Quando as pessoas descobrem, tarde demais, que sofrem de uma doença grave e provavelmente incurável e que podem não ter mais de seis meses de vida, a primeira reação é de choque e, em seguida, de negação, momento a partir do qual experimentam furiosamente qualquer cura em oferta ou buscam profissionais de medicina alternativa. Por fim, se forem sensatas, atingem um estado de calma aceitação. Sabem que a morte não precisa ser temida e que dela ninguém escapa. Se a doença for câncer, aquela maravilhosa organização, o movimento “hospice”, * fundado por uma verdadeira santa, Cicely Saunders, muitas vezes torna o fim mais decente que o começo. Os cientistas, que reconhecem a verdade sobre o estado geral da Terra, advertem seus governos da gravidade mortal ao estilo de um médico. Agora estamos vendo as respostas. Primeiro, foi negação em todos os níveis; depois, a busca desesperada por uma cura. Assim como nós, indivíduos, experimentamos remédios alternativos, nossos governos recebem muitas ofertas de empresas alternativas e seus lobistas acerca de modos sustentáveis de “salvar o planeta”, e acreditam que de algum hospício verde poderá vir o conforto da esperança.
Se o leitor duvidar que essa perspectiva impiedosa é real, permita-me lembrá-lo das forças que ora levam a Terra para a sauna: entre elas estão a crescente abundância dos gases de efeito estufa originários da indústria e da agricultura, inclusive gases de ecossistemas naturais danificados pelo aquecimento global no Ártico e nos trópicos. Os vastos ecossistemas oceânicos que costumavam remover o dióxido de carbono não são mais capazes de fazê-lo porque o oceano torna-se deserto à medida que se aquece e cresce em acidez; então, existe a absorção extra do calor radiante do Sol à medida que a neve refletora branca derrete e é substituída pelo solo ou por oceanos escuros. Cada absorção extra separada acrescenta calor e, juntas, amplificam o aquecimento que causamos. O poder dessa combinação e a incapacidade da Terra de resistir a ela agora é que me obriga a considerar que os esforços feitos para estabilizar o dióxido de carbono e a temperatura não são muito mais que um remédio alternativo planetário.
Até onde sei, ninguém em Bali ou nos congressos anteriores da ONU ficou exatamente preocupado com Gaia ou considerou a resposta da Terra viva àquilo que estamos fazendo a ela. De fato, à medida que a Terra se aquece, e muito antes do prazo final de 2050, a produção dos gases de efeito estufa e as alterações de albedo causadas pela própria Terra poderão exceder o efeito total do aquecimento causado por todos os gases extras que tivermos adicionado. A pressuposição de que o clima pode ser estabilizado por uma redução nas emissões em uma abundância de dióxido de carbono a 550ppm e uma temperatura global 2°C maior que a normal não tem nenhum fundamento seguro na ciência. Ao contrário, o sistema Terra já poderá estar fadado a uma mudança irreversível, mesmo que implementemos na totalidade a redução recomendada de 60% das emissões.
É surpreendente que políticos possam ter sido tão insensatos para concordar com políticas que projetam muitas décadas adiante. Talvez tenha havido vozes de cientistas que advertiram do absurdo de tal planejamento, mas, se houve, não parece que tenham sido ouvidas. Mesmo que cortemos as emissões em 60%, para 12 gigatoneladas por ano, isso não bastaria. Mencionei várias vezes antes que a respiração é uma poderosa fonte de dióxido de carbono, mas você sabia que as exalações da respiração e outras emissões gasosas de quase sete bilhões de pessoas na Terra, seus animais de estimação e gado são responsáveis por 23% de todas as emissões de gases de efeito estufa? Se acrescentarmos o combustível fóssil queimado na atividade total para cultivar, colher, vender e servir alimentos, tudo isso totaliza cerca da metade de todas as emissões de dióxido de carbono. Pensemos nos implementos agrícolas, no transporte de alimento das fazendas e no transporte de fertilizantes, pesticidas e no combustível usado em sua fabricação; na construção e manutenção de estradas; operações de supermercado e na indústria de embalagens; para não falar na energia usada para cozinhar, refrigerar e servir a comida. Como se não bastasse, pensemos em como a terra arada não serve à Gaia como as florestas que ela substituiu. Se, apenas por viver com nossos animais de estimação e gado, somos responsáveis por quase metade das emissões de dióxido de carbono, não vejo como a redução de 60% possa ser atingida sem enorme perda de vida. Queiramos ou não, somos o problema — e como parte do sistema Terra, não como algo separado dele e acima dele. Quando os líderes mundiais nos pedem que os sigamos às convidativas pastagens verdes à nossa frente, eles deveriam antes verificar que se trata mesmo de pasto sobre terreno sólido, e não de musgo cobrindo um atoleiro.
Gráfico 4. A previsão de aquecimento do hemisfério norte para o século vindouro, de acordo com o modelo de previsões citado por Peter Stott em seu artigo de 2006 sobre o verão europeu excepcionalmente quente de 2003. A linha mostrada foi desenhada à mão livre e não deve ser considerada mais precisa que um esboço num quadro-negro.
A única conclusão quase certa que podemos tirar do clima em transformação e a resposta das pessoas a ele é que está sobrando pouco tempo para agir. Portanto, meu apelo é que seja feita uma adaptação, no mínimo, de igual importância às tentativas orientadas pela política de reduzir emissões. Não podemos continuar supondo que, por não existir nenhum modo suave de reduzir nossos números, basta melhorar nossas pegadas de carbono. São muitos também os que pensam no lucro a ser obtido do comércio de carbono. Não é a pegada de carbono sozinha que prejudica a Terra; a pegada das pessoas é maior e mais mortal.
Já enfrentamos as consequências adversas da acumulação total de gases de efeito estufa chegando ao equivalente a mais de 430ppm de dióxido de carbono — a perda de ecossistemas de solo terrestre, a desertificação do solo e das superfícies oceânicas e a perda do gelo polar; elas atuam em conjunto, favorecendo uma mudança, e provavelmente obrigam a Terra a um aquecimento irreversível. Pode não existir nenhuma alternativa senão o uso direto das técnicas de esfriamento global examinadas no Capítulo 5 sobre geoengenharia, inclusive uma tentativa de descarbonizar maciçamente a atmosfera enterrando o carvão. Independentemente de tais esforços terem ou não sucesso em esfriar a Terra até que ela atinja seu estado interglacial autorregulador prévio, temos de, por meio da adaptação, nos preparar para o fracasso.
O dilema é que existem muitíssimos de nós que vivem como nós — Paul e Ann Ehrlich disseram-no há quarenta anos em seu livro The Population Bomb [A bomba populacional]. Mas nós não ouvimos. Eles exageraram um pouco, mas o alerta sobre os perigos do superpovoamento estava certo. Em teoria, poderíamos comer menos e economizar energia, mas, na prática, nunca o faremos, a menos que nos obriguem. As consequências do nosso supercrescimento e suas emissões são apenas ligeiramente diferentes daquelas causadas pelos fotossintetizadores (plantas unicelulares) que também cresceram e se multiplicaram há mais ou menos 2 bilhões de anos e modificaram tanto seu mundo que conjuntos inteiros de ecossistemas anaeróbicos foram condenados à existência subterrânea. A poluição deles foi oxigênio, um gás venenoso, carcinogênico e incendiário — mas a vida, inclusive nós, evoluiu para extrair benefícios dele. Assim como os fotossintetizadores, não poderíamos ter evitado atingir nosso estado atual de superpovoamento e insustentabilidade. Somos o que somos e pouco poderia ser feito para evitar o que agora parecem alterações adversas; não deveríamos nos sentir culpados por isso.
Nossos líderes, se fossem todos excelentes e poderosos, poderiam proibir a manutenção de animais de estimação e gado, tornar compulsória uma dieta vegetariana e incentivar um grande programa de síntese de alimentos por indústrias químicas e bioquímicas; fazer isso apenas restringiria a perda de vida a animais de estimação e gado. É alentador que o presidente do IPCC, dr. Pachauri, tenha recomendado uma dieta vegetariana como um caminho a seguir. É quase uma certeza que nunca acontecerá dessa maneira e as pessoas manterão a agropecuária, os negócios e o governo da mesma forma de sempre. Mudanças em estilo de vida, agricultura e hábitos alimentares não são uma opção política popular, sendo mais provável que os governos sigam o caminho fácil do uso de impostos e subsídios para orientar o agronegócio, a indústria e o público em qualquer que seja a direção favorecida por sua ideologia política. Esquecemos com frequência que o dever de um empresário é com os acionistas de sua empresa, não com a comunidade nem com o governo, e, certamente, não com o planeta. Empresários são mais gananciosos ou mais insensíveis que o restante de nós, mas imposto e subsídio distorcem a capacidade deles de criar lucro e, em geral, eles preferirão fontes ineficientes, mas lucrativas, de energia e produtos agrícolas em detrimento de alternativas de longo prazo que sejam sensatas e eficientes, mas menos lucrativas. É por isso que a indústria apoiará os renováveis, o comércio de carbono e biocombustíveis, que não são eficientes nem sensatos, mas são lucrativos a curto prazo. A energia nuclear é lucrativa, mesmo sem subsídio, mas, assim como a compra de uma casa por meio de financiamento, o lucro só vem depois. No clima econômico atual, distorcido pelo subsídio, a energia nuclear é menos atraente para a indústria.
Enquanto isso, a mudança climática se mantém em franca progressão, agora impulsionada pelo feedback da Terra bem como por nosso aumento nas emissões e uso do solo. Não há um ponto de ruptura; estamos indo ladeira abaixo numa descida acidentada que fica cada vez mais escarpada em direção ao mundo quente. Mesmo nos refúgios de sobrevivência, onde a mudança climática for bastante suave para permitir o crescimento continuado de alimento, haverá desastres e dificuldades. Assim, nas partes mais férteis da Europa, incólumes ao calor e à estiagem, entre as quais a Holanda, o Reino Unido e a Irlanda, a elevação do nível do mar e as tempestades poderão provocar inundações catastróficas. É provável que boa parte de Londres fique inundada e o transporte subterrâneo inutilizado. A Holanda poderá se tornar inabitável. Mesmo uma enchente temporária com água salgada reduz enormemente a produtividade da lavoura. Ao considerarmos as ofertas de alimento e energia, devemos ter sempre em mente que as necessidades imediatas dos consumidores humanos são apenas parte do problema. Precisamos também sustentar a infraestrutura das cidades, a habitação, saúde e outros serviços, inclusive escola, destinação do lixo e transporte. A necessidade de Gaia tende a ser logo esquecida: precisamos deixar ecossistemas naturais em solo e no oceano suficientes para a autorregulação planetária.
A mudança climática é volúvel. Eventos no início de 2008 fizeram muitos na Europa e nos Estados Unidos duvidarem que o aquecimento global estivesse seguindo o ritmo esperado ou fosse uma fonte importantíssima de preocupação. O clima ainda não parecia ruim o bastante para exigir uma ação urgente, e nossas mentes se encheram de temores diante de uma possível recessão ou depressão do clima monetário. De fato, um médico planetário que estivesse examinando ao pé do leito o prontuário do nosso planeta supostamente enfermo notaria que, apesar do aquecimento global, que é confirmado pela elevação constante do nível do mar durante os últimos dez anos, a temperatura média global não se alterou sensivelmente durante o mesmo período; alguns bons climatologistas até acham que pode ter havido uma pequena queda da temperatura durante o século atual. É verdade que tem havido sintomas apavorantes, como o extraordinário derretimento do gelo ártico no verão de 2007, mas, apesar dessas preocupações, a febre da Terra não pareceu estar se agravando. Além disso, 2008 acabou trazendo um verão frio e úmido na região noroeste da Europa e em partes dos Estados Unidos, de forma alguma o que era esperado do aquecimento global. Essa aparente remissão da doença da Terra se refletiu no livro breve e sério de Nigel Lawson, An Appeal to Reason [Um apelo à razão]. O livro é como uma sensação de ar fresco entrando por uma janela aberta numa sala de conferência superaquecida. A maioria dos que negam a mudança climática não esconde um interesse aparente no statu quo e são pouco convincentes e até enfadonhos. Mas eis um livro que rejeita o aquecimento global escrito com paixão, sem deixar de ter o distanciamento correto, como se o autor fosse o conselho de defesa dos que negam a existência da mudança climática.
Acho que Lawson tem razão em criticar o modismo que acompanha a resposta pública ao aquecimento global. Mas discordo inteiramente da negação dele e acho que existe apenas uma possibilidade mínima de que o mundo não fique mais quente, como descrevi no Capítulo 2. Por ora, é útil comparar a Terra com um drinque gelado. O leitor terá percebido que a bebida permanece fria até que o último dos gelos derreta e, até certo ponto, é o que ocorre com a Terra. Uma grande porção do calor do aquecimento global serviu para aquecer aquela grande massa de água, o oceano, e para derreter o gelo. Pode ser um dos vários motivos pelos quais não houve maior aquecimento. Contudo, assim que o gelo tiver derretido e a mistura das águas oceânicas atingir um equilíbrio dinâmico, o aquecimento global continuará mais rápido ainda que antes. O livro de Lawson nos força a pensar na Terra e no que estamos fazendo com ela num contexto mais amplo. Aplaudo sua mordacidade e sua desaprovação do populismo modernoso que agora se associa a tudo e a qualquer coisa considerada verde.
A natureza humana, o comportamento que se origina da inteligência que a evolução nos deu, compromete nossas chances. Somos como aves de rapina que voam lá no alto — falcões e águias que evoluíram para arremeter dos céus e apanhar a presa, e o fazem muitíssimo bem. Mas qual seria o destino das águias se todas as suas presas passassem a viver no subterrâneo? Elas não estão adaptadas para voar em túneis nem cavernas e sua visão excelente não seria útil no escuro. Somos perfeitamente evoluídos para viver como caçadores-coletores. As asas dos nossos cérebros foram primorosamente ajustadas pela evolução para sobrevivermos no mundo de um milhão de anos atrás, mas estamos tão mal equipados para sobreviver na Terra do século XXI que fizemos como um falcão faria numa caverna. Nossa inteligência não é algo transcendental, mas uma propriedade que evoluiu para nos ajustar ao nosso nicho, como o bico rígido de um pica-pau evoluiu para se ajustar ao seu mundo, onde a oferta de alimentos se resume a insetos de casca de árvore.
Nossa civilização industrial contemporânea está irremediavelmente desajustada para sobreviver em um planeta superpopuloso e com poucos recursos, iludida pelo pensamento de que invenções brilhantes e progresso nos darão a calçadeira que nos ajustará ao nosso nicho imaginário. Acho que seria melhor se aceitássemos e entendêssemos quão baixas são as chances de nossa sobrevivência pessoal, mas me enche de esperança o fato de nossa espécie ser extraordinariamente tenaz, ter sobrevivido a sete grandes catástrofes climáticas nos últimos milhões de anos e de ser improvável que sejamos extintos na próxima catástrofe climática. Interessados na evolução dos seres humanos, geneticistas observaram que, em certa ocasião nos últimos milhões de anos, passamos por um gargalo genético no qual se estima que nossos ancestrais não passassem de 2 mil. Gaia, felizmente, é muito mais rija e, como um planeta vivo, sobreviveu por mais de um quarto da idade do cosmos.
Um exemplo específico de um atributo mental favorável desenvolvido em algum momento para a sobrevivência, mas hoje uma séria desvantagem, foi dado por Michael Shermer em sua coluna da revista Scientific American de agosto de 2008. Ele aproveitou uma recente controvérsia médica para explicar por que pensar empiricamente e de modo assistemático acontece naturalmente, mas pensar de forma científica não. A controvérsia é sobre se o autismo estaria ou não conectado com a administração de vacinas em crianças. De um lado, alguns pais percebem que, pouco depois da vacinação, surgem os sintomas do autismo; do outro, cientistas afirmam não encontrar nenhuma ligação causal entre vacinação, ou as defesas presentes na vacina, e os sintomas do autismo. As associações empíricas assistemáticas, especialmente quando amplificadas com uma reportagem na mídia, são tão poderosas que fazem as pessoas ignorarem evidências científicas contrárias. Shermer diz ainda que o motivo dessa desconexão cognitiva é que desenvolvemos cérebros que prestam atenção às pequenas histórias porque uma afirmativa positiva mas falsa (acreditar que existe uma conexão entre A e B, quando não existe) é geralmente inofensiva, enquanto uma afirmativa negativa mas verdadeira (acreditar que não existe nenhuma conexão entre A e B, quando existe) pode tirá-los do nosso pool genético. Nossos cérebros são como mecanismos de convicções que empregam aprendizado associativo para buscar e encontrar padrões. Superstição e crença em magia têm milhões de anos de idade, enquanto a ciência, com seus modos inteligentes de evitar falsos-positivos, tem apenas algumas centenas de anos.
A conexão autismo-vacina é muito similar à crença empírica assistemática de que existem aglomerações de vítimas de leucemia entre as populações em torno das usinas nucleares. Sendo cientista, sei que isso é bobagem, mas tente convencer uma mulher que perdeu um parente que por acaso vivia nas vizinhanças de uma usina nuclear: a probabilidade de ter sucesso é minúscula, quase nula. É por isso que é tão fácil convencer a multidão de crédulos de que o inócuo telefone celular que usamos, ou o cabo elétrico das proximidades, é um perigo.
Se nosso mundo atual é absolutamente insustentável, como retrocedemos de modo sustentável? Para responder a esta pergunta é útil pensar num submarino nuclear como um microcosmo da Terra. Ele precisa ficar debaixo das ondas por períodos de meio ano e manter um ambiente saudável para os tripulantes. A energia provém de reatores nucleares estáveis e confiáveis. O reator do submarino é tão bem protegido que os tripulantes são expostos a menos radiação que qualquer outra pessoa viva. A 100 metros de profundidade, nenhuma radiação térmica ou terrestre penetra; mas nós, na superfície, além da radiação cósmica e os elementos radioativos naturais do solo e das paredes de nossos edifícios, não estamos protegidos de nosso reator, o Sol, exceto pela fina camada de ar que nos separa do espaço. Quando permanecemos expostos ao sol de verão por tempo demais e sofremos uma queimadura por radiação, percebemos logo como estamos pouco protegidos. O ar do submarino é tão bem regulado quanto é a atmosfera que respiramos na superfície, e o abastecimento de água, reciclado e confiável. No manual do oficial que faz a regulação existe um aviso de nunca permitir que o fornecimento de oxigênio suba acima de 21%: isto não serve apenas aos interesses da saúde dos marinheiros, mas acontece porque o risco de incêndio dobra a cada 1% extra de oxigênio no ar, e um incêndio em um submarino é fatal. O dióxido de carbono também precisa de regulação, pois a tripulação o exala continuamente e uma quantidade excessiva tornaria difícil a respiração. Apenas imaginemos a catástrofe que seria para a tripulação se energia de combustível fóssil fosse utilizada dentro do submarino. Assim como eles, desfrutamos uma energia constante e confiável do nosso grande reator nuclear no céu, e Gaia regula o fornecimento de ar e água para nós. Ninguém duvidaria que o submarino é limitado quanto à população que poderia sustentar; por que, então, deveríamos imaginar que a Terra tem uma capacidade ilimitada para pessoas?
Nossas dificuldades agora são estranha e inquietantemente semelhantes àquelas da desventurada tripulação de um submarino afundado numa profundidade grande demais para o resgate, mas no qual existem poucas cápsulas de fuga nas quais alguns podem flutuar seguramente até a superfície oceânica. Esse submarino é muito parecido com a Terra, agora tão superpovoada que apenas uma pequena fração alcançará a porção habitável que restou. Acho que é assim que estamos, mas, por pior que seja, essa situação nos dá a chance de sobreviver como espécie.
Os maiores danos que o aquecimento global causa não são os drásticos sobressaltos de eventos meteorológicos sem precedentes, como as tempestades violentas, as inundações por chuvas ou um calor quase insuportável. O dano vem da seca prolongada e ininterrupta. De acordo com as previsões (relatório do Grupo de Trabalho II de 2007, do IPCC), muitas partes do mundo sofrerão falta de água até 2030. Condições saarianas se estenderão até o sul da Europa, como as vivenciadas na Austrália e na África. Ocorrerão chuvas intensas, mas, quando a temperatura estiver acima de 25°C, de nada adiantará. Calor crescente e destruição do ecossistema florestal para prover terra arável irão continuar e apressar a conversão da floresta tropical em cerrado e deserto. Desde que haja energia em abundância, o calor poderá ser suportado individualmente com a tecnologia do ar-condicionado; de fato, é improvável que as condições nas cidades das regiões quentes sejam muitos piores que as de Bagdá, Alice Springs ou Phoenix hoje. O resultado da estiagem, quando não houver disponibilidade de alimento das plantações nem água, será a morte.
Quando examinamos as projeções de climas futuros, vemos que parte considerável das áreas continentais se tornará improdutiva por causa da seca. As consequências serão estarrecedoras para as nações já superpopulosas como a China, a Índia e partes da África. A vida na Terra é inteiramente dependente de água e três quartos do volume de quase todas as formas de vida são água. Sem o fornecimento abundante, as lavouras não crescerão, e irrigar toda a terra hoje regada naturalmente pela chuva é uma tarefa impossível. Haverá áreas muito menores onde a irrigação é feita, e estas, também, como as civilizações mais antigas ao longo do Nilo e do Eufrates, serão refúgios.
Isso não significa que não haja nada que possamos fazer. Não precisamos ficar parados e esperar por resgate como aqueles infelizes que permaneceram, seguindo as instruções recebidas, em seus escritórios das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Podemos nos mudar para locais seguros. É óbvio que adiaremos e continuaremos a negar o aquecimento global, tentando nos enganar ao repetir que não existe necessidade urgente de mudar. Mas o ritmo crescente de derretimento do gelo polar, de elevação dos níveis do oceano e de migração das zonas climáticas nos adverte que o sistema Terra já está mudando e que, portanto, em breve também teremos de fazer o mesmo. Além disso, o feedback positivo observado sobre o aquecimento faz com que seja improvável desacelerar ou parar antes que o próximo estado de estabilidade seja alcançado. Por meio da geoengenharia podemos atenuar algumas das consequências iniciais do aquecimento, mas duvido muito que tenhamos a sensatez ou a inteligência para revertê-lo. Como o esquiador que inicia uma avalanche acidentalmente, há pouco que possamos fazer para impedir seu curso destrutivo.
Então, são inúteis todos os nossos esforços de neutralizar o excesso de carbono que emitimos, usar sandálias e vestes de cilício como os antigos penitentes e seguir os puritanos verdes? Podemos voltar à rotina habitual por algum tempo e sermos felizes enquanto durar? Poderíamos — mas não por muito tempo. Exceto por uma folga feliz produzida pela geoengenharia ou pela própria natureza, em poucas décadas a Terra poderá deixar de ser o habitat de quase 7 bilhões de seres humanos; ela se salvará quando liquidar todos, exceto uns poucos que agora vivem naquelas que se tornarão as regiões estéreis. Quem partir para regiões mais frias, ainda férteis, terá maior chance de sobreviver e, se um número suficiente de nós for salvo dessa maneira, isso também poderá ser benéfico para Gaia. Parece que um número suficiente de nós poderia sobreviver para levar nossa espécie adiante, mas existe uma necessidade preponderante que reduz ainda mais a capacidade de carga da Terra, que são as necessidades da própria Gaia. Há muito mais em termos de sobrevivência além das necessidades humanas. Para sustentar o clima e a composição da Terra, Gaia precisa dos ecossistemas, das florestas e outras vegetações do solo e das algas dos oceanos para sustentar a vida. Do contrário, nosso planeta avançaria de modo inexorável para um estado de equilíbrio intoleravelmente quente e completamente árido, algo que acabaria se tornando uma mistura entre Marte e Vênus.
O certo é que é nosso dever sobreviver. Nossos maiores esforços, portanto, devem ser para aprender a viver tanto quanto for factível na Terra quente e, em breve, reduzida. Nós, os britânicos, vivemos em um dos refúgios seguros onde a vida pode continuar na era quente. Em alguns aspectos, somos como os passageiros a bordo de um navio que se desviou para receber os refugiados de alguma terra acometida pela seca. Somos o bote salva-vidas desses refugiados, mas o capitão e os oficiais do navio precisam decidir quantos podemos aceitar — quem terá permissão para subir a bordo e quem deverá ficar para trás e se arriscar. O mais justo seria uma loteria, mas o senso comum descarta uma seleção tão simples. Os enfermos, os aleijados e os velhos teriam de ficar para trás e se arriscar com os passageiros que se sentiram na obrigação de ajudá-los. Nos navios, costumava-se dar prioridade às mulheres e às crianças, mas alguns homens seriam necessários — qual seria a proporção certa dos sexos? Desconfio que não estaria longe da igualdade, pois é essa a proporção que a seleção natural escolheu.
Não há um número simples para definir a capacidade de carga da Terra para as pessoas. Depende de como as pessoas vivem. Seriam elas, em um dos extremos, vegans — os vegetarianos radicais — ou, do outro, carnívoros? Cultivariam a terra e, portanto, deslocariam os ecossistemas naturais? Seriam industrializadas, e qual o impacto de suas indústrias? Além dessas propriedades humanas, a própria Terra não é uma constante. O número de pessoas que ela pode carregar varia com seu estado. Se predominasse o deserto, o número seria pequeno; se bem provida de água e rica em nutrientes, poderia ter tantas pessoas por quilômetro quadrado quanto Bangladesh. Se fôssemos caçadores, predadores carnívoros no topo da cadeia, é improvável que mesmo uma Terra fértil pudesse sustentar mais de 10 milhões de nós. Se coletores, particularmente se vegans, poderíamos ser 100 milhões ou mais. Com a ciência e a tecnologia atuais, os números são imponderáveis, e demonstramos que 7 bilhões são possíveis por um curto período. Mas quantos proporcionariam equilíbrio numa Terra 4°C mais quente que agora? Poderiam ser apenas 100 milhões, se a capacidade de carga da superfície terrestre do planeta quente caísse a 10% do que temos agora. Tudo o que podemos dizer de útil sobre a capacidade de carga da Terra para os seres humanos é que ela muda rapidamente.
Um aspecto natural a nosso favor é que mais de 70% da Terra são oceano, e essa proporção crescerá à medida que o nível do mar se elevar pois, do contrário, a Terra se aqueceria ainda de modo mais rápido; infelizmente, porém, um oceano quente é bem menos produtivo que um frio. Devemos nos concentrar na estimulação de ecossistemas oceânicos, embora alguns alimentos e combustíveis possam ser subprodutos. Voltando a examinar o mundo duas ou três décadas à frente, vemos que as maiores áreas de terra usáveis para habitação estão nas regiões setentrionais e austrais temperadas e árticas — Patagônia e sul do Chile, Canadá, Sibéria, Alasca, norte da Europa, inclusive a Escandinávia e as costas oceânicas ocidentais —, além das ilhas como as Ilhas Britânicas, Nova Zelândia, Tasmânia, e muitas outras pequenas espalhadas pelos oceanos. Não sabemos ainda se elas estarão secas e quentes demais para o cultivo de lavouras: o registro geológico do último período quente há 55 milhões de anos sugere que a bacia ártica era tropical em termos de temperatura e que a vegetação era abundante. Os demais continentes não serão inteiramente estéreis: haverá oásis e os cursos fluviais serão suficientemente bem irrigados para o crescimento de plantas.
Qualquer tentativa da civilização sobrevivente de continuar a cultivar a terra que deveria permanecer como floresta natural, ou de queimar combustível fóssil, poderá ser desastrosa, mas a tentação seria imensa, pois o Ártico é local de imensas reservas de petróleo, gás e carvão. Se as usássemos como o fazemos agora, poderíamos nos transformar nos nossos próprios carrascos e também causar a morte de Gaia. A Terra seria então deixada quente e árida, sem nenhuma vida além de alguns termófilos: uma biosfera demasiado esparsa para um planeta autorregulador.
Até o momento, estou supondo que a temperatura global aumentará durante este século pelo menos com a gravidade prevista pela variação média do IPCC e que sua consequência física direta, a elevação do nível do mar, prosseguirá no ritmo que mantém desde 1990, quase o dobro da velocidade prevista. Nada é certo; e tenho de deixar margem para admitir que tudo isso pode não acontecer. Ao contrário, uma ou mais das várias propostas para realizar a geoengenharia da Terra e deter o aquecimento global poderiam funcionar, ou algum evento natural, como uma série de erupções vulcânicas gigantescas, poderia intervir ou, ainda, os modelos que preveem o clima poderiam estar mais errados do que eu achei que estavam. A melhor contradição de todas seria descobrir que a ideia descrita por Johannes Lehmann na revista Nature em 2007 nos permitiu tirar uma quantidade imensa de dióxido de carbono do ar por meio da produção de carvão para, em seguida, enterrá-lo no solo. Descrevo-a mais detalhadamente no Capítulo 5 e realmente acho que tem uma chance de interromper o aquecimento global. Porém, tendo dito isto e conhecendo nosso obstinado desejo de continuar mantendo as coisas exatamente como estão, duvido que, se for tentado, será feito num grau suficiente para cumprir sua promessa. Nossas boas intenções são esquecidas com demasiada frequência, como as promessas não lidas que confirmamos com um clique do mouse ao final da longa e ilegível declaração legal que aparece na tela a cada aplicativo de computador que compramos. Continuarei escrevendo e supondo que você clicou o botão e concordou.
Para entender um pouco o que está diante de nós irei me concentrar nas ilhas onde vivo porque elas fornecem uma história e um exemplo da resposta humana a uma ameaça que, embora bem menos grave que o aquecimento global, bastou para tornar a sobrevivência um imperativo. Para essas ilhas, a ameaça consistiu na Segunda Guerra Mundial em 1939, e foi certamente suficiente para instigar a resposta agora necessária. Quero contar ao leitor a experiência pessoal pela qual passei no início dela, aos 20 anos de idade.
A estrada corria ao longo das margens dos campos dos quais a safra de grãos tinha sido colhida recentemente; seguia entre Chelsfield e Orpington, cerca de 20 quilômetros a sudeste do centro de Londres. Quando caminhei por ela, em setembro de 1939, os subúrbios de Londres já haviam avançado gradualmente em direção à zona rural. Os campos exibiam uma aparência cansada, como se estivessem prestes a desistir do jogo e se aposentar para sempre debaixo de uma safra permanente de casas geminadas plantadas pelos novos proprietários, os donos do progresso. Mas minha angústia com a ruína da Kent rural foi transtornada de forma rude quando, de repente, e para meu assombro, o ar se encheu com o som das sirenes de ataques aéreos. Continuei a caminhar me perguntando se o céu logo em breve se encheria de bombardeiros, mas, em vez disso, as sirenes soavam o toque de cessar-fogo. Assim, a Segunda Guerra Mundial começou com um alarme falso; de fato, em termos de guerra, não aconteceu muito mais na Grã-Bretanha por outros nove meses. Parece existir um paralelo exato entre os eventos e as sensações que tivemos naquela época e os de agora. Não fui exatamente aquele arquétipo do homem comum ou inteligente e razoável, mas estive perto o suficiente: um jovem caminhando numa trilha, com considerável certeza de que a guerra real em breve começaria mesmo que ainda houvesse pessoas em estado de negação, entre as quais especialistas e políticos.
Setenta anos depois, eventos em locais distantes, como o derretimento do gelo ártico, o desmoronamento das geleiras na Antártida, as secas e a fome por toda a África e a tempestade tropical extraviolenta que ocorre vez ou outra nos provocam agora a mesma ansiedade que a guerra na Espanha e a ocupação da região da Boêmia provocaram nos anos 1930. De alguma maneira, sentimos que nossa vez chegará em breve, mas continuamos com nossas atividades e prazeres como de hábito, e talvez instalemos um painel de aquecimento solar no telhado, exatamente como escavamos abrigos antiaéreos nos nossos jardins naquela época. Em 1938, meu pai, embora aposentado e perto dos 70, escavou um refúgio impressionante que descia 12 metros abaixo do jardim com uma câmara de concreto e entradas pelos dois lados da casa. Ele começou a escavar em 1938 e terminou o serviço antes que a guerra tivesse iniciado. Como é estranho que, quando há ameaça de guerra, os indivíduos instintivamente se preparem para o pior, muitas vezes com atos fúteis, enquanto nossos representantes eleitos e servidores civis que os assessoram preparam-se segundo a guerra anterior: construindo navios de combate e edificando fortalezas como a Linha Maginot.
Gaia, assim como Deus, ajuda os que se ajudam. Não foi suficiente em 1939 escavar refúgios pessoais contra ataques aéreos, nem basta agora ajoelhar-se com pequenos gestos verdes; nem colocar moinhos de vento e painéis solares no telhado para suplementar o fornecimento de eletricidade; nem realizar reuniões diante do grande símbolo religioso da espiral, a gigantesca turbina eólica branca, e entoar hinos sobre a salvação do planeta. Precisamos não apenas sobreviver, mas continuar civilizados e não degenerar para cair sob o domínio mafioso em que líderes de gangues se promovem como déspotas militares. Para que isso ocorra, temos de tomar agora medidas locais efetivas. Acima de tudo, temos de garantir nossos suprimentos de comida e roupas, e se continuarmos a vida urbana, energia. Tais ilhas, embora entre as poucas áreas do mundo menos ameaçadas pelo aquecimento global, estão, ao mesmo tempo, entre as menos bem providas de comida e energia. Ficamos tão acostumados com uma grande oferta de alimento vindo de fora que esquecemos que na Segunda Guerra Mundial, quando as importações de alimentos eram escassas, quase morremos de fome. Temos fontes nativas de combustível, mas elas estão se esgotando rapidamente. A terra disponível para agricultura compete com moradias e indústrias, e a menos que comecemos a agir logo, mais dela poderá ser inutilizada à medida que o número daqueles que habitam nossa pequena nação cresça continuamente.
Assim como em 1939 precisamos abrir mão em grande escala do confortável estilo de vida dos tempos de paz, em breve também poderemos nos sentir ricos com apenas um quarto daquilo que consumimos agora. Se fizermos isso de uma forma correta e engajada, não parecerá uma fase deprimente de negação, mas, ao contrário, como em 1940, uma chance de nos redimir. Para os jovens, a vida será cheia de oportunidades para servir, criar, e eles terão um propósito para viver. Será bem mais difícil para os velhos, mas nem um pouco entediante, como revelou o seriado cômico dos tempos de guerra Dad’s Army [O exército do papai], que ainda faz sentido em nossa realidade. Aconteça o que for, será uma mudança e tanto em relação às banalidades da vida urbana de agora.
Essas são lembranças que guardo do Reino Unido de quase setenta anos atrás. Outros participantes da Segunda Guerra Mundial, como a Alemanha e a Rússia, não mostrariam testemunhos saudáveis, porque, para esses países, o ciclo de vitórias e derrotas abalou profundamente o grau em que eles tiveram o controle do próprio destino. As nações ocupadas da Europa sem dúvida suportaram tensão e privação, mas não eram absolutamente donas de si próprias e não fornecem uma boa comparação entre aquela época e agora. Os Estados Unidos estavam, é claro, profundamente envolvidos, mas as carências e incidentes no continente foram pequenas e mais breves. Provavelmente, o mais próximo em experiência ao Reino Unido foi o Japão, e seria interessante poder comparar a vida agora e na época da guerra naquela ilha do Pacífico.
Tentemos imaginar como poderia ser a vida para uma família comum vivendo na cidade de Reading, a cerca de 50 quilômetros de Londres, em 2030. Suponhamos que os modelos do IPCC prevejam o curso dos eventos como mostrados no Gráfico 4, mas admitamos que eles possam subestimá-lo. A elevação prevista da temperatura global é de 1,8°C e a elevação do nível do mar, 12cm. Nossa família dificilmente perceberá qualquer mudança, especialmente porque tiveram vinte anos para se adaptar. Na guerra, existem longos períodos tranquilos seguidos de uma súbita violência e pânico. Com a mudança climática também. O Tâmisa terá transbordado seriamente em algumas ocasiões por causa de chuvas excessivas, mas até então o mar ainda não terá reclamado seu vale como um estuário. Talvez as novas unidades habitacionais ainda estejam visíveis na planície inundada, entre as inundações — novas moradias serão necessárias agora que a população chegou a 80 milhões provavelmente, à medida que chegam os refugiados da Europa e do mundo. Os fenômenos mais observados serão a lassidão e a escassez, por causa do custo do alimento e da energia. Se a Europa não tiver dado um fim a seu caso de amor com a energia renovável e se não tivermos forjado suprimentos adequados de energia nuclear, a eletricidade será nefastamente dispendiosa e os blecautes parciais e totais serão endêmicos. A família reclamará e resmungará, mas de alguma forma sobreviverá em meio à desordem. No entanto, parte considerável do restante do mundo mudará para o cerrado e o deserto (como advertiu recentemente John Beddington, o principal cientista do nosso governo), seca e fome assumirão o controle da Terra outrora fértil. Mais perto de casa, logo do outro lado do canal, o calor estival terá aumentado a um nível intolerável, apesar do uso generalizado do ar-condicionado. A produção de alimentos estará em queda na medida em que a estiagem e o calor tornarem o cultivo cada vez mais difícil. Complexos projetos de irrigação com uso de água do mar dessalinizada aliviarão parte da perda, mas a um preço enorme em gasto de energia. O fluxo de refugiados climáticos continuará, com muitos se fixando em imensos acampamentos possivelmente próximos das comunidades etnicamente semelhantes dos primeiros imigrantes.
Suponhamos que este seja um quadro aproximadamente verdadeiro do curso de eventos se apenas permitirmos que aconteça. Mas, e se em algum momento dos próximos anos percebêssemos, como o fizemos em 1939, que a democracia precisava ser temporariamente suspensa e tivéssemos que aceitar um regime disciplinado que considerasse o Reino Unido um porto seguro legítimo, mas limitado, para a civilização? O regime poderia nos ser imposto por um evento climático como o de 1953, quando uma onda de tempestades no mar do Norte devastou partes do estuário do Tâmisa e da Holanda. No total, centenas morreram. Um evento semelhante agora poderia devastar grande parte da Holanda, Londres e suas regiões periféricas. Talvez isso bastasse para trazer ao primeiro plano um Churchill, cuja retórica levasse a nação a despender os esforços necessários para se adaptar corretamente à mudança, em vez de apenas remendar os problemas de maneira incoerente. Sobrevivência ordeira exige um grau extraordinário de compreensão e liderança humanas e pode exigir, como na guerra, a suspensão do governo democrático durante todo o período da emergência para sobrevivência. Uma boa liderança é vital, e sei que Sir Crispin Tickell já demonstrou a capacidade de inspirar o governo do Reino Unido a tomar o rumo certo na primeira vez em que o aquecimento global se tornou um problema, nos anos 1980. Ele continuou com essa tarefa e inspirou líderes de outras nações e espero que possa fazê-lo novamente para nossa sobrevivência.
Desconfio que uma ação efetiva para sustentar essa comunidade insular virá, de alguma forma, de uma coerência tribal interna e que tenha uma rara liderança, e não de boas intenções internacionais ou europeias. Com sorte, o exemplo se aplicará aos outros refúgios. Haverá tempo suficiente para o internacionalismo durante a estabilidade da longa era quente. Não temos nenhuma outra alternativa senão extrair o melhor da coesão nacional e aceitar que a guerra e déspotas militares fazem parte dela. Para as ilhas-refúgios, uma força defensiva efetiva será tão importante quanto nossos próprios sistemas imunológicos. Gostemos ou não, poderemos ter de aumentar o tamanho das nossas forças armadas e os gastos com elas. Pode ser que a próxima geração de cientistas e engenheiros seja competente e sirva à Terra como os clínicos gerais nos servem na medicina. No tempo da guerra, cães velhos aprendiam novos truques bem rapidamente. Os primeiros desastres ambientais realmente sérios vão se apropriar da agenda política e removerão muitas ideias falsas que impedem a mudança. Como na guerra, poderia haver a rápida aplicação da nova tecnologia ao clima e aos problemas de sobrevivência. Espero que funcione, mas não acho que os seres humanos, como espécie, já sejam bastante hábeis para manejar a crise ambiental que está por vir e temo que gastem seus esforços na tentativa de combater o aquecimento global em vez de tentar se adaptar e sobreviver no novo mundo quente. Portanto, mostremos que Garrett Hardin estava errado quando disse com melancolia, em 1968, que nossa situação é verdadeiramente trágica, pois, na tragédia, não há fuga. Demonstraremos que ele estava errado se sobrevivermos.
Por ser velho, com frequência penso em Gaia como se ela fosse uma velha senhora com mais ou menos a minha idade. Já ouço colegas adeptos de Pecksniff reclamando: “Você está fazendo de novo — antropomorfizando a Terra, falando dela como se estivesse viva.” Mas digo a eles: “Se ela não está viva, então, como pode morrer?” E ela morrerá quando o calor do Sol ultrapassar a barreira do suportável. Aqueles de nós que pensaram a respeito veem o tempo de vida dela se estendendo não mais de 500 milhões de anos. Parece muito, mas por já ter agora 3,5 bilhões de anos de idade ela já viveu quase 88% de sua vida. Se eu conseguir chegar aos 100, então, vejam que coisa intrigante, aos 89 anos no momento em que escrevo, tenho agora a mesma idade relativa que Gaia.
O meu fim poderia ser facilmente a consequência catastrófica de uma doença como a gripe que, quando jovem, implicava não mais de alguns dias afastado do trabalho. Assim é com Gaia: para ela, mísseis cósmicos na forma de asteroides ou cometas constituem ameaças contínuas. O último atingiu-a há 65 milhões de anos, e fez estragos devastadores. Caso um deles a atinja quando ela se aproxima dos 4 bilhões de anos de idade, somado ao calor extra vindo do Sol, poderá ser mais do que ela é capaz de aguentar — e o grande sistema que manteve a vida dominante na Terra por mais de um quarto da idade do universo terminará. Naturalmente, como meu corpo quando eu morrer, células e bactérias continuarão a viver por algum tempo, mas o planeta morto será incapaz de sustentar um ambiente adequado à vida.
Estou contente de não ter nenhuma noção de meu próprio fim; portanto, com relação a Gaia, tudo o que se pode dizer agora é que planetas idosos, como as pessoas idosas, são propensos a morrer de males que os jovens e vigorosos podem superar. Nossa obrigação como uma espécie inteligente é sobreviver; se pudermos evoluir para nos tornar uma inteligência integrada dentro de Gaia, então, juntos, poderemos sobreviver por mais tempo.
* Termo britânico que significa abrigo, asilo ou, atualmente, unidade de cuidados paliativos. (N. do T. )