O Rei Coração Fechado era um homem muito orgulhoso.
Apesar de ter nascido num reino pequeno e insignificante,
conseguira, pela sua coragem, astúcia e ousadia
derrotar os reinos maiores que o rodeavam
até dominar um reino vasto e poderoso.
A norte, havia montanhas ricas em minério
e pedras preciosas cintilantes.
A leste, campos de cereal dourado e gado gordo.
A sul, existiam florestas de árvores altas.
E, a oeste, um oceano que transbordava de peixe prateado.
Era possível que um homem partisse da capital e caminhasse durante um mês em qualquer direção sem deixar as terras
que pertenciam ao Rei Coração Fechado…
excerto de REI CORAÇÃO FECHADO
Temperance encheu os pulmões de ar, sentindo subitamente que os dentes de uma armadilha se tinham fechado sobre ela. Mas não deixou o seu olhar vacilar. Lorde Caire parecia-lhe um predador e não seria recomendável mostrar medo na sua presença. Ao invés, inclinou-se para diante e voltou a encher a chávena de chá. Notou com algum orgulho que as suas mãos estavam firmes.
Depois de beber um trago, olhou-o. Olhou aquela criatura exótica que se instalara na sua pobre e diminuta saleta. Ergueu os ombros.
– Discutamos os pormenores do nosso acordo, milorde.
Os lábios dele, largos e sensuais, ergueram-se nos cantos como se o divertisse.
– Tais como, Mistress Dews?
Engoliu em seco. Naturalmente, nunca fizera um pacto semelhante em toda a sua vida, mas regateava frequentemente com o talhante, com o peixeiro e com vários mercadores com quem lidava na gestão de um lar de órfãos. E considerava-se uma boa negociante.
Temperance pousou a chávena.
– Precisarei de dinheiro para despesas correntes.
– Despesas correntes? – As sobrancelhas negras dele arquearam-se.
Temperance sentiu-se um pouco descarada por pedir dinheiro depois de terem acordado que a apresentaria a patronos potenciais para cumprir a sua parte do acordo. Mas era inegável que o lar precisava de dinheiro. Desesperadamente.
– Sim – disse ela, erguendo o queixo. – Como haveis referido, a nossa renda está atrasada. Além disso, as crianças não comem uma refeição decente há dias. Preciso de dinheiro para comprar carne, legumes, pão, chá e leite. Sem referir que tanto Joseph Tinbox3 como Joseph Smith precisam de sapatos novos…
– Joseph Tinbox?
– E a maior parte das Marys mais pequenas precisam de camisas de noite novas – concluiu Temperance com ímpeto desafiador.
Por um momento, Lorde Caire limitou-se a fixar nela aqueles misteriosos olhos cor de safira. A seguir, moveu-se finalmente.
– Quantas crianças alojam ao certo neste lar?
– Vinte e sete – respondeu Temperance sem hesitar, recordando a seguir o seu trabalho daquela noite. – Perdão. Vinte e oito, contando com Mary Hope, o bebé que resgatei esta noite. Temos ainda duas crianças ao cuidado de amas de leite que, neste momento, estão fora do lar. Depois de serem desmamadas, virão também viver para aqui. E, claro, também aqui vivo com o meu irmão, Winter, e com a nossa criada, Nell Jones.
– Apenas três adultos para tantas crianças?
– Sim. – A avidez fez Temperance inclinar-se para diante. – Compreendeis porque precisamos de um patrono? Se tivéssemos financiamento adequado, poderíamos contratar mais uma ou duas amas e talvez uma cozinheira e um criado. Poderíamos servir carne ao almoço e ao jantar e todos os rapazes teriam sapatos decentes. Poderíamos pagar bom dinheiro pelos aprendizados e vestir cada criança com roupa e calçado novos quando deixam o lar. Ficariam muito mais bem preparadas para enfrentar o mundo.
Lorde Caire arqueou uma sobrancelha.
– Estou em condições de sustentar o vosso lar se desejardes renegociar o meu papel neste acordo.
Temperance uniu os lábios. Não conhecia aquele homem. Como podia ter a certeza de que encararia de forma responsável o papel de patrono? Como podia saber que não os abandonaria após um mês ou dois?
E, claro, havia uma consideração ainda mais importante.
– O patrono do lar terá de ser respeitável.
– Ah, compreendo. – Esperou que se sentisse insultado, mas limitou-se a esboçar-lhe um meio-sorriso irónico. – Muito bem. Avançarei os fundos necessários para pagar a renda do lar e para cobrir despesas variadas das crianças. Em troca, no entanto, esperarei a vossa prontidão para me guiardes por Saint Giles amanhã à noite.
Tão cedo?
– Com certeza – replicou Temperance.
– E – continuou ele, com voz perigosamente suave – esperarei o vosso serviço até deixar de necessitar dos vossos préstimos.
Temperance pestanejou, sentindo-se receosa. Certamente, seria um enorme disparate estabelecer um acordo com um desconhecido por tempo indefinido.
– Quanto tempo vos parece que demorará a busca?
– Não sei.
– Mas tereis sem dúvida uma data em mente. Se não encontrardes o que procurais no espaço de um mês, por exemplo, abandonareis a busca?
Olhou-a enquanto um pequeno sorriso lhe surgia num canto da boca, fazendo-a voltar a perceber que não conhecia aquele homem. Não sabia nada sobre ele, na verdade, além da advertência sinistra que Nell fizera a seu respeito. Por um momento, Temperance sentiu o medo subir-lhe pela espinha acima.
Endireitou as costas. Tinham feito um acordo e não se desonraria renegando-o. O lar e as crianças que o habitavam dependiam dela.
– Muito bem – disse, lentamente. – Ajudar-vos-ei durante tempo indeterminado. Mas precisarei de ser avisada antecipadamente quando desejardes vir a Saint Giles. Tenho obrigações no lar e precisarei de encontrar quem me substitua.
– As minhas buscas decorrem apenas durante a noite – explicou Lorde Caire. – Se precisardes de uma substituta para se ocupar do vosso trabalho no lar, poderei também providenciar uma.
– É muito generoso da vossa parte – murmurou ela –, mas, se for apenas de noite, as crianças estarão já a dormir. Com sorte, não precisarão de mim.
– Ótimo.
– De quanto tempo precisareis para me apresentardes potenciais patronos para o lar? – De alguma forma, teria de encontrar pelo menos um novo vestido e sapatos. As suas habituais roupas de trabalho negras não seriam adequadas a um encontro com a nata da sociedade.
Lorde Caire encolheu os ombros.
– Quinze dias? Talvez mais. Talvez precise de mendigar convites para as festas mais compostas.
– Muito bem. – Quinze dias não era muito tempo, mas o lar precisava de auxílio imediato. Não podia dar-se ao luxo de esperar mais.
O lorde acenou afirmativamente.
– Nesse caso, parece-me que as nossas negociações estão concluídas.
– Ainda não – disse ela.
O braço que erguia o chapéu para a cabeça deteve-se.
– Deveras, Mistress Dews? Haveis sido vós a referir que fui generoso. De que mais precisais?
O pequeno sorriso tinha-lhe desaparecido da boca e passava a parecer muito intimidante, mas Temperance engoliu em seco e ergueu o queixo.
– De informação.
Lorde Caire arqueou uma sobrancelha.
– Como se chama a pessoa que procurais?
– Não sei.
Temperance franziu a testa.
– Sabeis que aspeto tem ou que áreas costuma frequentar habitualmente?
– Não.
– Trata-se de um homem ou de uma mulher?
O lorde sorriu, com rugas profundas surgindo-lhe na face magra.
– Não faço ideia.
Temperance suspirou, consideravelmente frustrada.
– Então como esperais que vos encontre tal pessoa?
– Não espero – replicou. – Espero apenas que me ajudeis a procurar. Creio que haverá várias fontes de boatos em Saint Giles. Conduzi-me até elas e farei o resto.
– Muito bem. – Tinha já uma ideia acerca de quem poderia ser uma boa fonte de «boatos». Temperance ergueu-se e estendeu a mão. – Aceito a vossa proposta, Lorde Caire.
Durante um momento terrível, limitou-se a olhar a mão que lhe estendia. Talvez o gesto lhe parecesse demasiado masculino ou apenas absurdo. A seguir, ergueu-se também e, no espaço reduzido, Temperance precisou de inclinar a cabeça para cima para continuar a olhá-lo nos olhos. Percebeu nesse momento como era muito maior que ela.
Aceitou-lhe a mão com uma expressão estranhamente vazia na face, sacudindo-a brevemente e libertando-a como se o toque da sua pele o queimasse.
Temperance pensava ainda no momento bizarro quando o viu recolocar o chapéu, ajeitando a capa sobre os ombros e acenando com a cabeça.
– Procurar-vos-ei amanhã às nove da noite na viela para a qual abre a porta da vossa cozinha. Até lá, desejo-vos uma boa noite, Mistress Dews.
E partiu.
Temperance pestanejou e apressou-se a ir à cozinha trancar a porta das traseiras. Fuligem ergueu-se na lareira quando entrou.
– A porta estava trancada. Sei que sim – murmurou ao gato. – Como entrou?
Mas o gato limitou-se a bocejar e a espreguiçar-se.
Temperance suspirou e regressou à saleta para trazer o tabuleiro. Quando entrou, olhou o cadeirão antes ocupado por Lorde Caire. No centro, havia uma pequena bolsa. Ergueu-a e abriu-a. Moedas de ouro caíram-lhe na palma da mão. Era mais do que suficiente para pagar a renda devida a Mr. Wedge.
Aparentemente, Lorde Caire fizera um pagamento adiantado.
A CAFETARIA DE BASHAM estava preenchida com ruído intenso quando Lazarus entrou na tarde seguinte. Passou por uma mesa ocupada por cavalheiros idosos com perucas compridas que discutiam o conteúdo de um jornal e dirigiu-se para um cavalheiro solitário de peruca cinzenta sentado ao canto. O homem fixava num panfleto os olhos resguardados por lentes de meia-lua.
– Arruinarás os olhos tentando ler esse excremento, Saint John – disse Lazarus enquanto ocupava uma cadeira diante do seu velho amigo.
– Caire – murmurou Godric St. John. Tocou o panfleto com um dedo. – A tese deste autor não é inteiramente inviável.
– A sua viabilidade é apenas parcial? Fico aliviado. – Lazarus estalou os dedos a um dos rapazes que corriam para trás e para diante com tabuleiros carregados de café. – Uma para aqui.
Voltou-se novamente para St. John. Com a sua peruca curta, óculos e vestimenta simples, outros viam erroneamente em St. John uma figura avuncular. Na realidade, os dois homens tinham a mesma idade: trinta e quatro anos. Após exame mais atento, percebiam-se os olhos cinzento-claros de St. John, o seu maxilar forte e as sobrancelhas escuras. Só os verdadeiramente atentos viam a mágoa constante que o envolvia como uma mortalha.
– Tenho uma tradução para avaliares – disse Lazarus. Retirou um molho de papéis de um bolso da casaca e passou-o ao outro homem.
St. John olhou-os.
– Catulo? Burgess sentir-se-á melindrado.
Lazarus fungou de desprezo.
– Burgess considera-se a maior autoridade em Catulo. Sabe tanto sobre poesia romana como qualquer fedelho ranhoso num banco de escola.
– Naturalmente. – St. John arqueou uma sobrancelha atrás dos óculos, parecendo vagamente divertido. – Mas começarás uma disputa medonha com isto.
– É o que espero – disse Lazarus. – Podes lê-la e dar-me a tua opinião?
– Com certeza.
Ouviu-se um grito vindo de uma mesa próxima e uma caneca foi atirada ao chão.
Lazarus olhou.
– Discutem política ou religião?
– Política. – St. John olhou sem qualquer interesse os cavalheiros que discutiam. – Os jornais dizem que Wakefield defende mais uma lei que reduza o consumo de gim.
– Esperar-se-ia que tivesse já aprendido que demasiados dos seus pares construíram as suas fortunas com a venda de gim.
St. John encolheu os ombros.
– A argumentação de Wakefield é sólida. Quando tantos pobres sucumbem ao gim, a indústria londrina é prejudicada.
– Sim. E, sem dúvida, o barão rural gordo forçado a decidir entre vender o seu cereal em excesso à destilaria de gim ou deixá-lo apodrecer colocará a saúde da capital à frente do conteúdo da sua bolsa.
– É um idealista.
– E também um tolo – insistiu Lazarus. – Os seus ideais servem apenas para lhe granjear inimigos. Sair-se-ia melhor batendo com a cabeça numa parede de pedra em vez de tentar que o Parlamento aprove uma lei do gim eficiente.
– Preferirias que deixássemos Londres sucumbir à degradação sem fazer nada? – perguntou St. John.
Lazarus agitou uma mão no ar.
– Fazes a pergunta como se houvesse opção. Acredito que não há. Wakefield e os da sua igualha gostariam de acreditar que têm capacidade para alterar o rumo dos acontecimentos, mas enganam-se. Ouve bem o que te digo: os porcos ganharão asas e voarão sobre Westminster antes que a ralé londrina fique sem o seu gim.
– A extensão do teu cinismo é tão assombrosa como sempre.
Um rapaz colocou uma caneca diante de Lazarus.
– Obrigado, bom jovem.
Lazarus atirou uma moeda e o rapaz apanhou-a com destreza antes de regressar ao balcão onde o café era preparado. Lazarus provou o líquido quente e, quando baixou a caneca, surpreendeu St. John a olhá-lo tão atentamente como se examinasse um inseto com uma lupa.
– Olhas-me como se tivesse marcas de bexigas na cara – disse Lazarus.
– E tê-las-ás um dia, sem dúvida – replicou St. John. – Dormiste com pegas suficientes.
– Tenho necessidades…
– Tens caprichos – interrompeu St. John sem levantar a voz. – E não fazes qualquer esforço para os conter.
– E porque deveria fazê-lo? – perguntou Lazarus. – O lobo lamenta a alegria que sente por caçar a sua presa? O gavião lamenta o desejo de voar bem alto e de mergulhar para capturar a lebre nas suas garras? Faz parte da sua natureza, tal como as minhas… necessidades… fazem parte da minha.
– O lobo e o gavião não têm consciência ou alma, como muito bem sabes.
– Não têm? – perguntou St. John com voz serena. – Questiono-me se te magoam, Caire.
Lazarus arreganhou o lábio superior.
– Esta é uma velha discussão e nenhum de nós está perto de a vencer.
– Se desistir dela, desistirei também de ti.
Lazarus tamborilou os dedos sobre o tampo de madeira gasto, sem dizer nada. Maldito seria se cedesse à preocupação de St. John. As suas necessidades eram invulgares. Estranhas, até. Mas, certamente, não seriam doentias.
Claro que St. John não sentia qualquer pudor em intrometer-se em assuntos nos quais a sua intromissão não era bem-vinda.
O outro homem abanou a cabeça e recostou-se na cadeira.
– Saíste na noite passada.
– Santo Deus! Tornaste-te vidente? Ou foste a minha casa ontem à noite e não me encontraste lá?
– Nenhuma das duas. – St. John elevou calmamente os óculos para a testa. – Tens a mesma expressão que tinhas da última vez que te vi. Uma espécie de…
– Cansaço?
– Preparava-me para lhe chamar desespero.
Lazarus bebeu o café quente, percebendo com desagrado que o fazia para ganhar tempo. Tudo o que conseguiu responder foi:
– Não sabia que tinhas uma queda tão grande para o dramatismo. «Desespero» parece-me muito exagerado.
– Não creio. – St. John baixou o olhar para a sua caneca de café sem a ver realmente. – Tens essa cara desde a morte de Marie. Negas que voltaste a procurar o seu assassino na noite passada?
– Não. – Lazarus recostou-se também, olhando o seu velho amigo com as pálpebras semicerradas. – E então?
– Estás obcecado, homem. – St. John demorou-se a pronunciar as palavras, o que, de alguma forma, aumentou o seu impacto. – Morreu há quase dois meses e passaste todas as noites desde então à procura do seu assassino. Diz-me, Lazarus, quando abdicarás da caçada?
– Quando abdicarias tu se Clara fosse assassinada? – contrapôs Lazarus.
O único indício da profundidade a que a flecha se cravou foi um pequeno espasmo no maxilar de St. John.
– Nunca. Mas os casos são diferentes.
– De que forma? Porque estás casado com a tua mulher e Marie era apenas a minha amante?
– Não – disse St. John em tom delicado. – Porque amo Clara.
Lazarus afastou o olhar. Por mais que uma parte maldosa do seu ser quisesse negar a diferença, não poderia fazê-lo realmente. Pois St. John estava certo. Amava realmente a sua Clara.
Enquanto Lazarus nunca amara ninguém.
* * *
– NÃO ME AGRADA, SENHORA. Não me agrada mesmo nada – disse Nell nessa noite na cozinha do lar de órfãos.
– Deixaste a tua reprovação bem clara – murmurou Temperance enquanto prendia a capa abaixo do queixo.
A afirmação não deteve Nell.
– E se pretender atentar contra a vossa virtude E se vos seduzir e abandonar? Ou, pior ainda, e se vos vender a um proxeneta? Minha senhora! Poderão acontecer-vos coisas terríveis!
Temperance conteve um arrepio ao imaginar Lorde Caire fazendo-lhe «coisas terríveis». Deveria ser um arrepio de repulsa, mas, ao invés, pensar nas tendências sexuais de Lorde Caire provocou nela uma curiosidade pouco recomendável. Essa parte pérfida do seu ser ergueu a cabeça e farejou, tão desejosa como sempre de liberdade. Uma vez, deixara a sua natureza mais vil tomar o controlo e cometera um pecado imperdoável. Desde então, vivera todos os seus dias sabendo que precisava de reparar o erro, contendo-se para não voltar a permitir que os seus demónios se libertassem.
Temperance cobriu a cabeça com o capuz.
– Duvido muito que Lorde Caire esteja interessado em fazer-me o que quer que seja, terrível ou não. E, além disso, levo a pistola.
Nell gemeu.
– Não é como os outros cavalheiros, senhora.
Temperance ergueu o saco macio que escondia a pistola.
– Não é a primeira vez que te ouço fazer insinuações misteriosas desse teor. Diz-me. De que formas é Lorde Caire diferente dos outros homens?
Nell mordeu o lábio, mudando o peso do corpo de uma perna para a outra, acabando por fechar os olhos com força e dizer apressadamente:
– Os seus folguedos de cama.
Temperance esperou, mas a sua criada não acrescentou qualquer explicação. Por fim, suspirou, puxando com firmeza as rédeas da parte de si que se alvoroçara ao ouvir falar em «folguedos de cama».
– O lar corre o risco de fechar. Não posso permitir que o que Lorde Caire faz no seu quarto me impeça de aproveitar o seu auxílio.
Nell arregalou os olhos, alarmada.
– Mas, minha senhora…
Temperance abriu a porta das traseiras.
– Lembra-te. Se Winter perguntar, dir-lhe-ás que me deitei cedo. E, se insistir, diz-lhe que foi por um assunto de mulheres. Isso travará quaisquer perguntas.
– Tende cuidado, senhora! – recomendou Nell enquanto Temperance fechava a porta atrás de si.
O vento dobrou uma esquina, assobiando. Temperance estremeceu e puxou mais a capa, voltando-se para percorrer a viela. Um peito masculino largo atravessou-se subitamente à sua frente.
– Oh!
– Boa noite, Mistress Dews – disse Lorde Caire com a sua entoação ameaçadora. A capa dançava com o vento à volta das suas pernas.
– Peço-vos que não façais isso – disse Temperance, erguendo demasiado a voz.
Pareceu apenas divertido.
– Que não faça o quê?
– Que vos atravesseis no meu caminho como um salteador. – Fixou nele um olhar irado, vendo a sua boca larga erguer-se num canto. Sentiu uma vontade ridícula de lhe retribuir o sorriso, mas conteve-o implacavelmente. Naquela noite, o cabelo grisalho estava coberto por um tricórnio preto. Sentiu um estremeção no ventre e não conseguiu impedir-se de pensar no que tornaria Lorde Caire diferente no quarto.
Mas já se voltara e começou a caminhar pela viela.
– Asseguro-vos que não sou um salteador, senhora. – Olhou-a sobre o ombro, permitindo-lhe ver o brilho dos seus olhos azuis enquanto apressava o passo. – Se fosse, estaríeis morta.
– Não me encorajais a seguir-vos – murmurou Temperance.
Lorde Caire parou de repente e quase voltou a chocar contra ele.
– Estais aqui, não?
Maldito!
– Sim, estou.
Curvou-se numa vénia extravagante, com a bengala de castão de prata na mão estendida e a capa negra roçando o chão imundo.
– Nesse caso, peço-vos que indiqueis o caminho, cara senhora.
– Hmpf. – Temperance olhou para diante e começou a caminhar pela viela, sabendo que a presença volumosa e sombria do lorde a seguia de perto.
– Para onde me levareis esta noite?
Sentiria o seu hálito quente na nuca ou a imaginação pregar-lhe-ia partidas?
– Foi bastante difícil decidir, já que vos haveis recusado a partilhar comigo informação relevante acerca da identidade de quem procurais.
Esperou uma explicação, mas não a obteve.
Temperance suspirou.
– Dissestes apenas que procuráveis alguém. Devo dizer-vos, senhor, que isso não ajudou nada.
– E, mesmo assim, sinto que tendes um destino em mente – murmurou Lorde Caire.
– Tenho. – Chegaram ao fim da viela e Temperance passou por um arco arruinado, entrando numa viela ainda mais es-treita.
– E qual é? – Havia um indício de diversão na voz de Lorde Caire.
– Este mesmo – disse ela com alguma satisfação. Sentia-se realmente bastante agradada consigo por lhe ter encontrado uma fonte de boatos partindo de informação tão escassa.
Erguiam-se diante de um edifício desprovido de janelas. Apenas uma placa de madeira pintada indicava que se tratava de um merceeiro. Temperance empurrou a porta. A loja era minúscula. Um balcão atravessava-a de lado a lado. Os produtos estavam expostos aqui e ali, em pilhas, molhos e pendurados das paredes. Velas, chá, caixas de folha, sal e farinha, cordel, banha, algumas facas, um leque esfarrapado, algumas vassouras novas, botões, uma pequena tarte de ameixa e, claro, gim. No extremo oposto do balcão, duas mulheres curvavam-se sobre os copos. Do outro lado do balcão, erguia-se Mr. Hopper, um homem baixo e moreno que poderia ter ficado daquele tamanho precisamente para caber dentro da sua loja.
Vender gim sem licença era ilegal, claro, mas as licenças eram vendidas por preço exorbitante e poucos podiam pagá-las. Além disso, os juízes dependiam de informadores pagos para levar a tribunal os vendedores de gim clandestino e nenhum informador ousaria vir a St. Giles. O último fora atacado por uma turba, arrastado pelas ruas, selvaticamente espancado e abandonado até morrer exangue. Pobre homem.
– Como poderei servir-vos esta noite, Mistress Dews? – perguntou Mr. Hopper.
– Boa noite, Mister Hopper – replicou Temperance. – Este meu amigo procura alguém. Pensei que poderíeis ajudá-lo.
Mr. Hopper olhou Lorde Caire com suspeição, mas disse com voz suficientemente aprazível.
– Sim, talvez possa. Quem procurais?
– Um assassino – respondeu Lorde Caire. Todos os rostos em redor se voltaram para ele.
Temperance susteve a respiração. «Um assassino?»
As bebedoras de gim saíram da loja sem uma palavra.
– Há quase dois meses, uma mulher foi assassinada nos seus aposentos em Saint Giles – continuou Lorde Caire, não se deixando incomodar pela reação. – Chamava-se Marie Hume. Sabeis algo a seu respeito?
Mr. Hopper começara a abanar a cabeça antes de a pergunta ser formulada por inteiro.
– Não sei nada de assassinos. E agradeço-vos que leveis este cavalheiro para fora da minha loja, Mistress Dews.
Temperance mordeu o lábio, olhando Lorde Caire.
Não pareceu particularmente demovido.
– Um momento, por favor – disse ao lojista.
Mr. Hopper olhou-o com relutância.
Lorde Caire sorriu.
– Podereis vender-me aquela tarte?
O merceeiro grunhiu e passou-lhe a tarte, guardando dez pence antes de virar as costas com veemência. Temperance suspirou, sentindo irritação crescente. Era óbvio que teria de encontrar outro informador para Lorde Caire.
– Poderíeis ter-me advertido – murmurou depois de saírem da loja. O vento soprou-lhe as palavras contra a face e estremeceu, desejando estar junto da sua lareira acolhedora.
Lorde Caire não pareceu incomodado com o frio.
– Que diferença teria feito?
– Para começar, não teria tentado Mister Hopper. – Avançou pela viela fora, evitando pisar a água inquinada que por ela corria.
Lorde Caire alcançou-a sem esforço.
– Porque não?
– Porque Mister Hopper é respeitável e parece-me evidente que as vossas questões não o serão – disse, exasperada. – O que vos levou a comprar essa tarte?
Encolheu os ombros.
– Tenho fome. – Mordeu a tarte com deleite.
Temperance viu-o lamber o recheio roxo do canto da boca e engoliu como reflexo. A tarte parecia realmente deliciosa.
– Gostaríeis de provar? – perguntou ele com voz grave.
Temperance abanou firmemente a cabeça.
– Não. Não tenho fome.
Inclinou a cabeça, olhando-a enquanto mordia e engolia mais uma vez.
– Mentis. Porquê?
– Não sejais tolo – ripostou ela, começando a andar.
Lorde Caire atravessou-se à sua frente, fazendo-a travar para não chocar contra ele.
– É uma tarde de ameixa, Mistress Dews. Não vos ofereço riquezas ou qualquer pecado decadente. Que mal fará? Provai.
E partiu um pedaço, aproximando-lho dos lábios. Temperance sentiu o cheiro da fruta doce e quase conseguia saborear a massa folhada. Sem perceber o que fazia, abriu a boca. Lorde Caire deu-lhe o pedaço de tarte e a acidez da ameixa misturou-se com a doçura na sua língua. Numa rua escura de St. Giles, foi absolutamente delicioso.
– Pronto – sussurrou. – Saborosa, não é?
Temperance abriu os olhos de repente. Quando os fechara? Fitou-o, horrorizada.
Viu-o erguer os cantos da boca num sorriso.
– Para onde seguiremos agora, Mistress Dews? Ou Mister Hopper e a sua loja eram a vossa única fonte de boatos?
Temperance ergueu o queixo.
– Não. Tenho outra ideia.
Contornou-o e apressou o passo, sentindo ainda o sabor doce das ameixas na sua língua. Aquela parte de St. Giles era uma das piores e não se atreveria a vir ali durante o dia, muito menos à noite, se não estivesse acompanhada pelo homem corpulento que a seguia em silêncio. Vinte minutos depois, Temperance parou diante de uma porta desengonçada, dois degraus abaixo do nível da rua.
Lorde Caire olhou a porta, semicerrando os olhos azuis com interesse notório.
– Que sítio é este?
– É o estabelecimento de Mãe Coração-Tranquilo – replicou Temperance enquanto a porta se abria.
– Prá rua! – gritou uma mulher alta e magra. Vestia uma velha casaca vermelha do exército sobre um espartilho de couro que a imundície tornara negro. Por baixo, via-se uma crinolina de riscas vermelhas e negras em linho e lã, com a bainha esfarrapada e coberta de lama. Atrás dela, dançava a luz ténue de uma fogueira, fazendo-a parecer alguém que se erguia às portas do inferno. – Se não tens dinheiro, não bebes. Sai da minha casa!
A destinatária da sua fúria era uma mulher magra que os dentes enegrecidos e a chaga aberta na face impediam que fosse bonita.
A miserável criatura encolheu-se e ergueu os braços como se tentasse escudar-se de um golpe.
– Dou-te um penny e meio amanhã. Dá-me o meu gim esta noite.
– Vai ganhar os teus pennies – disse-lhe Mãe Coração--Tranquilo, empurrando a infeliz para a viela. Virou-se e apoiou nas ancas os grandes punhos com nós dos dedos vermelhos, olhando Lorde Caire de alto a baixo com ganância. – Então que fazeis aqui, Mistress Dews? Não me parece que esta seja a parte de Saint Giles que voss’ência costuma frequentar.
– Desconhecia que Saint Giles se dividisse em territórios distintos – replicou Temperance sem se deixar abalar.
Mãe Coração-Tranquilo fixou nela os olhos pequenos.
– Ai sim?
Temperance pigarreou.
– O meu amigo gostaria de lhe fazer umas perguntas.
Mãe Coração-Tranquilo sorriu a Lorde Caire, mostrando a dentição incompleta.
– Então é melhor entrarem, não é?
Não voltou a olhar Temperance. A sua sede de lucro estava obviamente focada em Lorde Caire. Mesmo assim, Lorde Caire esperou que Temperance entrasse primeiro, baixando a cabeça e descendo os íngremes degraus de madeira que conduziam à cave.
A sala era longa e de teto baixo, iluminada apenas pela fogueira ao fundo. Por cima, as traves tinham sido enegrecidas pelo fumo. De um dos lados, uma tábua irregular fora apoiada sobre dois barris como balcão improvisado. Atrás, erguia-se uma rapariga com um só olho, a única empregada. Era ali que Mãe Coração-Tranquilo vendia o que lhe inspirara o nome: gim. Um copo por penny e meio. Uma vintena de soldados com barretinas altas riam, embriagados, à volta de uma mesa no canto. A seu lado, dois sujeitos de aparência sinistra encolhiam os ombros como se tentassem tornar-se invisíveis. Um usava uma cobertura triangular de couro para esconder o nariz que lhe faltava. Do outro lado da taberna, irrompera uma disputa entre três marinheiros que jogavam às cartas enquanto um homem solitário com uma peruca demasiado grande fumava serenamente por perto. Um homem e uma mulher sentavam-se juntos contra a parede sobre o chão de terra batida, aninhando o pequeno copo de lata nas mãos. Poderiam passar ali a noite. Cada um pagara a Mãe Coração-Tranquilo cinco pence adicionais pelo privilégio.
– Então vamos lá. Como posso ajudar um cavalheiro tão distinto como vossa mercê? – gritou Mãe Coração-Tranquilo sobre o alarido da discussão dos marinheiros. Esfregou os dedos de forma sugestiva.
Lorde Caire puxou por uma bolsa que trazia por baixo da capa e abriu-a. Sorriu ao retirar meia coroa, colocando-a sobre a mão da mulher.
– Estou interessado no assassinato de uma mulher em Saint Giles. Chamava-se Marie Hume.
Mãe Coração-Tranquilo perdeu o sorriso, unindo os lábios, pensativa.
– Informação desse tipo custará um pouco mais, meu senhor.
Conheceria Lorde Caire ou limitar-se-ia a lisonjear uma potencial fonte de receita?
Lorde Caire arqueou as sobrancelhas ao ouvir a exigência, mas retirou em silêncio outra meia coroa da bolsa. Atirou-lhe a moeda e viu-a desaparecer com a sua irmã pelo espartilho abaixo.
– Sentai-vos, milorde. – Mãe Coração-Tranquilo apontou uma cadeira vazia, uma peça de madeira instável. – Falastes de uma mulher assassinada?
Lorde Caire ignorou o seu esforço de hospitalidade.
– Tinha cerca de trinta anos, cabelo loiro, formosa de cara e figura, com um sinal vermelho do tamanho de um penny aqui mesmo. – Tocou com um dedo o canto do seu olho direito. – Conhecia-la?
– Há muitas moças jeitosas por aí e um sinal pode ser escondido – disse a mulher. – Mais alguma particularidade?
– Foi esventrada – respondeu Lorde Caire.
Temperance inspirou sonoramente, recordando todas as advertências de Nell. Santo Deus.
Também Mãe Coração-Tranquilo se sentiu afetada pelas palavras escolhidas, pestanejando.
– Esventrada como um porco – murmurou ela. – Lembro-me dela. Uma moça fina, não era? Foi encontrada no quarto de uma casa em Tanner’s Court, com moscas zumbindo no sangue negro.
Se Mãe Coração-Tranquilo quisesse chocar Lorde Caire com as palavras, fracassou. A sua expressão permaneceu curiosa enquanto inclinava a cabeça.
– Sim. Precisamente essa.
Mãe Coração-Tranquilo abanou a cabeça, fingindo pesar.
– Não posso ajudar-vos com isso, milorde. Não conhecia a moça.
Lorde Caire estendeu a mão.
– Devolve-me as minhas moedas.
– Um momento, milorde – apressou-se a dizer a mulher. – Não sei nada sobre a morte dela, mas conheço quem poderá saber.
Lorde Caire imobilizou-se, semicerrando ligeiramente os olhos como se tivesse avistado uma presa.
– Quem?
– Martha Swan. – Mãe Coração-Tranquilo esboçou um sorriso torcido e malévolo antes de continuar: – A última mulher a vê-la viva.
O VENTO ROUBOU-LHE o fôlego quando Temperance subiu os degraus de Mãe Coração-Tranquilo. Lorde Caire seguia-a em silêncio ameaçador. Quem fora a mulher assassinada? E porque fazia perguntas acerca do seu homicídio? Estremeceu, recordando a forma como descrevera a mulher como tendo sido «esventrada». Santo Deus, em que se tinha envolvido?
– Estais invulgarmente silenciosa, Mistress Dews – afirmou Lorde Caire com a sua voz grave.
– Como podereis aspirar a saber o que é vulgar em mim, milorde? – perguntou. – Mal me conheceis.
Ouviu-lhe uma gargalhada baixa.
– E, mesmo assim, sinto que sois uma mulher faladora quando a companhia vos seja aprazível.
Temperance parou e voltou-se, cruzando os braços para manter o calor do corpo, mas também talvez para se tranquilizar.
– Que tipo de jogo jogais comigo?
Viu-o parar também, demasiado próximo. A sua trança desfazia-se e madeixas de cabelo longo grisalho dançavam-lhe contra a face.
– Jogo, Mistress Dews?
– Sim, jogo. – Abriu-lhe muito os olhos, recusando ter medo dele. – Dissestes-me que procuráveis alguém em Saint Giles, mas, quando vos levei à loja de Mister Hopper, perguntastes por uma mulher assassinada. Agora, perguntastes a Mãe Coração--Tranquilo por uma mulher esventrada.
Encolheu os ombros largos por baixo da capa.
– Não vos menti. É verdade que procuro alguém. O seu assassino.
Temperance tremeu quando o vento soprou gotículas gélidas de chuva contra a sua face enregelada. Desejou conseguir ver-lhe os olhos, mas estavam escondidos pela aba do chapéu.
– Que vos era essa mulher?
A sua boca larga e sensual esboçou um meio-sorriso. Não respondeu.
– Porquê eu? – murmurou ela. Percebeu que era uma pergunta que deveria ter colocado na noite anterior. – Como me haveis encontrado? Porque me haveis escolhido?
– Vi-vos por aí – respondeu lentamente. – Durante a minha busca em Saint Giles. Sempre apressada, sempre de negro, sempre tão… determinada. Quando vos vi na noite passada, segui-vos até casa.
Olhou-o fixamente.
– Apenas isso? Escolhestes-me por impulso?
– Sou um homem impulsivo. Tendes frio, Mistress Dews. Vinde.
E seguiu caminho, daquela vez caminhando à sua frente com passos determinados.
– Onde vamos? – perguntou-lhe ela. – Não quereis ir ao encontro de Martha Swan?
Lorde Caire parou e voltou-se para ela.
– Mãe Coração-Tranquilo disse que frequentava Hangman’s Alley. Conheceis o caminho?
– Sim, mas fica a oitocentos metros de distância ou mais. – Apontou para trás deles.
Lorde Caire acenou afirmativamente.
– Nesse caso, guardaremos Mistress Swan para outra noite. É tarde e é chegada a hora de vos conduzir de volta a casa.
Recomeçou a andar sem esperar a sua resposta.
Temperance seguiu-o como um cão de caça obediente. Respondera às perguntas que lhe fizera, mas de uma forma que motivava perguntas novas. Havia centenas de mulheres em St. Giles. Era verdade que muitas eram prostitutas ou estariam envolvidas noutras atividades ilícitas. Mas, se desejasse, conseguiria encontrar uma dúzia ou mais de mulheres dispostas a mostrar-lhe o caminho. Porque a escolhera? Franziu a testa e apressou o passo para conseguir acompanhá-lo. Podia ser um estranho com segredos sinistros, mas sentia-se mais segura percorrendo as vielas quando estava a seu lado.
– Não sei se podemos confiar em Mãe Coração-Tranquilo – disse, gemendo um pouco enquanto o vento frio lhe levava as palavras.
– Duvidais da existência de Martha Swan?
– É provável que exista realmente – murmurou Temperance. – A possibilidade de ter informação relevante será outra questão.
– Como haveis travado conhecimento com Mãe Coração-Tranquilo?
– Todos conhecem Mãe Coração-Tranquilo. O gim é o demónio que atormenta Saint Giles.
Lorde Caire olhou-a.
– Deveras?
– É bebido por novos e velhos. Há quem o consuma como único alimento. – Temperance hesitou. – Mas não é apenas por esse motivo que a conheço.
– Contai-me.
Temperance ergueu uma mão para puxar mais o capuz sobre a cara.
– Há nove anos, quando vim para o lar, Mãe Coração-Tranquilo enviou-nos uma mensagem. Tinha consigo uma menina com uns três anos de idade. Não sei onde encontrou a criança, mas era impossível que fosse sua.
– E?
– Ofereceu-se para nos vender a criança. – Temperance fez uma pausa quando a voz lhe começou a vacilar. Não de medo ou mágoa, mas de raiva. Recordava a raiva intensa que sentira, o desprezo pelo cinismo mercenário de Mãe Coração-Tran-quilo.
– Que aconteceu? – Lorde Caire falou com voz baixa, mas Temperance ouviu-o sem dificuldade. A voz quase fez vibrar os seus ossos.
– Winter e o meu pai opuseram-se à compra da criança. Disseram que serviria apenas para a encorajar a vender outras crianças órfãs.
– E vós?
Temperance inspirou fundo.
– Não me agradou pagar-lhe, mas deixou claro que encontraria outro comprador se não pagássemos o preço que pedia. Alguém que não se importaria minimamente com o bem-estar da criança.
– Um proxeneta.
Olhou-o bruscamente, mas viu-lhe apenas a face de perfil, fria e distante. Chegaram a uma rua mais larga em que Temperance conseguiu caminhar a seu lado. Não fora por ali que conduzira Lorde Caire até à cave de Mãe Coração-Tranquilo. Pensou se estaria perdida.
A seguir, voltou a olhar em frente.
– Sim, um proxeneta seria a hipótese mais provável, ainda que Mãe Coração-Tranquilo nunca o tenha dito. Limitou-se a fazer horríveis insinuações. – Temperance baixou a cabeça, recordando essa maldita negociação. Era ainda um pouco ingénua quando aconteceu. Desconhecia a que ponto a alma de uma mulher podia ser negra.
Não dava atenção suficiente ao caminho. O seu pé ficou preso em alguma coisa e ergueu as mãos enquanto cambaleava, tentando equilibrar-se. Durante um segundo medonho, caiu para diante e soube que embateria contra o chão.
Mas Lorde Caire segurou-a com mãos duras e dolorosas, apertando-lhe os ombros, mas mantendo-a em segurança. Olhou para cima e ali estava ele, à sua frente, com os olhos azuis brilhando como os olhos de um demónio. Puxou-a mais para si, quase como se a abraçasse. Como um amigo. Como um amante.
Os seus piores desejos vieram à superfície.
Lorde Caire sussurrou, com o seu hálito roçando os lábios de Temperance.
– Comprastes a criança.
– Sim. – Olhou fixamente aquele aristocrata frio. Porque estava interessado naquela história? Porque insistia em reabrir velhas feridas? Porque procurava o assassino de uma mulher? – Sim, paguei o preço que pedia. Vendi a única joia que possuía, uma cruz de ouro que me fora oferecida pelo meu marido, e comprei a criança. Chamei-lhe Mary Whitsun pelo dia de Pentecostes em que a recebi pela primeira vez nos meus braços.
Lorde Caire inclinou a cabeça. Os olhos incrivelmente azuis questionavam-na.
Temperance soluçou, com a fúria e a mágoa brotando do local onde guardava cuidadosamente todas as emoções que não podia dar-se ao luxo de sentir. Tremeu enquanto tentava conter os sentimentos. Enquanto tentava prendê-los e esquecê-los.
Lorde Caire abanou-a como se pretendesse libertar a resposta que procurara.
– Winter estava certo – gemeu ela. – A rapariga foi salva, mas, dois meses depois, Mãe Coração-Tranquilo procurou-nos novamente com outra criança, um rapaz daquela vez. E o preço era o dobro do que cobrara pela rapariga.
– Que fizestes?
– Nada. – Fechou os olhos, derrotada. – O preço era demasiado alto. Não tínhamos dinheiro. Não podíamos… não podia fazer nada. Supliquei. Ajoelhei-me e implorei à bruxa, mas vendeu-o mesmo assim.
Apertou-lhe a capa nos punhos, sacudindo-os como se quisesse transmitir-lhe a que ponto a recordação era horrenda.
– Vendeu aquele doce bebé e não pude fazer nada para o salvar.
Num momento, chorava de fúria diante dele e, no seguinte, Lorde Caire baixou-se e apossou-se dos seus lábios. Com dureza. Sem misericórdia. O choque provocou-lhe um gemido. Pressionava a boca contra os lábios macios de Temperance. Sentiu-lhe os dentes. Saboreou-lhe a língua quente e a parte miserável, pecaminosa e errada do seu ser libertou-se e escapou ao seu controlo. Deleitando-se com a selvajaria do homem que a beijava. Alegrando-se com a sua sexualidade brutal.
Completamente descontrolada.
Até o ver erguer a cabeça para a olhar. Tinha os lábios húmidos e um pouco avermelhados, mas, fora isso, não ostentava qualquer vestígio daquele beijo devastador.
Não teria demonstrado menos emoção se tivesse acabado de se aliviar contra uma parede.
Temperance tentou libertar-se das mãos dele, mas eram fortes.
– Sois uma criatura tão apaixonada – murmurou, examinando-a sob pálpebras semicerradas. – Tão emotiva.
– Não sou – sussurrou ela, horrorizada pela possibili-dade.
– Mentis. Gostaria de perceber porquê. – Arqueou as sobrancelhas, divertido, e libertou-a de forma tão repentina que cambaleou um passo para trás. – Era minha amante.
– O quê?
– A mulher assassinada. A que foi esventrada como um porco no talho. Foi minha amante durante três anos.
Olhou-o, boquiaberta e atordoada.
Inclinou a cabeça para ela.
– Até amanhã. Boa noite, Mistress Dews.
E afastou-se, sendo engolido pelas sombras noturnas.
Temperance virou-se e, com a mente acelerada, viu-a a menos de vinte passos de distância. A porta do lar de órfãos.
Lorde Caire trouxera-a de volta a casa em segurança, afinal.
3 Joseph Caixa de Folha. (N. do T.)