Capítulo 16
Duas garrafas de conhaque
“Por favor! Vamos! Acordem!” O padre jesuíta Alfred Delp dizia essas palavras em seus sermões do Advento, em 1942, e as falava com tanta fre­quência em sua vida diária que poderiam ter sido seu lema. Ele desejava uma “sacudida que chegasse ao coração e atingisse diretamente os ossos”, recordou um paroquiano. “Um despertar súbito. Algo que forçaria as pes­soas a acordar e recuperar o juízo.” 1
Na maior parte de 1942, os alemães procederam como sonâmbulos em relação a Hitler. Quando a Wehrmacht ocupou o Cáucaso, quando Rommel avançou na direção do Cairo, Hitler pareceu invencível. Então, no final do ano, tudo mudou. 2
Em Stalingrado, os tanques russos cercaram o VI Exército alemão. No Natal, a SS relatou murmúrios de descontentamento doméstico. Naquele momento, o alemão comum sentia que um recuo tinha começado e que não pararia nas fronteiras alemãs. 3
Os conspiradores perceberam a oportunidade. 4 O general de divisão Tresckow planejou atrair Hitler ao Grupo de Exércitos Centro, em Smolensk. 5 Ali, os conspiradores controlavam o terreno e podiam iludir melhor os guarda-costas de Rattenhuber. 6 O ajudante de Tresckow, Fabian von Schlabrendorff, visitou Berlim para entrar em contato com Oster e Müller e – por meio deles – com os Aliados, por intermédio do Vaticano. Um espião americano que conheceu Schlabrendorff durante a guerra o considerou “muito inteligente”, notando que, quando ele falava acerca de algo que o interessasse, seus olhos “cintilavam como os de uma cobra”. 7 Na vida civil, advogado, ele ganhou, na resistência, o codinome Der Schlager , ou seja, “assassino de aluguel”. 8
Oster reuniu os membros da resistência em sua sala e desenhou um círculo ao redor de Stalingrado, em seu mapa militar. Ele enviou um emissário para Tresckow, que falou da “prisão” de Hitler, eufemismo para assassiná-lo, quando ele visitasse Smolensk em breve. Pouco depois disso, Tresckow chegou a Berlim, com a informação de que o general Friedrich Olbricht, chefe do Escritório Geral do Exército, comprometeu-se a estabelecer uma organização militar secreta capaz de tomar o poder assim que Hitler morresse. 9
Os conspiradores civis se precipitaram para renovar seus planos. Em dezembro, Josef Müller e Helmuth Moltke passaram a se encontrar quase diariamente com os jesuítas de Munique. 10 Os padres do Comitê enxergaram a necessidade de uma coalizão política para fortalecer a aglutinante conspiração militar. Mas a resistência civil, sustentou padre Delp, tinha um problema considerável.
Seu nome era Carl Goerdeler. Reconhecidamente, ele não carecia de coragem ou carisma. Usando chapéu cinza-claro e um sobretudo amarrotado, carregando uma bengala retorcida, Goerdeler parecia um pregador itinerante e exibia um fervor missionário. 11 Em 1937, renunciou ao cargo de prefeito de Leipzig quando os nazistas destruíram a estátua do compositor judeu Felix Mendelssohn. Em 1939, Goerdeler até tinha escrito para Pacelli, pedindo-lhe ajuda para derrubar Hitler e Mussolini. 12
No entanto, como suposto chanceler da Alemanha Decente, Goerdeler era uma praga. Antigos líderes de sindicatos e partidos políticos proscritos o consideravam reacionário. Outros também o consideravam um risco à segurança. 13 Apresentando-se a Konrad Preysing, bispo de Berlim, Goerdeler disse, enquanto eles apertavam as mãos: “O regime nazista terá de ser erradicado.” 14 Michael Faulhaber, 15 cardeal de Munique, e Theodor Innitzer, 16 cardeal de Viena, relataram encontros semelhantes. Müller não acreditava que Goerdeler se manteria discreto o suficiente para que os conspiradores alcançassem os objetivos compartilhados. 17 Dessa maneira, Moltke e Delp tentaram manter os barões trabalhistas fora do campo de Goerdeler. 18
Contudo, Delp achava que Goerdeler ainda poderia se mostrar útil; até essencial. O grupo de Kreisau precisava desencadear uma centelha, incluindo uma liderança política unida e da confiança dos generais. 19 Como os generais confiavam em conservadores mais velhos, como Goerdeler, todos tiveram de aceitá-lo. 20 Delp havia trabalhado muito para provocar o golpe e efetivar o assassinato de Hitler, e não ia deixar aquela chance fugir. 21
Assim, encorajou e conseguiu uma abordagem diferente. Em um lance, a facção mais nova estendeu a mão para o grupo de Goerdeler e uniu forças contra ele. O padre dominicano Laurentius Siemer tornou-se o agente de ligação com Goerdeler, coordenando as células trabalhistas católicas em relação aos seus planos de golpe. 22 Enquanto isso, Delp negociou um pacto entre os chefes católicos e trabalhistas socialistas, de forma que Goerdeler se viu alinhado com forças que o sobrepujavam. 23 No fim, elas liderariam o líder.
Mas como eles o liderariam? Delp respondeu a essa pergunta em sua Declaração dos Ideais de Paz Alemães, que se alinhava com as doutrinas expostas por Churchill e Roosevelt na Carta do Atlântico, 24 de 1941. “A coragem de uma reviravolta interna na Alemanha” traria paz só se os Aliados não re­ceassem que os “elementos militaristas reacionários” ainda mandavam. Para neutralizar essa desconfiança, os alemães deviam aceitar “uma união igual de todos os Estados europeus” e restabelecer os “direitos humanos básicos, sobretudo dos judeus”. 25
Então, Delp encorajou um encontro para unir as forças civis. 26 Em 8 de janeiro de 1943, o grupo mais jovem de Moltke se reuniu com a facção mais velha de Beck, em Berlim. Delp ajudou a organizar a reunião na casa de Peter Yorck, conspirador do grupo de Kreisau, mas não compareceu. 27
Beck dirigiu o encontro e deixou a facção mais velha falar primeiro. Ulrich von Hassell, ex-embaixador alemão em Roma, lamentou que eles já tivessem esperado tanto tempo, e qualquer novo regime se tornaria “um síndico de massa falida”. Goerdeler manifestou otimismo e crença, e tentou evitar se aprofundar em questões controversas, que poderiam dificultar o consenso. 28 Recusando-se a caracterizar seus planos como assassinato ou golpe de Estado, Goerdeler sugeriu que eles atuassem sob a hipótese de que ele, Goerdeler, poderia convencer Hitler a renunciar. 29
Moltke e seu grupo mais jovem acharam Goerdeler evasivo e ingênuo. Eles queriam um arejamento crítico de ideias realistas: a respeito de Igreja e Estado, capitalismo e socialismo, ditadura e democracia. 30 O pastor protestante Eugen Gerstenmaier respondeu com severidade ao que ele posteriormente denominou “obscuridade pedagógica das questões” de Goerdeler. Moltke ofendeu os mais velhos, murmurando “Kerensky”, comparando Goer­deler implicitamente ao governante sem autoridade do qual V.I. Lênin se aproveitou e, depois, descartou durante a Revolução Russa. 31 Como Molt­ke confessou à sua mulher, no dia seguinte: “Disparei uma flecha envenenada que mantive em minha aljava por muito tempo.” 32
A unidade da facção mais jovem agiu de forma destemida. Adam von Trott zu Solz, funcionário do Ministério das Relações Exteriores, articulou o pleito de Delp em prol de uma Europa unida. Moltke encorajou a cooperação entre as Igrejas e os sindicatos nos termos que Delp tinha delineado. 33 O grupo mais jovem fez como queria. Como Moltke registrou: “O assunto terminou de forma dramática, mas, felizmente, não categórica.” Os participantes ratificaram a declaração de ideais de Delp em favor de um front civil unificado. O Círculo de Kreisau e o grupo de Beck-Goerdeler trabalharam como uma unidade com os conspiradores militares. 34 Consumindo sopa de ervilhas com fatias de pão, Beck afirmou, fatidicamente, que eles deviam avaliar o poder operacional de suas forças. 35 Todos concordaram em que um golpe de Estado deveria ocorrer logo. 36
Enquanto os jesuítas forjavam consensos, seus aliados militares construíam bombas. Tresckow encarregou o oficial do serviço de inteligência Freiherr Von Gersdorff de obter explosivos no front oriental. Gersdorff visitou os arsenais do Abwehr e pediu uma demonstração dos explosivos plásticos do tipo concha capturados dos comandos britânicos. Os explosivos utilizavam detonadores silenciosos ativados por ácido não maiores que Bíblias de bolso. Durante um teste, um explosivo destruiu a torre de um tanque russo e a arremessou a uma distância de quase vinte metros. 37
Gersdorff pegou quatro explosivos e Tresckow se preparou para ocultá-los no Mercedes de Hitler. Se não funcionasse, ele introduziria clandestinamente um pacote no avião de Hitler. 38 Os conspiradores só precisavam levar Hitler a Smolensk.
Tresckow maquinou para fazer isso acontecer. “Hitler tinha de ser persua­dido a deixar seu quartel-general na Prússia Oriental”, recordou o ajudante de Tresckow, e visitar o Grupo de Exércitos Centro. “Tresckow queria levar Hitler a um lugar familiar para nós, mas desconhecido para ele, criando, assim, uma atmosfera favorável para a fagulha inicial planejada.” 39
Em fevereiro, Müller se dirigiu para o palacete de Beck, em Berlim­-Lichterfelde. 40 Durante a conversa, Hans von Dohnanyi se juntou a eles. No entanto, Beck enviou Dohnanyi para o jardim, dizendo que queria falar a sós com Müller. 41
Eles conversaram durante três horas. Beck considerou que a exigência dos Aliados de rendição incondicional da Alemanha, enunciada em Casablanca, em 23 de janeiro, mudava tudo. Como Müller recordou a conversa deles: “Então, a questão era: podemos usar Casablanca em nosso proveito, evitando uma invasão por meio de um golpe de Estado? A derrubada do regime teria de acontecer antes de qualquer invasão. Esse também era um dos principais motivos pelos quais a tentativa de assassinato promovida por Tresckow não podia tardar.” 42 Beck aprovara o plano de Tresckow. 43 “Baseados em fundamentos éticos, os generais se sentiam obrigados a agir. Conto com isso”, afirmou Beck. “Agora tenho meu dedo sobre o botão [ ich habe jetzt den Finger auf dem Knopf ]; finalmente acontecerá.” 44
Eles discutiram como entrar em contato novamente com Londres por meio do Vaticano. Müller enfatizou que as chances de sucesso tinham se reduzido desde 1930-1940. No entanto, Beck decidiu que eles deviam tentar conseguir o apoio de Londres. Ele deu a Müller a missão de informar Pio a respeito do golpe iminente... e de pedir ao Santo Padre para atuar, de novo, como agente secreto estrangeiro deles. 45
Müller passou as duas semanas seguintes em Roma. A evidência extrínseca sugere que ele partiu num voo de Berlim pouco depois de 9 de fevereiro e não voltou antes do dia 22 – talvez sua mais longa permanência em Roma durante a guerra. 46 Além de informar Pio a respeito dos planos do golpe, Müller realizou duas outras missões importantes.
A primeira foi transmitir um relatório urgente da situação de autoria do padre Rösch. 47 Endereçado ao padre Leiber, referia-se aos planos do Comitê contra o regime. Durante os “acontecimentos graves e iminentes das próximas semanas”, relatou Rösch, seus jesuítas não só coordenarão “forças trabalhistas”, mas também atuarão como “tropas de choque do papa”. Se fracassassem, Rösch esperava que fossem “deportados como judeus”. Ele manteria o padre Leiber informado, e, se os planos parecessem muito arriscados, “permita-me revogá-los”. Na verdade, Rösch confessou com toda a franqueza, ele preferia usar menos orientação de Roma, sobretudo desde que “círculos bem conectados” tinham ficado “em silêncio acerca do destino dos judeus”.
A segunda missão de Müller em Roma dizia respeito a bombas atômicas. “Obtive um relatório detalhado de alguém que era empregado pelo Vaticano e pelos Estados Unidos, a respeito da situação da pesquisa atômica”, afirmou ele posteriormente. 48 “Também tinha discutido com Canaris. Nós dois conversamos acerca da circunstância de Hitler ter provocado a emigração de pesquisadores e engenheiros químicos judeus para os Estados Unidos, e como eles retaliariam Hitler.” Müller pode ter recebido o “relatório detalhado” de um dos cinco físicos americanos que informaram a Pontifícia Academia de Ciências, onde, em 21 de fevereiro, Pio descreveu uma explosão nuclear que talvez ocorresse – mencionando tantos detalhes que sua previsão atraiu a atenção estupefata tanto da unidade da SS de Hartl quanto do serviço secreto britânico.
No entanto, o principal assunto de Müller na Santa Sé era a iminente queda do regime. Ele se aproximou do papa por intermédio de Leiber e, provavelmente, também por intermédio de Kaas. 49 “O general Beck me deu a ordem de avisar o Santo Padre a respeito da iminente revolução na Alemanha e de lhe pedir novamente o esforço para se obter uma paz aceitável”, lembrou-se Müller de ter dito a Leiber. “Os generais se sentem obrigados a eliminar essa organização criminosa, que mergulhou a humanidade inteira no infortúnio.” A Alemanha Decente quer que Pio conheça seus novos planos para depois da guerra, 50 que Müller resumiu da seguinte maneira:
Será necessário estabelecer uma ditadura militar na Alemanha por um ano após a queda de Hitler, até que grupos democráticos possam ser criados, que não se assemelharão mais aos partidos políticos na acepção antiga. As tropas alemãs permanecerão temporariamente nos países ocupados, até conseguirem estabelecer contato com os movimentos de resistência, que constituirão as novas forças governantes. Isso não servirá de pretexto para a ocupação contínua dos territórios conquistados. De certa forma, o almirante Canaris possui informação precisa (por exemplo, do chefe de polícia de Paris) de que um movimento anarquista incontrolável se desenvolverá após qualquer retirada abrupta das tropas alemãs.
Müller não só compartilhou os planos subsequentes dos conspiradores, mas também seus preparativos. 51 Como Leiber disse a um espião americano no ano seguinte: a conspiração “resultou diretamente do desastre de Stalingrado”, e, em comparação com as iniciativas anteriores, era
(...) muito mais séria e contava com muito mais apoio. O líder era o general Ludwig Beck, e seus partidários civis incluíam (...) todos os núcleos políticos da República de Weimar, exceto a extrema direita e a extrema esquerda. [Konrad] Adenauer, ex-prefeito centrista de Colônia, recusou-se a se juntar ao movimento, pois acreditava que o regime nazista devia arcar com o ônus de perder a guerra antes que a oposição tentasse sua derrubada. As figuras-chave da conspiração eram para ter sido os generais do front oriental, sob a liderança do marechal [de campo] [Erich] von Manstein. Imediatamente após a derrota de Stalingrado, esses generais tinham se desesperado para manter o front coeso.
Leiber não acreditou que os generais fossem fazer alguma coisa. Mas agradeceu a Müller, “em nome da velha amizade”, pela mensagem e prometeu transmiti-la. 52
Prontamente, Pio respondeu em três frentes. Em primeiro lugar, deu sua sanção moral, concordando que os conspiradores enfrentavam “poderes diabólicos”, enfatizando, como Müller recordou, que eles teriam uma justificativa moral em explodir o avião de Hitler, “pois temos de travar nossa guerra contra os poderes do mal”. 53 Portanto, Müller poderia tranquilizar o general Beck, assegurando que o assassinato seria admissível “numa emergência moral, para ajudar a preservar o livre-arbítrio do povo, que fora dado a ele pelo seu Criador”.
Em segundo lugar, Pio fez planos práticos para reconhecer o regime pós-Hitler. Ele sugeriu acelerar a questão, buscando o agrément formal costumeiro – a declaração de disposição para aceitar um embaixador designado – antes de um golpe de Estado real. 54 Ele propôs que, no caso de uma queda do regime, Müller deveria ser reconhecido como emissário especial ao Vaticano do governo pós-Hitler, com o título e o status de embaixador designado. Isso mostraria ao mundo que a Alemanha tinha recomeçado em novas bases. Então, o novo regime deveria enviar Müller para pedir a Pio que atuasse como mediador de um acordo de paz.
Em terceiro lugar, Pio buscaria uma paz em separado com os Aliados ocidentais. 55 Embora a declaração de Casablanca considerasse a mediação papal indesejável, 56 Pio se opunha à política de rendição incondicional proposta pelos Aliados: “Nenhum país aceitaria isso”, lembrou-se Leiber das palavras do papa. 57 “Ameaçar a Alemanha com isso só prolongará a guerra.” Pio procurava uma paz rápida por diversos motivos, incluindo o de impedir o avanço soviético na Europa. Ele garantiu a Müller que as chances de um acordo de paz seriam boas se eles derrubassem Hitler antes de uma invasão dos Aliados. 58 Talvez com base nessa garantia, o general Tresckow logo falou a respeito de acordos com as potências ocidentais para uma rendição em separado no front ocidental. 59
Os britânicos não fizeram esse acordo com Pio. Monsenhor Kaas abordou o embaixador Osborne, mas os termos do Relatório X de 1940 não estavam mais disponíveis. Churchill, que se sentiu restringido pela declaração unilateral de Roosevelt em Casablanca, poderia ter sinalizado positivamente para a proposta de Müller. No entanto, Churchill nunca teve a chance, pois um espião soviético no serviço de inteligência britânico, Kim Philby, compartilhou a proposta com seus superiores em Moscou, em vez de com seus superiores em Londres. 60
Washington recebeu a tentativa de diálogo com mais simpatia – ou, ao menos, a recebeu. Em 11 de fevereiro, Leiber tinha começado a transmitir as mensagens de Müller a um jesuíta americano em Roma, o padre Vincent McCormick, que as retransmitiu para o diplomata americano Harold Tittmann, que atuava junto ao Vaticano. 61 Por meio de uma distinta série em cadeia de intermediários, incluindo Friedrich Muckermann, padre jesuíta alemão exilado, Müller informou a Allen Dulles, diretor da Office of Strategic Services (OSS ­– Agência de Serviços Estratégicos) americana em Berna. Um relatório da OSS do pós-guerra a respeito de Müller afirmou sem rodeios: “Ele era nosso agente e informante durante a guerra com a Alemanha.” 62 Apesar da recusa de Roosevelt de negociar, Dulles e William Donovan, chefe da OSS, não só buscaram contatos com Müller, mas deram a entender de modo geral que a morte de Hitler anularia a declaração de Casablanca de um dia para outro. 63
Aquilo era exatamente o que os generais alemães queriam ouvir. “Nossa intenção não era impedir uma invasão anglo-americana no front ocidental. As tropas alemãs recuariam para o interior do Reich e reforçariam o front oriental”, recordou o general de divisão Alexander von Pfuhlstein. Durante o golpe de Estado, enquanto a divisão de elite Brandenburg de Pfuhlstein liquidasse a SS em Berlim, os conspiradores “estabeleceriam contato com os Estados Unidos e a Inglaterra por meio do Vaticano, com o objetivo de negociar um armistício”, afirmou Pfuhlstein em 1944, acrescentando: “Acho que o Vaticano foi escolhido como lugar de encontro neutro pelos diplomatas responsáveis.” 64 Que Pio pedisse, ainda por cima, carta branca para nomear os bispos alemães durante quinze anos deu ao cenário hipotético uma textura de realidade. 65 Embora tentasse não prometer em excesso, 66 Müller achava que a disposição de Roma de atuar como mediador 67 inspiraria seus amigos “na hora mais sombria da Alemanha”. 68
Müller também trouxe de Roma a orientação requerida por Rösch. Em fevereiro, como se esperando ficar sem contato por algum tempo, durante o provável caos que se segue a um golpe, Pio enviou inúmeras cartas para os bispos alemães, e, em seguida, ficou seis semanas sem mandar nada. Antes desse silêncio, em 24 de fevereiro, Pio endossou aquilo que o padre Odlio Braun chamou de “intercessão valorosa”, referindo-se aos planos do Comitê. 69 Naquele momento, o padre Delp comentou maliciosamente que “nenhum tirano morreu em sua cama. 70 Isso não é um problema para nós”, e acrescentou: “Tomem cuidado, os trabalhadores é que botarão a boca no trombone.” 71
No entanto, o papel do papa na conspiração criou alguns problemas. Entre eles, o primeiro era a necessidade de ocultar seu papel. “Não podemos caracterizar o papa como cúmplice de um assassinato”, recordou Müller.
Consequentemente, na declaração formulada por Beck e por mim – discutimos exatamente como eu devia delinear aquilo – tudo já havia sido preparado, de modo que, no caso de uma derrubada do regime, o papa pareceria ignorante a respeito de tudo (...) No entanto, tivemos de considerar o que faríamos se o golpe fracassasse. O papa não podia ficar imediatamente em estado de alerta, visivelmente pronto para uma mudança de regime – ele pareceria um aluno culpado (...) Naquele momento, muita coisa dependeria da conduta do papa. 72
Precisando de alguém para encobrir Pio, Müller visitou o bispo de Berlim. Preysing, no caso de um golpe de Estado, concordaria em se tornar um legado papal? Preysing prometeu cumprir diligentemente qualquer missão que Pio confiasse a ele, mas não conseguiu ocultar seu ceticismo. 73 “Os generais hesitarão até a chegada dos russos a Berlim, e, então, talvez, eles tentarão fazer alguma coisa”, 74 disse ele a Müller.
Contudo, enquanto Preysing falava, os acontecimentos assumiam um rumo que demonstrava que ele estava equivocado.
Em 18 de fevereiro, a SS prendeu dois universitários em Munique. Hans Scholl e sua irmã, Sophie, lideravam uma célula de resistência que ficou conhecida como Rosa Branca. Trabalhando à noite no depósito de madeira atrás do apartamento deles, os Scholl imprimiam panfletos – “rosas brancas” – denunciando Hitler. Eles viajavam de trem para outras cidades, carregando os panfletos em malas, e os colocavam em caixas de correio ou os espalhavam nas ruas e nas estações ferroviárias. Certa vez, a polícia abriu a bagagem de Sophie, mas não encontrou os panfletos escondidos em sua roupa íntima. 75
No entanto, os irmãos se tornaram descuidados. Num desafio excessivo, Sophie jogou de uma varanda panfletos no pátio quadrangular da Universidade de Munique. Enquanto os panfletos caíam, um zelador viu os Scholl fugirem. A Gestapo os levou para seu quartel-general no antigo palácio de Wittelsbach. Para obrigar Hans a trair aqueles que o apoiavam, interrogaram Sophie na frente dele. Um homem da SS enfiou um panfleto na cara dele e exigiu saber quem o escrevera. Hans confessou que ele o escrevera e implorou para deixarem sua irmã em paz. 76
Quatro dias depois, Roland Freisler, juiz do Tribunal do Povo, chegou de Berlim para julgar os Scholl. Sophie declarou que eles tinham apenas escrito o que muitos pensavam, mas tinham medo de dizer. Freisler sabia tão bem quanto eles que a Alemanha não era capaz de ganhar a guerra, ela afirmou. Por que ele não tinha a coragem de admitir? Freisler explodiu de raiva, afirmando que os homens da SS a tinham tratado de modo muito benevolente. Deviam ter quebrado todos os ossos do corpo dela. No entanto, ele não falharia em ministrar justiça. Sophie declarou que a justiça de Deus transcendia a do Estado. Freisler respondeu lendo a sentença do Estado: morte. A mãe dos Scholl gritou e desfaleceu na sala do tribunal. Naquele dia, a Gestapo decapitou seus filhos. 77
Eles morreram sem revelar suas ligações com a resistência católica. Os Scholl tinham começado seu trabalho secreto distribuindo um sermão do bispo Clemens von Galen, denunciando o uso de gás por Hitler para matar seres humanos como doentio e insano. Sophie Scholl tinha obtido permissão episcopal para reproduzir o texto e distribuí-lo na Universidade de Munique. O padre Delp tinha mantido contato com os Scholl por meio de um amigo. 78 Moltke recebeu o panfleto final e fatal por meio de Josef Müller, 79 que conhecia seu autor: o professor Kurt Huber. “Uma Rosa Branca [panfleto] foi trazida à minha casa e apresentada a mim pelo professor Huber”, recordou Müller. “Então, levei a Rosa Branca para Roma junto com outras coisas, e, dali, o texto foi para a Inglaterra e chegou de volta aqui por meio de uma transmissão da Rádio London.” 80 As ligações com Müller e Delp tornaram a Rosa Branca quase uma divisão estudantil da Rede Negra. 81
O caso dos Scholl abalou os conspiradores. 82 Alguns consideraram que os nazistas quiseram dar um recado por meio do julgamento. Por que um juiz da Suprema Corte viria de Berlim?
Duas semanas depois, no começo de março, Hitler caiu na armadilha dos conspiradores. Ele concordou em visitar Smolensk. Ali, os oficiais da cavalaria se voluntariaram para atirar no Führer quando ele se sentasse para almoçar ou para emboscá-lo quando atravessasse os bosques de carro. 83 Em vez disso, Tresckow decidiu sabotar o avião de Hitler no voo de regresso. 84 Em 7 de março, aparentemente para participar de uma reunião do serviço de inteligência, Canaris e Oster voaram para Smolensk com um pacote de explosivos. 85 Schlabrendorff, ajudante de Tresckow, trancou a bomba numa caixa cuja única chave ficou em seu poder. 86
“Uma simples pressão sobre a cabeça do ignitor quebrava uma garrafinha, liberando uma substância corrosiva”, recordou Schlabrendorff. O ácido consumia um arame e um percussor saltava para a frente, explodindo a bomba. “Para ter certeza do efeito, não usamos um pacote de explosivos, mas dois, e os embrulhamos numa embalagem que parecia conter duas garrafas de conhaque.” 87
A chegada de Hitler estava prevista para a manhã do dia 13 de março. O plano parecia pronto. O Comitê do padre Rösch tinha preparado as bases políticas em Berlim, Munique e Viena. O general Olbricht disse a Schlabrendorff: “Estamos prontos. Chegou a hora.” 88
Na Capela Sistina, sexta-feira, 12 de março, Pio celebrou o quarto aniversário de sua coroação. 89 O corpo diplomático romano compareceu em massa. Harold Tittmann, encarregado de negócios da embaixada americana, recordou que os representantes britânico e americano junto à Santa Sé, D’Arcy Osborne e Myron Taylor, trocaram sorrisos significativos. Tittmann atribuiu os sorrisos ao efeito tonificante da filha de Mussolini. Edda Ciano chamava a atenção com seus olhos cintilantes, mantô de zibelina e “cachos como pequenos chifres se elevando a partir de sua testa”. 90 Somente mais tarde pareceria haver outra causa plausível para a alegria de seus colegas. Os dois tinham recebido indicações – Osborne por meio de Kaas, enquanto Taylor por meio de Müller – de que a ação contra Hitler era iminente. 91
No dia seguinte, 13 de março, Hitler voou para Smolensk. 92 Os guarda-costas de Hans Rattenhuber, em uniformes cinza da SS, direcionaram suas submetralhadoras quando o Focke-Wulf Condor de Hitler pousou. A escada foi colocada, a porta se abriu e Hitler desembarcou, curvado e cansado. 93 Após uma reunião tensa com seus generais, ele voltou para o avião. Quando o tenente-coronel Heinz Brandt tentou embarcar, Schlabrendorff o deteve na escada. 94
A rajada de vento produzida pelas hélices do avião lançava neve ao redor deles, e eles tiveram de gritar para ouvir um ao outro. Schlabrendorff perguntou se Brandt levaria uma garrafa de conhaque para o general Helmuth Stieff. Brandt respondeu que o faria com prazer. 95
Schlabrendorff entregou-lhe um pacote e lhe desejou boa viagem. Depois que o avião decolou, Schlabrendorff ficou observando-o até ele desaparecer em meio à neve que caía. 96