Capítulo 5
Alguém para matá-lo
Em 17 de outubro, Josef Müller
recebeu a resposta do papa. Monsenhor Ludwig Kaas, guardião da cripta do Vaticano, atualizou Müller, provavelmente numa taverna próxima da residência de verão de Pio.
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No dia seguinte, quando Müller voou de volta para Berlim com a resposta de Pio,
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sentiu o júbilo aflitivo do agente secreto bem-sucedido, levando uma boa notícia que não podia revelar para quase ninguém.
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Müller supôs que o pessoal do serviço de inteligência militar agiria com a devida discrição. Ele era um civil, e eles eram profissionais. Müller ficaria surpreso se soubesse que, em 20 de outubro, sexta-feira, um oficial do Abwehr compartilhou o segredo, registrando-o em forma escrita.
O major Helmuth Groscurth abriu seu cofre, retirou seus papéis e os espalhou sobre a mesa. Ele vinculou a célula Canaris-Oster a generais antinazistas; tinha conseguido explosivos para planos de assassinato; e transcreveu os resultados da missão de Müller, não a partir de qualquer compulsão teutônica de guarda de registros, mas sim por dois motivos considerados. Primeiro, os oficiais do serviço de inteligência militar eram treinados para registrar por escrito as informações dos contatos e armazená-las de forma segura para consulta, pois a memória de uma pessoa poderia pregar peças.
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Segundo, alguns conspiradores desejavam provar para a posteridade que existia uma Alemanha Decente, de modo que, se falhassem em assassinar Hitler, eles ainda teriam mostrado a possibilidade de combater a tirania. Portanto, na própria derrota, teriam achado uma maneira de vencer.
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“O papa está muito interessado e considera possível uma paz honrosa”, escreveu Groscurth. “Pessoalmente, garante que a Alemanha não será enganada como na floresta de Compiègne [onde um armistício pôs fim à Primeira Guerra Mundial]. Nessa proposta de paz, encontra-se a demanda categórica pelo afastamento de Hitler.”
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Naquela mesma sexta-feira, em sua residência de verão, Pio assinou sua primeira encíclica. Embora supostamente a tivesse finalizado em 8 de outubro, o jornal The
New York Times
veiculou em 18 de outubro que sua publicação fora adiada. O jornal não deu nenhuma explicação, mas seu correspondente aprofundou o artigo em 17 de outubro, exatamente quando Pio prometeu ajudar a resistência alemã. Um comentário do tempo de guerra de Josef Müller sugere que as ações secretas de Pio atrasaram, mudaram e, finalmente, silenciaram sua posição pública a respeito dos crimes nazistas.
Os conspiradores pediram ao papa que não protestasse. De acordo com um documento encontrado entre os papéis do presidente Franklin Roosevelt, os planejadores do golpe de Estado recomendaram com insistência que Pio “se abstivesse de fazer qualquer declaração pública contra os nazistas”,
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como Müller revelou a um diplomata americano, pois “isso tornaria os católicos alemães ainda mais suspeitos do que já eram e teria limitado muito sua liberdade de ação em seu trabalho de resistência”.
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No adiamento da divulgação da encíclica, Pio atenuou suas palavras. Diluiu ou excluiu frases criticando o “expansionismo desenfreado”, a concepção de “relações entre pessoas como uma luta” e o “regime de força”. Pio manteve a advertência de que, para propósitos de direitos humanos, “não há gentios nem judeus”.
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No entanto, essa foi a última vez que ele disse publicamente a palavra “judeus” durante a guerra.
No quartel-general do Abwehr, os mentores de Müller começaram a planejar o “show” do colaborador ligado ao Vaticano. No jargão da espionagem, um show significava o todo composto de duas metades: uma operação secreta e sua cobertura. Canaris encobriria os contatos do Vaticano de Müller como se fosse um projeto do Abwehr. Apesar do ataque iminente no front ocidental – naquela altura, adiado para novembro –, o objetivo não eram resultados rápidos, mas uma capacidade permanente sob uma capa de proteção. Os conspiradores não planejariam com base no acaso; ou melhor, eles planejariam apenas com base na falta de acaso. O nazismo era um problema que talvez levasse anos para ser solucionado, e, por mais tempo que isso levasse, o show devia ter alguma causa plausível para continuar.
A cobertura se basearia nas ideias preconcebidas do nazismo. Hitler via os italianos como aliados vacilantes, e os conspiradores tiraram proveito de seus receios. O Abwehr enviaria Müller a Roma para monitorar o movimento pacifista italiano. Ele fingiria ser um agente de alemães insatisfeitos, que procuravam a paz através de canais italianos. Isso lhe permitiria sondar ostensivamente italianos fofoqueiros por meio de funcionários do Vaticano bem informados. O Abwehr diria à Gestapo com antecedência que Müller estava fingindo ser um conspirador. Canaris poderia até enviar relatórios a respeito dos italianos irresponsáveis para Hitler. Sob todos os aspectos burocráticos, Müller ajudaria o esforço de guerra fingindo conversas a respeito da paz.
No entanto, ele só fingiria estar fingindo. Na realidade, ele seria o conspirador que estava fingindo ser. Seria um conspirador, coberto como espião, coberto como conspirador. Daria uma espécie de salto-mortal triplo sem mover um músculo.
Aquilo era típico de Canaris. Era seu movimento característico: o encobrimento à vista de todos. Ele usaria isso repetidamente, ainda que jamais da mesma maneira, para livrar os conspiradores de dificuldades. Os resultados até o último mês da guerra só podem ser descritos como mortalmente desafiadores. A eficácia da cobertura no caso de Müller parece evidente a partir de avaliação posterior da CIA, estimando que ele visitou o Vaticano ao menos 150 vezes para os pretensos assassinos durante os três primeiros anos da guerra, sempre com o consentimento do governo que ele buscava derrubar.
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Antes de voltar para Roma no final de outubro, Müller se reuniu com Canaris.
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Assim que entrou na sala do almirante, ele se sentiu em casa. Viu um antigo tapete persa, e, num canto, um bassê dormindo num catre. Sobre uma mesa do século XIX manchada de tinta, situava-se um modelo do cruzador ligeiro
Dresden
. Canaris lhe estendeu a mão, como se fosse um velho amigo, e pediu que Müller se sentasse.
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Eles conversaram a respeito de Hitler. Ainda que o Führer tivesse se atribuído o título de maior chefe militar de todos os tempos, para Canaris ele era “o maior criminoso de todos os tempos”. Canaris tinha advertido Hitler expressamente de que as potências ocidentais ficariam do lado da Polônia, mas Hitler começara a guerra independentemente disso.
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Pior ainda, ele estava planejando uma
Blitzkrieg
contra a Holanda, a Bélgica e a França. O desprezo de Hitler pelo direito internacional, observou Canaris, equivalia a uma negligência criminosa.
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Mas tudo isso diminuía em importância, afirmou o almirante, diante do que acontecia na Polônia.
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Todas as províncias se defrontavam com a devastação empreendida por uma ralé que se assemelhava aos corvos que acompanhavam a marcha de qualquer exército. Como um bando de piratas, a SS agia sob nenhuma autoridade reconhecida pela lei. Mas, claramente, o partido e, sobretudo, Hitler estimulavam e patrocinavam isso.
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Canaris sabia disso por meio de seus espiões no sistema de segurança do partido. O investigador criminal chefe da Gestapo, Arthur Nebe,
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com crise de consciência, entregara diversos relatórios secretos.
Portanto, Canaris sabia a respeito das ações planejadas contra a Igreja – não só na Alemanha, mas também em Roma. Quatro organizações distintas competiam para espionar o papa, seu círculo íntimo de conselheiros e a Secretaria de Estado da Santa Sé. O governo do Reich tinha quebrado os códigos diplomáticos papais,
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e as instituições religiosas de Roma estavam repletas de informantes.
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Canaris prometeu fornecer provas, para demonstrar sua disposição de ajudar o papa.
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Em seguida, o almirante começou a discutir as missões futuras de Müller. Ele enfatizou três pontos. Primeiro, ele não queria que o trabalho secreto de Müller sobrecarregasse sua consciência. Müller só receberia ordens se ele se voluntariasse para a missão.
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Segundo, Müller pediria ao papa que fizesse contato somente com os britânicos. Para evitar todas as suspeitas que jogavam os Aliados uns contra os outros, os conspiradores só deviam negociar com um governo por vez. Se podiam ter apenas uma ligação, devia ser com Londres. Os ingleses eram diplomatas mais confiáveis. Ainda que negociadores tenazes, mantinham a palavra.
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Finalmente, Canaris pediu que Müller incluísse, em cada relatório de Roma, uma seção intitulada “Possibilidades atuais para a paz”. Só nessa seção, Müller faria referência codificada a respeito do afastamento de Hitler. Canaris separaria tudo escrito sob esse título e enviaria secretamente aos outros. Isso proporcionaria certa proteção se o relatório caísse alguma vez em mãos erradas.
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Então, Canaris falou com reverência a respeito de Pio.
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A reverência surpreendeu Müller, mas foi de seu agrado.
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Ele sentiu que Canaris e Oster, embora protestantes, consideravam o papa o cristão mais importante do mundo e depositavam nele uma confiança quase pueril. Procuravam o Santo Padre não só por apoio clandestino, mas por conforto e esperança.
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Canaris citou a advertência velada do papa a Hitler, veiculada uma semana antes do início da guerra: “Os impérios não baseados na paz não são abençoados por Deus. Os políticos divorciados da justiça traem aqueles que a desejam.”
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O almirante destacou essa sabedoria papal vertendo
Schnapps
em copinhos e propondo um brinde: “
Wir gedenken des Führers, uns zu entledigen!
” [Estamos pensando no Führer, para que possamos nos livrar dele!]
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A participação do papa nos planos de golpe de Estado deles excitou os conspiradores. Sobretudo na célula dos conspiradores civis, liderados pelo ex-prefeito de Leipzig Carl Goerdeler, a notícia provocou euforia. Goerdeler tinha preparado um discurso para transmitir pelo rádio ao povo alemão e havia começado a preencher cargos do gabinete de um governo paralelo. Müller considerou a excitação inadequada. Quando Oster lhe passou uma lista de ministros e secretários, ele a devolveu sem ler.
– Guarde isso, Hans – disse ele, suspirando. – Se tivermos êxito, teremos mais ministros e secretários de Estado do que o necessário. O que precisamos agora é de alguém para matá-lo.
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Não só permanecia o problema de quem mataria Hitler, mas também de como ele seria morto. As discussões giravam em torno da ética de assassiná-lo, aprisioná-lo, colocá-lo em julgamento ou declará-lo insano.
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Alguns conspiradores protestantes se opunham ao assassinato com base em motivos religiosos. Até generais e ex-generais, que tinham feito da violência sua profissão, opunham-se ao uso da força. “Em particular, os cristãos luteranos dentro da oposição militar se recusavam a apoiar o assassinato por motivos religiosos”, recordou Müller. “Eles se referiram a uma frase de são Paulo, que dizia que ‘toda autoridade emana de Deus’; assim, ele [Hitler] podia, portanto, exigir obediência.”
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Baseando suas alegações predominantemente em Romanos 13, Martinho Lutero e João Calvino discorreram contra a resistência aos governantes.
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“Prefiro tolerar um príncipe que se porta mal do que pessoas que fazem o bem”, escreveu Lutero.
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Como ele disse: “A desobediência é um pecado maior que o assassinato.”
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Os católicos se inspiravam numa tradição distinta. Seguindo Tomás de Aquino, os teólogos jesuítas consideraram a violência política não só admissível de vez em quando, como até necessária.
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“Só uma coisa é proibida ao povo”, escreveu o jesuíta francês Jean Boucher em 1594, “a saber, aceitar um rei herético.”
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Nesses casos, afirmou o jesuíta espanhol Martin Anton Delrio, o cristão deve “converter o sangue do rei numa libação para Deus”.
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Com certa lógica, então, os conspiradores procuraram Roma em busca de sanção moral e acharam nos católicos laicos seus assassinos. Os católicos iriam aonde os protestantes temiam pisar.
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Assim, um contato do Abwehr pediu a Müller que buscasse a bênção formal do papa para o tiranicídio.
Müller sabia que o Vaticano não funcionava dessa maneira. Ele dissuadiu seus colaboradores protestantes de suas expectativas de que o papa endossaria diretamente a violência. Preocupado, como disse tempos depois, a respeito do “uso impróprio da autoridade e posição papal”,
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ele considerou o tiranicídio “uma questão de consciência individual”. Pressionado a responder se falaria do problema com seu confessor, Müller afirmou que preferia matar Hitler como se ele fosse um cachorro louco e deixar o assunto esfriar.
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Enquanto isso, um importante general católico pareceu pronto para se associar aos conspiradores. Sabendo que o comandante em chefe e o chefe do estado-maior do Exército se opunham ao ataque planejado no front ocidental, o coronel-general Ritter von Leeb assegurou-lhes: “Nos próximos dias, estarei preparado para apoiá-los pessoal e completamente e para encaminhar toda conclusão necessária e desejada.”
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No entanto, como o devoto Leeb tinha certa vez afrontado publicamente Alfred Rosenberg, o apóstolo nazista do anticristianismo, Himmler tinha posto Leeb sob vigilância da SS. Essa vigilância impediu os conspiradores de colocar Leeb em seus planos.
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Não obstante, no final de outubro, a dinâmica prenunciava um golpe de Estado. O clero católico alemão, que conhecia Müller, começou a murmurar a respeito da iminente morte de Hitler. Em 24 de outubro, após um longo telefonema para a casa de Müller, o abade beneditino Corbinian Hofmeister disse a um padre amigo que a guerra terminaria perto do Natal, pois uma poderosa conspiração militar teria naquela altura livrado o país de Hitler.
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No final do mês, um conspirador católico do Ministério das Relações Exteriores, o doutor Erich Kordt, tinha decidido matar Hitler.
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A decisão conscienciosa de Kordt se originou de um comentário de improviso. “Se pelo menos [os generais] não tivessem feito um juramento os vinculando à vida de Hitler”, especulou Oster quando eles saíram de um encontro secreto.
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Ocorreu a Kordt que a morte de Hitler liberaria os generais de seu juramento. Ele não compartilhava as perplexidades de seus amigos protestantes acerca do tiranicídio.
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Uma frase de Tomás de Aquino virou seu lema: “Quando não há remédio, aquele que libera seu país de um tirano merece o maior aplauso.”
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Em 1º de novembro, Kordt continuava conversando com Oster. “Não temos ninguém para lançar uma bomba e liberar nossos generais de seus escrúpulos”, lamentou Oster. Kordt afirmou que ele tinha vindo pedir a bomba para Oster. Como assistente de Joachim von Ribbentrop, ministro das Relações Exteriores, Kordt tinha acesso à antessala de Hitler. Ele conhecia o hábito de Hitler de sair para saudar os visitantes ou dar ordens.
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Oster prometeu lhe entregar o explosivo em 11 de novembro. Hitler tinha programado seu ataque no front ocidental para o dia 12. Kordt começou a visitar a Chancelaria inventando pretextos, para acostumar os guardas com sua presença.
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