidão para a doação dessa ou daquela quantidade de sangue, ou por contaminação nas transfusões diretas, embora esporádicas, entre ele e o receptor.
Chama-se de prescrição penal a perda que tem o estado de punir pelo decurso do tempo. Damásio de Jesus diz que a prescrição “é a perda da pretensão punitiva ou executória do Estado pelo decurso do tempo sem o seu exercício” (Direito penal, 20. ed., São Paulo: Saraiva, 1997).
Há dois tipos de prescrição: a punitiva e a executória. A primeira ocorre sempre antes do trânsito em julgado da sentença, operando-se os prazos de acordo com o artigo 109 e § 1.º do artigo 110 do Código Penal, e a segunda ocorre depois do trânsito em julgado da sentença final condenatória, regulando os prazos de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 110 do mesmo diploma penal.
Salvo o disposto no § 1.º do artigo 110 do CP (caso em que a prescrição regula-se pela pena aplicada), de acordo com o artigo 109, a prescrição punitiva é regulada pelo máximo de pena privativa de liberdade cominada ao crime. No crime de homicídio culposo, por exemplo, cuja pena máxima aplicada é de até 3 (três) anos de detenção, de acordo com o inciso IV do artigo 109, prescreve em 8 (oito) anos. Já na lesão corporal culposa, cuja pena máxima é de 1 (um) ano de detenção, aplicando os critérios do inciso V do artigo 109, prescreve em 4 (quatro) anos.
Em relação à prescrição executória, isto é, após o trânsito em julgado da sentença final condenatória, o prazo é regulado pela pena imposta e verificado os mesmo prazos fixados no artigo 109, os quais se aumentam de um terço se o condenado é reincidente ou se o crime é qualificado.
É desta forma que se procedem aos cálculos prescricionais relacionados à pretensão punitiva e executória. Excetuando outros pormenores, que talvez, pela sua especificidade, não seja oportuno abordar neste estudo, como, por exemplo, os casos de redução e interrupção dos prazos.
Já o prazo para prescrição do pedido de indenização por erro médico se inicia na data em que o paciente toma conhecimento do dano, e não a data em que o profissional possa ter cometido o ilícito. A decisão é da 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que concedeu a uma vítima de erro médico paulista a possibilidade de pleitear indenização por uma cirurgia realizada em 1979. A paciente teve ciência da falha profissional 15 anos depois. Ela se submeteu a uma cesariana em janeiro de 1979 e, em 1995, foi informada de que havia uma agulha cirúrgica em seu abdômen. A descoberta foi feita a partir da solicitação de exames radiográficos para avaliar o deslocamento dos rins em decorrência de uma queda sofrida. Até então, ela afirma que nada sentia. Porém, em 2000, em razão de dores no corpo, teve a recomendação de extrair a agulha. O relator no STJ, ministro João Otávio de Noronha, esclareceu que à situação deve-se aplicar o princípio da “actio nata” – ou seja, prazo prescricional para propor ação de indenização é contado a partir do conhecimento do fato (Jornal Jurid, ano VII, n. 1.534, 4 maio 2011). A pretensão de reparação civil prescreve em 3 anos (art. 206, V, do CC/2002).
Muitos admitem que o contrato de assistência médica é uma locação de serviços. Outros, que a forma correta é considerá-lo um contrato sui generis, em virtude da especificidade e da delicadeza mais singular entre o profissional e o seu paciente, como ensina Alves Dias (Da responsabilidade civil, 6. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, v. 1 e 2).
Dentro do conteúdo das obrigações positivas, onde se exige do devedor um comportamento ativo de dar ou de fazer alguma coisa, são conhecidas duas modalidades de obrigações: a de meios e a de resultado.
Na primeira, existe o compromisso da utilização de todos os recursos disponíveis para se ter um resultado, sem, no entanto, a obrigação de alcançar esse êxito tão legítimo. Busca-se, é claro, um resultado, mas, em não se cumprindo – e inexistindo a culpa do devedor –, não há o que cobrar.
Na obrigação de resultado a prestação do serviço tem um fim definido. Se não houver o resultado esperado, há inadimplência e o devedor assume o ônus por não satisfazer a obrigação que prometeu.
Assim entendendo, existe na responsabilidade contratual civil do médico uma obrigação de meios ou de diligências, onde o próprio empenho do profissional é o objeto do contrato, sem compromisso de resultado. Cabe-lhe, todavia, dedicar-se da melhor maneira e usar de todos os recursos necessários e disponíveis. Isso também não quer dizer que ele esteja imune à culpa. Enfim, essa é a ideia que tem prevalecido. O contrário seria conspirar contra a lógica dos fatos.
Hoje, mesmo em especialidades consideradas como obrigação de resultado, como na cirurgia puramente estética, já se olha com reservas esse conceito tão radical de êxito absoluto, pois o correto é decidir pelas circunstâncias de cada caso. Caso contrário, é contraditar-se com a própria natureza das coisas.
Iturraspe ensina que na obrigação de resultado o devedor assume o compromisso de alcançar um objetivo ou conseguir um efeito almejado. E na obrigação de meios o devedor não assegura a consecução do resultado esperado, mas se obriga a empregar os meios necessários e indicados para a proposta esperada, sendo o resultado secundário à obrigação e não integrante como objeto do contrato (Responsabilidad civil del médico, Buenos Aires: Astrea, 1979).
Assegura ainda o mesmo autor que, na obrigação de meios, o resultado que se promete na assistência médica não é a cura do paciente, mas a forma orientada para esse fim, desde que ele tenha empregado o melhor de sua capacidade e o que lhe é disponível.
Kfouri Neto, citando os irmãos Mazeaud, transcreve: “O credor não tem, então, que provar que o devedor tenha sido negligente, é ao devedor que incumbe estabelecer que obrou com toda prudência desejável e esperada. Na prática ter-se-ia o seguinte: o paciente afirma que não foi curado. O médico não pode, então, permanecer numa posição de negativa, pura e simples, dizendo: prove minha imprudência, pois do fato de não haver atingido o resultado a que, sem dúvida, não se obrigou a alcançar, mas para o atingimento do qual havia prometido empenhar-se, resulta uma presunção de negligência contra ele. O médico tem, portanto, que provar necessariamente a prudência e a diligência com que se houve. Por isso, conforma-se aos princípios da obrigação de meios obrigar os médicos a estabelecerem a certeza de que não atuaram com culpa” (Responsabilidade civil do médico, São Paulo: RT, 1994).
A obrigação do médico é de meio porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao seu paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem no entanto poder garantir sempre um sucesso. Só pode ser considerado culpado se ele procedeu sem os devidos cuidados, agindo com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser culpado se chegar à conclusão de que todo empenho foi inútil em face da inexorabilidade do caso, quando o especialista agiu de acordo com a “lei da arte”, ou seja, se os meios empregados eram de uso atual e sem contraindicações. Punir-se, em tais circunstâncias, alegando obstinadamente uma “obrigação de resultado” não seria apenas um absurdo. Seria uma injustiça.
Em síntese, o que se afirma não é que o médico não cometa erros – sejam eles de diagnóstico, de terapêutica e de técnicas, ou que ele não seja nunca negligente ou imprudente –, mas, tão só, que o ato médico tal qual se vem aplicando hodiernamente no conjunto das ações de saúde, em que pese a relevância que se dê à modalidade de obrigação, não pode constituir um contrato de resultado, mas de meios ou de diligência, embora em casos de manifesta negligência ou imprudência venha se ampliar sua responsabilidade quanto aos métodos usados ou à terapêutica escolhida.
Nos casos de maus resultados, em que se procure comprovar um erro médico, o que se deve considerar, antes de mais nada, além do nexo causal e do tamanho do dano, é o grau da previsibilidade do autor em produzir o resultado danoso e a culpa suficientemente demonstrada, dentro das espécies negligência e imprudência.
A obrigação de resultado, em que se exige do devedor ativo de dar ou fazer alguma coisa, parece-nos a cobrança contratual aos prestadores de serviços de coisas materiais, ao não cumprirem a promessa quantitativa ou qualitativa de uma empreitada. Isso, é claro, não poderia ocorrer na assistência médica. A não ser que irresponsavelmente alguém prometesse tanto. E mesmo assim, acreditamos, o que caracteriza a obrigação de resultado é a natureza do serviço.
Mesmo assim, qualquer que seja a forma de obrigação – de meios ou de resultado, diante do dano, o que se vai apurar é a responsabilidade, levando em conta principalmente o grau da culpa, o nexo de causalidade e a dimensão do dano, ainda mais diante das ações de indenizações por perdas e danos.
No ato médico, a discutida questão entre a culpa contratual e a culpa aquiliana, e, em consequência, a existência de uma obrigação de meio ou uma obrigação de resultado, parece-nos apenas um detalhe. Na prática, o que vai prevalecer mesmo é a relação causal entre a culpa e o dano, pois até mesmo a exigência do onus probandi hoje já tem remédio para a inversão da prova, qualquer que seja a modalidade de contrato.
“O fundamento da responsabilidade civil está na alteração do equilíbrio social, produzida por um prejuízo causado a um dos seus membros. O dano sofrido por um indivíduo preocupa todo o grupo porque, egoisticamente, todos se sentem ameaçados pela possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, sofrerem os mesmos danos, menores, iguais e até maiores” (Hermes Rodrigues de Alcântara, Responsabilidade médica, Rio de Janeiro: José Konfino, 1971).
A responsabilidade civil gira em torno de duas teorias: a subjetiva e a objetiva.
A teoria subjetiva tem na culpa seu fundamento basilar. No âmbito das questões civis, a expressão culpa tem um sentido muito amplo. Vai desde a culpa stricto sensu ao dolo. É o elemento do ato ilícito, em torno do qual a ação ou a omissão levam à existência de um dano. Não é sinônimo, portanto, de dano. É claro que só existirá culpa se dela resultar um prejuízo. Todavia, esta teoria não responsabiliza a pessoa que se portou de maneira irrepreensível, distante de qualquer censura, mesmo que tenha causado um dano. Aqui argui-se a responsabilidade do autor quando existe culpa, o dano e o nexo causal. Seu fundamento é todo moral: primeiro porque leva em conta a liberdade individual, e, segundo, porque seria injusto atribuir-se a todos, indistintamente, consequências idênticas a um mesmo fato causador. Não faz injustiça com o autor, mas a deixa fazer contra quem já sofre a contingência de ser vítima.
No entanto, atualmente, essa teoria começa a ser contestada, por várias razões: a imprecisão do conceito de culpa pelo seu cunho teórico e caracterização imprecisa, o surgimento da responsabilidade sem culpa, o sacrifício do coletivo em função de um egoísmo individual sem imputabilidade nos tempos atuais e a socialização do direito moderno.
Assim, o conceito de culpa vai se materializando, surgindo a teoria objetiva da responsabilidade, que tem no risco sua viga mestra. O responsável pelo dano indenizará simplesmente por existir um prejuízo, não se cogitando da existência de sua culpabilidade, bastando a causalidade entre o ato e o dano, para obrigar a reparação. O nexo causal consiste no fato de o dano ter surgido de um ato ou de sua omissão. No momento em que a noção de culpa passa a ser diluída, a ideia de risco assume um plano superior.
Os que contrariam esse conceito admitem ser a teoria objetiva materializadora, vingativa, baseada na justiça do “olho por olho” e do “dente por dente” do Talião, preocupada com o aspecto patrimonial em prejuízo das pessoas. Entretanto, tais argumentos não se justificam, pois não se cogita de represália nem de vindita, senão da solidariedade e da equidade – fundamentos basilares da nova conceituação da responsabilidade civil. Longe de significar a volta ao primitivismo, reflete a sensibilidade do doutrinador ante os fenômenos sociais, consequentes e inevitáveis nos tempos de hoje.
Agora, com as alterações advindas com a vigência do novo Código Civil, a partir de janeiro de 2003, pode-se dizer que a responsabilidade civil médica pouco muda em termos de doutrina, mas nota-se sensíveis mudanças em seus dispositivos.
Antes esta matéria era balizada pelos artigos 159 (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.”) e 1.545 (“Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento.”).
O primeiro foi substituído neste novo diploma pelo artigo 186 (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”) O segundo não tem correspondência no Código vigente. Com certeza será aplicado a artigo 951 (“O disposto nos artigos 948, 949 e 950 aplica-se ainda nos casos de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.”) Houve, no entendimento de Nestor Forster, uma ampliação na responsabilidade indenizatória (Erro médico, São Leopoldo: Unisinos, 2002, Coleção Aldus).
O artigo 927, em seu parágrafo único (“Haverá obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”), exclui totalmente o conceito da necessidade de verificação da culpa, conforme estava contida no artigo 159 do antigo Código.
O conceito da obrigação de indenizar baseado na responsabilidade objetiva do profissional parece estar bem claro no artigo 927. Em relação a esta responsabilidade, três são teorias clássicas da imputação causal da culpa (ou da conduta) do agente, a saber: “1. Teoria da equivalência dos antecedentes; 2. Teoria da causalidade adequada; 3. Teoria da causa eficiente”.
A primeira, diz Lana, é conhecida como teoria da conditio sine qua non, e vem disciplinando, há várias décadas, o nosso ordenamento jurídico na área penal; a segunda é caracterizada como a doutrina predominante que rege nosso Código Civil; a terceira representa uma mitigação da primeira teoria, segundo a qual o evento danoso jamais ocorreria se determinado conjunto de causas não estivesse presente no nexo de causalidade, embora uma delas exsurge como a causa necessária, enquanto as demais apenas estabeleceriam causas complementares para a produção do evento. Tal construção se nos afigura mais lógica no entendimento da responsabilidade médica, visto existir uma multiplicidade de fatores causais, na maior parte, ou, mesmo, na totalidade dos casos.
É preciso que fique bem claro que em princípio não se quer defender a irresponsabilidade do ato médico, mas, isto sim, determinar de forma objetiva o agente que deu causa ao evento, ou, pelo menos, cuja ação culposa se revelou mais lesiva ao bem jurídico em discussão. Neste particular, há de se avaliar também a participação da equipe, as condições de trabalho, a influência de fatores impossíveis de evitar, a ação de terceiros estranhos à relação médico-paciente, e ainda a própria culpa do paciente.
A verdade é que a doutrina da responsabilidade civil, seja ela extracontratual ou contratual, tem seus fundamentos na tese da responsabilidade sem culpa. Desta forma, o causador do dano só está isento de indenizar se for excluído o nexo de causalidade. Mesmo que nossa tradição seja firmada na responsabilidade subjetiva, com base na imprudência, na imperícia ou na negligência, agora dá lugar ao conceito da responsabilidade objetiva baseada na teoria do risco.
A grande expectativa é saber se as profissões que lidam com a vida e a saúde serão consideradas pela doutrina ou pela jurisprudência como atividades de risco ou se dependerá caso a caso do julgador.
Modificação bastante significativa é a introdução do parágrafo único do artigo 950, onde estabelece que, caso deseje o indenizado, a importância arbitrada referente a perdas e danos, além de lucros cessantes, despesas de tratamento ou luto e funeral, e pensionamento ou prestação de alimentos com base no salário mínimo, poderá ser exigida em pagamento de uma só vez pelo credor da obrigação.
O artigo 948, II, deste novo diploma, acrescentou ainda o fator da duração provável da vida no cálculo de prestação de alimentos devida no caso de homicídio. Este entendimento já é vigente no STJ e nos tribunais superiores.
Finalmente, foi alterado o prazo prescricional para as ações relativas ao estado das pessoas. Antes era de 20 (vinte) anos, agora é de 10 (dez) anos, de acordo com o artigo 205 do novo diploma legal.
A saúde, dentre os direitos sociais, apresenta-se como um requisito essencial da dignidade humana, fundamento básico de qualquer estado democrático que tem como projeto o alcance da personalidade e da cidadania. Por isso a saúde não pode ficar circunscrita apenas aos seus aspectos psicofísicos, mas deve se estender aos limites permitidos à liberdade consciente do homem e da mulher.
Na esteira deste pensamento, o chamado “consentimento livre e esclarecido” não deve ficar apenas entendido como mais uma regra na atividade profissional do médico, mas também no respeito à vontade do paciente em que o direito à saúde é um direito fundamental de cada ser humano. Esta é uma forma de garantir a cada individuo sua própria soberania.
Tudo faz crer, todavia, que os maiores entraves em se estabelecer este diálogo para a obtenção do consentimento livre e esclarecido estão na dificuldade que os profissionais de saúde têm de entender que tal procedimento é muito mais que um problema profissional. É uma questão sociopolítica que se incorpora mais e mais à nossa cultura humanística.
Deve-se entender que o consentimento livre e esclarecido, operacionalizado no princípio da autonomia e da beneficência, não deve representar apenas um fato que diga respeito a uma autonomia de caprichos ou desesperos, mas que ele esteja dentro do contexto de uma questão político-social própria das sociedades organizadas que primam pelo bem comum. No fundo mesmo, só existe um princípio básico que é a beneficência. E como seu próprio nome diz, ele não pode excluir a autonomia.
Não se pode mais aceitar o modelo paternalista de relação no qual somente cabia dar informação ao paciente e pedir seu consentimento quando isto representasse uma forma imprescindível de se ter um bom resultado por meio da sua colaboração, quando da realização de um procedimento médico. Está claro que tal conduta não responde mais aos interesses da realidade atual. Por outro lado, não se pode aceitar o “autonomismo” irreal.
Todos nós temos o direito de saber nossa verdade e participar ativamente das decisões que dizem respeito a nossa vida e, portanto, das decisões médicas e sanitárias que afetam a nossa saúde.
A informação é um pressuposto ou requisito prévio do consentimento. É necessário que o paciente dê seu consentimento sempre de forma livre e consciente e as informações sejam acessíveis aos seus conhecimentos. Para que esse consentimento seja juridicamente válido, ele debe ser dado por alguém capaz e as informações isentas de vícios.
Não se pode esquecer que estas informações, quando passadas ao paciente, devem ser numa linguagem que permita o devido esclarecimento e a consciente permissão. Em suma: toda intervenção médica, para ser legítima, necessita do consentimento, e este só tem legitimidade se for tomado na transparência da clareza das informações. Mais: a questão do consentimento livre e esclarecido não pode ficar centrada apenas no médico e no paciente, mas também com a própria instituição de saúde, a família do paciente e os demais profissionais de saúde que atuam no mesmo caso.
Além disso, o consentimento não pode se resumir apenas a uma informação pura e simples, como quem dá um recado. Ele deve ser livre, consciente e esclarecido, e como tal se entende aquele que foi obtido de um indivíduo capaz civilmente e apto para entender e considerar razoavelmente uma proposta ou uma conduta, isenta de coação, influência ou indução. Não pode ser obtido por meio de uma simples assinatura ou de uma leitura apressada em textos minúsculos de formulários a caminho das salas de operação. O consentimento tem de ser obtido antes da intervenção, até por que, obtido posteriormente, não teria nenhum valor jurídico. E deve ser obtido por meio de uma linguagem acessível ao seu nível de convencimento e compreensão para evitar a compreensão defeituosa, principalmente quando a situação é complexa e difícil de avaliar (princípio da informação adequada).
É claro que não se está falando de esclarecimentos de caráter estritamente técnico em torno de detalhes de uma enfermidade ou de um procedimento. A linguagem própria dos técnicos deve ser decodificada para o leigo, senão ele tende a interpretações erradas e temerárias. É correto dizer ao doente não só os resultados normalmente esperados, senão ainda os riscos que determinada intervenção pode trazer, sem, contudo, descer a minuciosidades mais excepcionais. É certo que o prognóstico mais grave pode ser perfeitamente analisado e omitido em cada caso, embora não seja correto privar a família desse conhecimento.