Capítulo 14
Conversas na cripta
Em julho de 1942, Josef Müller trouxe Dietrich Bonhoeffer a Roma para conversas com os auxiliares do papa. O diálogo visava a construir pontes e fechar lacunas inter-religiosas, de modo que os cristãos pudessem coordenar sua luta contra Hitler. Müller apresentou Bonhoeffer ao padre Leiber e a monsenhor Kaas, que, com sutileza, fizeram proselitismo, apresentando ao protestante a busca ao túmulo de Pedro. 1
As conversas na cripta evocaram a perspectiva de uma cristandade reconciliada. Bonhoeffer apreciou o ensinamento católico: a respeito da Igreja no mundo, a respeito de Cristo tomando forma nos acontecimentos correntes, a respeito do lugar da Igreja no vale da morte. Recomeçando de onde as conversas de Kreisau pararam, os participantes concordaram que a divisão entre protestantes e católicos tinha ido “muito além daquilo a que os reformadores tinham realmente aspirado”. O padre Leiber admitiu que a Igreja católica tinha “perdido algum equilíbrio quando perdeu o norte da Europa, pois, então, ficou sujeita à influência dos romances italianos acerca do amor entre mãe e filho, que criou todo o culto da Madona”. 2 Bonhoeffer, por seu lado, admitiu que os príncipes protestantes tinham se aproveitado da Reforma para confiscar os bens da Igreja. Ele ainda disse que os padres católicos, como celibatários, combatiam melhor Hitler, pois não tinham dependentes contra os quais os nazistas podiam se vingar. 3
O relatório de Müller a respeito dos diálogos na cripta influenciaram a resistência da Igreja na Alemanha. Uma declaração de missão revisada do Comitê destacou que os católicos deviam “agir em favor não só das Igrejas cristãs, em questões puramente sectárias, canônicas ou espirituais, mas sobretudo na defesa das pessoas como seres humanos”. 4 O padre Delp considerou essas palavras como um chamado para salvar a vida de pessoas não arianas. Ele escreveu na agenda aprovada pelo Vaticano para a segunda conferência de Kreisau, em outubro de 1942: “Restauração dos direitos humanos básicos (sobretudo dos judeus).” 5 Sua paróquia em Munique se tornou uma base na rota de fuga secreta para a Suíça. 6
Müller e outros integrantes do grupo de Canaris também estavam ajudando os judeus. Nos primeiros meses da guerra, seu círculo do Abwehr tinha conseguido levar o proeminente rabino ortodoxo Joseph Isaac Schneersohn, do movimento Chabad, de Varsóvia para o Brooklyn; 7 e, em 1942, Dietrich Bonhoeffer estava levando judeus para a Suíça por meio de uma operação especial do Abwehr, com o codinome U-7. Ansioso para salvar alguns conhecidos judeus, Canaris tinha dado a Hans von Dohnanyi a missão de supervisionar a fuga deles, sob o pretexto de que o Abwehr poderia utilizá-los como agentes, aparentemente para infiltração nos Estados Unidos. Müller e Wilhelm Schmidhuber, agente do Abwehr em Munique, arranjaram uma “ ratline ”, 8 ou seja, rota de fuga para os refugiados, que era agilizada por dólares que Schmidhuber contrabandeava para o apoio temporário aos judeus, e que utilizava uma rede de mosteiros que se espalhavam da Eslováquia à Itália. 9
No entanto, essa ratline podia se converter numa armadilha. 10 No Pentecostes de 1942, a alfândega alemã começou a descobrir o plano de resgate quando prendeu, na estação ferroviária de Praga, um operador do mercado paralelo de câmbio por troca ilegal de divisas. Ao inspecionar a pasta do homem, a polícia descobriu pedras preciosas. O suspeito confessou que Schmidhuber tinha lhe pedido que trouxesse as pedras preciosas e o dinheiro para acertar algumas pendências com judeus. 11 O inspetor-chefe da alfândega telefonou a um colega e lhe pediu que prendesse Schmidhuber em Munique. Mas o colega, que era simpatizante da resistência, telefonou para Schmidhuber e Müller. Eles avisaram Canaris de que uma avalanche estava caindo sobre eles. 12
Schmidhuber tinha lavado dinheiro para resgatar judeus. Dohnanyi tinha lhe pedido que contrabandeasse cem mil dólares para doze U-7 de Berlim, para quem Bonhoeffer tinha assegurado refúgio na Suíça. Schmidhuber, porém, tinha visto a chance de ganhar algum dinheiro como atividade paralela, colocando em risco o círculo mais amplo. Embora não tivesse conhecimento do papel do papa nas conspirações de assassinato, 13 Schmidhuber ajudou Pio a vazar os planos de guerra de Hitler – recebendo chamadas de Müller do hotel Flora e passando a Leiber os dados atualizados do ataque. 14 Se Schmidhuber falasse, Hans Oster advertiu Canaris, ele “poderia levar todos nós à forca facilmente”. 15
Enquanto isso, o drama dos judeus colocava Pio à beira do protesto. Em 20 de janeiro de 1942, Reinhard Heydrich, chefe dos espiões da SS, presidiu uma reunião no subúrbio berlinense de Wannsee, para planejar o extermínio do judaísmo europeu. 16 Cinco semanas depois, o padre Pirro Scavizzi relatou que os alemães tinham começado a exterminar populações inteiras. Como capelão militar da Ordem de Malta, Scavizzi tinha acompanhado um trem italiano convertido em hospital militar através da Polônia e da Rússia ocupadas, onde oficiais com a consciência pesada lhe contaram a respeito de “deportações para campos de concentração, dos quais, eles disseram, poucas pessoas voltam vivas (...) Nesses campos, milhares e milhares de pessoas são assassinadas sem qualquer processo judicial”. Perto de Auschwitz, os informantes do capelão revelaram que conseguiam sentir o cheiro nauseabundo da fumaça do crematório. 17 Scavizzi fez um relatório para o arcebispo de Cracóvia, que o mandou destruí-lo, com medo de que os alemães descobrissem o texto e “matassem todos os bispos e talvez outras pessoas”. 18 O padre obedeceu, mas primeiro fez uma cópia em segredo, para o papa tomar conhecimento. 19 Em 12 de maio, quando Scavizzi entregou o relatório, o padre afirmou tempos depois, Pio descontrolou-se, elevou as mãos ao céu e “chorou como uma criança”. 20
Naquele verão, o mundo ainda só tinha escutado rumores a respeito do genocídio, mas Pio tinha uma pilha de relatórios. 21 Da Eslováquia, o núncio Giuseppe Burzio telegrafou que oitenta mil judeus morreram na Polônia. Angelo Rotta, núncio em Budapeste, escreveu que os judeus eslovacos tinham “partido para uma morte certa”. Gerhard Riegner, representante do Congresso Mundial Judaico em Genebra, falou ao núncio em Berna a respeito dos judeus exterminados por “gás e injeções letais”. Mesmo Orsenigo, agente papal pró-Eixo em Berlim, considerou “hipóteses macabras” a respeito dos destinos dos deportados, acrescentando: “Todos os propósitos bem-intencionados de intervir em favor dos judeus são impossíveis.” 22 Os bispos holandeses, porém, divulgaram uma condenação pública; e os nazistas reagiram, deportando quarenta mil judeus holandeses. 23
A derrocada holandesa pôs Pio sob pressão. Certo anoitecer – provavelmente no final de julho ou começo de agosto de 1942 –, o padre Leiber entrou na cozinha dos aposentos papais e viu duas folhas de papel ostentando a escrita cursiva inconfundível do papa. 24 As páginas continham o protesto mais veemente do Vaticano até então contra a perseguição aos judeus. O papa planejava publicar o texto no L’Osservatore naquela mesma noite. No entanto, Leiber recomendou que Sua Santidade se lembrasse da carta pastoral dos bispos holandeses. Se o documento custou a vida de quarenta mil judeus, um protesto ainda mais veemente, de uma figura ainda mais proeminente, poderia custar a vida de um número muito maior de judeus. O papa agiria melhor mantendo silêncio público e fazendo tudo o que podia em segredo. Pio entregou as folhas de papel para Leiber, que as jogou na lareira da cozinha e as observou queimar. 25
No entanto, alguns meses depois, Pio protestou contra o genocídio. Em sua mensagem anual de Natal, denunciou “as muitas centenas de milhares de inocentes executados ou condenados à extinção lenta, às vezes simplesmente por causa de sua etnia”. 26 Embora não dissesse “judeu”, Pio utilizou uma palavra para “etnia” – stirpe – que os italianos usavam como eufemismo para judaísmo. 27 Embora achassem que Pio não fora longe o suficiente, os diplomatas dos Aliados não objetaram – ou pareceram não notar – que ele deixou de usar a palavra “judeu”. Em vez disso, reclamaram, como os documentos do Vaticano registraram, que ele não tinha “mencionado os nazistas” pelo nome. 28
Os nazistas reagiram como se isso tivesse ocorrido. Ribbentrop, ministro das Relações Exteriores alemão, telefonou ao embaixador Diego von Bergen em Roma. Uma análise do serviço de inteligência da SS a respeito do texto do papa considerou-o “um longo ataque a tudo que defendemos (...) Deus, ele afirma, considera todas as pessoas e raças merecedoras da mesma consideração. Nesse caso, ele está falando claramente em favor dos judeus (...) Na prática, ele está acusando o povo alemão de injustiça em relação aos judeus e fazendo o papel de porta-voz dos criminosos de guerra judeus”. 29 O pastor protestante François de Beaulieu, sargento operador de rádio em Zossen, foi preso por distribuir cópias clandestinas da mensagem natalina de Pio, em vez de destruí-la. Um tribunal militar acusou Beaulieu de difundir “documento subversivo e desmoralizante” e de “estar espiritualmente enfeitiçado por ambientes judaicos e ser favorável aos judeus”. Poupado da pena de morte mediante a intervenção de seus superiores, Beaulieu, posteriormente, discordou daqueles que disseram que Pio deveria ter feito um gesto mais corajoso. “Que utilidade teria se o papa tivesse se imolado na frente do Vaticano? O necessário era a revolta de todos os pastores protestantes e padres da Alemanha.” 30
No final de 1942, os planos para uma revolta cristã estavam ganhando força. A unidade inter-religiosa tornou-se um axioma operacional à medida que a política secreta do papa crescia gradualmente em Munique, Colônia e Berlim. As conversas na cripta continuaram para apoiar a expansão do Comitê. “A Igreja está obrigada a recuperar contato com seus círculos alienados cada vez maiores por meio de nosso pessoal integrado e orientado ideologicamente”, escreveu padre Delp. Marcando o novo ecumenismo que o inspirou a intermediar uma aliança entre líderes da resistência católicos e trabalhistas socialistas, ele ressaltou: “Devemos tentar coordenar as iniciativas de grupos extraeclesiásticos para a derrubada do sistema por forças suficientemente poderosas.” 31
Contudo, enquanto Delp coordenava essas forças, Canaris enfrentava um dilema moral. 32 Ao expor a ratline , Willy Schmidhuber pôs em perigo uma iniciativa capaz de salvar a vida de milhões de pessoas. Segundo alguns relatos, Oster encorajou Canaris a liquidar o não muito virtuoso Schmidhuber antes que ele os traísse. No entanto, Canaris recusou o pedido, assombrado pela sua cumplicidade posterior referente ao assassinato da revolucionária Rosa Luxemburgo, em 1919. 33 Em pânico, Schmidhuber fugiu para um hotel em Merano; 34 a polícia italiana o deportou para Munique algemado. 35
Naquele momento, a areia começou a escorrer na ampulheta. “As próximas oito semanas serão cheias de tensão, como nunca antes em nossas vidas”, escreveu Moltke para sua mulher, em 25 de outubro, quando suas reuniões com Müller e os jesuítas se tornaram bastante frequentes. “Estranho como uma infinidade de coisas depende subitamente de uma única decisão. São os poucos momentos em que um homem pode realmente contar na história do mundo.” 36