O carro da Miséria[15]
Um dos meus poemas que mais despertam a minha curiosidade sobre a sua criação, e, valha a verdade, mais me dignificam é O carro da Miséria. Não será talvez o mais belo, o mais perfeito como integridade estética, mas é sem dúvida um dos mais realizados como integridade artística. E eu creio, como também Manuel Bandeira, que O carro da Miséria contém alguns dos versos mais bonitos que já inventei.
Mas deixemos a beleza de lado. O que me deixa muito interessado por este poema é, nele, eu ter me escondido como talvez em nenhum outro dos meus poemas. Poema “interessado”, “poema de circunstância” mesmo, derivado diretamente de preocupações políticas, sociais, nacionais de função imediata,[16]O carro da Miséria é, no entanto, o poema mais escuro (e escuso...), mais aparentemente poesia pura, mais hermético que já escrevi. Mas isso, depois de ter pensado bastante sobre ele, a meu ver constitui uma verdadeira falcatrua lírica. Eu me escondi de mil maneiras. E a mais ingênua foi essa de fazer hermetismo falso, desnecessário. E talvez às vezes forçado. Quero dizer: se o poema é bastante claro de interpretação pra mim, botei coisas nele que estou convencido, não têm absolutamente nenhuma interpretação possível. (A não ser, possivelmente, pessoais, psicanalisáveis: o que não tem nenhuma importância pro caso social que o poema define). Enfim: eu botei mesmo, no poema, elementos que não querem dizer coisíssima nenhuma, que proposital, voluntária e... inconscientemente nada significam, não têm sentido interpretável. Só pra disfarçar, como a peninha no rabo do cachorro.
Assim, se na 1ª versão do poema, eu falo “Pois então, meu grampo, hás-de reconhecer”[17]etc., esse grampo a quem me dirijo não tem nenhuma significação de qualquer forma elucidativa. Pelo contrário, ele é elucidativo, enquanto não significa coisa nenhuma. Ele vive pra despistar, atrapalhar, enigmatizar forçadamente. E com efeito eu me recordo com muita nitidez que procurei, hesitante (um milésimo de segundo) um substantivo, ou melhor, uma palavra. E sei que a queria inexplicável. Se me surgisse “meu primo”, “me’rmão”, “meu povo”, “meus escravos”, “meus estigmatizados”, “meus párias”, “meus trens”, meus “navios” etc. enfim qualquer possível interessamento do vocativo, em vez de “meu grampo” ou “meu pingue-pongue” (este ainda parece dar metáfora e sugere imagem...), eu não teria aceito a inspiração. Porque no momento, o estado de estraçalhado, de autodestruição (muito mais autodestruição que punição, em que eu estava) em que eu estava o que queria, o que carecia era a palavra que não dissesse nada. Pra prejudicar. Pra prejudicar até o próprio poema, se entenda bem.
O carro da Miséria principia a sua falcatrua inconsciente por ter umas origens bem diversas das causas profundas que obrigaram a criação dele. Isso aliás não é raro. Não é raro um motivo externo qualquer, como a maçã de Newton, provocar uma criação causada por elementos que são os decisórios. Pro meu poema isso quer dizer que, se não tivessem as causas profundas, jamais que os elementos que o originaram, o originariam. Pelo menos, está claro, tal como é. Vejamos. As revoluções só.
Origens - Por dezembro de 1930 já não era mais possível a nenhum paulista, a não ser vendido, recusar a desilusão regional da revolução getulista.