Capítulo 26
O lago cor de esmeralda
No domingo, 8 de abril, Hans
Rattenhuber deixou o
bunker
de Hitler para tomar ar. Ele destrancou três portões de ferro, subiu doze degraus em espiral e abriu uma porta de aço à prova de gás.
1
Saiu nas ruínas do jardim da Chancelaria. Enquanto circulava entre estátuas destruídas, encontrou Ernst Kaltenbrunner, chefe do Escritório de Segurança do Reich. Kaltenbrunner saíra do
bunker
para fumar e tinha uma história para contar.
2
Por quase nove meses, Kaltenbrunner investigara conspirações para assassinar Hitler. Como Rattenhuber tinha a missão de proteger o Führer, ele acompanhou as revelações com uma espécie de arrebatamento aflito. Na última semana, afirmou Kaltenbrunner, a história tinha sofrido uma reviravolta fantástica.
3
A descoberta dos diários de Canaris, em Zossen, confirmaram o que Hitler suspeitava há muito tempo: muitas das ameaças à sua vida e ao seu poder remontavam ao “Vaticano, que Hitler (...) considerava o maior centro de espionagem do mundo”.
4
A evidência tinha implicado Canaris e seis colegas seus. A pasta do caso, originalmente aberta por Heydrich, ainda tinha o codinome Rede Negra. A SS os enforcaria em segredo. Enquanto os outros conspiradores encararam julgamentos espetaculosos, os conspiradores da Rede Negra desapareceriam no meio da noite e da neblina. Ninguém tomaria conhecimento de suas punições, crimes ou nomes. Hitler impôs silêncio absoluto sobre o caso. As fontes verdadeiras da conspiração, afirmou Kaltenbrunner, não poderiam ser reveladas.
5
Rattenhuber pôs a mão no ombro de Kaltenbrunner e perguntou: “Mas você tirou o nome de meu amigo Josef Müller da lista, não?” Kaltenbrunner respondeu que não era capaz de se lembrar. Uma vida a menos, ou a mais, não importava muito no “sabá das bruxas” daqueles últimos dias. A SS decidia quem morria com um aceno de mão.
6
Contudo, a política de corte nazista ofereceu uma abertura para Rattenhuber. Ele sabia que Kaltenbrunner considerava Himmler um excêntrico covarde e cobiçava seu cargo de chefe da SS. Jogando com esses sentimentos, Rattenhuber recordou o que Müller dissera à Gestapo em 1934, que queria ter atirado em Himmler. O Führer havia jurado não deixar os inimigos internos da Alemanha
7
sobreviverem àquela guerra, como tinham sobrevivido à última. Mas Zé Boi, que desafiou até Himmler, não merecia sobreviver para renascer das cinzas?
Quando Kaltenbrunner não opôs objeções, Rattenhuber pressionou. Em vez de matar Müller, os nazistas poderiam usá-lo como isca. Por intermédio de Müller, poderiam pedir a Pio que buscasse uma paz em separado com o Ocidente. Supostamente, Himmler estava fazendo propostas mediante um monge beneditino, Hermann Keller.
8
Um movimento por intermédio de Müller não proporcionaria uma oportunidade melhor? Sobretudo porque, como Kaltenbrunner já tinha dito a Hitler, “o papa pessoalmente” casou Müller na cripta de são Pedro?
Kaltenbrunner respondeu que iria levar em consideração o assunto. Ele pediria a seu ajudante que telefonasse para Flossenbürg, a fim de saber se “o prisioneiro Müller estava agora, como instruído, em segurança”.
9
Rattenhuber voltou para o
bunker
e desceu os degraus em espiral.
Müller ficou parado ao lado da forca por quase duas horas. Os bombardeiros sobrevoavam Flossenbürg. Ele escutava detonações distantes.
10
Finalmente, um dos guardas se aproximou dele. “Algo imprevisto” tinha acontecido. Eles o sentaram dentro de um fortim entre o prédio principal e o portão do campo.
Um grupo de prisioneiros esqueléticos chegou. O guarda da viagem discutiu com o oficial do campo. Müller escutou alguém gritar: “Eles não estão mais interessados em nomes, só em números!”
11
A SS começou a espancar um prisioneiro perto da entrada. Stavitzki entrou no fortim. Ao ver Müller, começou a gritar: “Esse criminoso ainda está andando por aí?”
12
Os guardas levaram Müller de volta ao pátio de enforcamento.
13
Ele esperou a ordem para subir os degraus debaixo da forca.
14
Nada aconteceu. Müller se perguntou se a SS pretendia só fazer um jogo com ele. Talvez eles quisessem induzir uma “confissão na forca”. Ele se agarrou a essa ideia e sentiu ressurgir a esperança de que poderia sobreviver, embora não tivesse ideia de como isso aconteceria.
15
O crepúsculo caiu. Aos gritos, o comandante disse que a execução continuaria só “amanhã”. Um dos guardas de Müller se aproximou e disse: “Por hoje terminou.” Eles o levaram de volta para a cela e o algemaram em seu catre.
16
Naquela noite, Müller não conseguiu dormir.
17
Alguém abriu com força a porta de sua cela e perguntou: “Você é Bonhoeffer?” Ele esperava que Dietrich estivesse seguro; que não conseguissem encontrá-lo no caos. Uma iluminação agressiva tomou conta do bloco das celas; uma agitação estranha prevaleceu. Os cães ficaram latindo.
18
Perto do amanhecer, o corredor começou a se agitar. Os guardas chamaram os números das celas, duas por vez, e a ordem: “Fora, rápido.” Müller escutou a voz familiar do almirante Canaris. O carrasco chamou de novo: “Fora!” Müller esperava escutar seu número, sete, ser chamado a seguir. Em vez disso, o silêncio tomou conta do lugar.
19
Um guarda tirou as algemas da perna de Müller.
20
“Não sei o que está acontecendo”, disse o guarda. Berlim tinha considerado Müller um “criminoso vil”, mas agora não sabia o que fazer com ele.
21
O guarda ofereceu uma caneca de caldo e um pedaço de pão. Müller caminhou um pouco para ativar a circulação sanguínea.
22
Perto das dez da manhã, salpicos brancos penetraram através da janela gradeada. Pareciam flocos de neve, mas cheiravam como algo queimado. De repente, a portinhola da porta de sua cela se abriu de novo. Peter Churchill, agente secreto britânico capturado, disse: “Seus amigos já foram enforcados e agora estão sendo queimados atrás do cume.”
23
Müller tremeu de pesar e chorou quando se deu conta de que os flocos circundando seu nariz e sua boca eram tudo o que restara de seus amigos.
24
Em 11 de abril, Müller escutou o barulho da aproximação do front.
25
Quando o
Sturmführer
Kurt Stavitzki entrou em sua cela, Müller esperava que os espancamentos recomeçassem. Em vez disso, Stavitzki convidou
Herr Doktor
para escutar as notícias da guerra no rádio do escritório do campo. Ao tomar conhecimento de que os americanos tinham alcançado o rio Elba, Müller perguntou o que aconteceria com ele agora. “Você vai ser tirado daqui e, em seguida, seu destino será decidido”, respondeu Stavitzki. O homem da SS acrescentou que estava preocupado a respeito de sua família. Müller respondeu que também tinha família e não recebia notícias dela havia meses. No entanto, Müller recordou: “Não tive coragem de cuspir nele, que foi meu primeiro impulso.” Stavitzki começou a arrumar uma mochila. Como ele pegou um machadinho para gelo, daqueles que os alpinistas usam. Müller deduziu que a SS tinha a intenção de estabelecer uma última defesa nos Alpes.
26
Em 15 de abril, a SS embarcou Müller e outros prisioneiros especiais num caminhão. Um avião a baixa altitude os sobrevoou quando atravessavam uma ponte comprida. Quando se detiveram por causa de um ataque aéreo em Munique-Freising, Müller quis deixar um cartão de visita, para que os amigos no escritório da catedral pudessem saber que ele ainda estava vivo. No entanto, os guardas pareciam nervosos, e Müller não queria levar um tiro se eles interpretassem mal seu gesto. Através dos pântanos, o caminhão pegou a direção sudoeste.
27
No dia seguinte, Müller chegou a Dachau. Os guardas o conduziram sobre uma ponte que transpunha um fosso de quase quatro metros de largura, cheio de água e cercado com arame farpado, rumo a um
bunker
especial para os inimigos do regime. Ele não podia deixar a cela, exceto durante os ataques aéreos. No entanto, Edgar Stiller, idoso oficial da SS, disse-lhe: “
Fräulein
Anni Haaser ficará feliz de saber que o senhor chegou!” Pouco depois, Anni chegou ao portão do campo com uma mala. “Foi um reencontro emocionante”, recordou Müller, “eclipsado pelo pensamento de que poderia ser o último.” No caminho para encontrá-la, Müller tinha visto vagões carregados com cadáveres.
28
Vassili Kokorin ficou perto de Müller, tratando-o quase como um totem vivo. Em 20 de abril, quando Müller se preocupou em como conseguir voltar para casa em meio ao caos, Kokorin escreveu uma carta em russo. Ele queria que seu amigo católico tivesse um salvo-conduto comunista. “O Exército Vermelho está no controle lá fora! Se alguém falar em russo com você, mostre-lhe a carta e você será liberado imediatamente!”
29
Hitler depositou suas esperanças numa última aposta para tapar as brechas em suas linhas de frente.
30
Em 21 de abril, ordenou a Felix Steiner, general da SS, que deslocasse suas tropas para o sul durante a noite. Se Steiner tivesse êxito, isolaria o Exército Vermelho no norte de Berlim; se fracassasse, o Reich desmoronaria.
Steiner se viu diante de um impasse.
31
Ele não tinha tropas para atacar, mas não podia desobedecer a uma ordem direta. No dia seguinte, quando soube que o contra-ataque não tinha começado, Hitler ficou roxo de raiva e com os olhos esbugalhados.
– Então é isso – gritou ele. – A guerra está perdida! Mas se vocês, cavalheiros, imaginam que deixarei Berlim agora, podem esperar sentados. Prefiro meter uma bala na cabeça!
Em 23 de abril, o tenente-general da SS Gottlob Berger chegou. Hitler ordenou que ele recolhesse os prisioneiros importantes de Dachau e os levasse para os Alpes. As mãos, as pernas e a cabeça de Hitler tremeram, e tudo o que ele continuou dizendo, Berger recordou, foi:
– Mate todos eles! Mate todos eles!
32
Em Dachau, os guardas embarcaram os prisioneiros especiais em alguns ônibus. Quando passaram por Munique, Müller mal reconheceu a cidade bombardeada. Um impacto direto tinha até demolido a figura de Cristo, o Salvador, na catedral de São Miguel. Müller considerou remota a possibilidade de que sua residência, na Gedonstrasse, tivesse sobrevivido.
33
Eles entraram na Áustria. Os ônibus seguiram pelas passagens tirolesas até Reichenau, campo de concentração perto de Innsbruck. A cena não prenunciou que o caminho de aflições tivesse terminado. Esperando ajuda externa, Müller entregou um de seus cartões de visita para um guarda e lhe pediu que o levasse a Josef Rubner, gerente-geral do
Tiroler Graphik
, em Innsbruck, a quem o próprio Müller tinha designado como agente fiduciário do jornal. O guarda voltou e informou que Rubner tinha dito:
– Não conheço esse homem.
34
O padre Rösch foi ver o diretor da prisão da Lehrterstrasse. Após alguma consideração, Rösch escolheu o dia 25 de abril, Dia de São Marcos, às quatro da tarde, como o momento mais sagradamente auspicioso. A autoridade do diretor derivava de um regime defunto, afirmou Rösch, e ninguém se importava mais com suas decisões, exceto os russos, que logo tomariam conhecimento das injustiças que ele tinha cometido.
35
Ele deveria soltar os prisioneiros e fugir para salvar sua vida. Após refletir durante alguns minutos, o diretor concordou. Rösch desceu correndo a escadaria de ferro rumo ao porão, dando a notícia aos gritos.
36
Os últimos prisioneiros de Berlim passaram espectralmente pelos portões da cadeia. Na rua, viraram-se e viram o prédio como seus olhos há muito tinham querido vê-lo: do lado de fora. “De repente, o fogo da artilharia pesada caiu sobre nós”, recordou Rösch.
37
Ele correu através das explosões, metendo-se nos vãos das portas quando o assobio dos projéteis chegava perto. Exatamente quando os russos chegaram, Rösch encontrou refúgio no mosteiro de São Paulo, onde Odlio Braun, colega dominicano de conspiração, mantinha uma residência segura do Comitê das Ordens.
38
A SS levou seus prisioneiros especiais para a passagem de Brenner. Em 28 de abril, cruzaram os Alpes rumo à Itália. “Fomos evacuados num grupo de cerca de 150 homens, em seis ou sete ônibus, com escolta da SS, e um jipe na retaguarda com granadas de mão e armas”, recordou Jimmy James, prisioneiro de guerra britânico. “Alcançamos a passagem de Brenner e paramos à meia-noite. Simplesmente paramos no escuro e não sabíamos o que estava acontecendo. A SS tinha desaparecido e nos perguntamos o motivo.” Müller suspeitou que os nazistas os manteriam como reféns num castelo. Outros rumores diziam que, após a “vitória final”, Himmler os condenaria num julgamento espetacular. Em 2000, James afirmaria:
– Descobri anos depois que a SS estava se preparando para nos metralhar e dizer que tínhamos sido mortos por bombas.
39
No entanto, os guardas da SS tinham se dividido em facções. O
Obersturmführer
Edgar Stiller liderou cerca de trinta recrutas mais velhos. Eles “se comportaram decentemente”, recordou Müller. Martin Niemöller, pastor protestante encarcerado, assediou Stiller, tentando saber o que aconteceria com eles. “Tivemos a impressão de que Niemöller tratava o oficial da SS como seu ajudante pessoal, e que Stiller aceitava aquilo tacitamente.”
40
Uma atitude menos amistosa prevaleceu entre o pequeno destacamento de escolta da SS: “Vinte personagens sinistros, armados até os dentes.” O
Untersturmführer
Bader, líder do grupo, tinha comandado um esquadrão da morte em Buchenwald.
41
Müller percebeu que Bader tinha algo contra ele. Stiller tinha se referido a uma ordem superior: “O advogado não deve cair vivo nas mãos do inimigo.”
42
Stavitzki enviara Bader de Buchenwald, perguntou-se Müller, para levá-lo de volta à forca? Ele decidiu ficar perto do coronel Bolgislav von Bonin, que, apesar de bater em retirada de Varsóvia contra as ordens de Hitler, permaneceu como “prisioneiro de honra” e portava uma pistola.
43
Nas primeiras horas da manhã, os homens da SS voltaram. Levaram os prisioneiros para o lado leste da passagem de Brenner, para o vale do Tirol. Num cruzamento ferroviário, próximo à cidade de Villabassa, a caravana parou subitamente. A SS pareceu em dúvida a respeito do que fazer, mas deixou os prisioneiros esticarem as pernas. Um dos ônibus estava com o pneu furado, o combustível escasseava, e nenhuma ordem tinha vindo de Berlim. Assim, o destacamento da SS se embriagou.
44
Alguns dos prisioneiros se reuniram numa cabana da estrada de ferro para planejar uma fuga. Dois comandos da Executiva de Operações Especiais britânica elaboraram um plano com o general Sante Garibaldi, guerrilheiro italiano capturado e descendente do herói da guerrilha italiana do século XIX. Naquela noite, com a ajuda de moradores da região leais à causa deles, Garibaldi e seu chefe do estado-maior, o tenente-coronel Ferrero, afastaram-se de Villabassa com o objetivo de entrar em contato com seus compatriotas nas montanhas ao redor. Prometeram voltar com os guerrilheiros e atacar os guardas da SS.
45
“Enquanto isso, os homens da SS, responsáveis pelo grupo de prisioneiros, tinham ficado muito bêbados”, relatou James. “Um deles mais ou menos perdeu a consciência, e um de nossos colegas disse: ‘Vamos dar um pouco mais de bebida para ele e, depois, tirar seu livro de bolso.’ Fizemos isso e achamos uma ordem que dizia que os oficiais dos Aliados e os diversos outros prisioneiros não deviam cair sob a custódia dos Aliados.” Entrementes, Bader tinha contado para um dos prisioneiros que a SS tinha preparado uma “sala especial”.
46
Os reféns decidiram não esperar pelos guerrilheiros de Garibaldi. Alguns prisioneiros britânicos arrojados fizeram ligação direta num velho Volkswagen e pegaram o rumo das montanhas, esperando alcançar um quartel-general americano e voltar com uma equipe de resgate. O coronel Bonin achou um telefone na prefeitura e pediu que o comandante-geral do Exército alemão, em Bolzano, a cerca de cem quilômetros a sudoeste, colocasse os prisioneiros sob prisão preventiva. O chefe do estado-maior do general prometeu que uma unidade bem armada se deslocaria durante a noite e chegaria ao amanhecer do dia seguinte.
47
“Percorremos as ruas estreitas para cima e para baixo com algum temor, pois a SS originalmente planejara nos liquidar numa parte isolada do Tirol”, recordou Müller. Ninguém sabia que ordens finais Himmler tinha dado, ou quando as forças aliadas alcançariam a região.
48
Os parentes das famílias Stauffenberg e Goerdeler procuraram abrigo com o pároco local, que os escondeu na casa paroquial.
49
Os outros prisioneiros dormiram sobre camadas de palha na prefeitura. Depois da meia-noite, a porta se abriu de repente. Um oficial da SS apontou para Müller:
– Você, venha!
O coronel Von Bonin ficou de pé rapidamente e mandou o homem da SS recuar. O nazista posicionou-se de forma desafiadora à porta e repetiu:
– Você, venha!
Bonin puxou sua pistola Luger e disse:
– Vou contar até três. Em dois, você é um homem morto!
O oficial da SS se virou e fugiu.
50
No entanto, ninguém dormiu tranquilo. James lembra-se bem dos “homens da SS com as Schmeisser [submetralhadoras] engatilhadas. Aquela noite foi literalmente a Noite dos Longos Punhais, pois a SS estava esperando algo, possivelmente um ataque dos guerrilheiros [italianos]”.
51
Em 29 de abril, Hitler convocou seus comandantes para uma reunião. Eles lhe disseram que as tropas russas tinham alcançado a vizinha estação de Potsdam. A Wehrmacht tinha ficado sem bazucas e não conseguia mais consertar seus tanques. A luta terminaria dentro de 24 horas. Um longo silêncio tomou conta do recinto. Com grande esforço, Hitler se levantou da cadeira e se virou para partir. Seus comandantes perguntaram o que as tropas deveriam fazer quando a munição acabasse. Hitler respondeu que ele não podia permitir a rendição de Berlim. No entanto, quem quisesse poderia tentar fugir em pequenos grupos.
52
No dia seguinte, às três da tarde, o círculo íntimo de Hitler se reuniu no
bunker
inferior. Hitler usava a habitual camisa verde-oliva e a calça preta. Sua amante, Eva Braun, trajava um vestido azul e o bracelete de ouro favorito, engastado com uma pedra preciosa verde. Bombas de artilharia explodiam no alto. Com os olhos turvos, Hitler apertou as mãos de Rattenhuber, Bormann e Goebbels e cerca de duas dúzias de outras pessoas. Disse algumas palavras em voz baixa para cada uma. Então, lentamente, caminhou com Eva Braun de volta ao seu gabinete e fechou as portas duplas.
53
Eva Braun sentou-se num sofá pequeno. Tirou os sapatos e ergueu as pernas sobre o tecido azul e branco do assento. Hitler sentou-se ao lado dela. Eles abriram embalagens de latão, parecidas com tubos de batom, e tiraram ampolas de vidro cheias de um líquido âmbar. Eva quebrou a ampola, bebeu o líquido e repousou a cabeça no ombro de Hitler. Os joelhos dela se ergueram bruscamente, em agonia. Controlando sua mão trêmula, Hitler levou a pistola Walther até sua têmpora direita, rangeu os dentes sobre a ampola em sua boca e puxou o gatilho.
54
Rattenhuber não escutou vozes, nem mesmo o som de um tiro. O mordomo de Hitler, Heinz Linge, parado perto de Rattenhuber, lembrou-se somente do cheiro de pólvora.
55
Quando o séquito de Hitler entrou no recinto, viram o sangue escorrendo no rosto dele. A têmpora direita apresentava um buraco vermelho do tamanho de um marco de prata alemão. Eva estava sentada com a cabeça no ombro de Hitler. Ao morrer, ela tinha arremessado a mão sobre uma mesa e derrubado um vaso de flores.
56
Os guardas de Hitler carregaram os corpos dele e de Eva Braun para cima, para o jardim da Chancelaria. Seu motorista despejou dez latas de gasolina sobre os cadáveres. Rattenhuber acendeu os fósforos e os atirou onde os corpos de Hitler e Eva foram deixados. Os fósforos não se mantinham acesos. Então, Rattenhuber puxou algumas folhas de papel do punho da manga da camisa e as transformou numa tocha. Ele queimou o papel e lançou o material inflamável improvisado sobre os cadáveres. Uma língua de fogo se ergueu. Rattenhuber ficou em posição de sentido e ergueu o braço numa saudação hitlerista. Antes de se virar, viu os corpos se enrolando e os membros se contraindo no fogo.
57
Em 30 de abril, quando os prisioneiros acordaram, Villabassa estava coberta de neve. Os guardas da SS, na prefeitura, tinham todos partido. Em ação de graças, o bispo francês Gabriel Piquet, preso por fornecer documentos falsos aos judeus, celebrou uma missa na igreja católica local. “Todos compareceram”, recordou Jimmy James, prisioneiro de guerra britânico. “Não só católicos e protestantes, mas também prisioneiros ortodoxos da Rússia. Foi muito emocionante.”
58
Durante a cerimônia religiosa, a unidade da Wehrmacht há muito esperada chegou. Os prisioneiros foram para a praça da cidade. Brandindo uma metralhadora, o coronel Von Bonin desarmou os poucos SS que ainda não tinham fugido. A unidade do Exército incorporou alguns homens da SS, identificados por Stiller como “confiáveis e decentes”, e deu aos outros a chance de fugir ou tentar a sorte com os Aliados.
59
“Bader e alguns outros desceram para o vale”, relatou James, e prosseguiu: “Fiquei sabendo depois que eles foram detidos pelos guerrilheiros de [Garibaldi] e enforcados.”
60
A Wehrmacht transferiu os prisioneiros para o hotel Pragser Wildsee. Um dos majestosos hotéis frequentados pela nobreza europeia, dava vista para um lago cor de esmeralda e era cercado por penhascos nevados e bosques. A Wehrmacht posicionou metralhadoras sobre as linhas do cume, acima da estrada de acesso, que serpenteava o vale de Pragser, criando uma melhor posição defensiva contra as unidades Werewolf da SS.
61
“Nevava sem parar e estava muito frio no hotel”, recordou Müller.
62
Em 1º de maio, o general Privalov ofereceu uma festa do Dia do Trabalho em seu quarto. Enquanto a bebida circulava, Vassili Kokorin começou a chorar. Seu “tio”, Stalin, jamais confiaria nele se Kokorin permitisse ser libertado pela “Inglaterra, essa prostituta”.
63
A polícia secreta soviética suspeitaria que o serviço secreto inglês o tinha convertido em agente duplo. Portanto, Kokorin decidiu se juntar aos guerrilheiros de Garibaldi em Cortina d’Ampezzo, cerca de quarenta quilômetros ao sul.
64
Müller tentou dissuadi-lo. A neve ainda tinha quase um metro de profundidade; a ulceração tinha lesionado os pés de Kokorin quando ele saltou de paraquedas atrás das linhas alemãs; as privações de uma longa prisão o tinham debilitado ainda mais. Contudo, Kokorin disse que, como oficial guerrilheiro, devia voltar para a “luta”. Após um abraço de urso e beijos russos, ele desapareceu na noite.
65
Hans Rattenhuber prendeu o capacete de aço. Em 2 de maio, poucas horas antes do amanhecer, usando um pé de cabra, abriu caminho através de uma janela fechada com tijolos do porão da Chancelaria do Reich. Escalou a parede valendo-se dos pés e das mãos e saiu na calçada da Wilhelmstrasse, sob a varanda do Führer, com a pistola engatilhada na mão. Detendo-se e olhando ao redor, como uma sentinela avançada, fez um sinal de mão para os seis seguidores fiéis de Hitler atrás dele. Eles planejavam atravessar túneis do metrô e emergir na região noroeste da cidade, além da Zona Soviética.
66
Rattenhuber cruzou a Wilhelmsplatz, iluminada pela luz do fogo. Crianças famintas fatiavam a carne de um cavalo morto. Na estação de metrô Kaiserhof, Rattenhuber desceu a rampa cheia de escombros da escadaria e caminhou ao longo dos trilhos, diretamente abaixo das linhas soviéticas. Por meio do facho de luz de sua lanterna, buscava um caminho sobre cadáveres e escadarias semidestruídas, passando por soldados feridos e famílias desabrigadas aglomeradas contra as paredes do túnel. Ele emergiu na estação Friedrichstrasse. Por quatro outras horas, rastejou através de porões de ligação cavernosos, correu entre prédios em chamas e cambaleou em ruas escuras. De manhã, o disparo de um atirador de elite soviético o atingiu, apenas a alguns metros da fábrica de cerveja Schultheiss.
67
“Dois soldados trazem Rattenhuber, que está ferido”, escreveu em seu diário Traudl Junge, secretária de Hitler. Ela se instalou no porão da fábrica de cerveja, ponto de encontro predeterminado pelo círculo de Hitler em fuga. “Ele levou um tiro na perna, está febril e com alucinações. Um médico o trata e o põe numa cama de campanha. Rattenhuber pega a pistola, libera a trava de segurança e coloca a arma ao lado dele. Um general chega ao
bunker
. Descobrimos que somos o último bastião de resistência da capital do Reich. Nesse momento, os russos cercaram a fábrica de cerveja e estão exigindo a rendição de todos.”
68
Em 4 de maio, um jipe Ford subiu serpeando pela estrada que leva ao hotel Pragser Wildsee. Espalhando neve, deslizando sobre placas de gelo escuro, finalmente alcançou o lago cor de esmeralda.
69
Um tenente de cabelos curtos saltou para fora do veículo e se identificou como homem da unidade avançada do general Leonard T. Gerow, comandante do XV Exército americano. Os soldados alemães desceram das linhas do cume e entregaram suas armas.
70
O general Gerow chegou com diversas companhias militares. Ele ganhara a terceira estrela em seu capacete como primeiro comandante de divisões militares a desembarcar na Normandia, e os soldados alemães lhe mostraram “uma deferência quase religiosa”, recordou Müller. Gerow congratulou com os prisioneiros. Então, ele lhes disse que não poderia atender a seus desejos de voltar para casa. Tinha ordens para interrogá-los e “se desfazer” deles em Nápoles.
71
Os soldados de Gerow levaram os prisioneiros para o sul. Em 7 de maio, ficaram num alojamento em Verona.
72
No dia seguinte, Müller embarcou num avião de transporte Beechcraft C-45, que voou os 650 quilômetros restantes para Nápoles. Quando o avião sobrevoou Roma, Müller viu, muito abaixo, o distintivo verde dos jardins do papa e as linhas unidas da Praça de São Pedro, em forma de uma chave.
73