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ANTES DA MINHA CHEGA DA a Cambridge, Francis havia pensado apenas ocasionalmente sobre o ácido desoxirribonucleico (DNA) e seu papel na hereditariedade. Não porque o considerasse desinteressante. Muito pelo contrário. O principal fator que o levou a deixar a física e a desenvolver um interesse pela biologia foi a leitura, em 1946, de What is Life?, do famoso físico teórico Erwin Schrödinger. O livro propõe com muita elegância a ideia de que os genes são o componente-chave das células vivas e que, para entender o que é a vida, precisamos saber como eles agem. Quando Schrödinger escreveu o livro (1944), havia uma aceitação geral de que genes eram tipos especiais de moléculas de proteína. Mas, quase ao mesmo tempo, o bacteriologista O.T. Avery conduzia experimentos no Instituto Rockefeller, em Nova York, que mostravam que os traços hereditários poderiam ser transmitidos de uma célula bacteriana para outra por moléculas purificadas de DNA.
Como era sabido que o DNA estava presente nos cromossomos de todas as células, os experimentos de Avery sugeriam fortemente que experiências futuras mostrariam que todos os genes eram compostos de DNA. Se fosse verdade, para Francis isso significava que as proteínas não seriam a Pedra de Roseta a revelar o verdadeiro segredo da vida. Em vez disso, o DNA teria de prover a chave que nos permitiria descobrir como os genes determinam, entre outras características, a cor dos nossos cabelos, dos nossos olhos e, muito provavelmente, nossa inteligência relativa e talvez até nosso potencial para divertir os outros.
É claro que havia cientistas que pensavam que a evidência a favor do DNA era inconclusiva e preferiam acreditar que os genes eram moléculas de proteína. Francis, entretanto, não se preocupava com esses céticos. Muitos eram tolos difíceis de lidar que invariavelmente apostavam nos cavalos errados. Ninguém poderia ser um cientista de sucesso sem perceber que, ao contrário da concepção popular apoiada pelos jornais e pelas mães de seus colegas, um bom número de cientistas não só tem a mente estreita e é limitado, como também é simplesmente estúpido.
No entanto, Francis naquela época não estava preparado para mergulhar no universo do DNA. Sua importância básica não parecia ser em si motivo suficiente para tirá-lo do campo das proteínas, no qual vinha trabalhando havia somente dois anos e que apenas começava a dominar intelectualmente. Além disso, seus colegas do Cavendish só estavam interessados de modo superficial nos ácidos nucleicos, e, mesmo com a melhor situação financeira, levaria dois ou três anos para montar um novo grupo de pesquisa dedicado principalmente a usar raios X para observar a estrutura do DNA.
Além do mais, uma decisão como essa poderia criar uma situação pessoal incômoda. Naquele tempo, o trabalho molecular do DNA na Inglaterra era, para todos os fins práticos, propriedade pessoal de Maurice Wilkins, um bacharel que trabalhava em Londres, no King’s College.1 Como Francis, Maurice era físico e também usava a difração de raios X como principal ferramenta de pesquisa. Seria muito antipático se Francis mergulhasse em um problema no qual Maurice trabalhava havia muitos anos. A questão era ainda pior porque os dois, com quase a mesma idade, se conheciam e, antes que Francis se casasse novamente, se encontravam com frequência para almoçar ou jantar e conversar sobre ciência.
Teria sido bem mais fácil se morassem em países diferentes. A combinação da intimidade da Inglaterra – todas as pessoas importantes, se não estivessem ligadas pelo casamento, pareciam conhecer umas às outras – acrescida do senso de lealdade inglês não permitiria que Francis se movesse em direção ao problema de Maurice. Na França, onde o jogo limpo obviamente não existia, esses problemas não teriam aparecido. Os Estados Unidos também não teriam permitido que uma situação como essa se desenvolvesse. Ninguém esperaria que um pesquisador de Berkeley ignorasse um problema de primeira ordem meramente porque alguém da Caltech havia começado primeiro. Na Inglaterra, entretanto, isso simplesmente não pareceria correto.
Pior ainda, Maurice frustrava Francis continuamente por nunca parecer entusiasmado o bastante em relação ao DNA. Ele parecia gostar de compreender lentamente os argumentos importantes. Não era uma questão de inteligência ou senso comum. Maurice claramente tinha os dois; como é possível ver, já que se dedicou ao DNA antes de quase todos os outros. Francis sentia que nunca conseguiria fazer com que Maurice entendesse que não nos movemos com cautela quando seguramos uma dinamite como o DNA. Além do mais, era cada vez mais difícil tirar a cabeça de Maurice de sua assistente, Rosalind Franklin.
Não que ele estivesse completamente apaixonado por Rosy, como a chamávamos pelas costas. Era o oposto – praticamente desde a sua chegada ao laboratório de Maurice, eles começaram a aborrecer um ao outro. Maurice, um iniciante no trabalho de difração de raios X, queria ajuda profissional e esperava que Rosy, uma cristalógrafa treinada, pudesse acelerar sua pesquisa. Rosy, entretanto, não via a situação desse modo. Ela alegava que recebera o DNA como um problema a ser solucionado e não pensava em si mesma como assistente de Maurice.
Suspeito que, no início, Maurice esperava que Rosy se acalmasse. Na época, uma simples olhada já sugeria que ela não se dobraria com facilidade. Por decisão própria, ela não enfatizava suas qualidades femininas. Apesar dos traços fortes, tinha seus atrativos e poderia ser muito bonita se tivesse ao menos um leve interesse em roupas, coisa que não tinha. Nunca passava batom para contrastar com os cabelos negros e lisos, e, aos 31 anos de idade, seus vestidos mostravam toda a imaginação das adolescentes inglesas intelectualizadas. Assim, era fácil imaginá-la como produto de uma mãe insatisfeita, que enfatizava indevidamente o desejo por carreiras profissionais que pudessem salvar garotas brilhantes de casamentos com homens estúpidos. Mas não era o caso. Sua vida austera e dedicada não poderia ser explicada dessa forma – ela era filha de uma família sólida, abastada e erudita de banqueiros.
Rosy tinha claramente de partir ou ser posta em seu lugar. A primeira opção era obviamente preferível, porque, dado seu temperamento beligerante, seria bem difícil para Maurice manter uma posição dominante que lhe permitisse pensar no DNA sem obstáculos. Não que às vezes suas reclamações não tivessem alguma razão – o King’s tinha duas salas comuns, uma para homens e outra para mulheres, certamente uma coisa do passado. Mas ele não era responsável por isso, e não era agradável carregar a cruz pelo incômodo adicional representado pela sala das mulheres, que seguia sendo uma prisão miserável, ao passo que certa quantia havia sido investida para que ele e seus amigos tivessem uma vida agradável durante o café matinal.
Infelizmente, Maurice não conseguia ver nenhuma maneira decente de demitir Rosy. Para começar, fizeram-na pensar que tinha um cargo que duraria anos. Também, não havia como negar que ela tinha um bom cérebro. Se pudesse apenas manter suas emoções sob controle, teria uma boa chance de ajudá-lo. Mas só desejar que os relacionamentos melhorassem era como fazer uma aposta, e o fabuloso químico da Caltech Linus Pauling não estava sujeito às regras do jogo limpo praticado na Grã-Bretanha. Cedo ou tarde, Linus, que tinha acabado de completar cinquenta anos, estava destinado a tentar conquistar o mais importante de todos os prêmios científicos. Não havia dúvida de que estava interessado mesmo. Nossos princípios iniciais diziam que Pauling não poderia ser o maior entre todos os químicos se não percebesse que o DNA era a mais valiosa das moléculas. Além do mais, havia provas definitivas. Maurice havia recebido uma carta de Linus na qual ele pedia uma cópia das fotografias radiográficas do DNA cristalino. Após alguma hesitação, ele respondeu que queria analisar os dados mais de perto antes de liberar as imagens.
Tudo isso era muito perturbador para Maurice. Ele não havia fugido para a biologia para achá-la tão repugnante quanto a física, com suas consequências atômicas. Ter Linus e Francis fungando no seu cangote lhe tirava o sono. Mas pelo menos Pauling estava a 5 mil quilômetros de distância, e o próprio Francis estava a duas horas de trem. O verdadeiro problema era Rosy. A ideia de que o melhor lar para uma feminista seria o laboratório de outra pessoa não podia ser evitada.
1 Uma divisão da Universidade de Londres. Não confundir com o King’s College de Cambridge.