Capítulo 23
Inferno
Em 26 de setembro, a Gestapo
veio buscar Josef Müller.
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Alertado por Maas, Müller havia se preparado. Ele pôs em ordem todas as suas coisas, na medida do possível. Manteve alguns bens com ele: as cartas de Maria, uma foto de Christa em uniforme escolar. Enquanto empacotava suas coisas, viu a expressão ansiosa do sargento Milkau do lado de fora da porta. Müller observou por um longo momento o olhar leal do guarda, tentando transmitir seus agradecimentos. Milkau já prometera que, independentemente do que acontecesse, ele daria notícias para a filha e a mulher de Müller.
2
O trajeto através de Berlim revelou mais ruínas do que Müller imaginara.
3
Algumas ruas lembravam as fotografias da disputada Stalingrado. As casas de Westend, outrora o centro da vida social e intelectual da cidade, estavam destruídas pelo fogo. A água se acumulava nas crateras causadas pelas bombas, com gás escapando dos canos rompidos. O carro contornou o Kaiserhof Hotel e atravessou o portão da sede da Gestapo, no número 8 da Prinz-Albrecht Strasse.
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No interior do prédio, os homens da SS apontaram submetralhadoras para as costas de Müller. Conduziram-no até uma salinha e ordenaram que ele se despisse. Quando ele perguntou o motivo, um dos SS o esmurrou no rosto. Ao toque das mãos perscrutadoras deles, Müller focalizou a porta situada mais além. Talvez eles quisessem se certificar de que ele não tinha escondido uma ampola de veneno no ânus. Ordenaram que ele se vestisse e o levaram ao porão, repleto dos mal-afamados ex-ateliês para escultores. Na cela 7, puseram as algemas e o empurraram para dentro.
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Uma lâmpada elétrica pendurada no teto iluminava o espaço sem janelas.
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A cela incluía uma banqueta, uma cama dobrável e uma mesinha. Tão diminuto era o espaço que Müller, parado no meio da cela, conseguiria tocar cada parede (não fossem as algemas).
Uma sirene de ataque aéreo soou. As portas se abriram e vozes ordenaram que ele saísse da cela. Na penumbra, Müller viu Canaris e Oster.
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Em 27 de setembro, Müller encontrou Oster nos banheiros.
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Eles não podiam conversar ali, pois um guarda os vigiava. No entanto, conseguiram cochichar sob os chuveiros, com as palavras encobertas pelo barulho da água caindo. Müller perguntou a respeito de Zossen. Sim, respondeu Oster, alguém levou a SS diretamente para lá. A Gestapo tinha todo o tesouro e tentaria arrancar tudo o que pudesse, sobretudo nomes, antes de matar os interrogados. Eles deviam enganar a SS, dar pistas falsas, qualquer coisa para distraí-los até a chegada dos Aliados a Berlim.
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No caminho de volta para a cela 7, Müller escutou gritos. Quando achou que tinham terminado, os gritos voltaram num volume ainda mais alto. Continuaram por muito tempo, cada um mais terrível que o outro. Depois, viraram lamúrias e gemidos.
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No corredor, Müller cruzou com Canaris. O almirante, sempre esbelto, agora parecia muito enfraquecido. Seus olhos brilhavam como brasas num depósito de cinzas. Ele murmurou: “
Herr Doktor
, este lugar é o inferno.”
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No final de novembro de 1944, um homem da SS levou Müller a um elevador. No terceiro andar, eles desembarcaram e percorreram um longo corredor até uma antessala, onde um guarda portando uma metralhadora guardava uma porta. Pouco depois, Müller se viu parado diante de Franz Xavier Sonderegger.
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Müller tinha praticado um jogo inteligente até aquele momento, afirmou Sonderegger. Mas os homens da SS souberam o tempo todo que Canaris protegia um ninho de traidores. Naquele momento, podiam provar. Sabiam que Müller tinha urdido planos com seus amigos do Vaticano; sim, até mesmo o papa. Sonderegger tirou uma pasta volumosa de uma gaveta e a pôs sobre a mesa. Müller devia ler aquilo antes de apresentar novas negações.
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Müller examinou o dossiê: declarações que Dohnanyi escreveu para Beck e Goerdeler, um estudo escrito a mão por Oster para um golpe de Estado, relatórios de Müller referentes ao Vaticano. Sim, afirmou Müller, fingindo alívio: tudo aquilo parecia ser material que seus superiores tinham usado para enganar os Aliados e obter informações a respeito da disposição de luta deles. Müller tinha desempenhado um papel naquilo. Como ele estava dizendo havia já um ano e meio, tinha aderido ao Abwehr porque seus contatos no Vaticano poderiam fornecer informações úteis para a Wehrmacht.
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Sonderegger afirmou que Müller não podia mais se esconder atrás daquela história. Ele não devia mais frustrar a SS, pois as coisas poderiam alcançar outro patamar. A vida não se mostraria mais tão agradável para Müller, advertiu Sonderegger. A SS agora o tinha sob custódia, e isso significava uma postura mais dura do que a do Exército. A SS encontrara muitos documentos comprometedores no cofre do Exército em Zossen. Müller podia se considerar um homem morto.
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Calmamente, Müller disse que ele era capaz de aceitar aquilo. A morte significava “apenas uma passagem dessa vida para a próxima”, afirmou, como Sonderegger recordou tempos depois. Sonderegger perguntou a Müller se ele rezava. Müller respondeu afirmativamente. Ele também rezava pela SS?, perguntou Sonderegger. Müller respondeu que sim; ele rezava principalmente pelos seus inimigos.
Por um momento Sonderegger se sentiu tranquilo. Em seguida, dizendo que voltaria “em três minutos”, pôs uma folha de papel na mesa.
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Era a anotação do padre Leiber. Em papel de carta papal, assinalado com uma marca-d’água com o símbolo do pescador, Leiber tinha escrito a condição indispensável para o término da guerra. Pio garantia uma paz justa, em troca da “eliminação de Hitler”.
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Müller rasgou o papel em pedacinhos e os colocou na boca. Quando Sonderegger voltou, Müller tinha engolido tudo.
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“Não quero morrer, tenho certeza disso”, escreveu Moltke. “A carne e o sangue se rebelam violentamente contra isso.” Durante muito tempo ele sentira, como tinham sentido seus antepassados prussianos, que “a pessoa não devia se exaltar com o fato de morrer por meio de uma execução”. No entanto, em outubro, a Gestapo o acusara formalmente de conspiração para a derrubada do regime; uma acusação que levava à pena de morte.
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Desde então, o trabalho de sua defesa tinha dado “um imenso estímulo à minha vontade para contornar essa coisa”.
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A rede católica ajudou Moltke a encobrir suas atividades. O bispo Johannes Dietz, do Comitê das Ordens, introduziu mensagens clandestinamente, ajudando-o a harmonizar sua história com a que os outros suspeitos diziam.
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No entanto, Moltke se defrontava com “sério perigo”, como sua mulher ficou sabendo.
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Ela foi à sede da Gestapo para implorar clemência. Contudo, uma entrevista com Heinrich Müller não deixou dúvida que queriam matar seu marido. Depois da Primeira Guerra Mundial, os inimigos internos da Alemanha tinham sobrevivido e tomado o comando, afirmou o chefe da Gestapo. O Partido Nazista não deixaria aquilo acontecer de novo.
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Na primeira semana de 1945, o padre Delp tentou decifrar seu destino. “Há um momento em que toda a existência se concentra num único ponto e com a soma total da realidade”, refletiu Delp em 6 de janeiro, a festa da Epifania. Achando-se “à sombra do cadafalso”, ele tomou conhecimento de que o juiz superior, togado de vermelho, Roland Freisler, odiava católicos e padres.
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“As coisas parecem mais claras e, ao mesmo tempo, mais profundas”, escreveu Delp. “Podem-se ver todos os tipos de ângulos inesperados.” Em seu inventário de ano-novo, a guerra tornou-se tanto uma expressão como uma denúncia de modernidade. “Muito mais do que uma civilização ou uma herança valiosa se perdeu quando a ordem universal seguiu o caminho das civilizações antigas e medievais.”
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No entanto, poucos viam “a ligação entre os campos de batalha cobertos de cadáveres, os montes de escombros em que vivemos e o colapso do cosmos espiritual de nossas visões”. A Europa agora encarava a expressão derradeira do niilismo moderno, a perspectiva de vida sob o jugo de Stalin. O comunismo, porém, serviria como “um auxiliar para um imperialismo de proporções ilimitadas (...) Os eslavos ainda não tinham sido absorvidos pelos ocidentais e são como um corpo estranho no funcionamento da máquina. Eles podem destruir, aniquilar e arrebatar quantidades enormes de butins, mas ainda não conseguem liderar ou construir”.
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A Igreja então poderia reconstruir a Europa depois da guerra? “Até onde a influência concreta e visível chega, a atitude do Vaticano não é a que devia ser”, escreveu Delp com pesar. Ele receava que o papado tivesse perdido seu momento, apesar de aplicar as moções morais.
Claro que, com o tempo, será provado que o papa cumpriu seu dever, e mais, que ofertou a paz, que explorou todas as possibilidades de promover negociações de paz, que proclamou as condições espirituais sobre as quais poderia se basear uma paz justa, que concedeu caridade e foi incansável em seu trabalho em favor dos prisioneiros de guerra, dos refugiados, da localização de parentes desaparecidos, e assim por diante – tudo isso nós sabemos e a posteridade terá inúmeras provas documentais para demonstrar a extensão total do esforço papal. No entanto, em grande medida, todas essas boas ações (...) não levam a lugar algum e não oferecem esperança real de se alcançar alguma coisa. Essa é a raiz real do problema: entre todos os protagonistas do drama trágico do mundo moderno, nenhum deles se importa fundamentalmente com o que a Igreja diz ou faz. Supervalorizamos a máquina política da Igreja, que rodou por inércia muito depois de sua força motriz básica ter deixado de funcionar. Não faz diferença, no que diz respeito à influência benéfica da Igreja, se um Estado mantém ou não relações diplomáticas com o Vaticano. A única coisa que realmente importa é a autoridade inerente da Igreja como força religiosa nos países interessados. Eis onde o erro começou; a religião morreu por causa de diversas enfermidades, e a humanidade morreu com isso.
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Em 9 de janeiro, Delp e Moltke foram julgados num jardim de infância requisitado para fins militares. Ao observar alemães “comuns” empacotarem os pertences do local em seus trajes de domingo, Delp lembrou-se de “uma cerimônia de entrega de prêmios a estudantes numa pequena escola que não tinha nem mesmo o espaço adequado para aquilo”.
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O juiz Freisler entrou usando uma toga vermelha. Desde o 20 de julho, ele procurava agradar a Hitler modelando o Tribunal do Povo com base nos julgamentos espetaculosos realizados por Stalin.
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“Reclinando-se exageradamente em sua cadeira, com um gesto majestoso de seu braço direito, jurou ao mundo (...) que o nacional-socialismo e o Reich durariam para sempre; ou tombariam lutando até o último homem, mulher e criança”, recordou o pastor protestante Eugen Gerstenmaier, que foi julgado com Moltke e Delp.
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Quando Freisler se exaltava, a vermelhidão tomava conta de seu rosto e corava sua calvície; ele gritava tão alto que um engenheiro de som o advertiu que ele estouraria os microfones.
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Delp foi julgado primeiro. “Seu patife infeliz, seu grande santarrão”, começou Freisler. “Você, seu rato, alguém como você precisava ser desentocado e esmagado.”
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Freisler continuou a insultar a Igreja num sentido mais amplo: escândalos, bispos que dizem ter filhos etc.; o latim; os comportamentos corruptos dos jesuítas etc. – esse tipo de coisa apareceu em todas as outras frases.
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Finalmente, Freisler exigiu saber por que Delp tinha se tornado “um dos auxiliares traidores mais ativos de Helmuth Graf von Moltke...”.
– Vamos, responda!
O jesuíta respondeu:
– Enquanto as pessoas viverem em condições desumanas e humilhantes, devemos trabalhar para mudar essas condições.
Freisler perguntou:
– Você quer dizer que o Estado tem de ser mudado?
Delp respondeu:
– Sim, é o que eu quero dizer.
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Considerando essas palavras um atestado de “alta traição”, Freisler prosseguiu e revelou as acusações. Ele mencionou as relações de Delp com Stauffenberg, o que fazia dele, “consequentemente um assassino traidor”. Além disso, o padre tinha arranjado para os conspiradores se reunirem em dependências da Igreja, agindo “com a autorização do padre Rösch, provincial jesuíta do sul da Alemanha”.
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Mesmo a ausência de Delp das reuniões da resistência em sua paróquia, Freisler converteu em algo contra o réu. De um modo “tipicamente jesuíta”, Delp tinha “desaparecido temporariamente, como uma madame de um [bordel], de modo que pudesse lavar as mãos em relação à questão”, acusou Freisler.
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“Com essa ausência, você demonstra que sabia exatamente que uma alta traição estava em andamento e que você gostaria de manter sua cabecinha raspada fora disso. Nesse ínterim, você podia ir à igreja rezar para que a conspiração tivesse êxito de uma maneira que agradasse a Deus.”
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No dia seguinte, o julgamento continuou, com Moltke no banco dos réus. Acusando-o de “consorciar-se com jesuítas e bispos”, Freisler deu um soco na mesa e rugiu:
Um padre jesuíta! Logo um padre jesuíta! E nem um único nacional-socialista [nas reuniões em Kreisau]! Nenhum! Bem, tudo o que posso dizer é: agora, a folha de figueira caiu! Um provincial jesuíta, um dos dignitários entre os mais perigosos inimigos da Alemanha, visita o conde Moltke em Kreisau! E você não sente vergonha disso! Nenhum alemão devia manter contato com um jesuíta! Essas pessoas, que são excluídas do serviço militar por causa de sua atitude! Se eu sei que há um provincial jesuíta numa cidade, é quase um motivo para eu não visitar essa cidade! (...) E você visita bispos! Qual é o seu negócio com um bispo, seja que bispo for?
Freisler culminou sua falação com algo que Moltke considerou uma verdade profunda: “Só em um aspecto nós e o cristianismo somos parecidos: nós procuramos o homem inteiro!”
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Em 11 de janeiro, o padre Rösch celebrou uma missa numa fazenda. No momento em que terminou, a porta se abriu e três oficiais da SS entraram a passos largos.
39
O
Untersturmführer
Heinz Steffens apontou uma pistola para Rösch e o prendeu. Steffens “imediatamente começou a me sondar a respeito de nomes e me acusou de catorze alegações, em dois minutos”, recordou Rösch. “Expliquei que, como padre católico, dar nomes estava fora de questão por princípio. Então, ele me bateu com toda a sua força.”
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Às cinco da tarde, aproximadamente, Steffens colocou Rösch sobre a carroceria aberta de um caminhão. Junto com a família católica que o abrigara, Rösch foi conduzido para Dachau sob a neve.
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O registro da polícia de Munique relatou sucintamente “a prisão do provincial jesuíta August Rösch (...) por sua participação nos episódios de 20 de julho de 1944”.
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O barbeiro do campo raspou a cabeça do padre Rösch, e Steffens algemou as mãos dele, dizendo:
– Você só ficará livre dessas algemas quando for enforcado.
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Às quatro horas daquela tarde, Freisler condenou Moltke e Delp à morte. Delp não expressou nenhuma emoção ao ouvir o veredicto, mas depois, no furgão, perdeu a compostura. Teve um ataque de riso, cuspindo ditos espirituosos entre suspiros maníacos. Os outros permaneceram sentados, desanimados e calados.
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Para Gerstenmaier, cuja vida Freisler poupara, embora o qualificasse como “cabeça-dura”, Delp disse:
– Melhor cabeça-dura do que sem cabeça.
Os condenados foram postos numa prisão temporária e deixados em paz, como se nada tivesse acontecido. Naquelas horas solitárias, Delp escreveu em pedaços de jornal e papel higiênico um testamento final: “Sendo bastante honesto, não quero morrer, sobretudo agora que sinto que podia realizar um trabalho mais importante e transmitir uma nova mensagem a respeito de valores que acabei de descobrir e entender”, refletiu ele. “Estou interiormente livre e sou muito mais autêntico do que me dei conta antes (...) Quando comparo minha calma gélida durante o processo judicial com o medo que senti, por exemplo, durante o bombardeio de Munique, percebo quanto mudei.”
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O frio de janeiro penetrava através da janela gradeada da cela de Delp. Os dias passavam, e o tédio voltou: mãos algemadas, luzes hostis, barulhos indecifráveis. Ele se perguntava por que seus torturadores não o enforcavam imediatamente e liberavam a cela para uma nova vítima. Hitler tinha decidido salvá-lo para algum circo de perseguição no estilo de Nero? Nesse caso, com as tropas russas se aproximando de Berlim, talvez o Reich desmoronasse antes que essa matança festiva pudesse ocorrer. Mais uma vez, Delp se entregou à esperança.
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“As coisas sempre se revelam de uma maneira diferente do que alguém pensa e espera”, escreveu ele em 14 de janeiro.
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“Estou sentado sobre o meu penhasco, concentrado totalmente em Deus e sua liberdade (...) Esperando pelo impulso que me mandará para cima (...) Acredito que depende muito de August [Rösch] permanecer calmo e em silêncio.”
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