Capítulo 1
Trevas sobre o mundo
Seis meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, os cardeais da Igreja católica se reuniram em Roma. As portas da Capela Sistina se fecharam, e os homens da Guarda Suíça posicionaram suas alabardas contra todos aqueles que tentassem entrar ou sair do conclave, antes que a maior religião do mundo tivesse escolhido seu novo líder. No dia seguinte, 2 de março de 1939, milhares de pessoas lotaram a Praça de São Pedro, vigiando a chaminé no telhado da capela. Por duas vezes, ela soltou fumaça preta, indicando uma votação sem decisão. O suspense aumentava, como de costume, enquanto a fumaça branca não surgia. No entanto, pela primeira vez na história, o espetáculo atraiu uma grande quantidade de jornalistas estrangeiros, cujas teleobjetivas lembravam bazucas. Com a Europa rumando para a guerra, as palavras do novo papa talvez mudassem as opiniões; sua diplomacia discreta talvez alterasse o rumo dos acontecimentos. “Nunca, desde a Reforma protestante, a eleição de um pontífice fora aguardada com tanta expectativa pelo mundo.” 1
Às 17h29, a chaminé do telhado soltou uma coluna de fumaça branca. Os chapéus voaram, os canhões estrondearam, os sinos ressoaram. No balcão do Palácio Apostólico, o cardeal decano inclinou-se na direção do microfone e informou:
– Anuncio aos senhores uma grande alegria. Temos um papa! O reverendíssimo cardeal Eugenio Pacelli, que adotou o nome de Pio XII. 2
Com passos hesitantes, o novo papa alcançou o parapeito. Pacelli era majestosamente alto e extremamente pálido, com olhos semelhantes a diamantes negros. Ele ergueu a mão. A multidão silenciou e ficou de joelhos. O novo papa fez o sinal da cruz três vezes. A multidão se ergueu e exclamações de Viva il Papa! se misturaram com as repetições ritmadas de Pacelli! Pacelli! Pacelli! No balcão, ele fez gestos de bênção, com as mangas da roupa desfraldadas como asas brancas. Então, de repente, Pacelli se virou e desapareceu no interior da Basílica de São Pedro. 3
No palácio, Pacelli ingressou no quarto de um amigo enfermo. O cardeal Marchetti-Selvaggiani tentou se erguer, murmurando: “Santo Padre.” Consta que Pacelli pegou a mão do amigo e disse: “Hoje à noite, deixe-me ainda ser Eugenio.” No entanto, o manto de Sumo Pontífice, atribuído a 257 santos e patifes, já tinha envolvido Pacelli. Desde o primeiro momento de sua eleição, ele escreveu posteriormente, “senti todo o grande peso da responsabilidade”. 4
Ao voltar para o seu aposento, Pacelli encontrou um bolo de aniversário com 63 velinhas. Ele agradeceu à governanta, mas não tocou no bolo. 5 Após rezar o rosário, chamou seu companheiro de longa data, monsenhor Ludwig Kaas. Eles deixaram o aposento papal e só retornaram às duas da manhã. 6
Um dos primeiros biógrafos autorizados do papa descreveu o que aconteceu. 7 Pacelli e Kaas atravessaram as passagens nos fundos do palácio e entraram num nicho na parede sul da Basílica de São Pedro. Entre as estátuas de santo André e santa Verônica, chegaram a uma porta, que dava para um túnel, que levava a outra porta, pesada e de bronze, com três fechaduras. Kaas destrancou a porta com suas chaves, trancou-a de novo atrás deles e seguiu Pacelli, que desceu uma escada metálica rumo à cripta do Vaticano.
Além de quente e abafado, o ambiente era úmido pela proximidade do rio Tibre. Uma passagem em curva levava à câmara mortuária, cujas prateleiras abrigavam papas e reis mortos. Pacelli recolheu sua batina e se ajoelhou diante de uma estrutura baixa, semelhante a uma caixa, que revestia um buraco na terra. 8 Ali, ele meditou e, logo depois, fez sua primeira escolha como papa. Posteriormente, seu subsecretário de Estado considerou a decisão uma das “estrelas que iluminaram seu árduo caminho... Da qual ele tirou força e constância, e que deu origem, de certo modo, ao programa de seu pontificado”. 9 Por meio dessa escolha, Pacelli procurou solucionar o mais problemático dos mistérios do Vaticano – e os fantasmas que ele encontrou nessa busca se tornariam seus guias.
O enigma a que Pacelli decidiu responder era tão antigo quanto a Igreja. Em algum momento do século I, são Pedro foi para Roma, liderou uma Igreja que perturbou o Estado e morreu numa cruz no Vaticanum, pântano conhecido por suas grandes cobras e péssimo vinho. 10 Então, a Igreja nascente teve de cair na clandestinidade, escondendo-se literalmente nas catacumbas. Prudentemente, os sucessores do primeiro papa mantiveram em segredo o lugar do túmulo de Pedro. 11 No entanto, os romanos sussurraram por longo tempo que ele foi enterrado sob o altar-mor da basílica que ostentava seu nome. Os boatos se concentravam sobre uma estrutura de alvenaria e outros materiais, com seis metros de largura e doze de profundidade. Ninguém sabia o que havia sob ou no interior desse núcleo misterioso. 12 Alguns diziam que continha ouro e prata, que os peregrinos medievais despejaram pelo poço. 13 Outros diziam que ocultava um caixão de bronze, contendo os ossos de Pedro. 14 Ninguém jamais organizou uma expedição para verificar essas histórias. 15 Pelo próprio relato do Vaticano, uma maldição milenar, 16 detalhada em documentos secretos e apocalípticos, ameaçava com as piores desgraças possíveis quem quer que perturbasse o suposto local do túmulo de Pedro. 17
No entanto, em 1935, Pacelli quebrara o tabu. Pio XI pediu um terreno para seu túmulo sob o altar-mor. Era necessário ampliar a cripta para acomodar seu caixão. Pacelli, que, entre outros cargos, era grão-chanceler do Instituto Pontifício de Arqueologia Cristã, decidiu aumentar a altura livre da cripta mediante o rebaixamento de seu piso em quase um metro. Em 0,75 metro, os engenheiros papais roçaram em algo inesperado: a face de um mausoléu, decorado com frisos de grous e pigmeus – uma alegoria pagã do duelo entre a vida e a morte. A cripta do Vaticano se situava sobre uma necrópole, uma cidade dos mortos, intocada desde os tempos imperiais. 18
Pacelli, acreditando que os ossos de Pedro talvez estivessem ali, pediu para cavar mais fundo. Pio XI negou o pedido. Seus cardeais consideraram sacrílego o projeto; seus arquitetos acharam perigoso. Se as escavadeiras danificassem as pilastras que suportavam o pesado domo de Michelangelo, a maior igreja do mundo poderia desmoronar.
Contudo, Pacelli, mais do que qualquer papa anterior, acreditava na ciên­cia. Como católico devoto numa escola secundária liberal, sentindo-se insultado pela injustiça cometida contra Galileu, aprendeu uma reverência compensatória para as aventuras da razão. 19 “Oh! Exploradores dos céus!”, exclamou ele. “Gigantes quando vocês medem estrelas e nomeiam nebulosas.” 20 Pacelli louvava tanto a ciência pura quanto seus usos: os panegíricos dele a ferrovias e fábricas são como cenas editadas do filme A revolta de Atlas . 21 Nenhum problema de engenharia o amedrontava, nenhuma maldição devota impedia uma busca. “Os heróis da pesquisa”, disse Pacelli, não temiam “os obstáculos e os riscos”. Naquele momento, em sua primeira noite como papa, ajoelhado na boca escura da escavação interrompida, Pacelli decidiu realizar uma investigação completa. 22
A busca prenunciou, em pequena escala, a iniciativa épica secreta de seu pontificado. Ali, no local daquele projeto audacioso, seus assistentes se encontrariam, com sua bênção, para tramar um projeto ainda mais audacioso. Essa segunda iniciativa, como a primeira, revelou as marcas do governo de Pacelli. Os dois projetos revelavam um fetiche pelo segredo. Os dois recorriam a exilados alemães, agentes seculares alemães e jesuítas alemães. Os dois envolviam declarações públicas e atos secretos. Os dois colocaram a maior Igreja do mundo em risco. E os dois culminariam em controvérsia, fazendo o reinado de Pacelli parecer desafortunado a ponto de alguns acharem que ele tinha realmente ficado sujeito à maldição do invasor do caixão de Pedro.
Enquanto Pacelli rezava na cripta do Vaticano, as luzes mantinham-se acesas até tarde no mais temido endereço da Alemanha. Outrora, o palacete de cinco andares, no número 8 da Prinz-Albrecht Strasse, em Berlim, fora uma escola de artes. Os nazistas transformaram seus ateliês para escultores em celas de prisão. Na grandiosa escadaria dianteira, ficavam dois guardas com pistolas e cassetetes. No último andar, trabalhava Heinrich Himmler, o Reichsführer da Schutzstaffel (SS), a unidade paramilitar de terror de Hitler. Num escritório próximo, o especialista em Vaticano de Himmler trabalhava numa máquina de escrever, elaborando um dossiê a respeito do papa recém-eleito. 23
O major SS Albert Hartl era um padre que foi expulso da Igreja. Ele tinha o rosto redondo, óculos redondos e um tufo de cabelo que parecia um topete moicano. Sua mulher o descreveu como “taciturno, severo, evasivo... muito mal-humorado”. 24 Hartl tinha se tornado padre após a morte de seu pai, que era um livre-pensador, para satisfazer sua mãe devota. Surgiram problemas quando seus superiores o consideraram “inadequado para lidar com garotas”. 25 Ele deixou a Igreja de modo misterioso, após denunciar seu melhor amigo, um colega padre, aos nazistas. 26
“Ele disse que certa manhã, em janeiro de 1934, acordou no quartel-general da Gestapo, 27 em Munique”, um interrogatório do pós-guerra revelou, “coberto com manchas pretas e azuis e sentindo muitas dores. Um pé tinha uma grande ferida e a cabeça estava completamente inchada e supurativa. Os lábios estavam arroxeados e intumescidos, e lhe faltavam dois dentes. Ele fora espancado sem piedade, mas não se lembrava de nada, como afirmou”. Parado acima de Hartl estava um homem alto, de rosto oval como o de um “anjo caído”. 28 Reinhard Heydrich, chefe dos espiões da SS, explicou que Hartl fora “espancado e envenenado por fanáticos da Igreja”. 29
Heydrich convidou Hartl a se juntar ao serviço secreto nazista. Como chefe da Unidade II/B, Hartl lideraria uma equipe de ex-padres, que espionava católicos antinazistas, “para atormentá-los e cercá-los, e, finalmente, destruí-los”. 30 Como o próprio Hitler afirmara: “Não queremos nenhum outro Deus além da Alemanha.” 31 Hartl se uniu à SS imediatamente. Como um colega recordou, ele então serviu “com todo o ódio de um renegado”. 32 Hartl escreveu em seu currículo atualizado: “A luta contra o mundo que conheci tão bem é agora meu trabalho de toda uma vida.”
A eleição do novo papa deu a Hartl a oportunidade de brilhar. Ele esperava que a alta liderança, até mesmo Hitler, lesse o dossiê a respeito de Pio XII. 33 Hartl coletou fontes secretas e públicas, filtrou os fatos por meio de sua experiência e utilizou um formulário abreviado, mas rico em detalhes, como as autoridades preferiam. 34
Papa Pio XII (Cardeal Pacelli)
Biografia:
Nasceu em Roma, em 2 de março de 1876
1917 – Núncio apostólico em Munique
1920-1929 – Núncio apostólico em Berlim
1929 – Cardeal
1930 – Cardeal secretário de Estado – Viagem aos Estados Unidos e à França
Atitude em relação à Alemanha – Pacelli sempre foi a favor dos alemães [sehr deutschfreundlich] e conhecido por seu excelente conhecimento da língua alemã. No entanto, sua defesa da política oficial da Igreja o levava frequentemente a duelar com o nacional-socialismo por princípio. 35
O duelo começara com um acordo. Em 1933, quando os nazistas chegaram ao poder, Pio XI elogiou o anticomunismo de Hitler 36 e aceitou sua oferta de formalizar os direitos da Igreja. Pacelli negociou uma concordata, financiando a Igreja com uma arrecadação fiscal anual de quinhentos milhões de marcos. 37 “O papa, ao assinar essa concordata, apontou o caminho para Hitler em relação a milhões de católicos até então indiferentes”, 38 escreveu Hartl. No entanto, em meados da década, Hitler considerou a concordata um obstáculo. Pacelli bombardeou Berlim com 55 notas protestando contra o rompimento do acordo. 39 Ficou claro, como um oficial SS afirmou, que “seria absurdo acusar Pacelli de ser a favor dos nazistas”. 40
As declarações públicas de Pacelli incomodaram Berlim. Em 1937, a encíclica Mit brennender Sorge [Com ardente preocupação] acusava o Estado alemão de tramar para exterminar a Igreja. As palavras mais duras, os analistas nazistas observaram, vinham dos protestos de Pacelli: “ódio”, “maquinações”, “lutas até a morte”. 41 Com essas palavras, Hartl pensou, Pacelli “convocou o mundo todo para lutar contra o Reich”. 42
Pior de tudo, Pacelli pregou a igualdade racial. “Provavelmente, o cristianismo reuniu todas as raças, negros ou brancos, numa única e grande família de Deus”, 43 zombou Hartl. “Portanto, a Igreja católica também rejeita o antissemitismo.” Falando na França, Pacelli condenara a “superstição de raça e sangue”. 44 Em consequência, os cartunistas nazistas desenharam um Pacelli com nariz aquilino, cabriolando com Jesse Owens e rabinos, 45 enquanto Hartl afirmava que “toda a imprensa judaizada dos Estados Unidos louvava Pacelli”. 46
Essas doutrinas eram perigosas porque não eram apenas retóricas. A polícia secreta nazista considerava os católicos “ideologicamente não educáveis”, 47 em seu contínuo apoio aos comerciantes judeus. Como a SS constatou, “naquelas regiões onde o catolicismo político ainda tem força, os camponeses estão tão contagiados pelas doutrinas do catolicismo que são surdos a qualquer discussão a respeito do problema racial”. 48 Os fazendeiros católicos trocaram uma placa que dizia “Judeus não desejados aqui” por outra que dizia “Judeus muito desejados aqui”. 49
Hartl delineou a posição dura em relação a uma causa sombria. Um amigo de sua turma de ordenação, o padre Joachim Birkner, trabalhava nos Arquivos Secretos do Vaticano, pesquisando aparentemente a diplomacia da Igreja no século XVI. 50 Na realidade, Birkner era espião da SS. Ele se fixou em Robert Leiber, assistente jesuíta de Pacelli, que alguns chamavam de “o espírito maligno do papa”. 51
“O padre Leiber disse ao informante que a maior esperança da Igreja é que o sistema nacional-socialista seja destruído num futuro próximo por uma guerra”, relatou a SS. “Se a guerra não acontecer, a diplomacia do Vaticano espera uma mudança na situação da Alemanha, no máximo após a morte do Führer.” 52 O relatório de Birkner coincidiu com um apelo de Pacelli para que os heróis cristãos “salvem o mundo” dos “falsos profetas” pagãos, que Hartl considerou um chamado para resistir a Hitler. 53
Então, Pacelli se viu no próprio centro de uma guerra contra o Reich. A guerra não terminaria em pouco tempo. “Enquanto existir uma Igreja 54 católica, suas declarações políticas eternas vão combater qualquer estado étnico-consciente.” Não estava em questão se o novo papa combateria Hitler, mas como.
Hitler tinha a mesma opinião. Como Joseph Goebbels, ministro da Propaganda, registrou: “4 de março de 1939 (sábado). Ao meio-dia, com o Führer. Ele está considerando se devemos revogar a concordata com Roma devido à eleição de Pacelli como papa. Sem dúvida, isso acontecerá quando Pacelli realizar seu primeiro ato hostil.” 55
No domingo, 5 de março, Pio ergueu o fone do aparelho em sua mesa para dizer a seu assistente mais confiável que o estava esperando. O padre Robert Leiber ingressou na habitação papal. Conhecido em Roma como “o pequeno asmático”, 56 o jesuíta bávaro de 51 anos tinha a aparência de um elfo melancólico. Ainda que Leiber conversasse com Pio duas vezes por dia e lesse quase tudo que passava pela mesa do papa, ninguém conhecia seu cargo. De modo variado, ele era descrito como “agente para questões alemãs”, 57 “bibliotecário papal”, “professor de história da Igreja” e uma “espécie de secretário científico”. 58
De fato, ele não tinha nenhum cargo. “O padre Leiber nunca foi funcionário do Vaticano”, 59 afirmou um colega jesuíta. “Ele era um colaborador próximo do papa, mas jamais foi oficialmente admitido como membro do Vaticano.” Leiber tinha um escritório no Vaticano, mas não aparecia em seu catálogo telefônico. Ele era um funcionário informal.
A falta de um cargo no Vaticano tornou Leiber ideal para a realização de atividades secretas. Como um padre que trabalhou para o serviço de inteligência americano durante os anos do nazismo explicou posteriormente: “É evidente que autoridades oficiais não podem ser corresponsabilizadas se cometermos erros ou falharmos. Devem poder declarar que nunca souberam o que está sendo dito e feito.” 60 Como Leiber não trabalhava para o Vaticano, o Vaticano poderia negar envolvimento em tudo o que ele fizesse.
De modo conveniente, Leiber sabia como se manter calado, 61 como colegas jesuítas notaram. Sobretudo a respeito da política da Igreja. Um padre que o conhecia disse: “O padre Leiber adota uma posição de sigilo absoluto.” 62 Nesse aspecto, ele parecia o próprio modelo de um assistente papal, como descrito pelo papa Sisto V, no século XIV: ele deve saber tudo, ler tudo e entender tudo, mas não deve falar nada. 63
Quando falava, Leiber era direto, 64 sem rodeios. “Sua palavra brilha como aço polido”, afirmou um diplomata. 65 Na década de 1920, quando Pacelli era núncio apostólico em Munique, Leiber tinha até criticado o futuro papa por morar com uma freira bávara, Pascalina Lehnert. Quando um cardeal inspecionou a nunciatura, Leiber descreveu os arranjos da moradia como inadequados; Lehnert gostava de ver Pacelli “em traje de equitação, que combinava muito bem com ele”. 66 Sabendo que o cardeal transmitiu a queixa para Pacelli, Leiber sugeriu sua demissão, mas Pacelli disse:
– Não, não, não. Você é livre para pensar e dizer tudo o que quiser. Não vou demiti-lo. 67
Mas a sinceridade que atraiu Pacelli afastava outras pessoas. Um colega padre classificou o jeito de Leiber como mordaz, até ofensivo, adicionando: “Sabe, ele se tornou um pouco estranho.” 68 A asma fez Leiber tentar uma “terapia de células vivas”, ou seja, injeções de tecidos finamente moídos de cordeiros recém-abatidos. 69 Alguns o descreviam com um gracejo em latim: Timeo non Petrum sed secretarium eius [Não temo Pedro [o papa], mas seu secretário me assusta]. 70
Naquela manhã de domingo, Leiber entregou um memorando urgente para Pio. Michael von Faulhaber, cardeal de Munique, tinha pressionado por longo tempo o Vaticano a resistir abertamente ao nazismo, que violava princípios que deviam permanecer, como as estrelas eternas, acima do compromisso. No entanto, naquele momento, numa carta intitulada “Sugestões mais respeitosas”, Faulhaber encorajava uma trégua.
Sua preocupação era que Hitler desligasse a Igreja alemã de Roma. 71 Muitos católicos alemães “tinham fé” no Führer; não como católicos, mas como alemães. 72 “Os católicos admiram Herr Hitler como um herói, apesar de seu ódio à Igreja”, o próprio Pacelli tinha constatado. 73 Faulhaber viu o perigo de cisma no “país que nos deu a Reforma”. Forçados a escolher entre Hitler e a Igreja, muitos católicos alemães escolheriam Hitler. “Os bispos devem prestar atenção às iniciativas de estabelecimento de uma Igreja nacional”, advertiu Faulhaber. 74 A menos que o Vaticano buscasse uma acomodação, “Hitler talvez nacionalizasse a Igreja, como o rei Henrique VIII tinha feito outrora na Inglaterra”.
Enquanto isso, o nazismo tinha, ele mesmo, se tornado uma Igreja. “Sua filosofia é de fato uma religião”, afirmou Faulhaber. Tinha ritos sacramentais próprios para batismo, crisma, casamento e funerais. Mudou a Quarta-Feira de Cinzas para o Dia de Odin, o Dia da Ascensão para o Dia do Martelo de Thor. 75 Coroava a árvore de Natal não com uma estrela, mas com uma suás­tica. 76 Os nazistas até fizeram “a afirmação blasfema de que Adolf Hitler é basicamente tão grande quanto Cristo”.
Faulhaber queria discutir esses maus pressentimentos com o papa. Como ele e os outros três cardeais do Reich tinham vindo a Roma para o conclave, Pio os convidou para “trazer à tona algumas ideias”, numa audiência no dia seguinte. A reunião, porém, impôs um problema para Pio: ele desconfiava de um dos cardeais convidados para o encontro.
No ano anterior, o primaz de Viena tinha causado um escândalo. Quando Hitler anexou a Áustria, o cardeal Theodor Innitzer afirmara que a Igreja apoiava os nazistas. Pacelli, então secretário de Estado do Vaticano, chamou Innitzer a Roma e o obrigou a assinar uma retratação. 77 Agora, como papa, Pacelli continuava inseguro a respeito de Innitzer. 78 O austríaco afável e sentimental parecia vulnerável à pressão. 79 Com a guerra se aproximando, todos os que entravam na biblioteca do papa queriam sair dela dizendo que Deus estava do lado de seus países. Se Innitzer não deturpasse abertamente as palavras privadas do papa, os propagandistas nazistas talvez fizessem isso por ele. 80
Portanto, Pio decidiu fazer uma gravação privada da audiência com os cardeais. Um registro palavra por palavra o ajudaria a refutar qualquer distorção de seus pontos de vista. Com esse intuito, cedo em seu pontificado, Pio equipou sua biblioteca com um sistema de espionagem por áudio. 81
A vigilância papal por áudio permaneceu um dos segredos mais bem guardados do Vaticano. Somente sete décadas depois, o último membro vivo da Igreja do movimento secreto da era nazista, o padre jesuíta alemão Peter Gumpel, confirmou isso. Até então, Gumpel tinha passado quarenta anos cuidando do caso em favor da santidade de Pacelli.
“Havia um buraco na parede”, Gumpel revelou. “Por um acaso, eu soube disso, e num nível muito alto (...) A coisa é certa. Eu investiguei isso junto ao círculo imediato do papa.” 82
A espionagem por áudio alcançou a maturidade exatamente quando Pacelli se tornou papa. 83 Nos anos seguintes, Hitler, Stalin, Churchill e Roosevelt fariam gravações secretas; 84 somente alguns dias antes, uma varredura na Capela Sistina tinha descoberto um ditafone escondido; 85 e a própria perícia de áudio do Vaticano se equiparava à de qualquer poder secular. A Santa Sé foi equipada por Guglielmo Marconi, inventor do rádio. 86
O próprio Pacelli contratara Marconi para modernizar a sede da Igreja. Marconi construíra, sem cobrar nada, uma central telefônica, uma estação de rádio e uma ligação em onda curta com a residência de verão do papa. 87 Roma, por sua vez, anulou o casamento de Marconi, permitindo-lhe casar-se de novo e ter uma filha, apropriadamente batizada de “Electra”. 88 Alguns engenheiros de Marconi ainda trabalharam para o papa, sob o comando de um físico jesuíta que dirigia a Rádio Vaticano. Eles faziam o que os documentos da Igreja denominam “missões institucionais”, 89 como gravar os discursos do papa, 90 e “serviços extraordinários”, 91 como grampear a conversa dos visitantes. 92
Teoricamente, o trabalho não parecia difícil. A equipe da Rádio Vaticano conhecia e podia controlar o acesso ao local. 93 O papa recebia os visitantes na biblioteca papal, que dividia uma parede com duas antessalas, onde os técnicos de Marconi e jesuítas podiam trabalhar despercebidos. 94 No entanto, como a audiência com os cardeais alemães estava marcada para 6 de março, os instaladores só tinham um dia para vistoriar o alvo, criar uma entrada, inserir um microfone, passar os fios para o posto de escuta e testar o sistema. 95
Na biblioteca, a equipe estudou os lugares para ocultar os microfones. Molduras de quadros, lâmpadas de mesa, suportes abaixo das pernas da mesa, o telefone, luzes suspensas: todos esses lugares ofereciam possibilidades. No fim, como o padre Leiber lembrou, a equipe escolheu um sistema que funcionava “por meio de um único microfone, que possibilitava escutar tudo na sala ao lado”. 96 Eles fizeram um furo e colocaram um microfone nele.
Muito provavelmente na noite de 5 para 6 de março, os técnicos da Rádio Vaticano começaram a trabalhar. 97 Para não sujar o piso da antessala e testar o equipamento para uma saída rápida, eles desenrolaram uma esteira de borracha, sobre a qual puseram as ferramentas: furadeiras, brocas, empurradores de tubos, escadas dobráveis. Como as ferramentas elétricas chamariam atenção, a equipe utilizou furadeiras manuais. Os técnicos trabalharam em turnos; cada homem, depois de furar, descansava daquele árduo trabalho, enquanto outro o substituía. No ritmo máximo, porém, mesmo as furadeiras manuais faziam um barulho revelador. Os técnicos decidiram que lubrificar as brocas reduziria o ruído. Consta que um jesuíta foi buscar azeite de oliva, talvez nos aposentos papais. Então, a equipe lubrificou suas brocas, e o trabalho progrediu em silêncio. Contudo, conforme as brocas aqueciam, o mesmo acontecia com o lubrificante. Em pouco tempo, o local ficou com cheiro de fritura. 98 Para remover o cheiro, a equipe teve de fazer uma pausa e abrir uma porta que dava para o Pátio do Papagaio. 99
Finalmente, após algumas horas tensas e cansativas, os técnicos abriram caminho até a parede da biblioteca. Usando uma broca fina, fizeram um furo estreito, criando uma passagem para um captador de áudio e um fio. As lombadas dos livros, na parede da biblioteca, ofereciam cavidades naturais de esconderijo. Permanece incerto se os técnicos esconderam o microfone num livro vazado, que o padre Leiber possuía, 100 ou se alargaram o lado deles da parede para encaixar o equipamento. De qualquer forma, utilizaram aparentemente um microfone condensador em forma de mamilo. 101 Eles o conectaram num pré-amplificador que parecia uma pasta de couro marrom. 102
Do pré-amplificador, os técnicos estenderam fios até o posto de gravação. Uma conexão fixa de cabos coaxiais passava através de um túnel sob um bosque de carvalhos, nos Jardins do Vaticano, alcançando uma torre fortificada do século IX. 103 Ali, em meio aos afrescos de naufrágios com Jesus acalmando a tempestade, os jesuítas operavam o maior gravador de áudio já construído. Maior do que duas geladeiras juntas, o gravador Marconi-Stille registrava o som em fita metálica, que podia se romper e decapitar os operadores. Eles operavam o equipamento só por controle remoto, num recinto separado. 104 Uma gravação de meia hora utilizava quase três quilômetros de aço enrolado em carretel. 105
Na manhã de 6 de março, sugere a evidência disponível, um operador acionou um interruptor de parede. Uma lâmpada branca na máquina se acendeu. O operador esperou um minuto completo para aquecer os cátodos e, em seguida, moveu a alavanca de controle para a posição de “gravação”. 106
Faltando seis minutos para as nove da manhã, Pio entrou na biblioteca papal. 107 Naquele momento, de um cubículo no pátio de San Damaso, monsenhor Enrico Pucci viu os quatro cardeais ingressarem no Palácio Apostólico. Cada um usava um barrete vermelho, uma faixa vermelha e uma cruz peitoral dourada. 108 Os cardeais atravessaram diversos corredores e pátios e, em seguida, pegaram um elevador rangente. Saíram numa sala de espera com as paredes revestidas de veludo vermelho e decorada com medalhões dos papas mais recentes. Arborio Mella, maestro di camera papal, conduziu os cardeais até a biblioteca.
A sala de canto tinha uma visão panorâmica da Praça de São Pedro. 109 Estantes de livros ocupavam as paredes e, acima delas, doze quadros retratavam animais. Um lustre de cristal pendia do teto. O recinto tinha um tapete de plush . Três retratos escuros, de pintores holandeses, ocupavam os nichos. Uma mesa de mogno se estendia na direção de três janelas, com as cortinas meio abertas para deixar entrar a luz do dia.
Pio estava sentado junto à mesa, com as mãos entrelaçadas e traçado em silhueta pelos raios de sol. Usava um solidéu branco e sapatilhas vermelhas sem saltos. Apenas a cruz dourada sobre o peito adornava os paramentos brancos como a neve. Alternadamente, os cardeais se inclinaram para beijar o anel de Pio: Adolf Bertram, de Breslau; Faulhaber, de Munique; Josef Schulte, de Colônia; e Innitzer, de Viena.
Eles se acomodaram nas cadeiras com encosto de palhinha dispostas diante do papa. Um crucifixo compartilhava o tampo da mesa com diversos documentos. Nas proximidades, havia um telefone com disco folheado a ouro e furos para o dedo em azul-royal. Uma placa ornamental de prata revelava que a mesa era um presente dos bispos alemães pelos doze anos de Pio como representante papal na Alemanha.
– Vamos aproveitar que Vossas Eminências estão aqui – começou Pio a falar – para considerar como podemos ajudar a causa da Igreja católica na Alemanha no momento atual. 110
Em latim, ele leu uma carta para Hitler. No meio das cordialidades protocolares, havia a frase: “Deus o proteja, respeitável senhor”. 111
Pio perguntou:
– Os senhores consideram esse documento apropriado, ou devemos adicionar ou mudar alguma coisa? – Três dos cardeais o aprovaram. Faulhaber, porém, levantou uma questão.
– Precisa ser em latim? Considerando sua aversão a outras línguas que não o alemão, talvez o Führer preferisse não ter de pedir a ajuda a um teólogo.
– Podemos escrever em alemão – respondeu Pio. – Devemos considerar o que é justo para a Igreja na Alemanha. Essa é a questão mais importante para mim.
O papa mudou de assunto e passou a falar sobre o conflito entre a Igreja e o Reich. Ele leu em voz alta uma lista de queixas compiladas pelo car­deal Bertram. Os nazistas tinham cerceado os ensinamentos da Igreja, proscrito suas organizações, censurado sua imprensa, fechado seus seminários, confiscado suas propriedades, despedido seus professores e fechado suas escolas. 112 O conflito pressagiava uma perseguição total. Os dirigentes do partido alardeavam que “após a derrota do bolchevismo e do judaísmo, a Igreja católica será o único inimigo restante”.
Então, Pio deu a palavra para Faulhaber, que fez um relato ainda mais sombrio. “O preconceito contra o catolicismo não desaparecerá”, 113 advertiu Faulhaber. Ele mencionou o recente discurso de Hitler ao Reichstag, que incluíra uma frase arrepiante: “O padre como inimigo político dos alemães deve ser exterminado.” 114 Os militantes da SA, milícia paramilitar nazista, consideraram essas palavras uma licença para decapitar estátuas de catedrais, utilizar crucifixos para tiro ao alvo e sujar altares com excrementos. Recentemente, uma multidão tinha cercado a residência de Faulhaber, quebrado todos os vidros das janelas e tentado incendiar o edifício. 115
Faulhaber delineara o problema para a encíclica papal de 1937. Ele mesmo tinha rascunhado o protesto papal contra as políticas nazistas, mas Pacelli, como secretário de Estado, tinha elevado o tom das críticas. 116 Onde Faulhaber enfatizara o sofrimento, Pacelli convertera para combate. Ele modificou o título do documento, de Com considerável preocupação para Com ardente preocupação . O texto mais crítico dizia que o “nacional-socialismo tinha planejado a perseguição à Igreja desde o início e como princípio”. Hitler dissera em seu primeiro discurso como chanceler que queria a paz com a Igreja e, assim, “ficou furioso com as palavras da encíclica e cortou relações com as autoridades da Igreja quase completamente desde então”. Embora Faulhaber parasse de repente de dizer isso, Pacelli, o cardeal, tinha ajudado a criar a crise agora enfrentada por Pacelli, o papa.
Faulhaber questionou outra farpa de Pacelli na encíclica. O documento afirmava que a Alemanha “celebrava a apoteose de uma cruz que é hostil à cruz de Cristo”. 117 Faulhaber protestou: “A suástica não foi escolhida pelo Führer como alternativa à cruz cristã, e não é considerada dessa maneira pelo povo.” Um Estado tinha o direito de escolher sua bandeira, e “uma rejeição a essa bandeira seria percebida como hostil”. Nesse caso, novamente, Faulhaber sugeriu, o cardeal Pacelli não tinha alimentado o fogo que agora o papa Pacelli devia apagar?
– O eminente cardeal Faulhaber tem razão – afirmou Pio.
Foi o único momento na reunião em que o papa escolheu um dos cardeais para elogiar. Com isso, enviou um sinal sutil que transferiria para Faulhaber – e não para Bertram, o líder nominal da Igreja alemã – a tarefa de traçar a política em relação a Hitler.
A política preferida de Faulhaber tinha duas partes. A primeira era a aquiescência pública. “Eles [os nazistas] são combatentes que dão a impressão de que preferem procurar motivos para lutar. Especialmente se for contra a Igreja! No entanto, também acredito que nós, bispos, devemos agir como se estivéssemos inconscientes disso.” Os bispos não deviam se envolver numa guerra de palavras com Hitler – nem o papa. “Falando de um ponto de vista prático, o papa terá de fazer algumas concessões.”
– Proibi polêmicas – disse Pio. Ele já havia pedido ao L’Osservatore Romano , jornal diário do Vaticano, que parasse de atacar a política alemã. – Informei a eles que não deveria mais haver palavras incisivas.
A segunda parte da política envolvia a mediação secreta. Reagir ao nazismo exigia “contatos pessoais”, e não protestos formais. Os colaboradores de confiança podiam solucionar o conflito nos bastidores, se eles mesmos se mantivessem informados. “Os bispos alemães devem achar uma maneira de enviar ao papa informações oportunas e exatas.” 118 Se necessário, os bispos podiam contornar as burocracias formais.
– Não preciso dizer – Pio retomou, pois gostava de manter as linhas de discussão importantes nas mãos – que a questão alemã é a mais importante para mim. Reservo-me seu cuidado.” 119
Essa perspectiva pareceu perturbar os cardeais.
– Devemos ter certeza de que Sua Santidade goza de boa saúde – afirmaram alguns simultaneamente.
– Estou bem de saúde – tranquilizou Pio. – Eminências, talvez possamos nos reunir de novo.
Quando os cardeais se preparavam para sair, o papa procurou firmar a determinação deles.
– Não podemos renunciar aos princípios – declarou o papa. – Se eles querem guerra, não sintamos medo. Mas ainda queremos ver se de algum modo é possível alcançar uma solução pacífica... Depois que tivermos tentado tudo, e eles ainda quiserem guerra, nós nos defenderemos. – Ele repetiu: – Se eles recusarem, então deveremos lutar. 120
No quartel-general da SS, Albert Hartl ainda trabalhava duro. Seus superiores tinham lhe pedido que ampliasse seu dossiê a respeito do novo papa, para que pudessem publicar partes dele em panfleto. Estabeleceria a linha do partido em relação a Pio, que seria transmitida à imprensa em meados de março. Hartl desenvolveu seu retrato com cenários de batalha. Se Pacelli continuasse a lutar, era fundamental conhecer as armas e as táticas que ele usaria.
Pacelli não agiria impulsivamente. Suas declarações públicas contra o nazismo refletiam mais o estilo arrebatado de Pio XI que o seu próprio. O novo papa não era um místico vociferante, mas um observador cuidadoso e perspicaz das coisas que personalidades mais grosseiras deixavam escapar. 121 “O que ele faz, ele esconde. O que ele sente, não mostra. A expressão em seus olhos não muda.” 122 Pacelli media cada palavra e controlava cada movimento. Isso podia fazê-lo parecer superficial, pedante ou presunçoso. 123 Só raramente, com americanos ou crianças, seus olhos brilhavam e sua voz se elevava.
Mas Pacelli não evitava o combate direto apenas por uma questão de estilo. Realista político, evitaria demonstrar uma posição de fraqueza. A Igreja parecia “antiquada, frouxa e impotente” 124 contra os movimentos de massa autoritários. A conquista da Abissínia pela Itália e a anexação da Áustria pela Alemanha já tinham exposto divisões profundas entre o Vaticano pacifista e os bispos nacionalistas. 125 Pacelli descobriria que seu poder sobre as igrejas locais era total na teoria, mas parcial na prática.
Assim, lutaria indiretamente. “Sempre que a Igreja não se sente com poder, aplica naturalmente métodos mais astuciosos.” 126 Hartl destacou três deles: a militância, o motim e a espionagem, sendo a espionagem o mais importante.
“A rigor, não há serviço de inteligência do Vaticano”, escreveu Hartl. 127 Mas a Igreja tinha “agentes secretos”, ou seja, clérigos que apresentavam relatórios. Ao analisar esses relatórios para tomada de decisão, o Vaticano dava-lhes “tratamento de serviço de inteligência”. Além disso, os assessores do papa designavam “missões de agentes secretos” para clérigos e representantes seculares. Como o Vaticano tinha agentes secretos, analistas, relatórios e missões, o papa tinha “de fato, um serviço de inteligência”.
Uma militância quase medieval caracterizava algumas das supostas missões. Por exemplo, Hartl relatou que o cardeal Faulhaber escondeu armas para forças políticas de direita em Munique. Enquanto trabalhava no seminário de Friesing, de 1919 a 1923, Hartl ficou sabendo que “uma quantidade considerável de armas e munições estava sendo mantida escondida com a permissão de Faulhaber (...) Eram rifles, metralhadoras e duas pequenas peças de artilharia”. Hartl relatou que ele mesmo viu essas armas. “Algumas delas estavam armazenadas num esconderijo... que podia ser alcançado por meio de uma escada secreta, situada sob uma laje de pedra próxima do altar principal.” 128 Os reacionários bávaros utilizavam as armas em exercícios militares secretos e talvez em operações contra terroristas de esquerda. A Igreja poderia encorajar a violência contra os nazistas utilizando métodos similares, se pressionada.
Então, a militância viraria motim. “Basicamente, a Igreja católica reivindica para si o direito de depor chefes de Estado”, 129 declarou Hartl, e prosseguiu: “E já atingiu esse objetivo diversas vezes.” Na Contrarreforma, os representantes jesuítas supostamente assassinaram os reis franceses Henrique III e Henrique IV e conspiraram para destruir o Parlamento britânico. 130 Hartl já sabia que o padre Leiber, assistente jesuíta de Pacelli, não tinha objeções morais em relação a ações semelhantes contra Hitler. Portanto, a SS precisava descobrir os militantes católicos alemães ligados a Leiber e “liquidar a disposição de luta deles”. 131
Descobrir essas ligações era “extremamente difícil”, 132 admitiu Hartl. Somente o círculo íntimo do papa conhecia os detalhes das operações secretas. 133 Além disso, rastrear os espiões papais era responsabilidade do serviço de inteligência militar alemão (Abwehr), unidade de espionagem rival, acusada de abrigar adversários conservadores de Hitler. Em consequência, a SS tinha apenas um conhecimento “escasso” das “pessoas do serviço de inteligência do Vaticano”. 134
Hartl esperava que o sexo abrisse janelas em relação ao mundo secreto do Vaticano. Segundo boatos, Conrad Gröber, 135 arcebispo de Freiburg, tinha uma amante meio judia, e havia cooperado com a SS, “por medo de seu caso de amor ser trazido à tona”, pensou Hartl. A SS prendera monges em clubes noturnos gays. 136 O padre Johann Gartmeier, presidente da Caritas, organização humanitária católica, fora pego se apropriando indevidamente de 120 mil marcos quando um ménage à trois deu errado: “Ele caiu nas mãos de duas mulheres casadas, que haviam terminado seus casamentos e, em seguida, o tinham chantageado”, relatou um dos homens de Hartl. 137 No entanto, a exploração desses deslizes não havia exposto os espiões da Igreja.
Restava um caminho. Todos os agentes secretos acabam enviando informações para seus serviços de inteligência. Era o momento de maior perigo para qualquer espião: a maior parte dos agentes que fracassavam era pega durante a tentativa de se comunicar. Como precaução, os agentes e seus serviços de inteligência utilizavam intermediários denominados “interceptores” como mensageiros. 138 Portanto, Hartl procurou, como a SS observou, “quebrar o sistema de envio de mensagens operado pela Igreja católica”. 139
Inicialmente, achou que havia penetrado no sistema. Como ele relatou, um certo doutor Johannes Denk “dirigia uma unidade de envio de mensagens do serviço de inteligência do Vaticano, em Munique, e era, ao mesmo tempo, agente da Gestapo em Berlim”. 140 No entanto, as cartas que passavam pelas mãos de Denk não revelavam os agentes. Hartl deduziu que a Igreja possuía um sistema de envio de mensagens ainda desprotegido, e, tendo falhado em se infiltrar em sua extremidade alemã, dirigiu a atenção de seus agentes para Roma.
Em 9 de março, Pio voltou a se encontrar com os cardeais do Reich. A transcrição esatta (palavra por palavra) revelou que o círculo íntimo do papa nunca os viu. Relaxados após mais de uma semana na Itália, os príncipes da Igreja alemã gracejaram como se estivessem numa espécie de vestiário clerical. 141 Animados quase até a irreverência, brincaram a respeito de suas perspectivas em relação a Sua Santidade. 142 Bertram riu acerca de como Pio talvez devesse se dirigir a Hitler: “O Santo Padre também diz Heil , Heil !” 143
– Quando Vossas Eminências se acalmarem, gostaria de prosseguir com a questão alemã. É muito importante – afirmou o papa.
Pio abordou o item principal da pauta, destacando sua importância. Naquela manhã, a primeira parte da questão alemã que carecia de atenção não tinha ligação com o drama espiritual de cada católico per se. Relacionava-se, sim, com o problema das operações clandestinas.
– A primeira questão – disse o papa – envolve o serviço de envio de mensagens entre a Santa Sé e os bispos alemães. – E acrescentou: – O tópico é fundamental, pois um serviço dessa natureza é a única maneira de obtermos mensagens secretas.
O secretário político de Faulhaber, monsenhor Johannes Neuhäusler, havia enviado duas propostas. Pio as leu em voz alta:
a) Periodicamente (a cada mês ou a cada dois meses), a Santa Sé envia um diplomata com quem os reverendíssimos bispos podem discutir questões e para quem eles também podem entregar material escrito destinado a Roma. Nesse caso, a rota poderia ser: Roma, Viena, Munique, Freiburg, Colônia, Berlim, Breslau, Roma (via Viena ou Munique).
b) Um serviço de envio de mensagens duplo seria utilizado. Primeiro, aquele já funcionando entre Roma e Berlim (dúvida quanto a se deveria haver uma escala intermediária em Munique). Segundo, um interno na Alemanha: Berlim, Munique, Freiburg, Colônia, Berlim. Nos pontos intermediários, os materiais destinados a Roma seriam coletados e um mensageiro os traria para Berlim, de onde seriam enviados para Roma por meio do serviço de envio de mensagens mencionado em primeiro lugar. Além disso, o serviço no interior da Alemanha teria de ter status diplomático para ter garantia de acesso.
Então, Pio comentou em termos claros o que chamou de assunto “técnico”.
– Envolve um mensageiro, não oficialmente da Santa Sé, mas bastante confiável. Ele viajará uma vez por semana. No sábado, deixará Roma e, na segunda-feira, chegará a Berlim. No sentido inverso, a Santa Sé receberá mensagens de Berlim na segunda-feira. Essa ligação semanal Roma-Berlim é segura. Temos a melhor prova da condição sigilosa dessa ligação da época da encíclica Mit brennender Sorge . Ninguém tomou conhecimento de nada.
A rede no interior da Alemanha era mais problemática. Agentes episcopais tinham de se esquivar do Sicherheitsdienst (SD), o serviço de espionagem da SS. “O SD é o grande mal”, 144 observou o cardeal Bertram. O grupo discutiu como ligar diversas dioceses com Berlim.
CARDEAL BERTRAM : Temos de fazer isso de forma clandestina. Quando são Paulo foi descido num cesto 145 pelo muro da cidade, em Damasco, ele também não tinha permissão da polícia.
PAPA : Sim, nesse caso, temos um bom precedente. Pio XI já tinha aprovado o pagamento dos custos do mensageiro de Munique, Breslau e Colônia para Berlim por meio do óbolo de são Pedro. O serviço de envio de mensagens é possível e fácil dessa maneira.
CARDEAL INNITZER : Sim, e ele certamente também deve ser confiável.
CARDEAL SCHULTE : O serviço de envio de mensagens nem sempre foi prestado pela mesma pessoa. Seria melhor se fosse sempre a mesma pessoa.
CARDEAL FAULHABER : Na Baviera, mudamos os mensageiros com fre­quência, pois a polícia pode capturá-los. Em Munique, isso é fácil de fazer. O Europäische Hof 146 é onde os clérigos em viagem se hospedam; quase sempre se encontra alguém de Berlim no albergue.
PAPA : Que tal Viena?
CARDEAL INNITZER : Basicamente, funciona igual a partir dali.
CARDEAL FAULHABER : Os bispos não sabem quando o mensageiro vai de Berlim para Roma.
PAPA : Todo sábado, semanalmente.
CARDEAL FAULHABER : Podemos dizer isso aos bispos?
PAPA : Sem dúvida. Sempre recebo a mala postal de Berlim na segunda ao anoitecer. De modo bastante regular, certo e seguro. Como já mencionei, Pio XI me disse que as despesas dos bispos com os mensageiros podem ser pagas de imediato com o óbolo de são Pedro.
Ligações seguras seriam fundamentais se a Igreja tivesse de combater o Partido Nazista. Pio perguntou:
– Há algum sinal perceptível de que o outro lado queira fazer um acordo de paz com a Igreja?
Innitzer considerava a possibilidade como “bastante ruim”. Na zona rural, o partido tentou impedir os padres de dar aulas de religião. No entanto, alguns agricultores haviam resistido.
– A escola, eles disseram, pertence a nós. Se não tivermos mais aulas de religião, vamos nos rebelar.
– Não devemos nos apavorar – afirmou Pio. – Não podemos entregar os pontos.
– O perigo é grande – advertiu o cardeal Bertram. 147
No domingo, 12 de março, às seis da manhã, uma procissão avançou na direção das portas de bronze da Basílica de São Pedro. Os homens da Guarda Suíça encabeçavam a fila, seguidos por frades descalços com cintos de corda. Pio tomou o seu lugar no fim da procissão, acomodado numa cadeira gestatória. Plumas de avestruz se moviam silenciosamente em cada lado, como aspas.
Pio entrou na basílica ao som de trompetes de prata e aplausos. Através de colunas de incenso, abençoou os presentes. No altar-mor, os criados posicionaram sobre seus ombros uma faixa de lã entrelaçada com cruzes negras.
Do lado de fora, a polícia continha a multidão. As pessoas escalavam peitoris e se equilibravam em chaminés, esforçando-se para enxergar o balcão da basílica.
Ao meio-dia, Pio surgiu. O protodiácono ficou ao lado dele. Sobre a cabeça de Pacelli, o cardeal pôs uma coroa de pérolas, em forma de colmeia. “Receba a tiara”, disse ele, e prosseguiu: “E saiba que o senhor é o pai dos reis, o soberano do mundo.” 148
Segundo boatos, Diego von Bergen, embaixador alemão junto à Santa Sé, teria dito a respeito da cerimônia: “Muito emocionante e bela, mas será a última.” 149
Enquanto Pacelli era coroado, Hitler comparecia a uma cerimônia cívica em Berlim. No dia da homenagem aos combatentes alemães mortos em ação, num discurso na casa de ópera do Estado, o almirante Erich Raeder afirmou: “Sempre que conquistarmos uma cabeça de ponte, vamos mantê-la. Sempre que uma brecha aparecer, vamos construir uma ponte... A Alemanha golpeia com rapidez e força.” 150 Hitler passou em revista a guarda de honra e, em seguida, depositou uma coroa de flores no Memorial ao Soldado Desconhecido. Naquele mesmo dia, deu ordens para seus soldados ocuparem a Tchecoslováquia. 151
Em 15 de março, o exército alemão entrou em Praga. Através de neve e neblina, 152 em estradas cobertas de gelo, Hitler seguiu em seu Mercedes de três eixos, com as janelas à prova de balas levantadas. 153 Uma gangue de oitocentos homens da SS de Himmler caçava os indesejáveis. 154 Um agente papal mandou um telegrama para Roma, com “detalhes obtidos confidencialmente”, relatando as prisões de todos os que “tinham falado e escrito contra o Terceiro Reich e seu Führer”. 155 Em pouco tempo, 487 jesuítas tchecos e eslovacos acabaram em campos de prisioneiros, onde era “uma visão comum”, uma testemunha afirmou, “ver um padre vestido em trapos, exausto, puxando um carro, e atrás dele um jovem com uniforme da SA (Tropa de Assalto) e com um chicote na mão”. 156
O ataque de Hitler contra a Tchecoslováquia pôs a Europa em crise. Ele quebrou a promessa dada em Munique seis meses antes de respeitar a integridade tcheca, que, como afirmara Neville Chamberlain, primeiro-ministro britânico, garantia a “paz para o nosso tempo”. Naquele momento, Londres condenou “a tentativa alemã de obter o domínio mundial, que tornou do interesse de todos os países resistir”. 157 O governo polonês, encarando o ultimato alemão a respeito do contestado corredor de Dantzig, mobilizou suas tropas. Em 18 de março, em Varsóvia, o agente papal relatou “um estado de tensão” entre o Reich e a Polônia, “que poderia ter consequências muito sérias”. 158 Outro relatório do serviço de inteligência que chegou ao Vaticano classificou a situação como “extremamente grave”. 159
Talvez nenhum papa em quase um milênio tenha assumido o poder em meio a um medo tão generalizado. O cenário se comparava com aquele de 1073, quando o antigo império de Carlos Magno implodiu e a Europa precisou apenas de uma centelha para pegar fogo. “Até a eleição do papa ficou sob a sombra da suástica”, 160 alardeou Robert Ley, líder trabalhista nazista. “Tenho certeza de que só falaram a respeito de como achar um candidato para a Cátedra de São Pedro que fosse mais ou menos capaz de lidar com Adolf Hitler.”
De fato, a crise política produziu um papa político. Em meio a uma ameaça de tempestade, os cardeais elegeram o candidato mais qualificado politicamente, no conclave mais rápido em quatro séculos. Por sua longa carreira no serviço de relações exteriores papal, Pacelli era o decano dos diplomatas da Igreja. Tinha caçado a cavalo com generais prussianos, aturado em jantares festivos as fanfarrices de reis exilados, confrontado revolucionários com apenas sua cruz enfeitada com joias. Como cardeal secretário de Estado, tinha se aliado discretamente com Estados amigos e obtido direitos para a Igreja dos Estados hostis. Útil para todos os governos, lacaio de nenhum, Pacelli foi considerado por um diplomata alemão “um político de altíssimo nível”. 161
A política estava no sangue de Pacelli. Seu avô fora ministro do Interior dos Estados Pontifícios, aglomerado de territórios maior que a Dinamarca, que os papas tinham governado desde a Idade Média. Acreditando que esses territórios mantinham os papas politicamente independentes, os Pacelli lutaram para preservá-los contra os nacionalistas italianos. Os Pacelli perderam. 162 Em 1870, o papa só governava a Cidade do Vaticano, reino em forma de diamante, do tamanho de um campo de golfe. Nascido em Roma seis anos depois, criado à sombra da Basílica de São Pedro, Eugenio Pacelli herdou um sentido de missão altamente político. Como coroinha, rezou pelos Estados Pontifícios; nos trabalhos escolares, defendeu direitos seculares; e como papa, viu a política religiosa por outros meios.
Alguns consideraram uma contradição 163 sua mesclar a atividade clerical com a política. Pacelli encerrava diversas contradições. Ele visitou mais paí­ses e falava mais línguas do que qualquer papa anterior, mas permaneceu uma pessoa caseira, que morou com a mãe até os 41 anos. Ávido para se encontrar com crianças, sem medo de lidar com ditadores, era tímido com bispos e padres. Levou uma das vidas mais públicas do mundo, e uma das mais solitárias. Era familiar para bilhões de pessoas, mas seu melhor amigo era um pintassilgo. Era aberto aos estranhos e meditativo com os amigos. Seus assistentes não conseguiam divisar sua alma. Para algumas pessoas, ele não parecia “um ser humano com impulsos, emoções, paixões”, mas outras se lembram dele pranteando a respeito do destino dos judeus. Um observador o considerou “patético e extraordinário”; outro, “despótico e inseguro”. Metade dele, parecia, estava sempre agindo contra a outra metade.
Uma devoção dupla por religiosidade e política o dividia profundamente. Ninguém podia considerá-lo um mero papa maquiavélico da casa dos Médici: ele celebrava missa diariamente, comungava com Deus por horas, relatava visões de Jesus e Maria. Os visitantes comentavam sua aparência de santo; um deles o considerou “um homem que irradia luz”. 164 No entanto, aqueles que achavam que Pio não era desse mundo estavam enganados. A hiperespiritualidade, ou seja, um recolhimento à esfera do puramente religioso, não tinha sua simpatia. Em Roma, um agente secreto americano notou a quantidade de tempo que Pio dedicava à política e como ele supervisionava rigorosamente todos os aspectos do Ministério das Relações Exteriores do Vaticano. 165 Embora elaborando uma encíclica a respeito do Corpo Místico de Cristo, Pio também avaliava o provável impacto estratégico das armas atômicas. Ele as julgava “meios úteis de defesa”. 166
Mesmo alguns que gostavam de Pacelli antipatizavam com sua preocupação em relação ao poder mundano. “Ficamos tentados a dizer que a atenção à política é excessiva”, escreveu Jacques Maritain, embaixador francês do pós-guerra junto ao Vaticano, “considerando o papel essencial da Igreja”. 167 O papel essencial da Igreja, afinal, era salvar almas. No entanto, na prática, o propósito espiritual envolvia um propósito temporal: a obtenção de condições políticas sob as quais as almas podiam ser salvas. Os padres deviam batizar, celebrar missas e sagrar casamentos sem a interferência do Estado. O medo do poder do Estado estruturou o pensamento da Igreja: os césares tinham assassinado Pedro, Paulo e Jesus.
Portanto, o papa não tinha apenas um papel, mas dois. Ele tinha de entregar a Deus o que era de Deus e manter César sob controle. Em parte, todo papa era um político; alguns lideraram exércitos. O papado que Pacelli herdou era tão bipolar quanto ele, que meramente abrangeu, de forma comprimida, o problema existencial da Igreja: como ser uma instituição espiritual num mundo material e altamente político. 168
Não era um problema solucionável, apenas administrável. E se era um dilema que provocou vinte séculos de guerra entre a Igreja e o Estado, culminando exatamente quando Pacelli se tornou papa, também era um dilema que, durante seu papado, pôs o catolicismo em conflito consigo mesmo. Porque a tração tectônica de opor tensões, em relação a imperativos espirituais e temporais, abriu uma fissura nas fundações da Igreja que não podiam ser fechadas. Idealmente, a função espiritual do papa não devia conflitar com sua função política. Mas se e quando conflitava, qual função devia prevalecer? Sempre era uma questão difícil, mas nunca mais difícil do que durante os anos mais sangrentos da história, quando Pio XII teria de escolher sua resposta.
Em 1º de setembro de 1939, Pio acordou por volta das seis da manhã, em Castel Gandolfo, sua residência de verão, uma fortaleza medieval adjacente a um vulcão inativo. Sua governanta, irmã Pascalina, tinha acabado de soltar os canários de Pio de suas gaiolas quando o telefone ao lado da cama tocou. Respondendo de sua maneira habitual, “ E’qui Pacelli ” [Pacelli falando], escutou a voz trêmula do cardeal Luigi Maglione retransmitindo as informações do núncio papal em Berlim: quinze minutos antes, a Wehrmacht invadira a Polônia. 169
No início, Pio se comportou normalmente, como um papa. Ele se dirigiu à capela privada e se curvou em oração. Em seguida, após tomar um banho frio e fazer a barba, celebrou uma missa que foi acompanhada por freiras bávaras. No entanto, no café da manhã, irmã Pascalina recorda, ele provou os pãezinhos e o café cautelosamente, “como se abrindo uma pilha de contas na correspondência”. Pio comeu pouco nos seis anos seguintes. No final da guerra, embora tivesse mais de 1,80 metro de altura, pesava somente 57 quilos. Com os nervos em frangalhos por causa da aflição moral e política, ele lembrava, para Pascalina, um “pintarroxo faminto ou um cavalo exausto”. Com um suspiro de grande tristeza, Domenico Tardini, seu subsecretário de Estado, refletiu: “Esse homem, que era amante da paz por temperamento, educação e convicção, estava para ter o que pode ser chamado de pontificado de guerra.” 170
Na guerra, o Vaticano procurou permanecer neutro. Como representava os católicos de todos os países, o papa tinha de parecer imparcial. Tomar partido obrigaria alguns católicos a trair seus países, e outros a trair sua fé. 171
Contudo, a Polônia era especial. Durante séculos, os poloneses tinham sido um anteparo católico entre a Prússia protestante e a Rússia ortodoxa. Pio reconheceria o governo polonês no exílio, e não o protetorado nazista. A “neutralidade” descrevia sua posição oficial, mas não sua posição real. Como ele disse ao embaixador francês quando Varsóvia caiu: “Você sabe de que lado minha simpatia está. Mas não posso revelar isso.” 172
Conforme as notícias a respeito da agonia da Polônia se difundiam, Pio se sentiu compelido a falar. Em outubro, o Vaticano recebera relatos sobre judeus assassinados a tiros em sinagogas e enterrados em valas. Os nazistas, além disso, também estavam visando a católicos poloneses. No fim, eles matariam 2,4 milhões de católicos poloneses em “operações de assassinato não militares”. A perseguição aos gentios poloneses não alcançou os números do genocídio em escala industrial dos judeus europeus, mas teve características quase genocidas e preparou o terreno para o que se seguiu. 173
Em 20 de outubro, Pio emitiu uma declaração pública. Sua encíclica Summi Pontificatus , conhecida em inglês como Darkness over the Earth [ Trevas sobre o mundo ], começava denunciando os ataques ao judaísmo. “Quem, entre ‘os Soldados de Cristo’, não se sente incitado a uma resistência mais determinada quando percebe que os inimigos de Cristo quebram de forma imoral as Tábuas dos Mandamentos de Deus, para substituir por outras tábuas e outros padrões despojados do conteúdo ético da Revelação no Sinai?” Mesmo ao custo dos “tormentos ou martírio”, ele escreveu, “devemos confrontar essa maldade, afirmando: ‘ Non licet ; não é permitido!’”. Então, Pio enfatizou a “unidade da raça humana”. Ao ressaltar que essa unidade refutava o racismo, afirmou que iria sagrar bispos de doze afiliações étnicas na cripta do Vaticano. Pio se aferrou à questão, insistindo que “o espírito, o ensino e a obra da Igreja jamais podem ser diferentes do que aqueles que o Apóstolo dos Gentios pregou: ‘Nem gentios nem judeus’”. 174
O mundo considerou a encíclica um ataque à Alemanha nazista. “Papa condena ditadores, violadores de tratados e o racismo”, veiculou o jornal The New York Times em manchete de primeira página. 175 “A condenação irrestrita feita pelo papa Pio XII às teorias de governo totalitárias, racistas e materialistas, em sua encíclica Summi Pontificatus , provocou profunda comoção”, relatou a Jewish Telegraphic Agency. “Embora se esperasse que o papa atacaria ideologias hostis à Igreja católica, poucos observadores esperavam um documento tão sem rodeios.” 176 Pio até prometeu se manifestar de novo, se necessário. “Não temos maior dívida com o nosso cargo e com o nosso tempo do que testemunhar a verdade”, escreveu ele. “No cumprimento disso, de nosso dever, não deixaremos nos influenciar por considerações mundanas.”
Era uma promessa audaz, mas vã. Ele só voltaria a usar a palavra “judeu” em público em 1945. As agências de notícias dos Aliados e judaicas ainda o saudavam como antinazista durante a guerra. Mas, com o tempo, seu silêncio estremeceu as relações entre católicos e judeus e reduziu a credibilidade moral da fé. Discutidas ainda no século seguinte, as causas e o significado do silêncio se tornariam o principal mistério tanto da biografia de Pio como da história da Igreja moderna.
Ao julgar Pio por aquilo que ele não disse, só se pode condená-lo. Com imagens de pilhas de cadáveres diante de seus olhos; com mulheres e crianças pequenas compelidas, por tortura, a matar umas às outras; com milhões de inocentes enjaulados como criminosos, abatidos como gado e queimados como lixo, ele deveria ter falado abertamente. Ele tinha esse dever, não só como pontífice, mas como pessoa. Depois de sua primeira encíclica, Pio reeditou distinções entre ódio racial e amor cristão. Mas com a moeda ética da Igreja, ele se mostrou frugal; em relação a aquilo que privadamente chamou de “forças satânicas”, exibiu moderação pública; onde nenhuma consciência podia permanecer neutra, a Igreja deu a impressão de fazer isso. Durante a maior crise moral do mundo, seu maior líder moral pareceu não saber o que dizer.
No entanto, o Vaticano não trabalhou apenas por meio de palavras. Em 20 de outubro, quando assinou a Summi Pontificatus, Pio estava enredado numa guerra por trás da guerra. Aqueles que posteriormente investigaram a confusão de suas políticas, sem um indício de suas ações secretas, perguntaram-se por que ele pareceu tão hostil ao nazismo e, em seguida, permaneceu tão calado. Contudo, quando seus atos secretos são mapeados, e sobrepostos a suas palavras públicas, emerge uma correlação completa. O último dia durante a guerra em que Pio publicamente disse a palavra “judeu” também foi, de fato, o primeiro dia em que a história pôde documentar sua escolha por ajudar a matar Adolf Hitler. 177