Epílogo

 

 

 

Passou-se um ano e, durante esse tempo,

a disposição do Rei Coração Fechado

tornou-se cada vez mais negra.

Dispensou os seus cortesãos, um a um,

até restarem apenas alguns homens sábios.

Cansou-se das suas belas concubinas

e dispensou-as também, chorosas.

Sentava-se sozinho

na sua grandiosa sala do trono dourada,

sobre o trono de veludo, e tentava perceber porque se sentia assim. Tudo o que lhe restava como companhia

era o seu pequeno pássaro azul,

mas um pássaro não conseguia conversar, rir ou sorrir.

Um dia, ouviu-se uma batida ligeira nas portas da sala do trono e, quando o rei autorizou a entrada,

espantou-se ao ver entrar Meg, a criada.

O rei endireitou as costas,

mas depressa os seus ombros largos voltaram a afundar-se

e pareceu um pouco amuado.

«Por onde andaste?»

«Oh, por aqui e por ali. Pelo mundo todo»,

afirmou Meg, animada.

«Diverti-me muito.»

«Então, voltarás a partir?»,

perguntou o rei.

«Talvez. Talvez não»,

respondeu Meg enquanto se sentava aos pés do rei.

«Como vos sentistes durante a minha ausência?»

«Senti-me perdido. Vazio»,

respondeu o rei.

«E agora que voltei?»

«Feliz. Alegre»,

rosnou o Rei Coração Fechado,

puxando Meg para o colo e beijando-a com avidez.

«Sabeis o que isto é?»,

perguntou Meg num sussurro.

«Amor»,

respondeu o rei.

«Isto é amor verdadeiro e eterno, minha doce Meg.

Aceitarás ser a minha rainha?»

«Oh, sim»,

respondeu Meg.

«Pois adorei-te desde a primeira vez

que me arrastaste à tua presença.

Casaremos e viveremos felizes para sempre.»

E foi isso mesmo que aconteceu!

 

 

 

TRÊS SEMANAS DEPOIS

 

Silence percebeu que as manhãs eram o mais difícil. Parecia nunca haver qualquer motivo para se levantar. Ficava na cama, olhando o teto. William não estava presente, claro, estando embarcado há quatro semanas e ainda sem enviar uma carta. Não era invulgar. Invulgar era a sensação incómoda de que não escreveria naquela viagem. Concord não comunicava com ela, exceto numa breve carta de repreensão que Silence queimara porque correria o risco de perder qualquer sentimento fraternal que por ele sentisse se a lesse até ao fim. E ninguém tivera notícias de Asa.

Silence suspirou e virou-se de lado, vendo distraidamente uma mosca voar contra a janela do quarto. Temperance ficaria feliz por ter a sua ajuda para planear o casamento. Mas o lado triste era que a felicidade de Temperance com Lorde Caire contrastava de forma deprimente com o afastamento entre Silence e William. E os ciúmes que sentia da própria irmã faziam-na sentir mesquinha, hedionda e rancorosa.

Winter visitara-a duas vezes, pedindo da sua forma delicada e paciente que ajudasse no lar de órfãos, mas…

Bateram à porta.

Silence voltou-se para a sala. Fora uma batida muito forte para a ter ouvido no quarto. Quem poderia ser? Não tinha contas para pagar a comerciantes e não esperava visitas. Poderia ser Winter, tentando convencê-la mais uma vez. Encolheu-se sobre as cobertas. Se fosse Winter, não queria vê-lo. Acabara de decidir fingir que não estava em casa quando ouviu um gemido baixo.

Que estranho. Haveria um gato à sua porta?

Levantou-se e foi até à porta, abrindo-a uma nesga por estar vestida apenas com a sua camisa de dormir. Não viu ninguém. Ou assim pensou até ouvir novamente o som, olhando para baixo. Havia um bebé a seus pés num cesto, como Moisés, mas sem os juncos. Olhou-o, franzindo a testa, e viu-o imitar-lhe a expressão, enfiando um punho gordo na boca e corando bastante. Não sabia grande coisa sobre bebés, mas sabia reconhecer quando estavam prestes a chorar.

Curvou-se apressadamente, erguendo o cesto e fechando a porta atrás de si. Pousou o cesto sobre a mesa e pegou no bebé, inspecionando-o e percebendo que era uma menina. Estava vestida com um vestidinho e era muito bonita, com olhos escuros e um caracol fino e igualmente escuro espreitando-lhe por baixo da touca.

– Não recebo visitas depois das duas da tarde – murmurou Silence ao bebé, mas este limitou-se a agitar um punho, quase atingindo-a no nariz.

Silence procurou no cesto e encontrou um medalhão de prata gasta em forma de coração.

– Isto é teu? – perguntou ao bebé, abrindo o medalhão atabalhoadamente usando uma mão. No interior, havia um pedaço de papel com a palavra «querida»4 escrita. E mais nada. Continuou a procurar no cesto, chegando mesmo a retirar os cobertores em que o bebé estivera deitado, mas não encontrou outras pistas acerca da sua identidade.

– Porque deixaria alguém um bebé à minha porta? – pensou em voz alta enquanto o bebé roía o punho. O bebé parecia suficientemente satisfeito por ocupar o colo de Silence. Talvez a infeliz mãe soubesse da sua ligação ao lar de órfãos?

– O melhor será levar-te a Winter – disse Silence, determinada. De repente, passara a ter um motivo para se levantar naquela manhã. Sentia-se quase entusiasmada. – E, porque fui eu a encontrar-te, parece-me justo que seja eu a batizar-te.

O bebé ergueu as sobrancelhas, como se ficasse intrigado.

Silence sorriu-lhe.

– Mary Darling.


4 Darling no inglês original. (N. do T.)