Capítulo 24
A forca
Em 13 de janeiro, a Gestapo
transferiu o padre Rösch de Munique para Berlim. Naquele momento, o provincial jesuíta se viu na mesma prisão da Lehrterstrasse em que Josef Müller havia passado o primeiro ano e meio de seu encarceramento. Os guardas confiscaram seu breviário, seu rosário e suas medalhas militares. Nas seis semanas seguintes,
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ele ficou algemado dia e noite e durante a maior parte dos interrogatórios. A luz de sua cela ficou acesa toda a noite, exceto durante os ataques aéreos. Inúmeras cruzes vermelhas adornavam as paredes, desenhadas com o sangue dos percevejos esmagados.
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Privado dos privilégios do correio oficial, Rösch se beneficiou do correio secreto católico da prisão, comandado por duas lavadeiras seculares, ambas chamadas Marianne. Em cartas clandestinas, ele coordenou sua história com os padres Delp e Braun,
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anotando algumas das “mentiras táticas”
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que ele contou aos seus interrogadores. Rösch disse, por exemplo, que “não tinha nenhum conhecimento acerca do assassinato planejado para 20 de julho”.
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No entanto, como a SS sabia de seus contatos com Moltke, Rösch admitiu ter trocado ideias com ele acerca de planos para uma reconstrução, “no caso de a guerra ter um fim desfavorável”.
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Quando lhe perguntaram a respeito de “como ele se posicionava” em relação ao nacional-socialismo, afirmou que tinha a mesma visão do nazismo que o nazismo tinha da Igreja: “Rejeito-o cem por cento.” Ele diria isso ao juiz Freisler? “Sem dúvida, tanto quanto os sinos tocam.” Os guardas não bateram nele depois disso, concluindo que careciam de tirar proveito de um padre que, por seu próprio relato, tinha rezado pela “honra de um martírio sangrento” todos os dias desde sua primeira comunhão.
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Rösch assumiu o que denominou seus “deveres pastorais em catacumba”. Num caso, um judeu e uma testemunha de Jeová organizaram um apagão, permitindo-lhe oficiar os últimos ritos nas celas dos doentes. No entanto, Rösch encontrava sua oportunidade principalmente durante a hora dos exercícios físicos.
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“Às vezes, se éramos levados para dar uma volta no pátio, o padre Rösch nos alcançava em nossas filas com passos ligeiros, e falava com seus paroquianos em voz baixa, perguntando quem queria receber o sacramento”, recordou Eberhard Bethge, protegido de Dietrich Bonhoeffer. “Então, ele nos pedia que providenciássemos uma confissão clandestina por escrito. E, nas manhãs, se ele celebrava sua missa sem ser notado, levávamos a hóstia consagrada para as celas designadas. Sua comunidade cresceu.”
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Os interrogadores da SS planejavam o interrogatório do padre Rösch com muito cuidado. Em 1
o
de fevereiro, às seis da tarde, suas perguntas caíram como flechas acerca do papel do papa nas conspirações. Tempos depois, o jesuíta escreveu a linha de investigação de memória. “Ainda temos de tratar das seguintes questões complexas: seu relacionamento com o papa e o Vaticano; com a cúria de sua ordem, com o padre Leiber.” Rösch se sentiu “secretamente satisfeito com aquilo”.
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Enquanto a SS ainda buscasse respostas para aquelas perguntas, talvez deixassem o padre Delp vivo.
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A SS não tinha dado nenhuma explicação pelo adiamento da execução de Delp; talvez quisessem fazer uma acareação entre os dois jesuítas para encontrar contradições em suas histórias.
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O padre Braun conseguiu falar com Rösch durante uma caminhada no pátio da prisão. “Padre, eles odeiam os católicos aqui”, disse o dominicano, como Rösch recordou. “Mas contra vocês, jesuítas, prevalece um ódio excruciante, um ódio pavoroso.” Os guardas falaram para Rösch mais de uma vez: “Mal podemos esperar para enforcá-lo junto com König e Siemer. Será um belo dia.” Rösch achou que a fuga do padre Siemer, que constrangeu os nazistas e afastou um suspeito e uma testemunha importante, “tinha muito a ver com o adiamento do julgamento espetacular”.
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Em 2 de fevereiro, os guardas da Gestapo levaram Delp para a sala de interrogatório, em Plötzensee. Sob seu uniforme listrado de cor laranja e cinza, estampado com o número 1442, ele parecia um cabide de ossos. A prisão tinha agendado sua morte para o meio-dia.
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O oficial da SS Karl Neuhaus supervisionaria as últimas horas do jesuíta. Um colega de Plötzensee se lembra de Neuhaus, ex-teólogo protestante, como “um homem esquelético, com rosto de ave de rapina”.
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Coube a Neuhaus interrogar o padre católico suspeito de conspirar para matar Adolf Hitler em 20 de julho de 1944.
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“Quis saber o que o padre Delp tinha a dizer acerca da tentativa de assassinato”, afirmou Neuhaus posteriormente, “e como ele conciliava essa violência com suas convicções de padre católico jesuíta. Eu sabia que ele tinha alguns contatos com Stauffenberg. Uma testemunha tinha incriminado o padre Delp. Tudo aquilo era conhecido e já estava nos arquivos quando eu o interroguei.”
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Neuhaus ainda não sabia – e seus superiores da SS o tinham encarregado de descobrir – quão intimamente Delp e seus cúmplices católicos tinham conspirado com o papa. Tendo já interrogado o padre Rösch acerca de suas ligações com o Vaticano, Neuhaus, naquele momento, submetia Delp à mesma linha de investigação.
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Neuhaus posicionou os dedos de Delp num grampo tipo sargento cheio de agulhas. Enquanto Neuhaus fazia as perguntas, seu assistente, o SS
Hauptsturmführer
Rolf Günther, girava o parafuso, dirigindo as agulhas na direção das pontas dos dedos de Delp. Como aquele procedimento não gerou respostas, Günther começou a bater em Delp por trás, com um porrete de carvalho com a cabeça cheia de pregos.
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A cada pancada, Delp caía para a frente, sobre seu rosto, mas se recusou a falar. Então, Günther circundou as pernas de Delp com tubos cheios de agulhas e, lentamente, puxou as pontas dos tubos, de modo que as agulhas penetrassem aos poucos no corpo. Ao mesmo tempo, para abafar os gritos, pôs a cabeça do padre numa coifa metálica e a cobriu com um cobertor. Depois que os gritos atravessaram até a coifa, Günther pôs para tocar um disco de canções infantis e colocou no volume máximo.
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Cinco horas depois, quando o padre Delp ainda não tinha implicado o papa, Neuhaus o ajudou a atravessar o pátio, na direção da cabana de execução do condenado.
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A luz do sol passava através de duas janelas arqueadas. Seis ganchos para carne pendiam de uma viga do teto. No alto, um tripé apoiava uma câmera sonora de 16 milímetros, equipada com luzes e carregada com filme colorido.
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Numa mesa, havia uma garrafa de conhaque, dois copos e uma bobina de corda de piano.
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O verdugo e seu assistente criavam coragem com conhaque. O assistente, Johann Reichart, preparou um nó corrediço na corda. O verdugo, Hans Hoffmann, pôs a corda em torno do pescoço de Delp, puxou-a e a deixou bem apertada. Eles ergueram o padre, prenderam a corda num gancho e a soltaram. O nó corrediço da corda não quebrou o pescoço de Delp, mas simplesmente cortou sua faringe. Eles o deixaram ali, debatendo-se e se contorcendo, por 25 minutos.
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Mais tarde, escrito num formulário da lavanderia da prisão, um ordenança encontrou as últimas palavras conhecidas do padre Delp: “Obrigado.”
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A morte de Delp abalou o padre Rösch, recordou a trabalhadora laica Marianne Hapig. Nos meses seguintes, o provincial jesuíta reduziu-se a uma “figura miserável”. Tendo recrutado Delp para as conspirações, Rösch se culpou pela morte dele. Como provincial jesuíta, Rösch achou difícil suportar a culpa.
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Nesse estado deprimente, Rösch suportou novos interrogatórios da Gestapo. Uma pressão sombria permeia uma carta secreta que ele escreveu durante aqueles dias, relatando a linha que adotou em relação aos interrogadores. “Aqueles questionários podem trazer grave prejuízo. Um conjunto complexo de perguntas ainda está por vir acerca do papel da Cúria papal (...) O ódio contra nós é muito grande.”
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Cauteloso como sempre, Rösch reverteu a situação em seu benefício. A saúde frágil deu-lhe a chance de trabalhar num escritório da prisão, onde achou sua ficha.
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Registrava uma ordem para matá-lo sem julgamento. “Assim, foi possível para ele, em cumplicidade com alguns guardas, salvar a si mesmo e a muitos outros, pela manipulação das fichas”, recordou um colega padre. Um funcionário da prisão simpatizante “transferiu o nome de Rösch para a lista dos condenados que já tinham sido executados”.
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Em 3 de fevereiro, Berlim sofreu seu pior ataque aéreo da guerra. Josef Müller se alojou com os outros prisioneiros no porão da Prinz-Albrecht Strasse. Ele olhava para o teto, preocupado com um possível desmoronamento. A água jorrava dos canos quebrados, as luzes se apagaram e, em pouco tempo, Müller sentiu o frio do mês de fevereiro.
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Três dias depois, os guardas o mandaram arrumar as malas. No pátio cheio de escombros, os prisioneiros embarcaram em caminhões de transporte. Com a prisão da Gestapo em ruínas, eles estavam indo para um campo de concentração. Ninguém esperava voltar. O oficial da SS Walter Huppenkothen ordenou que Müller e Bonhoeffer permanecessem algemados. Quando o caminhão saiu de Berlim, eles prometeram um ao outro: vamos calmamente para a forca, como cristãos.
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Maria Müller tentou levar ao marido um presente de aniversário. Ela se dirigiu ao número 8 da Prinz-Albrecht Strasse, mas quase não conseguiu respirar por causa das cinzas e da fumaça. As pessoas cambaleavam ao redor como sonâmbulos. No ar, pairava um cheiro doce e enjoativo de cadáveres sob as pedras úmidas. Na sede da Gestapo, a majestosa escadaria de entrada conduzia a um espaço vazio.
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A polícia secreta tinha montado uma sede alternativa, na cripta da igreja Dreifaltigkeit, na Mausterstrasse.
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Ali, Maria soube que os prisioneiros tinham sido levados para o sul, a um campo de concentração, aparentemente para protegê-los dos ataques aéreos. Os agentes da Gestapo disseram não saber para que campo. Maria foi ver Franz Sonderegger. Ele revelou que Müller tinha ido para Buchenwald, Dachau ou Flossenbürg. Ela escreveu e telefonou para todos os três campos. Funcionários verificaram as listas de prisioneiros ou fingiram verificar. Não conseguiram achar nenhum registro de Josef Müller.
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O calendário improvisado de Müller indicava o dia 26 de março. Ele sabia que, como faria 47 anos no dia seguinte, sua mulher talvez tentasse visitá-lo. Ele esperava que não. Ele não queria Maria perto de Buchenwald, não a queria emporcalhada por aquilo.
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Buchenwald abundava de mortos e mortos-vivos. A SS quebrara um forno crematório e começara a jogar corpos numa vala. Outros permaneciam nas ruas onde morreram. O sangue congelara nas feridas escuras e grosseiras, e prisioneiros famintos arrancavam as tripas dos cadáveres para se alimentar. Müller estava trancado num porão, que fedia por causa da privada improvisada – um vaso sanitário borrifado com cal.
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No porão, Müller fez um amigo. Vassili Kokorin, sobrinho de V.M. Molotov, ministro soviético das Relações Exteriores, tentara escapar de Sachsenhausen rastejando por um túnel, junto com o filho de Stalin,
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mas pastores-alemães da SS os localizaram.
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Kokorin começou a ensinar russo para Müller e Müller, cristianismo. Como os soviéticos tinham criado Kokorin para considerar a religião um instrumento do capitalismo, Müller “tentou deixar claro para ele que Cristo sempre tomara partido do oprimido; o verdadeiro cristianismo sempre procurara ajudar as classes sociais mais desfavorecidas”. Em 13 de fevereiro, eles estavam discutindo a respeito dos Evangelhos quando o céu escureceu com centenas de aviões de bombardeio dos Aliados. Só depois eles se deram conta de que os aviões lançaram bombas incendiárias sobre Dresden, talvez queimando vivos 25 mil civis.
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Naquelas semanas, Müller encontrou consolo numa carta da filha. Um agente da SS a tinha entregue pouco antes de eles deixarem Berlim. Christa fora ficar com parentes em Röttingen. A cidade medieval, cercada por fortificações e torres, guardava um segredo terrível: os moradores assassinaram 21 judeus em 1298. Aquele
pogrom
infame tinha acontecido num 20 de abril, dia do aniversário de Hitler; os judeus de Röttingen morreram por supostamente profanar a hóstia da comunhão. Agora, a carta de Christa anunciava que ela faria a primeira comunhão ali. Em 8 de abril, num vestido especial confeccionado por sua avó, Christa atravessaria o corredor da igreja, se ajoelharia na nave e receberia o corpo e o sangue de Cristo. Müller carregava a carta de Christa consigo, sabendo que talvez persistisse, como ele refletiu, como “o último sinal de vida de seus entes queridos”.
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Quando Hitler estabeleceu sua última defesa em Berlim, novos quadros do Exército se abrigaram em Zossen. Entre os obstinados, incluía-se o general Walter Buhle, que se instalou nas antigas dependências do Abwehr e buscou por mais espaço físico. Em 4 de abril, inspecionando as salas de depósito, encontrou um cofre que continha cinco fichários pretos com capa de couro. Cada um tinha entre oitenta e duzentas páginas, escritas a mão e datadas. Buhle achara uma crônica dos crimes nazistas e das tentativas de detê-los, preparada por Hans Dohnanyi e outros oficiais do Abwehr, oficialmente dissimulada como “diários” do almirante Canaris.
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Buhle não teve nenhum escrúpulo de denunciar um oficial desleal. Sentado perto de Hitler, em 20 de julho, ele se ferira quando a bomba de Stauffenberg explodiu. Buhle
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entregou os diários para Hans Rattenhuber,
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que os passou para Ernst Kaltenbrunner, vice de Himmler.
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Em 4 de abril, os guardas de Buchenwald embarcaram Josef Müller e outros catorze prisioneiros num furgão movido a gasogênio. Vassili Kokorin se apertou num pequeno espaço perto de Müller. O pastor Bonhoeffer se sentou na parte de trás. Eles se dirigiram para o sul, parando a cada hora para abastecer a fornalha.
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A certa altura, Müller conseguiu se aproximar de Bonhoeffer. Sabendo que os homens da SS tinham interrogado Bonhoeffer em Buchenwald, Müller quis saber o que eles perguntaram – e, sobretudo, o que ele respondeu. Bonhoeffer afirmou, defensivamente, que ele carecia do sangue-frio de Müller. Bem, pressionou Müller, o que Bonhoeffer dissera a eles?
– Eles me coagiram – respondeu Bonhoeffer. – Ameaçaram que algo aconteceria com minha noiva. Eu disse que fui classificado como
uk
[dispensado do serviço militar], de modo que podia organizar um serviço de inteligência doméstico para Oster.
Müller ficou muito preocupado. Aquilo era exatamente o que Bonhoeffer não devia ter dito, pois quebrara os “dez mandamentos”, ou seja, o pacto entre SS e Abwehr proibindo a espionagem militar interna. A Gestapo pegou Bonhoeffer num detalhe, mas o pegou.
– Dietrich, por que você não se escondeu atrás de mim? – perguntou Müller. O Abwehr daria cobertura para eles.
– Eles me chantagearam – repetiu Bonhoeffer. – Minha noiva...
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Enquanto o furgão prosseguia em sua viagem para o sul, no escuro, Müller se lembrou da viagem com Bonhoeffer para Roma. Nos diálogos deles na cripta, Bonhoeffer tinha especulado que os padres católicos, como celibatários, combatiam melhor Hitler, pois suas mortes não prejudicariam nenhum dependente.
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Naquela noite, Kaltenbrunner ficou acordado até tarde, lendo os diários de Canaris. Ele considerou o conteúdo tão impressionante, que, no dia seguinte, levou os fichários para a reunião com Hitler ao meio-dia.
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Hitler mergulhou na leitura das revelações. Lendo os trechos marcados pela SS, convenceu-se de que sua grande missão – agora sob ameaça de todos os lados – não tinha fracassado por iniciativa própria. Em vez disso, traidores em suas fileiras o tinham traído por meio de intrigas, mentiras e sabotagens. Sua raiva explodiu num acesso vulcânico:
– Liquide os conspiradores imediatamente.
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Ao amanhecer, o furgão passou por Hof, perto da cidade natal de Müller. Ele cogitou uma tentativa de fuga. Na floresta francônia, ele talvez pudesse se esconder na casa de um lenhador. Mas os guardas do transporte tinham um cão, que ficava postado atrás dos prisioneiros com os dentes à mostra sempre que eles saíam do furgão para urinar. Ao meio-dia, aproximadamente, eles chegaram a Neustadt, onde a estrada bifurcava para Flossenbürg. Conhecendo a reputação de Flossenbürg como campo de extermínio, Müller rezou para que eles não pegassem o caminho para lá. O furgão parou e alguns guardas desceram e se encaminharam para o que parecia ser uma cabana da polícia. Eles voltaram e disseram que Flossenbürg não tinha espaço para novos prisioneiros. Müller agradeceu a Deus quando o furgão seguiu adiante.
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De repente, dois agentes da SS, em motocicletas, se puseram ao lado do furgão, que se moveu lentamente até um acostamento e parou. Uma voz áspera gritou o nome de Müller. Um telex urgente de Berlim
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ordenava que ele fosse levado a Flossenbürg.
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Müller desembarcou do furgão. Vassili Kokorin saltou para fora e correu atrás dele. Percebendo que os nazistas tinham condenado seu amigo à morte, Kokorin quis se despedir. Ele abraçou Müller e beijou seu rosto no estilo russo.
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Os guardas embarcaram Müller num furgão verde, que tinha um cheiro desagradável de cal, cloro e cadáveres. O furgão pegou um aclive, passando por um conjunto de casas e uma capela. O campo se espalhava através do cume da colina: torres, alojamentos, arame farpado. Uma ravina cortava o cume como um fosso.
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Müller atravessou um portão arqueado e alcançou um pátio coberto de pó. Diversas forcas estavam sob um pavilhão, ocultando-as da visão geral.
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Os guardas o forçaram a percorrer um caminho calçado com pedras e o levaram para um edifício de tijolos baixo, que se assemelhava a um hotel de beira de estrada. Numa das celas, os guardas acorrentaram Müller numa parede e trancaram a porta. O espaço espartano continha apenas uma cama de tábua e um banquinho. Apenas o retintim desgarrado de correntes quebrava o silêncio.
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Um dos vizinhos contou para Müller os segredos de Flossenbürg. O general Hans Lunding, ex-chefe do serviço de inteligência militar dinamarquês, estava no campo há quase um ano. Por uma fenda na porta da cela, ele viu centenas de prisioneiros serem levados ao pátio de execução. Lunding também conseguiu ver as trilhas estreitas que os prisioneiros usavam para transportar os cadáveres ao crematório situado no vale fora do campo. Ele viu sete ou oito mil corpos carregados para fora, dois por maca. No inverno, às vezes os carregadores escorregavam na trilha congelada, e os cadáveres caíam das macas e rolavam colina abaixo. No último mês, a quantidade de execuções superou a capacidade do crematório. Assim, a SS começou a empilhar os corpos, encharcá-los com gasolina e incendiá-los. Outros prisioneiros morreram de fome proposital, ou, quando o famélico mostrava uma vontade obstinada de viver, a SS mantinha suas cabeças debaixo d’água.
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Em 8 de abril, o coronel Walter Huppenkothen chegou a Flossenbürg. No que geralmente servia como lavanderia do campo, ele instalou o tribunal para julgar os conspiradores de Canaris. Cortinas pretas bloqueavam as janelas. Lâmpadas elétricas desprotegidas brilhavam sobre duas mesas. Huppenkothen ficava sentado ao lado de Otto Thorbeck, um homem gordo numa toga de juiz. O
Sturmführer
Kurt Stavitzki ficava atrás deles. O tribunal não fornecia advogado de defesa.
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Hans Oster foi o primeiro a ser julgado por Huppenkothen. Após falsas formalidades, o juiz Thorbeck pediu que Stavitzki lesse as acusações: alta traição e traição no campo durante o tempo de guerra. A acusação confrontou Oster com o diário de Canaris. Oster admitia ter participado daquela conspiração? Naquele momento, Oster não viu motivo para mentir. Sim, respondeu ele, tinha feito aquilo pela Alemanha.
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O tribunal o dispensou e chamou Canaris. O almirante insistiu que só fingira que cooperava com os conspiradores para tomar conhecimento de seus planos. Ele pretendia chegar ao grupo antes que este conseguisse agir. O serviço de inteligência militar tinha de se infiltrar em qualquer conspiração dirigida contra a segurança pública. A SS poderia enforcá-lo por cumprir seu dever, mas, se houvesse uma nova chance, ele voltaria a fazer aquilo.
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O juiz Thorbeck interrompeu os trabalhos e chamou Oster de volta. Quando Thorbeck contou para Oster o que Canaris tinha alegado em sua defesa, Oster protestou de forma indignada. O movimento característico de Canaris – ocultar-se à vista de todos, fingir ser um fingidor – o tinha finalmente traído. Com um olhar desesperado, Canaris insistiu que fez tudo pela pátria. Ele não tinha cometido traição. Sem dúvida, Oster devia saber que o almirante só
fingiu
cumplicidade. Ele fez isso para exibição, ele gritou desesperadamente. Oster não entendia aquilo?
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Não, vociferou Oster, aquilo não era verdade. Eles não deviam mais fingir. De qualquer forma, a SS os mataria. Eles deviam defender o que fizeram. Canaris deveria confessar tudo orgulhosamente, como Oster confessara. Quando Thorbeck perguntou se Oster o tinha acusado falsamente, Canaris respondeu de maneira calma:
O Sturmführer
Kurt Stavitzki destrancou a cela de Müller. “Você será enforcado logo depois de Canaris e Oster”, provocou ele. Quando os guardas tiraram Müller da cela, Stavitzki gritou atrás dele:
– Boa sorte, malandro. Você merece a forca!
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Müller se preparou para a morte. Usando o uniforme listrado de cores laranja e cinza, ajoelhou-se e sussurrou o pai-nosso. Em seguida, gesticulou para um de seus colegas prisioneiros, o general russo Pyotr Privalov, e lhe pediu que memorizasse uma mensagem. Sabendo que as últimas palavras do condenado à morte às vezes alcançavam o mundo exterior, ele disse para Privalov que gritaria para o carrasco:
Em seguida, Müller falou acerca da primeira comunhão da filha. Ele havia lutado para manter intacta a Igreja alemã, para que ela pudesse viver para ver aquele dia. Agora, ela cresceria sem pai. No entanto, Müller se apegou a um pensamento consolador. No mesmo dia que ele caminhava para a forca – talvez até na mesma hora – a filha caminharia até o altar para receber o pão da vida.
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Dietrich Bonhoeffer acordou com os latidos dos cães.
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Uma chave girou na fechadura e dois homens estavam postados no vão da porta. A hora tinha chegado. Os guardas o seguiram pelo corredor até a sala da guarda, onde Oster e Canaris aguardavam. Eles cumpriram a ordem de tirar a roupa. Uma porta se abriu, o ar frio invadiu o recinto e os guardas levaram Canaris. Os latidos se intensificaram. Uma sombra se afastou. A porta se fechou. Depois de muito tempo, a porta se abriu. Os guardas levaram Oster. A porta se fechou. Depois de pouco tempo, a porta voltou a se abrir. Os guardas levaram Bonhoeffer.
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Luzes de arco voltaico brilhavam. Do lado esquerdo de Bonhoeffer, estavam Huppenkothen, Stavitzki e um homem com um estetoscópio. Do lado direito, os guardas continham os cães. O verdugo amarrou as mãos de Bonhoeffer atrás de suas costas e, em seguida, fez um sinal para ele. Bonhoeffer subiu os três degraus e se virou. Alguém pôs a corda com o nó corrediço em torno de seu pescoço. O verdugo chutou a escadinha para o lado.
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