Sob o seu roupão de cambraia,
Com os olhos largamente abertos,
Desde que a aurora aos montes raia,
Ela anda nos salões desertos.
5 Nas salas ermas do edifício,
Onde há silêncio, onde há mistério,
Ela passa como um bulício
De rezas num eremitério.
Dos quadros olham-na sorrindo
10 Infanções, condes e donzelas...
E ela, os longos olhos abrindo
Passa horas longas nas janelas.
Por vezes, pelas tardes frias,
Quando é tudo sombra e repouso,
15 Ela desce as escadarias
E vagueia no parque umbroso.
E pelos canteiros de malva
Os seus olhos mornos espraia,
Sua tez é muito mais alva
20 Do que o seu roupão de cambraia.
Vem o vento. São alaridos
De enlaces machucando sedas...
Seus cabelos são tão compridos
Que arrastam pelas alamedas.
25 Raios de luar, quais serpentinas,
Jazem nos canteiros oblongos,
As suas mãos são finas, finas,
Os seus dedos são longos, longos.
E ela chega aos severos muros
30 Que a prendem como almas humanas,
E então fecha os olhos escuros
Com o centímetro das pestanas,
E enquanto volta pensativa
E a lua pelo céu desmaia,
35 Uma lágrima fugitiva
Rola em seu roupão de cambraia.
E ela volta. E pisa o mosaico
Das solenes escadarias.
Depois reclina-se no arcaico
40 Leito de ébano e pedrarias
E dorme. Dedos enlaçados,
Boca entreaberta, olhos abertos.
E fantasmas de antepassados
Rondam pelos salões desertos.
45 Entram e saem pelas portas
E se debruçam nas janelas,
E no luto das horas mortas
Formam tristíssimas sequelas.
Finos nobres de ambos os sexos,
50 Da mais alta e mais pura laia,
Passam ante ela e genuflexos
Beijam-lhe o roupão de cambraia.
Num cravo de sândalo e prata,
Unindo as cabeças formosas,
55 Um pajem lento e uma açafata
Dedilham músicas mimosas.
Nos dois lânguidos tocadores,
Com o som do cravo, se acentua
Uma dor cheia de pudores
60 A luz assombrada da lua.
Mas enquanto as janelas pasmas
Olham com grandes olhos pretos,
Os alvos, trêmulos fantasmas
Dançam pavanas e minuetos.
65 Mas a última princesa dorme
Até que a aurora aos montes raia,
Envolta num letargo enorme
E no seu roupão de cambraia...