Capítulo 2
O fim da Alemanha
Em 22 de agosto de 1939, dez dias antes de a Alemanha invadir a Polônia, Hitler convocou alguns generais e almirantes para uma reunião em seu refúgio na Baviera. Após passarem pelos postos de controle, os militares entraram no Berghof, o chalé alpino de Hitler, e se acomodaram em cadeiras na sala de espera. Uma janela panorâmica abaixou hidraulicamente, abrindo o recinto para uma paisagem dos Alpes tão imensa que os convidados pareciam suspensos no espaço. A distância, brilhava o relevo do Untersberg, protegendo a suposta sepultura de Carlos Magno. Hitler, inclinado sobre um piano de cauda, falava olhando de relance para as anotações em sua mão esquerda. 1
No fundo da sala, estava sentado um homem semelhante a um camundongo, nervoso e intenso, com olhos azuis penetrantes e tufos de cabelos brancos. Ele apanhou um bloco de papel e um lápis. Como chefe do serviço de inteligência militar alemão (Abwehr), o almirante Wilhelm Canaris podia tomar nota a respeito de instruções militares secretas alemãs. 2 Posteriormente, outras pessoas presentes confirmaram a enorme exatidão de sua transcrição, que se tornaria prova documental no tribunal de crimes de guerra de Nuremberg. 3
– Convoquei os senhores para lhes dar alguma ideia dos fatores em que me baseei para decidir agir. Ficou claro para mim que um conflito com a Polônia tinha de acontecer – afirmou Hitler.
A Alemanha só recuperaria sua honra, ou restauraria seu prestígio, se recuperasse todas as terras perdidas na última guerra. Portanto, Hitler decidira atacar. Embora os britânicos tivessem prometido proteger a Polônia, provavelmente não interviriam: “Nossos inimigos são kleine Würmchen [pequenos vermes].” Referindo-se ao apelo da Rádio Vaticano por conversações de paz, que o papa tinha feito em Roma naquela manhã, Hitler disse que se aborreceu com o fato de “que, no último instante, uns cães ainda me sugeriram um plano de mediação”. 4
Hitler falou por mais uma hora, apresentando detalhes operacionais, e, em seguida, todos foram almoçar. Após consumirem caviar no terraço, servido por oficiais da SS em uniformes de verão brancos como a neve, Hitler retomou a conversa de modo ainda mais fanático. Canaris voltou a fazer anotações. “Devemos assumir esse risco... Estamos diante de alternativas duras: atacar ou sofrer uma aniquilação certa... Oitenta milhões de pessoas devem obter o que é seu direito. Sua existência deve ser segura... O momento é favorável para uma solução. Assim, ataquemos!... Execução: dura e implacável! Fechem seus corações para a compaixão!” 5
O que Hitler disse a seguir chocou seus generais. Canaris não teve coragem de pôr no papel, mas o marechal de campo Fedor von Bock, tempos depois, confidenciou os detalhes a um colega. Unidades especiais da SS, Hitler revelou, extinguiriam a menor centelha de resistência polonesa, liquidando milhares de padres católicos. Como um dos coronéis de Von Bock relatou, Hitler afirmou “que os poloneses seriam tratados com severidade impiedosa após o fim da campanha... Ele não queria sobrecarregar o Exército com ‘liquidações’ derivadas de motivos políticos, mas tinha a SS para empreender a destruição da elite polonesa; isto é, acima de tudo, a destruição do clero polonês”. 6
“O vencedor não será posteriormente questionado se suas razões eram justas”, continuou a transcrição de Canaris. “O que importa não é ter o direito do nosso lado, mas sim a vontade de vencer.” Hitler terminou, afirmando: “Eu cumpri meu dever. Agora cumpram o seu.” 7
Seguiu-se um longo tempo do que Von Bock se lembrou como “silêncio glacial”. 8 Finalmente, Walther von Brauchitsch, comandante em chefe do Exército, afirmou: “Cavalheiros, regressem aos seus postos o mais breve possível.” Canaris fechou seu bloco de papel e começou a descer a montanha para voltar a Berlim. 9
Naquela noite, Hitler caminhou pelo terraço, contemplando o horizonte. “Um turquesa lúgubre coloriu o céu ao norte, virando primeiro violeta e, depois, vermelho como sangue”, recordou seu ajudante. “Inicialmente, achamos que devia ser um grande incêndio atrás da montanha Untersberg, mas, então, a incandescência cobriu todo o céu setentrional, como uma aurora boreal. Esse fenômeno é muito raro no sul da Alemanha. Fiquei muito comovido e disse a Hitler que aquilo pressagiava uma guerra sangrenta.” 10
“Se for para ser, quanto antes, melhor”, respondeu Hitler. “Não sei quanto tempo vou viver. Portanto, melhor um conflito agora... Basicamente, tudo depende de mim, de minha existência, por causa de meus talentos políticos. Provavelmente, o povo alemão jamais voltará a confiar em alguém como confia em mim. Assim, minha existência é um fator de grande valor, mas posso ser eliminado a qualquer momento.” 11 Hitler temia que “algum fanático armado com uma arma dotada de mira telescópica” atirasse nele. 12
Hitler não achava que um agressor agisse sozinho. Se suspeitasse que havia uma conspiração para derrubá-lo, ele disse ao seu auxiliar Martin Bormann, tomaria medidas urgentes contra a facção que suspeitava que patrocinaria um golpe. “Os fatores espirituais são decisivos”, afirmara Hitler em seu discurso naquele dia. 13 Nem burgueses, nem marxistas conseguiriam motivar os idealistas verdadeiros, fazendo-os arriscar suas vidas para matá-lo. Em vez disso, o maior perigo viria dos “assassinos estimulados pelos corvos de preto dos confessionários”. 14 Os “tolos” que se opunham a ele, disse Hitler, incluíam, “em particular, [os líderes] do catolicismo político”. 15 Se alguém tentasse um golpe de Estado, ele prometeu, “tiraria todos os líderes do catolicismo político de suas casas e os executaria”. 16
No dia seguinte, já em Berlim, Canaris refletiu em seu escritório do Abwehr. Enquanto seus bassês dormiam sobre um catre guarnecido com mantas, Canaris convertia suas anotações em resumo codificado a respeito dos comentários do Führer. Então, em reunião com seus colegas mais próximos, Canaris leu em voz alta os trechos fundamentais com sua característica pronúncia defeituosa do “s”. 17 Só então seus colegas perceberam o grau de seu desespero. “Ele ainda estava completamente horrorizado”, Hans Gisevius, oficial do Abwehr, escreveu. “Sua voz tremia enquanto ele lia. Canaris estava bastante consciente de que testemunhara uma cena monstruosa.” 18
Canaris odiava Hitler com o fervor de alguém que outrora o tinha amado. Hitler prometera preservar as tradições religiosas e militares da Alemanha, mas o que ofereceu foi uma zombaria pagã a respeito dos antigos ideais. 19 Canaris teve a epifania em 1938, quando Hitler afastou dois generais depois de criticar suas honras sexuais. 20 Em vez de renunciar em protesto, Canaris se agarrou ao seu posto como chefe da espionagem, dando aos inimigos conservadores de Hitler uma arma secreta para destruir o monstro que tinham ajudado a criar. 21 No comando de atividades secretas, a par de segredos de Estado, Canaris e seus companheiros estavam perfeitamente posicionados para prejudicar os nazistas. 22 Eles podiam atacar Hitler a partir de dentro. 23
Após Canaris ler suas anotações aos colegas, eles discutiram sobre o que fazer. Seu auxiliar Hans Oster quis vazar o texto da fala de Hitler. Talvez estimulasse os adversários do regime a um golpe de Estado capaz de preservar a paz. Se Londres e Paris reagissem rispidamente, os generais alemães talvez seguissem o conselho de Franz Halder, chefe do estado-maior, que tinha dito ao embaixador britânico em Berlim: “Temos de arrancar a mão de Hitler com um machado.” 24
Parecia merecer uma tentativa. Em 25 de agosto, Oster contrabandeou o documento para Alexander C. Kirk, encarregado de negócios da embaixada americana em Berlim, que disse: “Ah, tire isso daqui... Não quero me envolver.” 25 Então, Oster enviou uma cópia para um funcionário da embaixada britânica, mas o texto não assinado, escrito em papel comum, não o impressionou. Ao lidar com potências estrangeiras, Oster decidiu, os conspiradores deviam procurar algum imprimátur, algum selo de legitimidade, alguma maneira de garantir a boa vontade alemã.
Enquanto isso, Canaris buscou medidas mais efetivas. Ele se ligou a Ernst von Weizsäcker, secretário de Estado do Ministério das Relações Exteriores, que escreveu em seu diário após tomar conhecimento que a guerra se aproximava: “É uma ideia terrível que meu nome se associe a esse acontecimento, sem falar dos resultados imprevisíveis para a existência da Alemanha e de minha família.” 26 Em 30 de agosto, Weizsäcker se encontrou com Hitler na Chancelaria do Reich e implorou pela paz. Em seu bolso, levava uma pistola Luger, carregada com duas balas. Tempos depois, disse que teve a intenção de matar Hitler e, em seguida, se suicidar. Porém perdeu a coragem. 27 Como Weizsäcker disse ao intermediário de Canaris: “Lamento que não exista nada em minha formação que me habilite a matar um homem.” 28
Hitler deu ordem para atacar a Polônia em 24 horas. Hans Gisevius, oficial do Abwehr, dirigiu-se ao quartel-general, subiu correndo as escadas e topou com Canaris e outros oficiais descendo. Canaris deixou seus companheiros prosseguirem e levou Gisevius até um corredor. Engasgado com as lágrimas, Canaris afirmou: “Isso significa o fim da Alemanha.” 29
Em 1º de setembro de 1939, um milhão de soldados alemães ocuparam a Polônia. 30 Dois dias depois, Hitler embarcou num trem para inspecionar a linha de frente. Ali, seus seguidores fiéis começaram a liquidar o que ele tinha dado o nome de “fatores espirituais”, que podiam inspirar resistência. “Deixaremos os peixinhos de fora, mas os padres católicos devem ser todos mortos”, afirmou Reinhard Heydrich, chefe dos espiões da SS. 31
Canaris voou até a Polônia para protestar. Em 12 de setembro, alcançou Illnau, onde o trem de Hitler tinha parado, 32 e se encontrou com o general Wilhelm Keitel no vagão para reuniões. “Comentei que sabia que grandes execuções estavam planejadas na Polônia”, registrou Canaris, observando que “o clero era para ser exterminado.” “Esse é um assunto que já foi resolvido pelo Führer”, respondeu Keitel. 33
Então, o próprio Hitler entrou na reunião. 34 Uma testemunha, o tenente-coronel Erwin Lahousen, recordou que Hitler considerava “especialmente necessário eliminar o clero”. Lahousen acrescentou: “Não me lembro do termo exato que ele usou, mas não era ambíguo e significava ‘matar’.” 35 Para agilizar seus planos, Hitler colocaria a Polônia sob o controle de um amigo íntimo, o advogado Hans Frank. “A missão que lhe dou, Frank, é satânica”, ouviu Canaris por acaso Hitler dizer. “Outra pessoa para quem esses territórios fossem entregues perguntaria: ‘O que vamos construir?’ Eu perguntaria o contrário. Perguntaria: ‘O que vamos destruir?’” 36
Em pouco tempo, Canaris viu pessoalmente os resultados dessas ordens. Em 28 de setembro, percorreu as ruínas de Varsóvia, onde ratos consumiam cadáveres e a fumaça deixava o sol vermelho. 37 Um velho judeu, ao lado do corpo de sua mulher, gritava: “Deus não existe! Hitler e as bombas são os únicos deuses! Não há graça nem misericórdia no mundo!” 38 Do telhado de um estádio, Hitler observava sua artilharia bombardear a cidade, “e com os olhos esbugalhados, se transformou numa pessoa diferente. De repente, estava possuído pelo desejo de sangue”. 39 Canaris voltou ao seu alojamento e vomitou. 40 Um amigo revelou que ele retornou a Berlim “completamente destroçado”. 41
Naquela altura, Hitler tinha decidido invadir a França. “Por sua natureza, as revoluções podem ser aceleradas, mas não podem diminuir de velocidade”, refletiu um dos colegas de Canaris. “Tornava-se cada vez mais claro que, da mesma forma que um ciclista só não cai se continuar pedalando, Adolf Hitler só podia continuar no poder mediante a continuação da guerra.” 42 Com o ataque contra a França marcado para o final de outubro, aqueles que se opunham tinham uma janela de quatro semanas para deter as rodas da revolução. Em sua maioria, os generais “lutavam com unhas e dentes contra a campanha da França”, 43 recordou o general Dietrich von Choltitz, enquanto os destemidos entre eles desviavam tropas para realizar um golpe de Estado em Berlim. 44
Canaris apoiou o plano do golpe. Duas divisões de tanques ocupariam Berlim, enquanto sessenta comandos do Abwehr atacariam a Chancelaria. Embora a ordem determinasse que Hitler “fosse rendido ileso”, 45 os comandos pretendiam matá-lo como um cachorro louco. 46 Os militares empossariam uma junta civil, marcariam eleições e abririam conversações de paz. Para dramatizar a mudança, os novos governantes suspenderiam o blecaute do tempo de guerra e as luzes se acenderiam em toda a Alemanha. 47
O plano apresentava obstáculos evidentes. Exigia o conhecimento da agenda e dos movimentos de Hitler, que ele próprio muitas vezes decidia no último minuto. Os generais, além disso, teriam de quebrar seus juramentos a Hitler e se sublevar contra a autoridade civil. Dificilmente tomariam uma ação tão sem precedentes se isso pudesse causar derrota e escravização. Afastariam Hitler só se os Aliados concordassem de antemão com uma paz justa.
A ligação de planos domésticos com forças estrangeiras impunha um desafio adicional. Nesse caso, os conspiradores encaravam um dilema duplo: convencer os Aliados de que eles falavam a verdade e impedir os nazistas de saber a verdade. Precisavam de credibilidade e precisavam de cobertura. Canaris achou a resposta para ambos os quebra-cabeças na pessoa do papa.
Canaris tinha visões românticas e fantasiosas a respeito da Igreja. Criado como evangélico, passou a admirar a religião Católica Apostólica Romana, sua organização, a força de sua fé. Ele tangenciava um vago misticismo, que o levou a frequentar catedrais góticas em reverência muda. 48 “Ele era muito influenciado pela Itália e pelo Vaticano”, recordou um colega, e “muitas de suas atividades conspiratórias remontam a essa influência.” 49 Segundo alguns relatos, o complexo de cruz e espada de Canaris datava da Primeira Guerra Mundial, quando ele organizou uma missão secreta na Itália, na companhia de um padre. 50 Numa versão da história, ele teria escapado de uma cadeia italiana matando o capelão da prisão e vestindo sua batina. 51 Mas não foram essas associações talvez confusas que fizeram a cabeça de Canaris a respeito do papa. Sua decisão se baseou numa avaliação realista. 52
Canaris conhecia e confiava em Pacelli. Na década de 1920, quando o futuro papa era o “diplomata mais bem informado de Berlim”, 53 eles tinham compartilhado passeios a cavalo na propriedade de um amigo comum. Canaris admirava o realismo e a discrição de Pacelli, bem como sua aversão a Hitler. Se o papa se juntasse à conspiração, Canaris pensou, os conspiradores teriam, ao menos, uma audiência no Ocidente. Inversamente, se Pio fosse capaz de intermediar os termos da paz com antecedência, isso talvez estimulasse o Exército a derrubar o regime. 54
No final de setembro, Canaris resolveu aliciar Pio para a conspiração. No entanto, ele precisava criar um assunto sensível para discutir com o papa. Canaris não podia viajar ao Vaticano sem despertar suspeitas, mesmo se Pio concordasse em recebê-lo. Os conspiradores precisavam de um intermediá­rio, um “interceptor”. Como o Abwehr era adjunto das Forças Armadas prussianas dominadas por protestantes, os auxiliares de Canaris dificilmente saberiam onde procurar intermediários. Por acaso, porém, um dos contatos católicos do Abwehr em Munique descobriu o nome e, em seguida, o arquivo de um homem que pareceu nascido para a missão. 55