Capítulo 21
Sagrada Alemanha
Em 20 de julho, às sete
da manhã, Stauffenberg estava no campo de aviação de Rangsdorf, em Berlim. Na pista de decolagem, encontrou Haeften, que carregava uma pasta idêntica à sua. Eles embarcaram num lento Heinkel 111, mas o nevoeiro espesso atrasou a decolagem. Stauffenberg disse ao piloto que eles tinham de partir até as oito da manhã, para que ele pudesse estar em Rastenburg ao meio-dia para informar ao Führer a respeito de assuntos da maior importância.
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Hitler acordou às nove da manhã e fez a barba ao redor do bigode com as mãos trêmulas.
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Na sala de estar, seu criado pessoal, Linge, pôs uma bandeja sobre a mesa de centro. Hitler surgiu e, como Linge recordou, olhou desconfiado para alguns doces com recheio de creme. Pediu que Linge os levasse para verificar se estavam envenenados. Linge disse que o pessoal de Rattenhuber já os tinha provado. Hitler quis que fossem testados novamente. Quando Linge saiu levando a bandeja, Hitler telefonou para seu conselheiro, Nicolaus von Below, e lhe pediu que mudasse o local do
briefing
diário a respeito da guerra. Deveria ser na sala de mapas do alojamento e não no
bunker
de concreto habitual.
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Às dez e meia da manhã, o Heinkel aterrissou na Prússia Oriental. Stauffenberg e Haeften desembarcaram do avião, entraram num carro e seguiram por um caminho cercado de pinheiros. Como membros confiáveis do alto-comando, passaram rotineiramente através de dois postos de controle sem que suas pastas fossem abertas. Eles se encaminharam até o
bunker
do estado-maior, onde alguns oficiais roliços tomavam o café da manhã a uma mesa de piquenique sob uma árvore. No interior do
bunker
, Stauffenberg e Haeften acharam uma sala de espera e fecharam a porta. Um ventilador soprava ar quente ao redor. Stauffenberg pendurou o quepe e a jaqueta, tirou o cinturão e desordenou os cabelos. Em seguida, apresentou-se ao marechal de campo Wilhelm Keitel. O marechal de campo levantou os olhos de sua mesa e comentou que o coronel parecia pouco formal para uma reunião com o Führer. Stauffenberg disse que se arrumaria antes do
briefing
; ele só queria impedir que seu uniforme ficasse suado, pois o
bunker
sempre ficava muito quente durante os
briefings
. Keitel avisou-o que Hitler tinha mudado o
briefing
para o alojamento de madeira.
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Ao meio-dia e quinze, Stauffenberg voltou à sala de espera para “se arrumar”. Ele se deu um tempo extra para ajustar o detonador do explosivo. A tarefa delicada exigia quebrar uma cápsula de vidro contendo ácido. Ele usava pinças feitas sob medida para sua mão artificial. A mudança do local da reunião significou que eles tinham de aprontar dois pedaços de explosivo: um alojamento de madeira não conteria a força explosiva como um
bunker
de concreto. No entanto, mal Stauffenberg acabara de aprontar o primeiro pedaço, alguém bateu na porta. “Coronel Stauffenberg, venha comigo!”, chamou do corredor um oficial de escolta. Eles teriam de usar apenas uma carga explosiva.
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Ao meio-dia e meia, Stauffenberg seguiu o oficial de escolta até o alojamento da reunião. Keitel e os oficiais roliços estavam sentados junto a uma mesa quando Stauffenberg entrou. Alguém falava em tom sonolento a respeito do front oriental. Hitler, brincando com uma lente de aumento, levantou os olhos. “Coronel Claus Schenk von Stauffenberg”, anunciou o oficial de escolta. “Chefe do estado-maior do Escritório Geral do Exército, herói da campanha na Tunísia.” Hitler apertou a mão artificial e lançou um olhar penetrante para Stauffenberg. Os oficiais roliços abriram espaço para o herói inválido. Stauffenberg se posicionou à direita de Hitler. Ele pôs sua pasta no chão e a empurrou sob a mesa com o pé. O oficial que falava em tom sonolento recomeçou sua apresentação. Hitler se inclinou para examinar uma posição no mapa. Despreocupadamente, Stauffenberg se moveu um pouco, para perto de Keitel, e murmurou que tinha de dar um telefonema. Keitel concordou com um gesto de cabeça, mas deu um tapinha em seu relógio, como se dissesse: “Depressa!”
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No corredor, Stauffenberg pegou um telefone. O oficial de escolta o observou por curto tempo e, em seguida, voltou para a sala de mapas. Stauffenberg desligou o telefone, atravessou o corredor com passos rápidos e encontrou Haeften no gramado do lado de fora. Eles tinham se afastado cerca de cinquenta metros do alojamento e estavam se aproximando da mesa de piquenique quando escutaram uma explosão.
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Chamas amarelo-azuladas irromperam do alojamento. Corpos foram arremessados pelas janelas. Cacos de vidro, madeiras e compensados despencaram. Oficiais e ordenanças saíram correndo, gemendo e gritando por socorro médico. Alguns carregaram para fora um corpo imóvel sobre uma maca, coberto pela capa de verão de Hitler.
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Stauffenberg e Haeften pularam para dentro do carro. No caminho para o campo de aviação, Haeften jogou o pedaço de explosivo não utilizado no bosque. No primeiro posto de controle, os guardas os deixaram passar; no segundo, alguém tinha soado o alarme. A cancela abaixada impediu a passagem do carro e a sentinela segurou a alça de sua arma. Stauffenberg saiu do carro, telefonou para um capitão da guarda que era seu conhecido e entregou o telefone para a sentinela. Alguns momentos depois, a cancela foi erguida.
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Quando eles chegaram ao aeródromo, o piloto já tinha aquecido os motores do avião. À uma e quinze da tarde, o Heinkel decolou em direção ao oeste, para Berlim.
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Fora do alojamento, no gramado, corpos queimados enfileirados estavam deitados em macas. Theo Morell, médico de Hitler, percorreu a fila, fazendo a triagem. Morto, morto, gravemente ferido, morto. Ele alcançou um corpo de bruços e parou. A calça estava em farrapos, mal cobrindo as pernas queimadas. Poeira e fibras de madeira cobriam a pele. Os cabelos chamuscados estavam espetados como espinhos de cacto. No entanto, a vítima não tinha nenhum ferimento traumático nem tinha perdido sangue. No rosto, escondido pela fuligem, os olhos azuis resplandeciam de vida. Uma garoa começou a cair. Morell colheu gotinhas em seu lenço e o passou em torno do bigode mais famoso do mundo.
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Às quatro e meia da tarde, Stauffenberg subiu a bela escadaria da sede do Escritório Geral do Exército. Numa sala do segundo andar, na Bendlerstrasse, encontrou-se com o major Ludwig von Leonrod e o general reformado Beck. Todos eles soltaram as travas de segurança de suas pistolas Luger e, em seguida, dirigiram-se à sala vizinha do comandante do Escritório Geral do Exército, Friedrich Fromm. O Führer morreu, anunciou Stauffenberg. Ele sabia porque uma bomba explodira e ele estava lá. Eles deviam acionar o plano Valquíria para manter a ordem.
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Fromm se recusou. Sem um comunicado oficial, disse, eles deviam supor que o atentado falhara. De acordo com o testemunho posterior de Fromm e de outras testemunhas, na sequência houve um diálogo com o seguinte teor:
STAUFFENBERG
: Ninguém saiu vivo daquela sala.
FROMM
: Como você pode saber disso?
STAUFFENBERG
: Porque eu coloquei a bomba.
FROMM
: Você?
STAUFFENBERG
: Vocês, generais, falavam, mas não agiam. O tempo de chás e discussões acabou.
BECK
: Concordo.
FROMM
: Isso é traição! [Landesverrat
]
STAUFFENBERG
: Não, senhor. É alta
traição [Hochverrat
]
FROMM
: Vocês estão presos.
S
TAUFFENBERG
: Somos nós que estamos prendendo o senhor.
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Eles lutaram corpo a corpo. Haeften apontou a pistola para Fromm. O general se rendeu e o major Leonrod o levou. Stauffenberg ergueu o telefone e ligou para o centro de comunicações. Às quatro e quarenta e cinco da tarde, de acordo com suas ordens, o comando do Escritório Geral do Exército telegrafou uma mensagem supersecreta aos comandantes militares de todo o Reich: “O Führer Adolf Hitler está morto.”
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De sua cela na Lehrterstrasse, Josef Müller escutou as botas nas ruas. O batalhão da guarda do general Hase, o Grossdeutschland, tinha começado manobras.
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No fim da tarde, Maas, o comandante da prisão, veio ver Müller. “Hitler morreu”, informou ele. “Foi assassinado.”
Finalmente
, Müller pensou. Um avião do Abwehr estava pronto para decolar em Rangsdorf, ele sabia. Ao amanhecer, se o golpe tivesse tido êxito, ele voltaria ao Vaticano.
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O padre jesuíta Lothar König passou a noite de 20 de julho em Munique-Pullach. Na Berchmanskolleg, ele ficou ao redor de um rádio com oficiais do Escritório Geral do Exército leais a Stauffenberg, que tinham requisitado a escola jesuíta como posto de comando alternativo. Às seis e trinta e oito da noite, a música do rádio parou de tocar e um locutor informou: “Houve um atentado contra a vida do Führer, mas ele não se feriu gravemente. Repito: ele não se feriu gravemente. No momento, nenhum outro detalhe está disponível.” Até as nove da noite, o boletim foi repetido a cada quinze minutos, quando o locutor prometeu que o próprio Hitler falaria em breve.
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A chuva riscava as janelas do
bunker
para chá no quartel-general do Führer. Hitler estava sentado em sua cadeira preferida, usando um terno formal, enfaixado, com o braço numa tipoia, feliz. O doutor Morell, ajoelhando-se, mediu seu pulso. As secretárias soluçavam ao redor. Para espanto de Morell, a pressão de Hitler permanecia normal.
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“Sou imortal!”, disse Hitler, como recorda Morell. “Sou filho do Destino. Se eu não tivesse mudado o lugar do
briefing
, estaria morto. A estrutura de madeira deixou a explosão escapar e perder força. É a maior sorte que eu já tive! Agora peguei aqueles desgraçados. Agora posso tomar providências!” Hitler ficou de pé, num acesso de raiva. “Aniquilá-los! Sim, aniquilá-los!”
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Um telefone tocou. Himmler quis oferecer congratulações e solidariedade. Então, novos telefonemas de generais tentando verificar rumores a respeito da morte do Führer se sucederam. O humor de Hitler mudou. Ele aprovou uma declaração radiofônica de que tinha sobrevivido a um atentado contra sua vida, mas se recusou a atender a novos telefonemas. Ele mergulhou num silêncio sinistro, escutando a chuva golpear as janelas.
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Às dez da noite, Stauffenberg tinha usado os telefones por cinco horas. Da Bendlerstrasse, ele ligou para comandantes em toda a Europa, tentando catalisar o golpe. No entanto, ao anoitecer, notícias de que Hitler sobrevivera tinham se espalhado. Muitas vezes, essas notícias alcançavam os comandantes ao mesmo tempo que as ordens de Stauffenberg de Berlim. Os generais não queriam acionar o plano Valquíria até terem certeza de que Hitler morrera. Eles ficaram paralisados. Quando os companheiros de conspiração questionaram Stauffenberg sobre a razão para lutar, ele apontou para a fotografia de seus filhos em sua mesa.
– Estou fazendo isso por eles – respondeu. – Eles precisam saber que existiu uma Alemanha Decente.
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A situação já tinha escapado do controle dos conspiradores. Em outra parte do prédio, um grupo de oficiais legalistas, armados com submetralhadoras e granadas, libertou o general Fromm e o levou para seu escritório. Fromm reuniu uma corte marcial com três generais, que, sumariamente, condenou os conspiradores à morte. Um grupo de captura convergiu para o posto de comando de Stauffenberg. Ele pegou sua pistola e a engatilhou com os três dedos de sua mão esquerda. Alguém disparou um tiro. Stauffenberg cambaleou, atingido na omoplata esquerda. Ele se refugiou na antessala do escritório de Fromm. Haeften queimava papéis. Beck encarava de forma suicida sua própria arma. Stauffenberg tirou seu tapa-olho e esfregou a órbita vazia. Com expressão indescritivelmente triste, afirmou: “Todos me abandonaram.”
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O grupo de captura apresentou suas armas através da entrada. Stauffenberg e Haeften jogaram suas armas no chão. Em algumas frases curtas, Stauffenberg assumiu toda a responsabilidade pelo golpe. Todos os outros tinham seguido suas ordens. Fromm, impassível, tripudiou: “Agora, vou fazer com você tudo o que você devia ter feito comigo esta tarde.”
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À meia-noite e meia, os guardas levaram Stauffenberg para fora. Num pátio, eles o colocaram diante de uma pilha de areia. Os motoristas dos oficiais iluminaram o pátio com a luz alta de seus carros. Albert Speer, ministro do Armamento do Reich, no interior de seu carro, nas proximidades, recordou: “Numa Berlim totalmente às escuras (...) [o pátio] parecia um cenário de filme iluminado no interior de um estúdio escuro (...) As sombras longas, vivas, compunham uma cena irreal e fantasmagórica.” Um pelotão de dez homens ergueu seus rifles. Entre os lábios, Stauffenberg pressionou a cruz dourada que sempre usava ao redor do pescoço. Ele gritou: “Vida longa à sagrada Alemanha!”
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