Capítulo 9
O relatório X
Após meses de diplomacia por meios
indiretos de comunicação, Pio tinha ligado os inimigos internos e externos do Reich. Em março de 1940, ele arbitrou a discussão. Cada lado fez sete propostas.
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As negociações se desenvolveram em atmosfera tensa, pois Hitler podia atacar no front ocidental a qualquer momento.
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O papa estabeleceu uma complexa cadeia de comunicações. Oster apresentou perguntas que exigiam respostas sim ou não para Müller, que as passava para Pio, que as compartilhava com Osborne, que as telegrafava para Londres. As respostas britânicas retornavam no sentido inverso. O Vaticano continuou sendo o cruzamento na conspiração para assassinar Hitler: todos os caminhos realmente levavam a Roma, para a mesa com um simples crucifixo contemplando do alto as fontes na Praça de São Pedro.
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Como “interceptores”, Pio contava com seus auxiliares mais próximos. O padre Leiber administrava o canal alemão, encontrando-se com Müller no terraço do Colégio dos Jesuítas ou em obscuras igrejas romanas.
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Em geral, Leiber lhe transmitia mensagens orais. No entanto, quando Leiber se encontrava com o papa tarde da noite, e Müller precisava partir no dia seguinte, Leiber deixava anotações numa folha de papel de um bloco, com as iniciais “R.L.” (Robert Leiber), no hotel em que Müller estava.
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Essa prática não punha em risco o jesuíta. Na maior parte dos casos, ele conseguia sintetizar as respostas britânicas em respostas breves, sob os títulos numerados das perguntas alemãs, e Müller queimava as mensagens depois da leitura.
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Monsenhor Kaas cuidava do lado britânico. Seu apartamento ficava ao lado do apartamento do embaixador Osborne, nos jardins do Vaticano, e, assim, eles podiam se encontrar sem grande temor de detecção. No final de fevereiro, eles iniciaram conversações diretas.
Kaas destacou um ponto como muito importante. Se, após a eliminação de Hitler, os conspiradores aceitarem condições de paz humilhantes, a posição deles será precária. Osborne registrou: “A eliminação do
furor Germanicus
do hitlerismo deixará particularmente entre a geração mais jovem e inquieta um vácuo espiritual, que terá de ser preenchido para que outra explosão seja evitada.” Como princípio de ordem alternativo, o Vaticano propôs a unificação europeia. Uma federação econômica, Kaas sustentou, impediria autocracias, patriotismo exacerbado, agressão e guerra.
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Em Londres, algumas autoridades permaneciam céticas. Em 28 de fevereiro, Alexander Cadogan, subsecretário do Foreign Office, criticou severamente a “história ridícula e velha de uma oposição alemã pronta para derrubar Hitler; se formos fiadores, não ‘obteremos vantagem’”. Ele disse que era “a centésima vez, mais ou menos”, que ouvia aquela história.
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Quatro dias depois, o Foreign Office advertiu contra outro episódio semelhante ao ocorrido em Venlo: “Temos motivos para acreditar que a Gestapo tem monsenhor Kaas sob controle.”
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Londres enviou a Osborne um aviso superconfidencial de que o monsenhor talvez estivesse sujeito à influência nazista por meio dos seminaristas alemães em Roma.
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“Conheço monsenhor Kaas muito bem”, respondeu o embaixador, e “resta pouca dúvida de que ele é firmemente antinazista”. Para Osborne, Kaas, pelo fato de administrar a Basílica de São Pedro, não dispunha de tempo para ver seminaristas alemães, que não pareciam em nada com espiões: “Eles andam vestidos com o escarlate mais brilhante possível, da cabeça aos pés, o que não condiz com o trabalho de agentes secretos.”
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Pio recebeu os termos finais de Londres em 10 ou 11 de março.
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Entre as condições que os britânicos exigiam para negociar com a Alemanha pós-Hitler, incluía-se uma
conditio sine qua non
: “a eliminação do regime nacional-socialista”.
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Leiber entregou a Müller um resumo de página inteira num papel de carta do Vaticano, assinalado com a marca-d’água “P.M.”, de “
Pontifex Maximus
”, e, no canto superior esquerdo, o símbolo de um peixe, uma referência a são Pedro, que foi pescador.
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A expectativa de Leiber era de que Müller queimasse aquela folha de papel após fazer anotações codificadas em taquigrafia do conteúdo. No entanto, Müller achou que todo o plano dependeria do impacto que as condições britânicas causariam na Alemanha. Acreditando que o futuro do mundo estava em jogo, Müller tomou a decisão de conservar o documento com marca-d’água, em vez de queimá-lo. Em 14 de março, aproximadamente, ele levou as anotações do papa, junto com o cartão de visita de Leiber, até o quartel-general do Abwehr, onde os aspirantes a assassino de Hitler exultaram.
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Müller considerou aquele momento o clímax de suas tramas com o Vaticano.
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– Sua folha de papel [
Zettel
] foi muito útil para mim – disse Müller a Leiber, em sua viagem seguinte a Roma. O jesuíta irritou-se.
– Mas você me prometeu que iria destruí-la – protestou Leiber, exigindo sua devolução. Müller revelou que tinha repassado a folha de papel e não tinha mais controle em relação a ela. Por causa daquele material, Müller afirmou, ele se sentiu mais otimista acerca do impacto em Berlim: “Os resultados da mediação são considerados como mais favoráveis na Alemanha.” O golpe poderia acontecer já em meados de março. Müller pareceu tão positivo que Leiber se acalmou. O papa e os poucos funcionários do Vaticano que estavam a par de tudo sossegaram e esperaram.
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Os conspiradores prepararam um pacote da ação final para os generais. A folha de papel única do padre Leiber e uma apresentação oral não seriam suficientes para o estratagema decisivo. Uma tentativa final para instigar os militares à rebelião merecia um relatório final abrangendo toda a operação.
O documento surgiu de um esforço frenético que atravessou toda a noite. Müller se refugiou na casa de Hans von Dohnanyi, auxiliar de Oster. No quarto de hóspedes, Müller espalhou os resultados das manobras do papa na cama normalmente reservada para o cunhado de Dohnanyi, o pastor evangélico Dietrich Bonhoeffer. Além da folha de papel do padre Leiber, Müller tinha anotações próprias codificadas em taquigrafia segundo o sistema Gabelsberger, assim como uma pilha de anotações de Dohnanyi. Dohnanyi ditou um relatório para sua mulher até tarde da noite. Na manhã seguinte, Müller revisou o resultado, que totalizou cerca de doze páginas datilografadas.
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Por motivos de segurança, o documento não tinha título, data e assinatura, referindo-se a Müller apenas como “
Herr
X”. Entre os conspiradores, o documento ficou conhecido como “Relatório X”. Ele descrevia as condições britânicas para as conversações de paz com “a Alemanha Decente”.
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Eram sete: (1) afastamento de Hitler; (2) “Estado de direito” na Alemanha; (3) nenhuma guerra no front ocidental; (4) a Áustria fica com a Alemanha; (5) a Polônia é liberada; (6) outros territórios se autodeterminam por meio de plebiscito; e (7) um armistício por intermédio do papa.
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Posteriormente, as entrelinhas dessas condições tornaram-se assunto de discussão: Moscou alegaria, por exemplo, que o relatório continha um acordo vaticano-anglo-alemão para abrir caminho a um ataque contra a União Soviética.
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No entanto, num ponto, todos que tiveram acesso ao relatório concordaram. O papa, como um leitor observou, tinha “ido espantosamente longe” para ajudar os conspiradores.
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Pio tinha persuadido Londres a se reunir com os conspiradores e protegido os termos britânicos com o manto de sua autoridade. O papa trouxera o plano até a margem da ação. O general Halder começou a esconder uma pistola no bolso quando avistou Hitler.
Contudo, no final de março, Hitler ainda continuava vivo. Em 27 de março, Osborne viu Kaas, cujos “contatos militares alemães parecem ter abandonado seus planos de paz por enquanto”, registrou o embaixador. Um Kaas desanimado retratou seus compatriotas como muito obedientes para organizar uma revolta.
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Três dias depois, o papa convocou Osborne. Quando o embaixador quis saber se Sua Santidade tinha alguma informação a respeito dos conspiradores, o pontífice afirmou que não sabia de nada desde que retransmitiu os termos finais britânicos, cerca de vinte dias antes. Pio disse que percebia que Londres tinha começado a perder a esperança. Osborne admitiu que apenas o afastamento de Hitler poderia agora assegurar “a confiabilidade dos chefes alemães”. Porém insistiu que Londres “sempre receberia com interesse, e trataria com respeito” quaisquer mensagens que os conspiradores enviassem através dos canais do Vaticano. Osborne sentiu que Pio “estava muito decepcionado”.
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Durante o encontro, Osborne recebeu uma mensagem de Halifax. Ele a transmitiu para Pio, que pareceu “muito satisfeito”, e pediu que Osborne enviasse seus votos de felicidade e agradecimentos.
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Essa anotação, talvez destruída posteriormente a pedido do Vaticano, pode ter simplesmente repetido a disposição de Londres de negociar com os militares alemães após a morte de Hitler. Três dias depois, exatamente uma garantia assim chegou aos conspiradores por intermédio de Müller.
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No momento decisivo, porém, os conspiradores de religião protestante hesitaram. Os escrúpulos cristãos tocavam seus corações, mas detinham suas mãos. Halder, chefe do estado-maior, tocou na pistola em seu bolso, mas, “como cristão”, não foi capaz de atirar contra um homem desarmado.
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Para abrandar as restrições luteranas, Müller pediu ao ex-príncipe herdeiro saxão Georg Sachsens, agora um padre jesuíta, para falar com Halder. Sachsens, conhecido por bater os calcanhares diante da hóstia da comunhão, enfatizou o direito moral cristão à rebelião e pareceu incutir alguma coragem no general. Após repelir abordagens iniciais, Halder finalmente concordou em ler o Relatório X.
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Então, um problema ocorreu com quem traria e resumiria o texto. Os conspiradores escolheram primeiro Ulrich von Hassell, ex-embaixador alemão em Roma, que tomou conhecimento dos planos do golpe antes da guerra. Em 16 de março, como escreveu em seu diário, Hassell viu “papéis muito interessantes a respeito de conversas de um agente secreto católico com o papa... Naturalmente, a suposição geral é uma mudança de regime e um compromisso com a moralidade cristã”.
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No entanto, Hassell, naquele momento, ficou sujeito à desconfiança da SS, e os conspiradores tiveram de deixá-lo de lado.
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Então, a missão de influenciar Halder coube ao general Georg Thomas. Em 4 de abril, Thomas levou os documentos para Halder.
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Naquela altura, o pacote incluía uma declaração do Vaticano de que os britânicos aderiram aos seus termos e também um memorando de Dohnanyi destacando a necessidade de dissociar o Exército dos crimes da SS.
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Todo esse material excitou a curiosidade de Halder, mas o deixou confuso. O relatório lhe pareceu prolixo e mesmo assim vago nos pontos principais. Ele se sentiu incapaz de avaliar a credibilidade das figuras alemãs envolvidas, pois o relatório não as identificava, nem seu “interceptor” ligado ao Vaticano, “
Herr
X”.
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Contudo, Halder considerou que o Relatório X merecia atenção. Ele o levou ao seu superior, Walther von Brauchitsch, comandante em chefe do Exército, e lhe pediu que o lesse durante a noite.
Na manhã seguinte, Halder encontrou seu chefe de mau humor. “Você não devia ter mostrado isso para mim”, afirmou Brauchitsch, devolvendo o relatório. “Estamos em guerra. Em tempo de paz, aquele que estabelece contato com uma potência estrangeira pode ser levado em consideração. Na guerra, isso é impossível para um soldado.” Apontando o Relatório X, Brauchitsch prosseguiu: “O que encaramos aqui é traição nacional pura [
Landesverrat
].” Como Halder se recorda, Brauchitsch “então exigiu que eu prendesse o homem que tinha trazido aquele documento... Na mesma hora, respondi-lhe: ‘Se alguém deve ser preso, então, por favor, me prenda’”.
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Brauchitsch ficou calado, pensativo. Olhando para o Relatório X, suspirou: “O que vou fazer com esse pedaço de papel [
Fetzen
], que está sem data e sem assinatura?”
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Após algumas lamúrias, ele e Halder decidiram estudar o material do Vaticano por mais dez dias.
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Nesse período, porém, as perspectivas para a ação mudaram drasticamente.
Durante alguns meses, Hitler tinha planejado invadir a Noruega. Prevendo uma guerra longa contra os Aliados, sobretudo após a invasão da França, Hitler quis assegurar acesso aos metais escandinavos e a outros recursos estratégicos antes dos britânicos. A nascente crise norueguesa concedeu aos planejadores do golpe uma nova oportunidade:
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uma advertência aos Aliados talvez estimulasse uma demonstração britânica da força naval que poderia deter Hitler ou lhe impor uma derrota. Assim, Zé Boi avisou ao papa acerca dos planos de Hitler por meio de uma ligação telefônica protegida a monsenhor Johannes Schönhöffer.
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No final de março, Kaas advertiu Osborne a respeito de um possível ataque alemão contra a Noruega, e Osborne retransmitiu a informação para Londres.
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No entanto, os ingleses só responderam em 9 de abril, quando Hitler atacou.
No quartel-general do Abwehr, Josef Müller e outros estudaram um mapa do mar do Norte. Fizeram apostas entre eles quanto a exatamente onde a frota britânica afundaria os navios alemães. Canaris, porém, previu que os britânicos só arriscariam sua frota quando um momento existencialmente crítico chegasse. Os acontecimentos confirmaram a previsão de Canaris: os ingleses não reagiram com força total.
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A popularidade de Hitler disparou. Ele tinha conquistado outra vitória quase sem nenhum custo evidente. Os generais veteranos que tinham rejeitado Hitler, considerando-o um cabo da Boêmia, começaram a rever suas opiniões. Halder se apavorou e se enredou numa rede pegajosa de desconfianças. Em meados de abril, ele devolveu o Relatório X ao general Thomas sem comentários.
Por volta dessa época, um desanimado Müller voltou para Roma. Os generais, disse ele, careciam da vontade de dar um golpe de Estado. “Tudo estava pronto”, disse ao padre Leiber. “Outro dia sentei-me à mesa às cinco da tarde e esperei por uma ligação. Em vão.”
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A notícia decepcionou Pio. Meses de intrigas não tinham produzido nada.
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No entanto, nos últimos dias antes que Hitler finalmente atacasse no front ocidental, os conspiradores arriscaram uma nova e destemida missão para restabelecer a confiança do Santo Padre.