Era uma vez, numa terra há muito esquecida, um rei poderoso que era temido por todos e amado por ninguém.
Chamava-se Rei Coração Fechado…
excerto de REI CORAÇÃO FECHADO
LONDRES
FEVEREIRO DE 1737
Uma mulher fora de portas em St. Giles à meia-noite era muito tola ou estava muito desesperada. Ou, no seu caso, refletiu perversamente Temperance Dews, uma combinação das duas coisas.
– Diz-se que o próprio fantasma do santo assombra noites como esta – disse Nell Jones, a criada de Temperance, fazendo conversa enquanto evitava uma poça suja na viela estreita.
Temperance olhou-a com desconfiança. Nell passara três anos numa companhia ambulante de atores e, por vezes, pendia para o melodrama.
– Não há nenhum fantasma que assombre Saint Giles – replicou Temperance com firmeza. – A noite fria de inverno era suficientemente assustadora sem reforço espetral.
– Claro que há. – Nell ergueu mais o bebé que lhe dormia nos braços. – Usa uma máscara negra e vestes furta-cores de arlequim. E arma-se com uma espada maléfica.
Temperance franziu a testa.
– Vestes furta-cores de arlequim? Não me parece um traje muito fantasmagórico.
– É fantasmagórico se for usado pelo espírito falecido de um arlequim de teatro regressado ao mundo para assombrar os vivos.
– Pelas más críticas que teve?
Nell fungou.
– E tem a face desfigurada.
– Como poderá alguém perceber isso com a máscara?
Aproximavam-se de uma esquina na viela e Temperance julgou ver luz adiante. Ergueu mais a lanterna e apertou com um pouco mais de força a pistola antiquada na outra mão. A arma era suficientemente pesada para lhe provocar dores no braço. Poderia tê-la trazido num saco, mas isso torná-la-ia inútil como instrumento dissuasor. Estava carregada para um único tiro e, na verdade, não conhecia por completo a sua forma de manuseio.
Mesmo assim, a pistola parecia perigosa e Temperance sentia-se grata por isso. A noite estava escura e o vento gemia de forma sinistra, arrastando consigo o cheiro a excremento e carne podre. Os ruídos de St. Giles erguiam-se em seu redor: vozes discutindo, gemidos e gargalhadas e, ocasionalmente, um grito de gelar o sangue. St. Giles conseguiria fazer a mulher mais intrépida fugir para salvar a vida.
E tudo isto sem a conversa de Nell.
– Terrivelmente desfigurada – continuou Nell, ignorando a lógica de Temperance. – Diz-se que os seus lábios e pálpebras foram devorados pelo fogo, como se tivesse morrido num incêndio há muito tempo. Parece sorrir-nos com os seus grandes dentes amarelos quando se aproxima para nos arrancar as entranhas.
Temperance torceu o nariz.
– Nell!
– É o que dizem – afirmou Nell, plena de virtude. – O fantasma esventra as vítimas e brinca com as suas entranhas antes de desaparecer na noite.
Temperance estremeceu.
– Porque faria tal coisa?
– Por inveja – afirmou Nell sem hesitar. – Inveja os vivos.
– Seja como for, não acredito em espíritos. – Temperance inspirou fundo quando contornaram a esquina, alcançando um pátio pequeno e miserável. Duas figuras erguiam-se no extremo oposto, mas afastaram-se com a sua aproximação. Temperance expirou.
– Deus… Odeio estar fora de portas à noite.
Nell acariciou as costas da criança.
– Só mais quilómetro e meio. Depois, podemos deitar a pequena e chamar uma ama de leite pela manhã.
Temperance mordeu o lábio enquanto entravam numa nova viela.
– Parece-te que viverá até ao amanhecer?
Nell, habitualmente tão liberal com a partilha das suas opiniões, permaneceu calada. Temperance olhou em frente e apressou o passo. O bebé parecia ter meras semanas de vida e ainda não produzira um som desde que a tinham arrancado aos braços da mãe morta. Normalmente, um bebé saudável era bastante sonoro. Era horrível pensar que poderia ter arriscado com Nell aquela saída perigosa em vão.
Mas que escolha tivera, afinal? Quando foi informada no Lar para Crianças Desventuradas e Abandonadas de que um bebé precisava da sua ajuda, o Sol ainda brilhava. Sabia bem, por infeliz experiência própria, que, se esperassem até à manhã para resgatar a criança, esta seria vitimada durante a noite pela falta de cuidados ou vendida como adereço de um mendigo. Estremeceu. As crianças criadas por mendigos viam frequentemente a sua miséria ser exagerada para motivar a piedade dos transeuntes. Um olho poderia ser furado ou um membro partido ou torcido. Não. Não tivera realmente escolha. O bebé não podia esperar até ao amanhecer.
Mesmo assim, ficaria muito feliz quando regressassem a casa.
Percorriam uma passagem estreita, com os edifícios altos erguendo-se de cada lado de forma ameaçadora. Nell foi forçada a caminhar atrás de Temperance para não roçar as paredes. Um gato esquelético serpenteou por elas e ouviram um grito muito próximo.
A determinação nos passos de Temperance vacilou.
– Há alguém à nossa frente – sussurrou roucamente Nell.
Ouviram passos seguidos por um grito agudo.
Temperance engoliu em seco. A viela não era cruzada por passagens laterais. Podiam apenas recuar ou seguir em frente. Recuar implicaria um acréscimo de vinte minutos ao percurso.
Perceber isso reforçou-lhe a determinação. A noite estava fria e o frio não era bom para o bebé.
– Fica perto de mim – sussurrou a Nell.
– Como uma pulga ficará perto de um cão – murmurou Nell.
Temperance elevou os ombros e ergueu a pistola com firmeza à sua frente. Winter, o seu irmão mais novo, dissera que bastava apontá-la e disparar. Não seria assim tão difícil. A luz da lanterna iluminava a viela à sua frente enquanto alcançavam outro pátio miserável. Imobilizou-se por um segundo, com a luz iluminando o que as recebia como um palco de pantomina.
Havia um homem caído no chão, sangrando da cabeça. Mas não foi isso que a arrepiou. O sangue e até a morte eram suficientemente comuns em St. Giles. Não. O que a paralisou foi o segundo homem. Agachava-se sobre o primeiro, com a capa negra espalhando-se de cada lado como as asas de uma grande ave de rapina. Segurava uma bengala longa e negra com extremidade reforçada com prata da mesma cor do seu cabelo longo e liso, refletindo a luz da lanterna. Apesar de ter a cara quase completamente coberta por sombras, os seus olhos brilhavam por baixo do tricórnio negro. Temperance sentia o peso do olhar fixo do estranho. Era como se a tocasse.
– O Senhor nos guarde e preserve do mal – murmurou Nell, parecendo assustada pela primeira vez. – Vamos, senhora. Apressai-vos!
Acedendo ao apelo, Temperance atravessou o pátio a correr, com os sapatos ecoando sobre o empedrado. Entrou noutra passagem e deixou a cena para trás.
– Quem era, Nell? – Ofegava enquanto percorriam a viela fétida. – Sabes?
Subitamente, a viela desembocou numa rua mais larga e Temperance descontraiu um pouco, sentindo-se mais segura sem a pressão das paredes de cada lado.
Nell cuspiu como se quisesse libertar a boca de um sabor desagradável.
Temperance olhou-a, curiosa.
– Pareceu-me que conhecias aquele homem.
– Não o conhecia – replicou Nell. – Mas já o vi. Era Lorde Caire. Será melhor que ninguém se intrometa no seu caminho.
– Porquê?
Nell abanou a cabeça, fechando os lábios com firmeza.
– Será melhor que não vos fale dele, senhora.
Temperance ignorou o comentário críptico. Estavam numa rua melhor. Algumas das lojas tinham lanternas penduradas sobre as portas, acesas por quem habitava no interior. Temperance contornou mais uma esquina, alcançando Maiden Lane e avistando o lar de órfãos. Tal como os edifícios vizinhos, era alto e construído com tijolos baratos. As janelas eram escassas e muito estreitas e a porta não tinha qualquer placa identificativa. Nos quinze anos precários de existência do lar, nunca fora necessário publicitar a sua existência.
As crianças abandonadas e órfãs eram demasiado comuns em St. Giles.
– Chegámos em segurança – disse Temperance quando chegaram à porta. Pousou a lanterna sobre o degrau de pedra gasta e puxou a grande chave de ferro que trazia pendurada da cintura. – Anseio por uma chávena de chá quente.
– Deitarei o bebé – disse Nell enquanto entravam no vestíbulo diminuto. Estava imaculadamente limpo, mas isso não escondia o estuque caído ou as tábuas tortas no soalho.
– Obrigada. – Temperance despiu a capa e pendurava-a no cabide quando um homem alto se atravessou na porta.
– Temperance.
Engoliu em seco e virou-se.
– Oh! Winter, não sabia que tinhas regressado.
– Obviamente que sim – afirmou mordazmente o seu irmão mais novo. Indicou a criada com a cabeça. – Boas-noites, Nell.
– Senhor. – Nell saudou-o com uma vénia e moveu nervosamente o olhar entre irmão e irmã. – Será melhor… ocupar-me da criança…
E subiu as escadas, deixando Temperance sozinha com a desaprovação de Winter.
Temperance ergueu os ombros e passou pelo irmão. O lar de órfãos era longo e estreito, apertado pelas casas de cada lado. Uma divisão ligava-se ao pequeno vestíbulo. Era usada como sala de jantar e, ocasionalmente, recebiam-se aí as visitas importantes. Ao fundo, ficavam as cozinhas, onde Temperance entrava naquele momento. As crianças tinham jantado às cinco horas em ponto, mas nem ela nem o seu irmão tinham comido.
– Preparava-me para fazer chá – disse enquanto avivava o lume. Fuligem, o gato negro do lar, ergueu-se do seu lugar de eleição diante da fogueira e espreguiçou-se antes de se afastar em busca de ratos. – Sobrou um pouco de carne de ontem e há rabanetes frescos que comprei esta manhã no mercado.
Atrás dela, Winter suspirou.
– Temperance.
Apressou-se a procurar a chaleira.
– O pão está um pouco duro, mas posso torrá-lo se quiseres.
Permaneceu em silêncio e Temperance voltou-se finalmente para enfrentar o inevitável.
Era pior do que temia. A face longa e estreita de Winter parecia apenas triste, o que a fazia sempre sentir-se horrível. Odiava desiludi-lo.
– Ainda era dia quando partimos – afirmou com voz baixa.
O seu irmão voltou a suspirar, tirando o chapéu redondo negro e sentando-se à mesa da cozinha.
– Não podias ter esperado que regressasse, irmã?
Temperance olhou o irmão. Winter tinha apenas vinte e cinco anos, mas tinha o porte de um homem com o dobro da sua idade. A sua face estava marcada pela fadiga e tinha ombros largos abatidos por baixo de uma casaca que lhe assentava mal. Os membros longos eram demasiado magros. Durante, pelo menos, cinco anos fora professor na minúscula escola anexa ao lar.
Aquando da morte do seu pai, no ano anterior, as tarefas de Winter tinham-se tornado mais numerosas. Concord, o seu irmão mais velho, passara a ocupar-se da cervejaria da família. Asa, o irmão que se seguia, sempre vira com maus olhos o lar de órfãos e dedicava-se a um negócio misterioso. As duas irmãs, Verity, a filha mais velha, e Silence, a mais nova, estavam casadas. Restava Winter para gerir o lar de órfãos. Mesmo com a ajuda de Temperance (trabalhava no lar desde a morte do marido nove anos antes), a tarefa era árdua para um homem só. Temperance receava pelo bem-estar do irmão, mas tanto o lar de órfãos como a minúscula escola tinham sido fundados pelo seu pai. Winter sentia ser seu dever filial manter vivas as duas obras de caridade.
Se a sua saúde não cedesse primeiro.
Temperance encheu a chaleira com o jarro de água colocado junto à porta das traseiras.
– Se tivéssemos esperado, a noite cairia e não teríamos qualquer garantia de que o bebé continuaria lá. – Olhou-o enquanto colocava a chaleira sobre o fogo. – Além disso, não tens já trabalho suficiente?
– Se perder a minha irmã, parece-te que ficarei mais liberto de afazeres?
Temperance afastou o olhar, culpada.
A voz do irmão tornou-se mais afável.
– E não falo na mágoa eterna que sentiria se alguma coisa te tivesse acontecido esta noite.
– Nell conhecia a mãe do bebé. Uma rapariga com menos de quinze anos. – Temperance cortou o pão em fatias finas. – Além disso, levei a pistola.
– Hmm – disse Winter atrás dela. – E tê-la-ias usado se te acossassem?
– Claro que sim – respondeu Temperance com certeza oca.
– E se a bala tivesse falhado o alvo?
Temperance torceu o nariz. O seu pai tinha ensinado todos os seus irmãos a discutir qualquer tema com minúcia e, por vezes, isso era bastante irritante.
Trouxe as fatias de pão até à fogueira para torrarem.
– Seja como for, não aconteceu nada.
– Esta noite. – Winter voltou a suspirar. – Irmã, deves prometer-me que não voltarás a agir com semelhante levian-dade.
– Mmm – murmurou Temperance, concentrando-se nas torradas. – E como foi o teu dia na escola?
Por um momento, receou que Winter não aceitasse a mudança de assunto. Mas ouviu-o dizer:
– Penso que foi um bom dia. O filho dos Samuels recordou finalmente a lição de Latim e não precisei de castigar nenhum dos rapazes.
Temperance olhou-o com afeto. Sabia que Winter odiava açoitar mãos e mais ainda fustigar com a bengala o traseiro dos rapazes. Nos dias em que julgava necessário castigar um rapaz voltava para casa com disposição terrível.
– Fico feliz – disse ela, simplesmente.
Winter moveu-se inquietamente na cadeira.
– Vim almoçar, mas não estavas.
Temperance tirou as torradas do fogo e colocou-as na mesa.
– Estaria com Mary Found, levando-a ao seu novo trabalho. Acho que se ambientará bem. A sua mestra pareceu bondosa e cobrou apenas cinco libras para aceitar Mary como aprendiz de criada.
– Queira Deus que consiga ensinar alguma coisa à rapariga para que não voltemos a vê-la.
Temperance verteu a água quente num pequeno bule e trouxe-o para a mesa.
– Deteto algum cinismo nas tuas palavras, irmão.
Winter passou uma mão pela testa.
– Perdoa-me. O cinismo é um vício terrível. Tentarei corrigir o meu humor.
Temperance sentou-se e serviu o irmão em silêncio, esperando. Algo além da sua aventura noturna o preocupava.
Por fim, disse:
– Mister Wedge visitou-nos enquanto almoçava.
Mr. Wedge era o seu senhorio. Temperance hesitou, segurando o bule nas mãos.
– Que disse ele?
– Dar-nos-á apenas mais duas semanas antes de despejar o lar pela força.
– Santo Deus.
Temperance fitou o pequeno pedaço de carne no seu prato. Era duro e cheio de nervo, pertencendo a uma parte obscura da vaca, mas ansiara por ele. De repente, o seu apetite desapareceu. A renda do lar de órfãos estava muito atrasada. Não tinham conseguido pagá-la por inteiro no mês anterior e, naquele mês, nenhum pagamento fora feito. Talvez não devesse ter comprado os rabanetes, pensou Temperance, apreensiva. Mas as crianças tinham passado a semana anterior comendo apenas caldo e pão.
– Se ao menos Sir Gilpin se tivesse lembrado de nós no seu testamento – murmurou.
Sir Stanley Gilpin fora um bom amigo do seu pai, apadrinhando o lar de órfãos. Era um proprietário de teatros aposentado, tendo conseguido fazer fortuna na Companhia dos Mares do Sul, gastando o seu capital com despreocupação antes do fim catastrófico do negócio. Sir Gilpin fora um patrono generoso em vida, mas a sua morte inesperada, seis meses antes, deixara o lar em apuros. Tinham sobrevivido com o dinheiro poupado, mas a sua situação tornava-se finalmente deses-perada.
– Sir Gilpin era um homem invulgarmente generoso, ao que parece – replicou Winter. – Não consegui encontrar ainda outro cavalheiro igualmente disposto a financiar um lar para crianças pobres.
Temperance espetou o garfo na carne.
– Que faremos?
– O Senhor nos acautelará – disse Winter, afastando a refeição parcialmente comida e erguendo-se. – Se não o fizer… bom… talvez possa aceitar alunos particulares à noite.
– Já trabalhas demasiadas horas – protestou Temperance. – Mal tens tempo para dormir.
Winter encolheu os ombros.
– Como conseguiria viver comigo mesmo se os inocentes que protegemos fossem atirados para a rua?
Temperance olhou o prato. Não tinha resposta.
– Vem. – O seu irmão estendeu-lhe a mão e sorriu.
Os sorrisos de Winter eram tão raros, tão preciosos. Quando sorria, a sua face inteira iluminava-se como se ardesse dentro dela uma chama, surgindo-lhe uma covinha numa bochecha que o fazia parecer um rapazinho mais próximo da sua idade real.
Era impossível não sorrir também quando Winter sorria e Temperance sorriu enquanto lhe oferecia a mão.
– Para onde vamos?
– Visitemos os nossos protegidos – disse, pegando numa vela e conduzindo a irmã até às escadas. – Alguma vez notaste como parecem angelicais quando dormem?
Temperance riu-se enquanto subiam a estreita escadaria de madeira até ao piso seguinte. Havia um pequeno corredor com três portas. Espreitaram o que havia atrás da primeira enquanto Winter erguia a vela bem alta. Seis enxergas minúsculas alinhavam-se junto à parede do quarto. Os órfãos mais pequenos dormiam ali, dois ou três em cada enxerga. Nell ocupava uma cama de tamanho adulto junto à porta, dormindo já.
Winter aproximou-se da enxerga mais próxima de Nell. Dois bebés ocupavam-na. O primeiro era um rapaz de cabelo ruivo e bochechas rosadas, chuchando no punho enquanto dormia. A segunda criança tinha metade do tamanho da primeira, com bochechas pálidas e olhos encovados, mesmo quando dormia. Tinha a cabeça coberta com minúsculos caracóis de cabelo preto.
– Foi este o bebé que resgataram esta noite? – perguntou Winter em voz baixa.
Temperance respondeu com um aceno afirmativo. A menina parecia ainda mais frágil ao lado do rapazinho saudável.
Mas Winter limitou-se a tocar a mão do bebé com um dedo delicado.
– Que te parece o nome Mary Hope1?
Temperance engoliu em seco.
– Parece-me muito adequado.
Winter acenou com a cabeça e, depois de uma última carícia ao pequeno bebé, saiu do quarto. Além da porta seguinte, ficava o dormitório dos rapazes. Quatro camas albergavam treze rapazes, todos abaixo dos nove anos, a idade em que iniciavam o seu aprendizado. Dormiam com braços e pernas abertos e com caras coradas durante o sono. Winter sorriu e cobriu com o cobertor os três rapazes mais próximos da porta, empurrando uma perna que ficara fora da cama.
Temperance suspirou.
– Ninguém adivinharia que passaram uma hora ao almoço caçando ratazanas na viela.
– Mmm – replicou Winter, fechando a porta com cuidado atrás deles. – Os rapazes tornam-se homens tão depressa.
– É verdade. – Temperance abriu a última porta, a do dormitório das raparigas, e uma cara pequena ergueu-se imediatamente de uma almofada.
– Haveis conseguido trazê-la, senhora? – sussurrou roucamente Mary Whitsun2.
Era a mais velha das raparigas do lar de órfãos, batizada em lembrança da manhã de Pentecostes em que fora trazida para o lar, nove anos antes, quando contava apenas três primaveras. Mesmo sendo ainda tão nova, Temperance precisava ocasionalmente de deixar as outras crianças a seu cargo, como fizera naquela noite.
– Sim, Mary – respondeu Temperance igualmente com um sussurro. – Nell e eu conseguimos trazer o bebé.
– Fico feliz – disse Mary Whitsun, antes de abrir a boca num bocejo demorado.
– Fizeste um bom trabalho ao cuidares das crianças – sussurrou Temperance. – Agora dorme. O novo dia não tardará a nascer.
Mary Whitsun acenou com a cabeça e fechou os olhos com agrado.
Winter ergueu o castiçal colocado sobre uma pequena mesa junto à porta e saiu do dormitório das raparigas.
– Seguirei o teu amável conselho, irmã, e dar-te-ei as boas--noites.
Acendeu o castiçal com a vela que trouxera e entregou-o a Temperance.
– Dorme bem – replicou ela. – Penso que tomarei mais uma chávena de chá antes de recolher.
– Não fiques acordada até tarde – recomendou Winter. Tocou-lhe a face com um dedo, num gesto semelhante ao que usara para tocar o bebé, e voltou-se para subir as escadas.
Temperance viu-o afastar-se, franzindo a testa ao perceber a lentidão com que subia. Passava da meia-noite e voltaria a erguer-se antes das cinco para ler, escrever cartas a possíveis patronos e preparar as lições do dia. Orientaria as orações ao pequeno-almoço, correria para o seu trabalho como mestre-escola e trabalharia durante toda a manhã antes de parar durante uma hora para um almoço frugal, voltando a trabalhar em seguida até ao anoitecer. À noite, assistia às lições das raparigas e fazia leituras da Bíblia para as outras crianças. Mesmo assim, quando lhe transmitia as suas preocupações, Winter limitava-se a arquear uma sobrancelha, perguntando quem faria o trabalho se não fosse ele?
Temperance abanou a cabeça. Deveria deitar-se também (o seu dia começara às seis da manhã), mas aqueles momentos sozinha à noite eram preciosos. Sacrificaria uma hora de sono para se sentar sozinha com uma chávena de chá.
Levou o castiçal consigo para o piso de baixo. Por hábito, verificou que a porta da frente estava trancada. O vento assobiava e fazia estremecer as portadas enquanto se dirigia para a cozinha e a porta das traseiras batia. Verificou-a também e sentiu-se aliviada por estar igualmente trancada. Estremeceu, feliz por já não estar lá fora numa noite como aquela. Passou o bule por água e voltou a enchê-lo. Preparar um bule de chá com folhas frescas só para si era um luxo terrível. Em breve, teria de abdicar também daquilo, mas, naquela noite, beberia o seu chá.
Junto à cozinha, ficava uma divisão pequena. O seu propósito original tinha sido esquecido, mas continha uma pequena lareira e Temperance transformara-a na sua saleta privada. Estava mobilada com um cadeirão acolchoado, muito envelhecido, mas com o estofo renovado por uma colcha de retalhos que cobria o encosto, além de uma pequena mesa e de um apoio para os pés. Era tudo aquilo de que precisava para se sentar sozinha junto a uma fogueira.
Cantarolando, Temperance colocou num velho tabuleiro de madeira o seu bule e a sua chávena, um pequeno pires com açúcar e o castiçal. Seria bom juntar leite, mas o que sobrava daquela manhã seria usado no pequeno-almoço das crianças na manhã seguinte. O açúcar era já um luxo vergonhoso. Olhou o pequeno pires, mordendo o lábio. Devia recolocá-lo no local de onde o tirara. Não o merecia. Após um momento, tirou o pires de açúcar do tabuleiro, mas o sacrifício não motivou nela uma sensação de aprazível justeza. Ao invés, sentiu-se apenas cansada. Pegou no tabuleiro e, porque tinha as mãos cheias, recuou até à porta da sua pequena saleta.
E foi por esse motivo que só percebeu demasiado tarde que a saleta já tinha um ocupante.
Lorde Caire ocupava o cadeirão como um demónio invocado. O seu cabelo prateado caía-lhe sobre os ombros da capa negra e o tricórnio cobria-lhe um joelho enquanto a mão direita acariciava a extremidade da bengala longa de ébano. Assim tão perto, percebeu que o cabelo induzia em erro quem procurasse adivinhar-lhe a idade. As rugas que rodeavam os olhos de um azul estonteante eram pouco numerosas e a boca e o maxilar mantinham-se firmes. Não teria mais de trinta e cinco anos.
Inclinou a cabeça quando a viu entrar e falou com voz grave, suave e mansamente perigosa.
– Boa noite, Mistress Dews.
AQUELA MULHER RESPEITÁVEL, que vivia no esgoto que era St. Giles, erguia-se com confiança silenciosa. Os seus olhos arregalaram-se quando o viu, mas não fez qualquer tenção de querer fugir. Na verdade, encontrar um desconhecido na sua saleta patética não parecia assustá-la minimamente.
Interessante.
– Sou Lazarus Huntington, Lorde Caire – afirmou.
– Eu sei. Que fazeis aqui?
Inclinou a cabeça, estudando-a. Reconhecia-o e isso não a fazia encolher-se de horror? Sim, serviria perfeitamente.
– Vim fazer-vos uma proposta, Mistress Dews.
Continuava sem dar qualquer sinal de medo, apesar do olhar que dirigiu à porta.
– Haveis escolhido a mulher errada, milorde. A noite vai alta. Saí de minha casa, por favor.
Não mostrava medo ou subserviência ao seu estatuto. Sem dúvida, uma mulher interessante.
– A minha proposta não é de natureza ilícita – explicou. – Com efeito, é bastante respeitável. Ou quase.
Viu-a suspirar e olhar o tabuleiro antes de o olhar novamente a ele.
– Posso oferecer-vos uma chávena de chá?
Quase sorriu. Chá? Quando fora a última vez que uma mulher lhe oferecera algo tão prosaico? Não o recordava.
Mas respondeu com sobriedade suficiente.
– Não, obrigado.
A mulher acenou com a cabeça.
– Nesse caso, não vos incomoda que o beba?
Acenou-lhe com a mão, indicando a sua permissão.
Viu-a pousar o tabuleiro sobre a pequena mesa miserável, sentando-se no banco acolchoado para os pés enquanto enchia uma chávena. Olhou-a com atenção. Era um estudo monocromático. O seu vestido, corpete, meias e sapatos eram completamente negros. O fichu severo que lhe caía do pescoço, o avental e a touca, sem renda ou folhos, eram brancos. Não havia qualquer vestígio de cor no seu vestuário, o que aumentava o apelo do vermelho cativante dos seus lábios cheios. Vestia-se como uma freira, mas tinha uma boca de sibarita.
O contraste era fascinante. E excitante.
– Sois puritana? – perguntou-lhe.
Os seus lábios magníficos pressionaram-se.
– Não.
– Ah. – Notou que tampouco lhe disse que fazia parte da Igreja Anglicana. Pertenceria, provavelmente, a uma das muitas seitas não conformistas obscuras, mas as suas convicções religiosas interessavam-no apenas pela influência que podiam ter nos seus intuitos.
Bebeu um trago de chá.
– Como sabeis o meu nome?
Encolheu os ombros.
– Mistress Dews e o seu irmão são bem conhecidos pelos seus atos caridosos.
– Deveras? – Falava num tom seco. – Desconhecia a nossa celebridade além dos limites de Saint Giles.
Poderia parecer recatada, mas havia uma personalidade acutilante por trás da expressão composta. E estava certa. Nunca teria ouvido falar dela se não tivesse passado o mês anterior movendo-se pelas sombras de St. Giles. Procurando em vão. E fora por esse motivo que a seguira até casa, sentando-se naquele momento diante daquela fogueira miserável.
– Como conseguistes entrar? – perguntou-lhe.
– Creio que a porta das traseiras estava destrancada.
– Não. Não estava. – Os olhos castanhos dela fixaram-se nos seus sobre o bordo da chávena. Tinham uma tonalidade invulgarmente clara, quase dourada. – Porque viestes, Lorde Caire?
– Desejo contratar-vos, Mistress Dews – disse ele com voz afável.
Ficou hirta e pousou a chávena no tabuleiro.
– Não.
– Não sabeis qual é a tarefa para a qual desejo contratar-vos.
– Passa da meia-noite, milorde, e nem durante o dia me interesso por jogos. Parti, por favor, ou serei obrigada a chamar o meu irmão.
Não se moveu.
– E não um marido?
– Sou viúva, como certamente sabereis. – Voltou-se para olhar a fogueira, presenteando-o com um perfil desinteressado.
Esticou as pernas no espaço disponível, com as botas quase tocando o fogo.
– Estais certa. Sabia. Também sei que, juntamente com vosso irmão, não pagais a renda desta propriedade há quase dois meses.
Não disse nada, limitando-se a beber o seu chá.
– Pagarei generosamente pelo vosso tempo – murmurou ele.
Olhou-o por fim, permitindo-lhe ver a chama que ardia naqueles olhos castanhos pálidos.
– Acrediteis que todas as mulheres podem ser compradas?
Ponderou a resposta, passando o polegar pelo queixo.
– Sim, acredito. Ainda que não necessariamente com dinheiro. E não limito essa consideração às mulheres. De uma forma ou de outra, será também possível comprar todos os homens. A única dificuldade é encontrar a moeda adequada.
Limitou-se a fixá-lo com aqueles olhos invulgares.
O alvo do olhar baixou a mão, deixando-a repousar sobre o joelho.
– No vosso caso, por exemplo, Mistress Dews, creio que a moeda adequada seria o financiamento do vosso lar de órfãos, mas talvez esteja enganado. Talvez me tenha deixado enganar pela vossa aparência modesta e pela vossa reputação como viúva virtuosa. Talvez fosse mais fácil persuadir-vos com influência, conhecimento ou até mesmo com os prazeres da carne.
– Ainda não haveis dito para que desejais contratar-me.
Mesmo sem se ter mexido e sem ter alterado a expressão, a sua voz adquiriu uma entoação agressiva. Captou-a apenas pelos seus anos de experiência na caçada. Inflou voluntariamente as narinas, como se o caçador dentro de si tentasse farejá-la. Qual dos elementos que enumerara mais a interessara?
– Como guia. – As pálpebras dele fecharam-se parcialmente enquanto fingia examinar as unhas. – Apenas isso. – Olhou-a sem erguer a face e notou a inquietação naquela boca carnuda.
– Como guia para quê?
– Saint Giles.
– Porque precisais de um guia?
Ah. Era ali que a situação exigia cautela.
– Procuro… determinada pessoa em Saint Giles. Gostaria de entrevistar alguns dos residentes, mas constato que a minha busca é prejudicada pelo meu desconhecimento da área e dos seus habitantes e pela relutância destes em falar comigo. Por isso, preciso de um guia.
Viu-a semicerrar os olhos enquanto o ouvia, batendo com as pontas dos dedos na chávena.
– Quem procurais?
Abanou lentamente a cabeça.
– Di-lo-ei apenas se aceitardes ser a minha guia.
– E é apenas isso que desejais? Uma guia? Mais nada?
Acenou afirmativamente com a cabeça, olhando-a.
Viu-a olhar a fogueira como se consultasse as chamas. Por um momento, o único som na saleta foi provocado pela queda de um pedaço de carvão. Esperou pacientemente, acariciando o castão de prata da sua bengala.
A seguir, voltou-se para ele.
– Estais certo. O vosso dinheiro não me alicia. Não passaria de um adiamento temporário do nosso despejo.
Inclinou a cabeça ao ouvir aquelas palavras, olhando-a enquanto passava a língua cuidadosamente pelos lábios cativantes, sem dúvida preparando a sua argumentação. Sentiu o batimento do coração sob a pele como resposta do seu corpo à vitalidade feminina que via nela.
– Então que desejais, Mistress Dews?
Enfrentou o olhar dele, quase em desafio.
– Desejo que me apresenteis aos endinheirados e aos fidalgos de Londres. Desejo que me ajudeis a encontrar um novo patrono para o nosso lar de órfãos.
Lazarus manteve a boca formando uma linha firme, mas sentiu uma pontada de triunfo quando viu a viúva virtuosa correr ao encontro das suas garras.
– Feito.