Capítulo 13
O Comitê
As origens da rede de espionagem
bávaro-jesuíta – e suas ligações com Pacelli – remontavam aos primeiros anos do Reich. O sistema cresceu a partir do acervo de informações secretas de Josef Müller em Munique.
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O padre Rösch, que duelava diariamente com a SS a respeito de prerrogativas da Igreja, informara Müller a respeito dos planos nazistas, e Müller transportara pelo ar os relatórios de Rösch para Roma.
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Portanto, no Natal de 1940, quando o local da resistência católica se mudou de Roma para a Alemanha, uma fonte de informações secreta e segura já ligava Pio às ordens religiosas do Reich.
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Essa mudança deveria ter significado maior dependência em relação à nunciatura de Berlim. No entanto, Pio considerava seu agente em Berlim tolerante em relação ao nazismo, e até suspeitava que o auxiliar do núncio espionava para a SS. Portanto, o papa recorreu aos bispos alemães. Mas os espiões de Albert Hartl também tinham se infiltrado no episcopado, obtendo até minutas de suas conferências a portas fechadas, em Fulda.
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Restava uma opção. Os ramos alemães das ordens religiosas católicas, tais como a dos jesuítas, a dos dominicanos e a dos beneditinos, atuariam como representantes papais. Essas ordens não se subordinariam aos bispos locais, mas sim aos líderes das ordens religiosas em Roma – que, por sua vez, respondiam somente ao papa.
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Ainda que os beneditinos parecessem suscetíveis à cooptação nazista, os dominicanos e, em especial, os jesuítas demonstravam um espírito marcial.
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Rotulados de “inimigos do Reich”, eles temiam a deportação para o Leste. De suas fileiras, surgiu um grupo mais jovem e mais combativo de clérigos, que aceitou aquilo que o Vaticano denominou, no título de um texto a respeito do martírio,
Convite ao heroísmo
.
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Eles aceitaram esse convite numa reunião a portas fechadas, em Berlim. Em 26 de maio de 1941, a liderança dos jesuítas e dominicanos alemães comprometeu-se “a preservar nossa honra católica, perante nossas consciências, perante o povo, a história, a Igreja e o Nosso Senhor”.
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Nesse espírito, criaram um grupo de sete homens, oficialmente inexistente, mas que apenas serviu para encobrir um “serviço de inteligência da Igreja” [
kirchliche Nachrichtenwesen
].
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Entre eles, chamaram isso de Comitê das Ordens, ou, simplesmente, o Comitê.
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O padre Rösch era a força motora do Comitê. Ele viajava através da Alemanha, organizando um serviço de envio de mensagens entre os bispos, transmitindo alertas, aconselhando a respeito de contramedidas e criando um grupo de homens com ideias afins.
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Eles tomavam conhecimento dos planos nazistas a partir de secretárias, telefonistas, servidores públicos, oficiais militares e até membros da Gestapo. O serviço de inteligência se reunia no provincialado jesuíta de Munique. Depois que Rösch se ligou a Moltke, seus padres trabalharam conjuntamente com os conspiradores militares.
Os agentes do Comitê trabalhavam por meio de camuflagem e disfarce. Recebiam dispensas especiais para usar trajes não clericais e viver, se necessário, “além das regras da ordem”. O mensageiro dominicano, padre Odlio Braun, ocultava sua batina sob um guarda-pó de cor clara; os jesuítas usavam casacos de lã cinza-escuro. Alguns agentes mantinham em segredo segundas residências; Braun tinha um quarto na casa de uma amiga em Berlim, onde escondia documentos. Passaram a interpretar papéis para evitar detecção, como quando o mensageiro jesuíta, padre Lothar König, e a secretária de Braun, Anne Vogelsberg, passeavam sob um guarda-chuva na estação ferroviária de Berlim, fingindo ser namorados para burlar a vigilância da Gestapo. Ou Vogelsberg comprava uma passagem e guardava um assento para um padre do Comitê num trem prestes a partir, enquanto ele, para evitar viajar sob o próprio nome, simplesmente obtinha um passe para a plataforma; então, pouco antes de o trem partir, o padre embarcava, Vogelsberg desembarcava e eles trocavam os bilhetes discretamente quando se cruzavam no corredor. Quando os padres se correspondiam ou se falavam por telefone, faziam isso em código; referiam-se ao bispo Johannes Dietz, por exemplo, como “
Tante Johanna
” [tia Joana].
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Rösch definia a estratégia, mas deixava a maior parte das operações táticas para um assistente-chave. Seu secretário e mensageiro, padre König, tornou-se um intermediário decisivo entre os grupos de resistência em todo o Reich. Em fevereiro de 1941, König descobriu um câncer no estômago, mas recusou os pedidos de Rösch para descansar na paróquia, insistindo que “a luta vem em primeiro lugar”. Só naquele ano, ele viajou 77 mil quilômetros a serviço do Comitê, principalmente por meio de trens noturnos. Sua atitude gentil, apaziguadora, ocultava desejos nada clericais. Certa vez, enquanto König dirigia um caminhão, o comboio de Hitler o ultrapassou, e ele sentiu a pele arrepiar quando pensou a respeito de quanto mal ele evitaria se conseguisse atropelar Hitler.
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Rösch já tinha entrado em contato com os conspiradores militares em nome do papa. Já em abril de 1941, ele e seus jesuítas de Munique tinham começado a visitar o general Franz Halder,
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chefe do estado-maior da Wehrmacht. Eles discutiram como afastar Hitler, como Halder recordou, e se os métodos militares “seriam apropriados”. O sempre hesitante Halder afirmou que concordava com tudo que os jesuítas planejavam, nas não podia fazer nada sozinho; ninguém ao redor dele cooperaria. “Após essa observação desalentadora”, recorda-se Halder, “falamos acerca dos métodos que a Igreja católica tinha à disposição para a luta contra Hitler (...) Isso sempre ficou na minha memória, pois não conseguia conceber como aqueles dignitários espirituais podiam ser eficazes contra um ditador.”
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Em abril de 1942, o Comitê recrutou seu agente mais carismático e indispensável. Alfred Delp, noviço jesuíta, usava trajes seculares, terno e gravata, o que lhe dava uma aparência séria e desgrenhada, e ele raramente aparecia sem um cigarro na mão e uma espiral de fumaça ao redor da cabeça. Ele se tornou importante na resistência como uma espécie de tribuno do povo. Os paroquianos anotavam seus sermões de forma taquigráfica, compartilhando-os em folhas de papel dobradas até o tamanho de um dedal para escapar de detecção.
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Delp tinha o espírito de um livre-pensador. Antes de se converter do luteranismo, tinha flertado com o nazismo; suas raízes protestantes e seus interesses políticos lhe davam uma perspectiva única entre os jesuítas bávaros. Em seu primeiro livro, ele considerou os cristãos Lutero e Kant responsáveis pela “desintegração total da personalidade humana”; o ateu Nietzsche, por outro lado, havia preparado o caminho para novos desenvolvimentos cristãos. Delp achava, por exemplo, que as Igrejas tinham estimulado erradamente uma visão “coletivista” da democracia. Ele se entediava com questões e teorias, mas adorava discutir. Muitas vezes, Delp falava a respeito de são Pedro, vendo nele uma combinação de impetuosidade, fragilidade e confiança arrebatada – qualidades que definiam o próprio Delp e provocavam algumas dores de cabeça em seus superiores jesuítas.
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Seu jeito combativo incomodava alguns outros jesuítas, e até seus amigos o consideravam uma pessoa difícil. “Não deixe minha mãe contar quaisquer ‘lendas devotas’ a meu respeito”, escreveu ele a um amigo. “Eu era um moleque.” Quando o provincialado adiou seus votos finais, por motivos desconhecidos, as pessoas segredaram a respeito das amizades de Delp com mulheres. Um raro rebelde na organizada ordem jesuíta, ele encorajou seus contatos civis a agir contra Hitler. “Quem não tem coragem de fazer história está condenado a se tornar seu objeto. Temos de agir”,
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escreveu ele.
O Comitê das Ordens se manteve em contato próximo com o Vaticano. Josef Müller proporcionava a ligação principal. Seis dos sete clérigos do Comitê o utilizaram como mensageiro desde meados da década de 1930. A maior parte dos membros do grupo também tinha linhas próprias de comunicação com Roma. Em muitos casos, o padre Rösch utilizava seu colega jesuíta, padre Leiber, como meio de comunicação com o papa.
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O Vaticano tomava conhecimento por meio dessas fontes de informações acerca do trabalho do Comitê. O padre Rösch aceitou a oferta de Moltke só depois de “discutir isso com gente importante”,
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enquanto as cartas de Moltke faziam referência com alegria ao “grande hino de Roma em louvor de Rösch: ele era o homem mais forte do catolicismo na Alemanha”.
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Pio tinha um interesse mais do que casual no trabalho do Comitê. Em 30 de setembro de 1941, dois dias depois de o general Beck aprovar o “forjamento do ferro” ao longo das linhas católicas de Moltke, Pio forneceu ao Comitê orientação por escrito, pedindo a colaboração da Igreja com a resistência militar. Especificamente, a carta do papa encorajava o Comitê a buscar uma “unidade de convicções e ações” contra o nazismo por meio da “concentração de todas as forças”.
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Uma vez que a aliança Tresckow-Beck tinha acabado de convidar para participar do Comitê daquele projeto, a diretiva do papa chegou num momento fundamental. A julgar pelos acontecimentos posteriores, a carta do papa evidentemente não inibiu o Comitê de Rösch de conspirar para afastar Hitler.
No outono de 1941, durante uma audiência geral de quarta-feira com cerca de oitenta pessoas, incluindo soldados alemães, Pio recebeu um judeu alemão exilado. De acordo com um relato do tempo de guerra do jornal
Palestine Post
, de orientação sionista, um visitante não ariano pediu à Santa Sé que ajudasse judeus italianos, vítimas de naufrágio, a alcançar a Palestina. Após convidá-lo para voltar no dia seguinte com um relatório por escrito, Pio teria dito: “Você é um jovem judeu. Eu sei o que isso significa e espero que você sempre sinta orgulho de ser judeu!”
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Naquela altura, Pio tinha começado a se arrepender de não dizer tais palavras de maneira mais aberta. Em 7 de outubro, difundiram-se relatos a respeito de um capelão católico que celebrou uma missa na catedral de Santa Edwiges, em Berlim, com uma estrela amarela sobre seu paramento, exatamente como os judeus eram naquele momento obrigados a usar.
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Encontrando-se três dias depois com o diplomata papal Angelo Roncalli, o futuro papa João XXIII, Pio demonstrou preocupação com a possibilidade de seu “silêncio a respeito de o nazismo ser mal julgado”.
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Talvez por culpa ou frustração, então, Pio teria levantado a voz para o emissário judeu: “Meu filho, só Deus sabe se você tem mais valor que os outros, mas, acredite-me, você é, pelo menos, tão digno quanto qualquer outro ser humano que vive em nosso mundo.” De acordo com a imprensa, Pio encerrou o encontro, dizendo ao seu visitante: “Vá com a proteção do Senhor.”
Então, como depois de toda audiência, irmã Pascalina desinfetou o anel episcopal de Pio. Tinha um diamante nele, e podia puncionar sua pele quando as pessoas pressionavam seus dedos; “e havia um motivo particular para ser desinfetado”, afirmou tempos depois um postulador da santidade de Pio. “A saber, as pessoas pegavam sua mão com muita firmeza e pressionavam o anel, e, não raramente, o papa voltava ao seu aposento privado com sangue nas mãos.”
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O padre Rösch e Helmuth Moltke formavam uma boa equipe. De um início tranquilo em 1941, eles, em dezoito meses, levaram os acontecimentos a um clímax abalador. Nesse espaço de tempo, a segunda conspiração contra Hitler foi mais longe e mais rápido do que a primeira. Sem o serviço de inteligência de Rösch, a conspiração talvez não tivesse avançado.
O Comitê tornou-se a comissão de planejamento do pós-guerra dos conspiradores. Moltke decidiu reunir importantes pensadores sociais em Kreisau, em sua propriedade rural na Silésia, para redigir uma plataforma política. O padre Rösch concordou em moderar o diálogo e tentar obter consenso, muito como Alexander Hamilton fizera durante a Revolução Americana. Moltke, imerso nos
Federalist Papers
, estimulou o paralelo.
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Rösch se impôs a difícil tarefa de intermediar acordos em relação a todas as questões com antecedência. Como as preocupações de segurança impediam o uso do telefone e do contato postal, o padre König, secretário de Rösch, tornou-se um agente-chave, chegando e partindo de noite e em meio à neblina, nunca dizendo para onde ia ou de onde vinha, elevando os espíritos com máximas como “não existe essa coisa de eu não posso”.
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O padre König abriu uma nova fronteira de resistência, que prometia pela primeira vez atrair apoio das massas para um golpe. “Um grande problema, insolúvel até agora, é onde podemos achar nomes que tenham influência junto aos trabalhadores”, escreveu o conspirador Ulrich von Hassell em outubro de 1941.
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No final daquele mês, König tinha ligado as redes de Berlim e Munique com líderes do proscrito Movimento dos Trabalhadores Católicos de Stuttgart e Colônia.
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Os chefes trabalhistas, por sua vez, recrutaram figuras-chave do proscrito Partido do Centro Católico.
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Os planos avançaram tão sem percalços que, em novembro, Beck e o almirante Canaris aprovaram uma tentativa de diálogo com o presidente Roosevelt. Como canal, os conspiradores escolheram Louis Lochner, chefe da sucursal da Associated Press em Berlim. Ao encontrar uma dúzia de líderes da resistência na casa de um adepto do Partido do Centro, Lochner enxergou a conspiração quase como um evento social da Igreja; Jakob Kaiser, líder trabalhista católico, impressionou-o como a figura principal do círculo. Os conspiradores deram um código secreto para Lochner, de comunicação via rádio entre Roosevelt e o general Beck, e Lochner concordou em se aproximar da Casa Branca perto do Natal.
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Em dezembro, a dinâmica tinha levado a um ponto de convergência. Walther von Brauchitsch, comandante em chefe do Exército, inquieto com a perseguição aos judeus, começou a convocar os líderes da resistência para chás.
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Hasso von Etzdorf, oficial de ligação entre o Ministério das Relações Exteriores e o alto-comando, descreveu uma cena carregada durante aquele primeiro Natal da guerra contra a Rússia. Num discurso para oficiais, suboficiais e homens do quartel-general, Brauchitsch apontou para uma árvore de Natal no meio da praça e declarou: “Vocês terão de escolher entre esses dois símbolos: as chamas ardentes do fogo teutônico da época natalina ou a árvore de Natal luminosa. Para mim, escolhi o símbolo do cristianismo.” Em conclusão, ele pediu que a plateia “pensasse no homem sobre cujos ombros repousa toda a responsabilidade”. A insinuação não passou em branco. Houve gritos de “vergonhoso” e “o homem [Hitler] deve ser morto”.
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As peças em favor do golpe se encaixaram tão harmoniosamente que Müller enviou Charlotte Respondek, agente católica laica, ao padre Leiber, em Roma.
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Então, Oster chamou Müller a Berlim, para coordenar o papel do Vaticano na mudança do regime. Segundo um relato, não muito documentado, mas não implausível, Dohnanyi fizera planos para uma noite na Ópera, e, quando Müller chegou, ele rapidamente lhe conseguiu uma reserva. Quando deixaram o camarote, no intervalo, encontraram Oster no corredor. O coronel sugeriu que eles saíssem por um instante. Do lado de fora do teatro, onde os caminhos para pedestres eram cruzados por canteiros de roseiras secas, Oster disse que tinha acabado de receber uma notícia de um mensageiro do Abwehr: os japoneses tinham bombardeado a frota americana em Pearl Harbor.
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A entrada dos Estados Unidos na guerra tanto condenou quanto salvou Hitler. A longo prazo, como os conselheiros de Pio logo perceberam, o Eixo só podia perder. No entanto, a curto prazo, a resistência alemã não podia ganhar.
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A declaração de guerra de Hitler contra os Estados Unidos fez a Casa Branca rejeitar a aproximação de Lochner, recordou ele, considerando-a “muito embaraçosa”.
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A conspiração do Natal desmoronou. Já cambaleante por causa desse golpe, a resistência sofreu outro, em 19 de dezembro, quando Hitler culpou o cada vez mais oposicionista Brauchitsch pela ofensiva fracassada contra Moscou e o afastou do cargo de comandante em chefe.
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No entanto, aquelas perdas só por curto tempo debilitaram os conspiradores. Eles se recuperaram porque o padre Rösch replantou, em seus espíritos, “a imagem do homem”.
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Aconteceu entre 22 e 25 de maio de 1942, em Kreisau, na propriedade de Moltke na Silésia. No fim de semana de Pentecostes, os conspiradores viveram durante três dias no novo mundo que buscavam. Os 24 convidados de Moltke se lembrariam com unânime entusiasmo do cenário idílico: os lilases ao sol, as ovelhas e as beterrabas, as conversas até tarde da noite junto à lareira. A festa de Pentecostes estimulava o espírito de renovação, com a tradição do Espírito Santo surgindo, entre línguas de fogo, aos apóstolos reunidos secretamente em Jerusalém. Os conspiradores se viam como apóstolos modernos, numa nova Babilônia, e o padre Rösch os orientava. Ele lhes ensinou a maneira de resistir a um interrogatório, com base em suas mais de cem confrontações com a Gestapo. Ele ofereceu o simples conselho de “rezar para seu anjo da guarda”.
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Isso fixou o tom cristão primitivo que inspirou o fim de semana: o
éthos
das catacumbas, a pureza rejuvenescedora de um retorno às raízes. A mulher de Moltke escreveu a respeito do padre Rösch: “Realmente, nós nos sentimos totalmente renascidos por causa dele.”
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Rösch foi muito habilidoso e discreto para sugerir que ele se dirigiu ao papa. No entanto, o Vaticano coordenou e aprovou previamente a agenda de Kreisau, como os textos secretos de Moltke revelaram. Em 8 de maio, “um homem veio em nome de Rösch querendo saber diversas coisas; além disso, vindo de encontros com o papa [
Besprechungen beim Papst
]”, registrou Moltke, e “uma das principais perguntas de Roma era: ‘O que o senhor pode falar a respeito da questão da ordem econômica?’”.
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Moltke teve um dia inteiro de conversas, desde a manhã até a meia-noite, com o enviado do Vaticano, que ele identificou somente como “o desconhecido”. Por meio de Moltke, o desconhecido retransmitiu perguntas a respeito da ordem pós-Hitler ao bispo de Berlim, Konrad von Preysing;
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e por meio de Moltke, por sua vez, Preysing respondeu ao papa. No fim, fizeram “muito progresso”. Moltke pensou: “P[reysing] ficou evidentemente satisfeito, assim como eu.”
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O manifesto resultante da conferência, redigido pelo padre jesuíta Delp e editado por Rösch,
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estava estritamente em conformidade com o ensinamento social católico, como estabelecido na encíclica de Pio XI,
Quadragesimo anno
, de 1931, que Moltke admirava há muito tempo.
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Quando Rösch leu o manifesto para o grupo, causou impacto. Rejeitando grande quantidade do pensamento político que remontava ao século XIV, o documento denunciava o “endeusamento do Estado” [
Staatsvergöttung
] e lamentava sua progressiva expansão num “abraço de píton, que tivera êxito em exigir direitos sobre o homem inteiro”. Em oposição a esse monstro anônimo, Roma propôs um localismo comunitário, “o maior número possível das menores comunidades possíveis”.
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A
Christenschaft
, a união dos cristãos, se tornaria a unidade básica dessa nova ordem. A Alemanha retornaria à teoria do “Estado orgânico”, que tinha desaparecido com Carlos Magno.
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Rösch persuadiu os líderes da resistência protestantes e os chefes dos sindicatos socialistas de que esse modelo era apropriado para o futuro alemão. Quase como se o fogo pentecostal tivesse descido sobre suas cabeças, um romantismo reacionário se estabeleceu. Rösch transmitiu a visão de uma nova cristandade, construída sobre bases social-democráticas, em vez de feudo-militares; e essa nostalgia política alimentou a sensação de que a Reforma protestante foi um erro grave, pois o declínio da Igreja católica permitiu a ascensão do Estado absoluto. Embora fosse uma explicação algo monística da situação difícil da Alemanha, orientou os conspiradores em seu mundo arruinado. A energia que tinham dedicado antigamente a explicar Hitler podia ser dedicada agora a combatê-lo.
Rösch analisou o ponto de vista católico a respeito do tiranicídio. Tomás de Aquino tinha enfatizado que o afastamento de um tirano não deve provocar uma guerra civil.
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Nesse sentido, o grupo de Kreisau, criado exatamente para impedir a agitação após o afastamento de Hitler, legitimava a conspiração.
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“Havia conversas de que outro atentado contra a vida de Hitler tinha acontecido, do qual nada se tornara público”, recordou Rösch.
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Os conspiradores se comprometeram como irmãos na guerra e em Cristo. Quando o fim de semana se encerrou, selaram sua honra com uma insígnia secreta. Assim como os primeiros cristãos rabiscaram o símbolo do peixe nas catacumbas romanas, os membros do grupo de Kreisau se reconheceriam por um símbolo próprio: um círculo encerrando uma cruz. O círculo representava seu
Freundkreis
, o circuito fechado de amigos que confiavam uns nos outros com suas vidas. A cruz correspondia à crença em Cristo. Juntos, o círculo e a cruz, sua fé e sua amizade, formavam uma mira.
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O êxtase religioso de Kreisau reanimou a resistência. A conspiração avançou nos meses seguintes. No entanto, as realidades que abalaram os conspiradores tomaram forma assim que o Círculo se constituiu. Acontecimentos em Praga, exatamente do outro lado das montanhas que protegiam Kreisau, tinham, pela terceira vez, posto a SS no rastro das ligações dos conspiradores com o papa. Tendo escapado duas vezes antes, o grupo de Canaris, naquele momento, cometeu erros bobos que levaram alguns de seus membros, com o tempo, a porões de tortura e, finalmente, à morte na forca.