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EU MORAVA AGORA NO CLARE COLLEGE. Logo após minha chegada ao Cavendish, Max me infiltrara no Clare como aluno pesquisador. Embora iniciar outro PhD não fizesse sentido, somente com esse artifício eu teria a possibilidade de ficar em um quarto da faculdade. Clare foi uma escolha boa e inesperada. Não apenas estava em Cambridge, com um jardim perfeito, mas, como saberia depois, aquele era um local especialmente atencioso com os americanos.

Antes de isso acontecer, eu estava quase empacado em Jesus.1 De início, Max e John pensaram que eu teria mais chance de ser aceito em uma faculdade menor, porque elas tinham menos alunos pesquisadores do que as maiores, mais prestigiadas e mais ricas, como Trinity e King’s. Max perguntou ao físico Denis Wilkinson, na época bolsista de Jesus, se haveria uma vaga em sua faculdade. No dia seguinte, Denis veio dizer que Jesus me receberia e eu deveria marcar uma reunião para ficar a par das formalidades da matrícula.

Uma conversa com o tutor chefe, no entanto, me fez tentar outro lugar. O fato de Jesus ter poucos alunos pesquisadores parecia estar relacionado à sua reputação formidável no remo. Nenhum aluno podia morar lá, assim, a única consequência previsível de ser um homem de Jesus era ter que pagar contas para um PhD que eu nunca terminaria. Nick Hammond, o tutor chefe do Clare, desenhou um cenário muito mais colorido para seus alunos pesquisadores estrangeiros. No meu segundo ano, poderia me mudar para a faculdade. Além do mais, no Clare, havia diversos pesquisadores americanos que eu poderia conhecer.

Apesar disso, durante meu primeiro ano em Cambridge, quando morava na Tennis Court Road com os Kendrew, não vi praticamente nada de vida universitária. Depois de matriculado, fiz diversas refeições no salão, até descobrir que era improvável conhecer alguém durante os dez ou doze minutos necessários para engolir a sopa marrom, a carne fibrosa e a sobremesa pesada oferecida na maioria das noites. Mesmo durante meu segundo ano em Cambridge, quando me mudei para um quarto na escadaria R do Clare’s Memorial Court,2 meu boicote à comida da faculdade continuou. Podia tomar café da manhã no Whim muito mais tarde do que se eu fosse ao salão. Por três shillings e seis pence, o Whim oferecia um lugar semiaquecido para ler o Times, enquanto tipos de boina viravam as páginas do Telegraph ou do News Chronicle. Encontrar comida decente para jantar na cidade era difícil. Comer no Arts ou no Hotel Bath era só para ocasiões especiais, portanto, quando Odile ou Elizabeth Kendrew não me convidavam para jantar, eu ficava com o veneno produzido pelos estabelecimentos indianos e cipriotas locais.

Meu estômago resistiu apenas até o início de novembro, quando dores violentas me atacavam quase todas as noites. Tratamentos alternativos com bicarbonato de sódio e leite não ajudaram, e, assim, apesar de Elizabeth ter certeza de que não havia nada errado comigo, fui ao consultório gelado de um médico local, na Trinity Street. Depois de me permitirem apreciar os remos expostos na parede, fui dispensado com uma prescrição de uma garrafa grande de um líquido branco, que devia ser tomado após as refeições. Isso me fez suportar as dores por quase duas semanas, quando, com a garrafa vazia, voltei ao consultório com medo de ter uma úlcera. A notícia de que as dores de estômago de um estrangeiro persistiam não evocou, entretanto, nenhuma palavra solidária, e, mais uma vez, voltei à Trinity Street com uma prescrição para mais um tanto da coisa branca.

Naquela noite, parei na recém-adquirida casa dos Crick, esperando que fofocar com Odile me fizesse esquecer o estômago. Green Door havia sido trocado recentemente por instalações maiores, próximas a Portugal Place. O papel de parede deprimente do apartamento anterior não existia mais, e Odile estava ocupada fazendo cortinas adequadas para uma casa grande o bastante para ter um banheiro. Depois que ela me deu um copo de leite morno, começamos a falar sobre a descoberta de Nina, a jovem dinamarquesa au pair de Max, por Peter Pauling. Em seguida, discutimos o problema de como eu poderia estabelecer uma ligação com a hospedaria de alto nível, comandada por Camille “Pop” Prior, no Scroop Terrace, nº 8. A comida na casa de Pop não era melhor em comparação à da faculdade, mas as garotas francesas que vinham a Cambridge para melhorar seu inglês eram outra questão. Um lugar na mesa de Pop, entretanto, não podia ser pedido diretamente. Em vez disso, tanto Odile quanto Francis achavam que a melhor tática para conseguir uma oportunidade de entrar lá seria começar a estudar francês com Pop, cujo falecido marido era professor de francês antes da guerra. Se caísse no gosto dela, poderia ser convidado para uma de suas festas regadas a sherry e encontrar a safra atual de garotas estrangeiras. Odile prometeu ligar para Pop, para ver se ela poderia me dar aula, e eu pedalei de volta para a faculdade com a esperança de que, logo, minhas dores teriam uma razão para desaparecer.

De volta ao quarto, acendi a lareira, sabendo que não havia chance de parar de soprar fumaça antes de ir para a cama. Com os dedos frios demais para escrever de modo legível, me aproximei da lareira, sonhando acordado a respeito de quantas cadeias de DNA poderiam se dobrar umas sobre as outras de um modo bonito e esperançosamente científico. Logo, entretanto, parei de pensar em nível molecular e me virei para o trabalho muito mais fácil de ler artigos de bioquímica sobre as inter-relações entre DNA, RNA e síntese proteica.

Praticamente todas as evidências existentes me fizeram acreditar que o DNA era o molde no qual as cadeias de RNA eram feitas. Por sua vez, as cadeias de RNA eram as candidatas prováveis a moldes para a síntese proteica. Havia alguns dados indistintos sobre ouriços-do-mar, interpretados como uma transformação do DNA em RNA, mas eu preferia confiar em outros experimentos que mostravam que moléculas de DNA, uma vez sintetizadas, são muito estáveis. A ideia de que os genes eram imortais parecia estar correta e, assim, colei na parede acima da minha mesa uma folha de papel com a inscrição DNA→RNA→proteína. As setas não significavam transformação química, mas expressavam, em vez disso, a transferência de informação genética das sequências de nucleotídeos nas moléculas de DNA para as sequências de aminoácidos nas proteínas.

Apesar de ter ido dormir contente, pensando que havia entendido a relação entre ácidos nucleicos e síntese proteica, o frio ao me vestir no quarto gelado me trouxe de volta à realidade de que um slogan não substitui a estrutura do DNA. Sem isso, o único impacto que Francis e eu provavelmente conseguiríamos era convencer os bioquímicos que conhecemos em um pub local de que nós nunca apreciaríamos o significado fundamental da complexidade na biologia. Pior que isso, mesmo quando Francis parou de pensar sobre espirais, ou eu, sobre genética bacteriana, continuamos paralisados no mesmo lugar em que estávamos doze meses antes. Os almoços no Eagle acabavam muitas vezes sem menção ao DNA, apesar de, geralmente, em algum ponto da nossa caminhada pós-almoço ao longo do Backs, os genes rastejarem por alguns momentos.

Em poucas caminhadas nosso entusiasmo crescia a ponto de mexermos nos modelos quando voltávamos para o escritório. Mas, quase imediatamente, Francis via que o raciocínio que nos dera esperança por um momento não levava a nenhum lugar. Voltávamos, então, a examinar as imagens radiográficas da hemoglobina, de onde a tese dele deveria emergir. Muitas vezes, continuei sozinho por cerca de meia hora, mas, sem a falação confiante de Francis, minha inabilidade de pensar em três dimensões era muito evidente.

Para mim, não era nem um pouco ruim dividir nosso escritório com Peter Pauling, que morava no albergue do Peterhouse como aluno pesquisador de John Kendrew. A presença de Peter significava que, quando a ciência não fizesse mais sentido, a conversa poderia se estender sobre as virtudes comparativas das garotas da Inglaterra, da Europa e da Califórnia. Um belo rosto, entretanto, não tinha nada a ver com o sorriso largo que Peter ostentava quando entrou saracoteando no escritório, numa tarde de meados de dezembro, e colocou os pés sobre a mesa. Ele tinha nas mãos uma carta dos Estados Unidos, que havia pegado ao voltar ao Peterhouse para o almoço.

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Ideias iniciais sobre a relação DNA→ RNA→ proteína.

Era de seu pai. Além de fofocas familiares de rotina, havia a temida notícia de que Linus já tinha a estrutura do DNA. Como não contava detalhes do que estava fazendo, a frustração aumentava a cada vez que a carta passava entre Francis e eu. Francis começou a andar para cima e para baixo na sala, pensando alto, esperando que pudesse reconstruir o que Linus teria feito num grande fervor intelectual. Como Linus não contara a resposta, nós poderíamos receber o mesmo crédito se a anunciássemos ao mesmo tempo.

Nada relevante surgiu, no entanto, quando subimos as escadas para o chá e falamos da carta para Max e John. Bragg passou por lá, mas nenhum de nós queria experimentar a alegria perversa de informá-lo de que os laboratórios ingleses estavam mais uma vez prestes a serem humilhados pelos americanos. Enquanto comíamos biscoitos de chocolate, John tentou nos animar com a possibilidade de Linus estar errado. Afinal de contas, ele nunca vira as imagens de Maurice e Rosy. Nossos corações, entretanto, nos diziam outra coisa.


1 Jesus College. (N.T.)

2 Edifício do Clare College concebido como memorial para integrantes da faculdade mortos na Primeira Guerra Mundial. (N.T.)