V
1939
Saibamos guardar a raiva, a dor e as lágrimas.
Saibamos preencher a desolação e o vazio,
e que a fogueira da noite recorde
a luz das falecidas estrelas.
Víctor Dalmau passou vários meses no campo de Argelès-sur-Mer, sem suspeitar que Roser também ali estivera. Não tivera notícias de Aitor, mas acreditava que este conseguira retirar a sua mãe e Roser de Espanha em segurança. Nessa altura, a população do campo de refugiados era, na sua maioria, composta por milhares de soldados republicanos, sujeitos à miséria, à fome e às humilhações e maus-tratos constantes dos seus carcereiros. As condições permaneciam desumanas, mas pelo menos o mais inclemente período inverno já passara. Os prisioneiros iam encontrando formas de sobreviverem sem enlouquecer. Organizavam encontros revolucionários, divididos em partidos políticos, como ocorria durante a guerra. Cantavam, liam tudo quanto lhes ia parar às mãos, alfabetizavam quem de tal necessitava, publicavam um jornal que consistia numa folha escrita à mão, que circulava de leitor em leitor, e tentavam preservar a dignidade mínima, cortando o cabelo e livrando-se dos piolhos uns aos outros o melhor que podiam, e lavando a roupa no mar. Dividiram o campo em ruas que batizaram com nomes poéticos, criaram, na areia e no lodo, a ilusão de praças como as que existiam em Barcelona, inventaram uma orquestra sem instrumentos para tocar música clássica e popular, bem como restaurantes que serviam comida invisível, descrita em detalhes assombrosos pelos cozinheiros, e que os demais saboreavam de olhos fechados. Com os poucos materiais que iam conseguindo, ergueram barracões e choupanas. Viviam em suspenso na expectativa das notícias do mundo de fora, que estava a um passo de mergulhar no abismo de uma nova guerra, e contemplavam a possibilidade distante de alcançarem a liberdade. Alguns, os mais qualificados, conseguiam tornar-se funcionários do campo, ou empregados numa ou noutra fábrica, mas, a maior parte deles, antes de terem sido convertidos em soldados, haviam sido lavradores, lenhadores, pescadores, pastores, e em França não encontravam nenhum ofício que soubessem desempenhar. Enfim, suportavam a pressão contínua das autoridades para que fossem repatriados, e, nalguns casos, chegavam mesmo a ser conduzidos enganados até à fronteira com Espanha.
Víctor permaneceu ali juntamente com um pequeno grupo de médicos e de enfermeiros, pois naquela praia infernal tinha uma missão: estar ao serviço dos doentes, dos feridos e dos loucos. Perseguia-o a lenda de que fizera voltar à vida o coração de um rapaz morto na Estação do Norte. Esse feito granjeava-lhe a confiança cega dos pacientes, ainda que ele lhes repetisse uma e outra vez que para as doenças de mais gravidade deveriam recorrer aos médicos. As horas do dia não lhe chegavam para desempenhar cabalmente tudo quanto a sua tarefa lhe exigia. O tédio e a depressão, flagelos de que padecia a maior parte dos refugiados, não o afetavam. Pelo contrário, encontrava no seu trabalho uma exaltação similar à felicidade. Estava tão magro e debilitado como o resto da população do campo, mas nunca sentia fome, e em mais do que uma ocasião cedera a sua parca ração de bacalhau seco a outrem. Os seus camaradas diziam que se alimentava de areia. Trabalhava desde o amanhecer, mas como ao cair da noite ainda lhe sobrasse algum tempo livre, pegava na guitarra e cantava. Poucas vezes tivera oportunidade de o fazer durante a Guerra Civil, mas ainda se lembrava das canções românticas que a sua mãe lhe ensinara, a fim de combater a timidez, bem como de algumas cantigas revolucionárias que eram acompanhadas em coro pelos demais. A guitarra pertencera a um jovem andaluz que lutara sempre agarrado a ela, que a levara para o exílio de Argelès-sur-Mer, e que com ela permanecera até fins de fevereiro, quando uma pneumonia o conduzira a melhor destino. Como fora Víctor quem dele cuidara nos seus últimos dias, o jovem deixara-lhe a guitarra por herança. Era dos poucos instrumentos musicais existentes no campo. Havia muitos outros de faz-de-conta, cujos sons eram imitados e reproduzidos pelos homens dotados de bom ouvido.
Por essa altura, foi-se tornando menor a concentração humana no acampamento. Os velhos e os doentes iam morrendo e eram enterrados num cemitério adjacente. Os mais afortunados conseguiram vistos para emigrar rumo ao México e à América do Sul. Muitos soldados se incorporaram à Legião Estrangeira, pese embora o boato corrente de que ali se praticava uma disciplina brutal, e de que nas suas fileiras albergava terríveis criminosos, porque qualquer coisa era preferível a permanecer naquele campo de concentração. Os que preenchiam os requisitos foram integrados na Companhia de Trabalhadores, criada para substituir a força laboral francesa, mobilizada para a guerra. Mais tarde, outros partiriam para a União Soviética para lutarem no Exército Vermelho, ou para se incorporarem na Resistência francesa. Destes, muitos morreriam em campos de extermínio nazi, outros nos gulags de Estaline.
Certo dia de abril, quando o insuportável gelo do inverno dera lugar à primavera, e já se adivinhavam os primeiros dias quentes de verão, chamaram Víctor ao gabinete do comandante do campo, pois tinha uma visita. Tratava-se de Aitor Ibarra. Um Aitor trajando sapatos brancos e um largo chapéu de palha. Custou-lhe muito reconhecer Víctor no espantalho esfarrapado em que este se tornara. Abraçaram-se, emocionados e de olhos húmidos.
– Não sabes como me custou encontrar-te, meu irmão. Não apareces em nenhuma lista. Pensei que estivesses morto.
– Quase… E tu? Como é que apareces assim vestido de chulo?
– De chulo não, de empresário, queres tu dizer. Já te conto.
– Primeiro diz-me o que é feito da minha mãe e de Roser.
Aitor informou-o então do desaparecimento de Carme. Fizera pesquisas diversas sem obter nenhum resultado concreto. Apenas averiguara que Carme não tornara a Barcelona e que a casa dos Dalmau fora ocupada. Viviam ali outras pessoas. Ao contrário, no que dizia respeito a Roser, as notícias eram boas. Resumiu-lhe a saída de Barcelona, a travessia através dos cumes dos Pirenéus e de como foram separados ao chegarem a França. Não soube do seu paradeiro durante um tempo.
– Eu fugi do campo mal pude, Víctor. Não entendo como é que não tentaste fazer o mesmo.
– Muito simples… porque senti que era preciso aqui.
– Com essa mentalidade, camarada, vais estar sempre fodido!
– Eu sei, eu sei, mas o que queres que faça? Enfim… voltemos a falar de Roser.
– Localizei-a sem dificuldade, mal consegui recordar-me do nome daquela tua amiga enfermeira. Com tantos sobressaltos, tinha-se-me apagado do pensamento. Roser esteve aqui neste mesmo campo e saiu graças à intervenção de Elisabeth Eidenbenz. Vive com uma família de Perpignan, que a recebeu, trabalha como costureira e também dá aulas de piano. Teve um rapaz forte e saudável, que já tem mais de um mês e meio, e que é bem bonito, por sinal!
Aitor refizera a sua vida fazendo o que antes fazia, ou seja, negociando. Durante a guerra conseguia sempre obter os bens mais apreciados, cigarros e morfina, por vezes até mesmo sapatos e açúcar, bens que depois trocava por outros, num ir e vir de formiga, e sempre com uma boa margem de lucro. Também arranjava certas preciosidades, como a pistola alemã e o canivete americano que tanto haviam impressionado Roser. Desses dois itens jamais se desprendera, e ainda se sentia despeitado sempre que recordava o momento em que lhos haviam confiscado. Conseguira pôr-se em contacto com uns primos seus que haviam emigrado para a Venezuela, que se dispuseram a recebê-lo e a conseguir-lhe trabalho. Graças à sua habilidade inata, juntara dinheiro suficiente para a passagem e para o visto.
– Partirei dentro de uma semana, Víctor. Temos de sair da Europa o quanto antes. Vai cair-nos em cima outra guerra mundial, e suspeito que vá ser ainda pior que a primeira. Mal chegue à Venezuela, vou tratar das burocracias para que também possas juntar-te a mim, e depois mando-te a passagem.
– Não posso deixar aqui Roser com a criança…
– Também os levarei, evidentemente, homem!
A visita de Aitor deixou Víctor sem palavras durante alguns dias. Tinha a sensação de uma vez mais se encontrar prisioneiro, suspenso numa espécie de limbo, sem controlo algum sobre o próprio destino. Depois de horas e horas a caminhar na praia para lá e para cá, medindo e pesando a sua responsabilidade para com os doentes do campo, decidiu que era tempo de dar prioridade ao vínculo que o unia a Roser e à criança. Era tempo de pensar nele próprio e de decidir a sua vida e o seu futuro. No dia 1 de abril, Franco, caudilho de Espanha, assim se autointitulava desde dezembro de 1936, dera por terminada a guerra que durara novecentos e oitenta e oito dias. A França e a Grã-Bretanha tinham reconhecido a legitimidade do seu Governo. A pátria estava perdida. Não havia esperança de regressar. Víctor tomou um banho no mar, esfregando-se com areia, à falta de sabão, pediu a um camarada para lhe cortar o cabelo, e, após ter-se barbeado cuidadosamente, solicitou o seu visto para levantar a caixa de medicamentos que a cada semana lhe fornecia um hospital local. A princípio ia sempre acompanhado por um guarda, mas depois de assim procederem durante alguns meses, permitiram-lhe que o fizesse só e sem vigia. Saiu como de costume, sem qualquer problema, e dessa vez não regressou. Aitor deixara-lhe algum dinheiro, que Víctor gastou na primeira refeição digna desse nome desde janeiro, num fato cinzento, em duas camisas e num chapéu, tudo roupas usadas mas em bom estado, e num par de sapatos novos, lembrando-se do que dizia a sua mãe: bem calçado, bem-parecido. Apanhou boleia com um camionista, e assim se apresentou em Perpignan, no escritório da Cruz Vermelha, a perguntar pela sua amiga.
Eidenbenz recebeu-o na sua maternidade improvisada, com um recém-nascido em cada braço, tão atarefada que mal se recordou do breve início de romance entre ambos, que, em rigor, nem chegara a acontecer. Ele, porém, não a esquecera. Ao vê-la com aquele olhar límpido, no seu uniforme branco, achou-a perfeita, e pensou como fora imbecil ao imaginar que ela se interessaria por ele. Ela não tinha vocação de apaixonada, mas sim de missionária. Ao reconhecê-lo, entregou as crianças aos cuidados de outra enfermeira e abraçou-o com genuíno afeto.
– Como estás diferente, Víctor… deves ter sofrido muito…
– Nem por isso… sofri menos que muitos. Tive sorte, apesar de tudo. Pelo contrário, tu estás perfeita, como sempre.
– Achas?
– Sim. Como fazes para te conservares sempre assim, serena, impecável e sorridente? Conheci-te em plena guerra e continuas imutável, como se este tempo atribulado em que vivemos não te afetasse.
– Víctor, os tempos difíceis apenas me obrigam a ser forte e a trabalhar ainda mais arduamente. Vieste ver-me para saber de Roser, certo?
– Sim. Nem sei como agradecer-te tudo o que fizeste por ela, Elisabeth.
– Não tens de me agradecer. Vamos ter de fazer horas até às oito, quando ela termina a última aula de piano do dia. Não vive aqui. Está hospedada em casa de uns amigos quakers que me ajudam a conseguir recursos para financiar a maternidade.
Assim fizeram. Elisabeth apresentou-o às mães que viviam na casa e depois mostrou-lhe as instalações. Seguidamente, como ainda tinham tempo livre, sentaram-se a tomar chá acompanhado de biscoitos, enquanto punham a conversa em dia sobre as dificuldades com que um e outro se haviam deparado desde a Frente de Teruel, último lugar em que se tinham visto. Perto das oito, Elisabeth levou-o no seu carro, mais atenta à conversa do que ao volante. Víctor deu consigo a pensar quão irónico seria ter sobrevivido às agruras do campo de concentração para vir morrer ali, esmagado como um verme, a bordo do carro daquele amor platónico.
A casa dos quakers ficava a uns vinte minutos de distância, e foi a própria Roser quem lhes abriu a porta. Ao ver Víctor, lançou um grito e levou as mãos ao rosto como que tomada por uma assombração, e ele, à falta de palavras, apertou-a nos seus braços. Recordava-a delgada, de cintura fina e de peito plano, o rosto longilíneo e as sobrancelhas densas, o género de mulher desprovida de vaidade, que com o passo do tempo se tornaria cada vez mais seca e com traços mais marcadamente masculinos. Vira-a pela última vez em fins de dezembro, com um ventre proeminente e o rosto polvilhado de acne. A maternidade conferira-lhe um aspeto mais brando, atribuindo-lhe curvas suaves onde antes houvera apenas ângulos, e tinha a pele e o cabelo brilhantes, e os seios grandes como resultado da recente amamentação do filho. O reencontro foi de tal forma emotivo, que até mesmo Elisabeth, que estava habituada a presenciar cenas dilacerantes, se comoveu. Quanto ao sobrinho, pareceu a Víctor indescritível. Todos os bebés daquela idade, segundo ele, se assemelhavam a Winston Churchill. Era gordo e calvo. Porém, um olhar mais atento revelou-lhe alguns traços familiares, como os olhos negro-azeitona dos Dalmau.
– Como se chama ele? – perguntou a Roser.
– Por agora, chamamos-lhe simplesmente Menino. Estou à espera de Guillem para lhe pormos um nome definitivo e para o registarmos.
Estava na hora de dar a Roser a má notícia, mas uma vez mais lhe faltou a coragem.
– Porque não lhe chamas Guillem?
– Porque Guillem me disse que jamais algum dos seus filhos levaria o seu nome. Não gostava dele. Tínhamos combinado que se fosse um rapaz se chamaria Marcel e se fosse uma menina seria Carme, isto em homenagem aos teus pais. Portanto, assim será. Vou esperar por Guillem e depois decidimos.
A família de quakers, constituída por pai, mãe e duas crianças, convidou Víctor e Elisabeth para jantarem com eles nessa noite. Para ingleses que eram, a refeição estava até bastante aceitável. Além disso, falavam um bom espanhol, pois haviam vivido em Espanha durante a Guerra Civil, ajudando organizações de apoio a crianças, e atualmente prosseguiam a sua missão, continuando a trabalhar com os refugiados. Dedicariam sempre as suas vidas a isso, disseram, porque, tal como sustentava Elisabeth, haveria sempre uma guerra a eclodir em qualquer parte do globo.
– Estamos-vos muito agradecidos – disse-lhes Víctor. – Graças ao vosso auxílio, temos o nosso menino a salvo e connosco. No campo de Argelès-sur-Mer, temo que nem ele nem Roser teriam sobrevivido. Esperamos não abusar da vossa hospitalidade por muito mais tempo.
– Não tem de quê, senhor. Roser e o bebé já são praticamente da família. Que pressa tem em partir?
Víctor contou-lhes então do seu amigo Aitor Ibarra e do seu propósito de emigrarem para a Venezuela, assim que ele os pudesse ajudar. Parecia a única hipótese viável.
– Se pensam mesmo em emigrar, talvez seja de considerar a hipótese de irem para o Chile – interveio Elisabeth. – Vi algures a notícia de um barco que em breve levará emigrantes espanhóis para lá.
– E onde fica o Chile? – inquiriu Roser.
– No cu do mundo, segundo me parece – informou Víctor.
No dia seguinte, assim que encontrou o recorte com a notícia, Elisabeth enviou-o a Víctor. Por conta do seu Governo, o poeta Pablo Neruda estava a preparar um barco chamado Winnipeg para transportar exilados para o seu país. Elisabeth deu-lhe dinheiro para comprar uma passagem de comboio até Paris e tentar a sorte com o poeta.
Valendo-se de um mapa da cidade, Víctor conseguiu encontrar a Avenida Motte-Picquet, n.º 2, perto de Les Invalides, onde ficava a Embaixada do Chile. Havia fila à porta, cuja entrada era controlada por um porteiro de maus modos. Eram também hostis os funcionários do interior do edifício, incapazes de responder ao mínimo cumprimento sequer. A Víctor, tudo isso lhe pareceu de mau agoiro, assim como de mau agoiro era o ambiente pesado e tenso que naquela primavera se respirava em Paris. Hitler ia engolindo vorazmente territórios europeus, uns após outros, e a nuvem negra da guerra pairava já sobre todas as cabeças, a obscurecer o céu. Das pessoas que esperavam vez para serem atendidas, todas falavam espanhol e quase todas ostentavam nas mãos o mesmo recorte de jornal que Víctor lera. Quando chegou a sua vez, indicaram-lhe uma escadaria, que nos primeiros pisos se apresentava imponente, feita de mármore e bronze, para desembocar, estreita e mais pobre, numa espécie de águas-furtadas. Não havia elevador, e Víctor teve de ajudar um espanhol ainda mais coxo do que ele, pois perdera uma perna e apenas conseguia subir com grande dificuldade, agarrado ao corrimão.
– É verdade que só aceitam comunistas? – perguntou-lhe Víctor.
– Pelo menos é o que dizem… Tu o que és?
– Republicano, simplesmente.
– Não compliques as coisas. O melhor é dizeres ao poeta que és comunista e pronto.
Num pequeno aposento escassamente mobilado com uma secretária e três cadeiras, recebeu-o Pablo Neruda. Era um homem ainda jovem, de olhar perscrutador e pálpebras de árabe, de ombros largos, ligeiramente encurvado, e parecendo mais robusto e a tender para um certo peso em excesso do que na realidade, como Víctor pôde comprovar assim que este se levantou para se despedir. A entrevista durou uns escassos dez minutos e deixou-o com a sensação de que havia fracassado redondamente no seu intento. Neruda fez-lhe algumas perguntas de rotina, idade, estado civil, estudos e experiência de trabalho.
– Ouvi dizer que apenas estavam a selecionar comunistas – disse Víctor, estranhando que o poeta não lhe tivesse perguntado da sua filiação política.
– Então ouviu mal. Aqui a coisa funciona por quotas: comunistas, socialistas, anarquistas e liberais. Decidimos depois, em conjunto com o Departamento de Evacuação de Refugiados Espanhóis. O critério mais importante a ter em conta é o carácter da pessoa e a utilidade que possa ter para o Chile. Estou a analisar centenas de pedidos, e assim que decida, comunicar-lho-ei. Não se preocupe.
– Senhor Neruda, caso a sua resposta seja em sentido afirmativo, peço-lhe o favor de ter em atenção que não viajarei sozinho. Uma amiga com um bebé de poucos meses virá comigo.
– Uma amiga… diz!
– Trata-se de Roser Bruguera, a namorada do meu irmão.
– Nesse caso, o seu irmão teria de vir ver-me também e preencher o impresso do pedido.
– Supomos que o meu irmão tenha morrido na Batalha do Ebro…
– Lamento muito. Mas entenda a minha posição: tenho de dar prioridade às relações familiares mais próximas.
– Entendo. Voltarei dentro de três dias.
– Mas em três dias, meu amigo, não terei uma resposta para lhe dar.
– Mas eu, sim! Muito obrigado!
Nessa mesma tarde, apanhou o comboio de regresso a Perpignan, onde chegou exausto quando era já noite cerrada. Pernoitou num quarto de hotel cheio de pulgas, onde nem sequer pôde tomar um banho, e no dia seguinte, mal despontou a manhã, apresentou-se no atelier de costura onde Roser trabalhava. Saíram os dois para poderem conversar mais à vontade. Tomando-a pelo braço, Víctor conduziu-a até um banco isolado numa praceta próxima e contou-lhe a sua experiência na Embaixada do Chile, omitindo, porém, certos detalhes, como a má vontade dos funcionários chilenos e as escassas esperanças que lhe dera Neruda.
– Víctor, se esse tal poeta te admitir, tens de ir de qualquer forma. Não te preocupes comigo…
– Roser… há uma coisa que eu já te devia ter dito há muito tempo, mas, de cada vez que tento, é como se uma mão de ferro me estrangulasse, e não consigo. Como quisera não ser eu a dizer-to…
– Guillem? É alguma coisa sobre Guillem? – perguntou ela, alarmada.
Víctor assentiu, sem, no entanto, se atrever a dizer fosse o que fosse. Sem mais, apertou-a contra si num firme abraço e deixou-a chorar como uma menina desesperada, perdida, com o rosto afundado no seu casaco de segunda mão, até que Roser ficou rouca e sem lágrimas. Pareceu-lhe que estalava num pranto que por muito tempo contivera, e que, no fundo, a notícia que lhe trazia não constituía uma verdadeira surpresa, pois só assim se poderia explicar o prolongado silêncio de Guillem. Era verdade que muita gente se perdia na guerra, que as famílias e os casais se separavam e se desencontravam, mas certamente que o seu instinto já a advertira do sucedido. Ainda que ela não lhe pedisse qualquer prova, Víctor mostrou-lhe a carteira meio destruída e a fotografia que Guillem sempre trazia consigo.
– Vês porque não posso deixar-te aqui, Roser? Tens de vir comigo para o Chile. Em França também haverá guerra e, acima de tudo, temos de proteger o teu filho.
– E a tua mãe?
– Ninguém voltou a vê-la desde que saímos de Barcelona. Imagino que se tenha perdido no meio daquela confusão. Se estivesse viva já teria entrado em contacto, ou comigo ou contigo. Se por acaso voltar a aparecer, logo veremos a melhor forma de a ajudar. Por agora, tu e o teu filho são o mais importante. Entendes?
– Entendo, Víctor. O que devo fazer, então?
– Desculpa, Roser, mas vais ter de te casar comigo.
Ela ficou a olhá-lo com uma expressão de assombro tal, que Víctor não conseguiu conter um sorriso um tanto inapropriado para a solenidade que o momento impunha. Contou-lhe então o que Neruda lhe dissera sobre a prioridade que conferiam às famílias.
– Nós nem sequer somos cunhados, Roser.
– Casei com Guillem sem papéis e sem a bênção de um padre…
– Receio que neste caso isso seja irrelevante, Roser. Resumindo, és viúva sem o seres de facto. Vamos casar-nos hoje mesmo, se possível, e vamos registar o menino como filho de ambos. Para todos os efeitos, eu serei seu pai… para o que der e vier. E vou cuidar e gostar dele como se fosse meu filho, prometo-te. E o mesmo digo em relação a ti.
– Mas nem sequer estamos apaixonados!
– Estás a ser muito exigente, rapariga! Não te bastam o respeito e o carinho? Nos tempos que correm, parece-me que isso é mais do que suficiente. Nunca te vou impor uma relação que não pretendas, Roser.
– E o que significa isso? Que não vais dormir comigo?
– Exatamente. Não sou nenhum sem-vergonha.
E assim, num curto espaço de tempo, naquele banco de praça, tomaram a decisão que haveria de marcar o resto das suas vidas, e também a do bebé. Na pressa da retirada, foram muitos os que chegaram a França sem documentos, e foram também muitos os que os perderam pelo caminho e nas agruras dos campos de refugiados, mas Roser e Víctor tinham ainda os seus. Os amigos quakers serviram de testemunhas do matrimónio, numa breve cerimónia realizada no Registo Civil. Para a ocasião, Víctor engraxara os seus sapatos novos e usava uma gravata emprestada. Roser, com os olhos inchados de tanto chorar, mas aparentando tranquilidade, usava o seu melhor vestido e um chapéu primaveril. Após o casamento, registaram o bebé como Marcel Dalmau Bruguera. De todo em todo, esse teria sido o seu nome se o seu verdadeiro pai estivesse vivo. Celebraram com um jantar simbólico na maternidade de Elisabeth Eidenbenz, que culminou com um bolo coberto de chantilly. Como era da praxe, os esposos partiram o bolo e distribuíram-no pelos presentes.
Tal como prometera ao poeta, três dias volvidos, Víctor regressou ao seu gabinete na Embaixada Chilena em Paris, e entregou-lhe o certificado de matrimónio, bem como o registo do bebé. Neruda ergueu o seu olhar de pálpebras sonolentas e contemplou-o durante alguns segundos, intrigado.
– Vejo que possui uma imaginação de poeta, meu jovem… Bem-vindo ao Chile – e dizendo isto, carimbou o pedido. – Diz aqui que a sua mulher é pianista.
– Exatamente. E também é costureira.
– No Chile temos costureiras de sobra, mas fazem-nos falta pianistas. Apresentem-se os dois no cais de Trompeloup, em Bordéus, na sexta-feira de manhã bem cedo. Partirão ao anoitecer.
– Mas não temos dinheiro para a passagem, senhor!
– Ninguém tem. Deixe ver como resolvemos isso. Ah! E esqueça também o dinheiro para o visto de residência no Chile. Alguns cônsules tentam fazer-se pagar por ele; considero repugnante receber dinheiro de refugiados. Isso também se arranjará em Bordéus.
Aquele dia 4 de agosto de 1939 ficaria para sempre gravado na memória de Víctor Dalmau, de Roser Bruguera e de mais dois mil e tantos espanhóis que partiam para esse país longo e afilado da América do Sul, que se aferrava às montanhas para não se precipitar no mar, e sobre o qual pouco ou nada sabiam. Neruda havia de defini-lo como uma «longa pétala de mar, de vinho e de neve», com uma «cintura de espuma negra e branca», mas isso não teria sido suficiente para dar a conhecer àqueles desterrados o destino que os esperava. No mapa, o Chile afigurava-se-lhes sinuoso e remoto. A praça de Bordéus fervilhava de gente, uma multidão imensa que aumentava rapidamente, meio sufocada de calor sob um céu azul. Iam chegando comboios, camiões e outros veículos diversos apinhados de gente, a maioria saída diretamente dos campos de concentração, ainda debilitada, faminta e sem oportunidade ou tempo para ter tomado sequer um banho. Como os homens haviam permanecido durante vários meses separados das suas mulheres e crianças, os encontros de casais e de famílias davam-se num delírio dramático, transbordante de emoção. Penduravam-se nas janelas dos transportes, reconheciam-se e chamavam-se aos gritos, e abraçavam-se em lágrimas. Um pai, que julgara o seu filho morto no Ebro, dois irmãos que não sabiam nada um do outro desde a Frente de Madrid, um soldado tisnado pelo sol que acabava de reencontrar a mulher e os filhos, que não esperava voltar a ver. E tudo isto em perfeita ordem, com um instinto de disciplina que muito facilitou a tarefa dos guardas franceses.
Pablo Neruda, vestido de branco dos pés à cabeça, acompanhado de Delia del Carril, sua esposa, trajando igualmente de branco e com um grande chapéu de abas largas, dirigia as manobras de seleção, de identificação, e supervisionava a administração dos serviços e cuidados básicos de saúde, como um semideus, ajudado por outros cônsules, secretários e por diversos amigos instalados em compridas mesas. A autorização era despachada com a sua assinatura em tinta verde, e devidamente carimbada com o selo do Departamento de Evacuação de Refugiados Espanhóis. Neruda solucionou o problema da obtenção dos vistos com um visto coletivo. Os espanhóis agrupavam-se em pequenos grupos, tiravam-lhes uma fotografia, que revelavam cuidadosamente, e em seguida alguém ia recortando os rostos, que eram depois colados nas autorizações de cada um. Voluntários repartiam uma refeição ligeira e os mais indispensáveis acessórios de higiene individual. As trezentas e cinquenta crianças tiveram direito a uma refeição completa, cuja distribuição estava a cargo de Elisabeth Eidenbenz.
Era o dia da partida e, apesar disso, Neruda ainda não conseguira financiamento para custear aquele transporte em massa que o Governo do seu país se recusara a pagar, sob o pretexto da impossibilidade de justificar tal gasto face a uma opinião pública dividida e hostil. Então, inesperadamente apresentaram-se no cais algumas pessoas dispostas a pagar o valor de metade de cada passagem. Roser avistou-os de longe. Deixou o bebé nos braços de Víctor, abandonou a fila de espera e correu para cumprimentá-los. Daquele grupo faziam parte os quakers que a tinham acolhido. Vinham como representantes da sua comunidade cumprir o dever que esta se propusera desde a sua criação no século XVII, o de servir a Humanidade e promover a paz. Roser repetiu-lhes o que ouvira dizer a Elisabeth: «Elisabeth tinha razão. De facto, vocês sempre estão onde mais são precisos».
Víctor, Roser e o bebé foram dos primeiros a embarcar. Era um velho barco de cerca de cinco mil toneladas, que transportava mercadorias provenientes de África e que também fora utilizado para transportar tropas durante a Primeira Guerra Mundial. Fora concebido para albergar vinte marinheiros em trajetos curtos e agora haviam-no adaptado para levar mais de dois mil passageiros numa travessia de um mês. À pressa, tinham construído beliches triplos nos porões, e tinham dotado o barco de cozinha e de cantina, e de uma enfermaria com três médicos permanentemente disponíveis. Uma vez a bordo, designaram-lhes os respetivos dormitórios: Víctor, na proa com os outros homens, Roser, na popa com as mulheres e crianças.
O embarque dos restantes afortunados passageiros durou várias horas. Em terra ficaram muitos refugiados que não conseguiram vaga. Assim que caiu a noite, e com a subida da maré, o Winnipeg levantou ferros. Uns choravam em silêncio no convés, enquanto outros, com a mão no peito, entoavam em catalão a canção do emigrante: «Dolça Catalunya, / pàtria del meu cor, / quan de tu s’allunya / d’enyorança es mor»8. Talvez pressentissem que jamais voltariam à sua terra. Desde o cais, Pablo Neruda despedia-se, acenando-lhes com um lenço, até que se perderam de vista. Também para ele aquele dia seria inesquecível, tanto que anos mais tarde escreveria: «Que a crítica apague toda a minha poesia, se assim o entender. Mas o poema que hoje recordo ninguém poderá jamais apagá-lo.».
Os beliches eram exíguos como jazigos: acedia-se a eles subindo de gatas e os seus usuários tinham de permanecer deitados e imóveis, sobre pequenos colchões de palha, que lhes pareciam um luxo, se comparados com as covas de areia húmida dos campos de concentração. Havia um quarto de banho para cada cinquenta pessoas, e serviam-se as refeições em três rodadas que eram escrupulosamente respeitadas. Os que vinham de uma situação de miséria e de fome julgavam-se no paraíso. Tinham passado meses sem uma refeição quente, e no barco a comida era simples, mas saborosa e abundante. Podiam repetir o prato de legumes quantas vezes desejassem. Além disso, tinham sobrevivido atormentados por todo o género de parasitas, pulgas e piolhos, e ali podiam lavar-se à-vontade com água fresca e sabão. Haviam estado prisioneiros da mais terrível desesperança, e agora navegavam rumo à liberdade! Até tabaco havia!, e cerveja e bebidas espirituosas, num pequeno bar, para quem as pudesse pagar. Quase todos os passageiros se ofereceram para colaborar nas tarefas de bordo, desde manejar as máquinas até lavar o convés. Víctor voluntariou-se na enfermaria desde o primeiro dia. Os médicos deram-lhe as boas-vindas, entregaram-lhe uma bata branca e informaram-no de que diversos tripulantes apresentavam sintomas de disenteria, de bronquite e de que havia um ou dois casos de tifo que haviam escapado à deteção dos serviços de inspeção sanitária.
As mulheres organizaram-se para cuidar das crianças. Criaram um espaço no convés protegido por grades, destinado a jardim-de-infância e a escola. Desde o primeiro dia, estabeleceu-se um serviço de creche, jogos, artes, prática de exercício físico e aulas, uma hora e meia de manhã e outra hora e meia de tarde. Nos primeiros dias, Roser foi acometida por enjoos, como a maioria dos refugiados, mas assim que foi capaz de se manter de pé, prontificou-se a ensinar música às crianças, com um xilofone e com tambores improvisados com baldes. Durante uma das suas aulas, dirigiu-se-lhes o segundo oficial de bordo, um francês, militante do Partido Comunista, que lhe trazia a novidade de que Neruda fizera transportar para bordo um piano e dois acordeões, para seu próprio uso e para os demais que soubessem tocá-los. Alguns passageiros possuíam instrumentos musicais. Assim, dispunham de uma ou duas guitarras e de um clarinete. Desde essa altura, houve sempre música para as crianças e bailes e concertos para os adultos, isto para não falar do enérgico coro dos bascos.
Cinquenta anos mais tarde, Víctor Dalmau, numa entrevista para a televisão, quando lhe foi pedido que falasse sobre a odisseia do exílio, referiu-se ao Winnipeg como o navio da esperança.
Para Víctor Dalmau, a viagem constituiu um prazenteiro período de férias, mas, pelo contrário, Roser, que passara os últimos meses comodamente instalada em casa dos seus amigos quakers, a princípio sofreu bastante com o confinamento e com o mau cheiro. Não lhe passou sequer pela cabeça comentar isso com quem quer que fosse, pois seria o cúmulo da descortesia, e rapidamente se acostumou, a ponto de nem notar. Acomodou Marcel numa mochila e andava com ele às costas para todo o lado, até enquanto tocava piano. Por vezes revezava-se com Víctor, que também o carregava sempre que não estivesse de serviço na enfermaria. Ela era a única capaz de amamentar o filho. As restantes mães, desnutridas como estavam, podiam contar com um eficiente serviço de biberões para os quarenta recém-nascidos que iam a bordo. Várias mulheres ofereceram-se para lavar a roupa e as fraldas do bebé de Roser, para que esta pudesse preservar as mãos. Uma camponesa calejada pelo trabalho pesado do campo e mãe de sete filhos examinava-lhe as mãos, maravilhada, sem entender como conseguia ela retirar música do piano sem olhar sequer as teclas. Aqueles dedos eram mágicos. O seu marido trabalhara na extração de cortiça antes da guerra. Quando Neruda lhe disse que no Chile não havia carvalhos, ele replicou-lhe secamente: «Pois, a partir de agora haverá.». Ao poeta pareceu-lhe a resposta uma tirada esplêndida, e não hesitou em embarcá-lo juntamente com operários, camponeses, pescadores, demais trabalhadores braçais e também diversos intelectuais, pese embora as instruções que recebera do Governo chileno: evitar gente dotada de pensamento e de ideias próprias. Neruda fez orelhas moucas a essa ordem. Seria uma loucura completa deixar para trás quem tão heroicamente defendera as suas convicções. Secretamente, esperava que estes imigrados agitassem a modorra insular em que vivia o seu país.
A vida diária estendia-se até muito tarde no convés, porque no interior da embarcação a ventilação era má, e o espaço era tão exíguo que mal se podia circular. Os passageiros criaram um jornal que continha as principais notícias da atualidade, que pioravam dia após dia, à medida que Hitler ia conquistando mais e mais territórios. Aos dezanove dias de navegação, quando se soube do pacto de não-agressão entre a União Soviética e a Alemanha nazi, assinado a 23 de agosto, muitos comunistas que haviam lutado contra o fascismo sentiram-se profundamente traídos. As divisões políticas que tinham fraturado o Governo da República mantiveram-se a bordo, traduzindo-se, por vezes, em rixas e brigas por acusações e ressentimentos antigos, rapidamente sanadas por outros passageiros, antes da intervenção do Capitão Pupin, indivíduo de direita, sem a menor simpatia pelos passageiros a seu cargo, mas dotado de um inabalável sentido do dever. Os espanhóis, desconhecedores dessa faceta da sua personalidade, suspeitavam que este poderia traí-los, alterar o rumo da navegação e reconduzi-los à Europa. Observavam-no com a mesma atenção com que se debruçavam sobre o decurso da navegação. O imediato e a maioria dos marinheiros eram comunistas e também traziam Pupin debaixo de olho.
As tardes preenchiam-se com os recitais de Roser, coros, bailes, jogos de cartas e de dominó. Víctor organizou um clube de xadrez para quem soubesse jogar e para quem quisesse aprender. O xadrez impedira-o de enlouquecer, tanto nas escassas ocasiões ociosas que se permitira desfrutar durante o tempo de guerra, como no campo de concentração, quando parecia que já não seria capaz de aguentar mais e o dominava a vontade de se deixar cair por terra e morrer, rendido. Nessas alturas, sempre que não tinha um adversário, jogava de memória contra si próprio com tabuleiro e peças invisíveis. A bordo também se realizavam conferências sobre ciência e outros temas, nunca sobre política, pois o compromisso estabelecido com o Governo Chileno era: abster-se de propagar ideologias capazes de instigar uma revolução; por outras palavras: «Meus senhores, não venham para aqui agitar-nos a capoeira!», resumiu um dos poucos chilenos que viajavam no Winnipeg. Os chilenos davam palestras aos emigrantes, preparando-os para o que iriam encontrar. Além disso, Neruda entregara um pequeno folheto a cada um, bem como uma descrição bastante realista do país:
Espanhóis,
Talvez de toda a vasta América, o Chile vos pareça a mais longínqua das regiões. Assim o foi também para os vossos antepassados. Muitos perigos e infortúnios tiveram de defrontar os conquistadores espanhóis. Durante trezentos anos, travaram duras batalhas contra os indomáveis araucanos, e dessa difícil sobrevivência sobreveio uma raça acostumada à precariedade e às dificuldades da vida. O Chile está muito longe de ser um paraíso. A nossa terra só recompensa quem a trabalha arduamente.
Estas, como outras advertências dos chilenos, a ninguém conseguiram assustar. Explicaram-lhes também que o Chile lhes abrira as portas graças ao Governo popular de Pedro Aguirre Cerda, que, para tal, desafiara os partidos da oposição, e aguentara a campanha de terror levada a cabo pela direita e pela Igreja Católica. «Ou seja, lá iremos encontrar os mesmos inimigos com que nos defrontámos em Espanha…», observou Víctor. Isso inspirou vários artistas a pintarem uma gigantesca lona em homenagem ao Presidente chileno.
Inteiraram-se também de que o Chile era um país pobre, cuja economia se baseava principalmente nas indústrias mineiras, sobretudo a da extração do cobre, mas que também havia muita terra fértil, milhares e milhares de quilómetros de costa riquíssima para a pesca, bosques infinitos e uma grande profusão de zonas despovoadas, prontas para alguém se estabelecer e ali prosperar. A natureza era prodigiosa, desde o deserto lunar do Norte aos glaciares do Sul. Os chilenos estavam habituados à escassez e às catástrofes naturais, como os terramotos, que sempre deixavam à sua passagem um cenário de mortes e de destruição, mas isso pareceu aos desterrados um mal menor, se comparado com tudo quanto nos últimos tempos haviam vivido, e no que se tornaria Espanha sob a férula de Franco. Disseram-lhes que se preparassem para retribuir, pois iriam receber muito. Os chilenos tornavam-se generosos e prestáveis em face das desgraças coletivas. Estavam sempre dispostos a abrir os braços e as casas: hoje és tu, amanhã serei eu. Era este o lema vigente. Também aconselharam os solteiros a terem cautela com as mulheres chilenas, pois a quem deitavam o olho não tinha escapatória possível. Eram sedutoras, fortes e mandonas, uma combinação letal. Tudo isto lhes parecia um conto de fadas.
Ao segundo dia de viagem, Víctor assistiu o nascimento de uma menina na enfermaria. Já vira as feridas mais atrozes e a morte causada por todos os meios, mas nunca se deparara com o começo de uma nova vida, e quando colocaram a recém-nascida sobre o peito da mãe, a muito custo conseguiu disfarçar as lágrimas. O capitão lavrou a ata de nascimento de Agnes América Winnipeg. Certa manhã, um homem que ocupava um dos beliches superiores no dormitório de Víctor não apareceu para o pequeno-almoço. Julgando que dormia, ninguém o incomodou até à hora do almoço. Quando Víctor se dispôs a acordá-lo, encontrou-o morto. Desta vez o capitão teve de lavrar uma certidão de óbito. Nessa mesma tarde, numa breve cerimónia, lançaram o corpo ao mar envolto numa lona. Os seus camaradas despediram-se dele, homenageando-o com uma canção dos tempos da guerra, que entoaram acompanhados pelo coro dos bascos.
– Já reparaste, Víctor, como a vida e a morte caminham sempre de mãos dadas? – comentou Roser, comovida.
Os casais supriam o inconveniente da falta de privacidade utilizando os botes salva-vidas. Tinham de estabelecer turnos para o amor, da mesma forma que para tudo se impunha estabelecer turnos, e enquanto um casal desfrutava de alguns momentos num dos botes, um amigo montava guarda, a fim de prevenir os restantes passageiros e de distrair qualquer membro da população que se aproximasse. Quando se tornou do conhecimento geral que Víctor e Roser eram recém-casados, mais do que um casal lhes cedeu o seu turno, que eles sempre recusavam com efusivas demonstrações de agradecimento. Mas, como levantaria suspeitas o facto de passarem o mês inteiro sem manifestar a mais leve urgência amorosa, dirigiram-se separadamente ao lugar dos amores, como faziam todos os casais, de acordo com um protocolo tácito, ela corada de vergonha, ele sentindo-se um idiota, enquanto um voluntário amável e solícito passeava Marcel ao longo do convés. O interior do bote era desconfortável, sufocante e cheirava intensamente a bacalhau podre, mas a simples possibilidade de poderem estar a sós e conversarem em sussurros uniu-os mais do que se tivessem feito amor. Estendidos um ao lado do outro, ela com a cabeça pousada no seu ombro, falaram sobre os ausentes, Guillem e Carme, que não queriam, nem por sombras, imaginar morta, e especulavam sobre a terra desconhecida que os esperava no fim do mundo, e planearam o futuro. Uma vez no Chile, tentariam estabelecer-se e conseguir trabalho, fosse no que fosse. Isso era o mais urgente. Depois poderiam divorciar-se e ambos seguiriam as suas vidas, livres. A conversa tornou-os melancólicos. Roser pediu-lhe que permanecessem sempre amigos, uma vez que ele era a única família que lhes restava, a ela e ao filho. Não se sentia pertencer à sua família de sangue em Santa Fé, que, aliás, visitara em raras ocasiões, desde que Santiago Guzmán a levara para viver em sua casa. Víctor uma vez mais lhe reiterou a promessa de que seria um bom pai para Marcel.
– Enquanto eu puder trabalhar, nada vos faltará – acrescentou.
Todavia, ela não se referia a esse aspeto. Considerava-se completamente capaz de, por si só, sustentar ambos, mas preferiu guardar silêncio. Ambos evitavam aflorar assuntos de ordem afetiva.
A primeira escala foi na Ilha de Guadalupe, possessão francesa, para abastecer o navio de víveres e de água. Continuaram a navegar até ao Panamá, sempre alerta ante a possibilidade de se cruzarem com submarinos alemães. Ali se detiveram longas horas, sem saberem o que de anormal sucedera, até que ouviram através dos altifalantes que se defrontavam com problemas de índole burocrática. Isto quase gerou um motim a bordo, convencidos que estavam os passageiros de que o Capitão Pupin encontrara ali um pretexto justificativo para regressar a França. Designaram Víctor e outros dois homens, devido à sua postura sempre irrepreensível, para falarem com o capitão e averiguarem o que estava a acontecer, e tentarem negociar uma solução. Pupin, de muito mau humor, explicou-lhes que a culpa do ocorrido era dos organizadores da viagem, que não haviam pago a taxa de travessia do canal, e por conta dessa imprudência, agora quem perdia tempo e dinheiro era ele próprio. Acaso saberiam eles quanto custava manter o Winnipeg? Levaram cinco longos dias para resolver o problema, cinco dias de angustiante expectativa, apinhados todos num calor tórrido, até que, por fim, lhes deram ordem de passagem, e adentraram-se na primeira das comportas. Víctor, Roser e os demais passageiros e tripulantes observaram, maravilhados, aquele complexo sistema que os levava do Atlântico ao Pacífico. As manobras de navegação eram um prodígio de precisão, realizadas num espaço tão exíguo, que, caso pretendessem, ser-lhes-ia possível conversar com os homens que trabalhavam nas margens, de um e de outro lado do navio. Quando se apurou serem dois deles bascos, foram saudados pelo coro do barco, com um cântico em eusquera. A partir da passagem do Canal do Panamá, os refugiados sentiram o definitivo afastamento da Europa. O canal separava-os e afastava-os inexoravelmente da sua terra e do seu passado.
– Quando pensas que poderemos regressar a Espanha? – perguntou Roser a Víctor.
– Em breve… Pelo menos assim espero. O caudilho não será eterno, mas tudo depende da guerra.
– Porque dizes isso?
– Porque a guerra será inevitável e é iminente. Será uma guerra de ideologias e de princípios. Uma guerra em que se defrontarão distintas formas de entender a vida e o mundo. Uma guerra de democratas contra nazis e fascistas. Uma guerra de liberdade contra autoritarismo.
– E não duvides de que Franco colocará Espanha do lado de Hitler. E a qual dos lados se unirá a União Soviética?
– Teoricamente, é uma democracia do proletariado, mas não confio em Estaline. Pode aliar-se a Hitler e converter-se num tirano ainda pior do que Franco.
– Os alemães são invencíveis, Víctor.
– Isso é o que dizem… esperemos para ver.
Os viajantes ficaram surpresos com a ironia do nome, pois de pacífico aquele oceano pouco tinha. Roser, que, como muitos outros, se julgava curada e imune ao enjoo, viu-se novamente derrotada pela fúria das vagas, mas a Víctor as náuseas afetaram-no pouco, pois passou a maior parte desse período na enfermaria ocupado com o nascimento de outro bebé. Depois de deixarem para trás a Colômbia e o Equador, entraram nas águas territoriais do Peru. A temperatura descera. Encontravam-se em pleno inverno do hemisfério sul, e uma vez que passou o tremendo calor, tornou-se mais suportável o confinamento vivido a bordo, o que melhorou consideravelmente o ânimo dos passageiros. Encontravam-se cada vez mais longe e a salvo dos alemães, e havia cada vez menos probabilidades de o Capitão Pupin decidir inverter o rumo da navegação. Iam-se aproximando do seu destino num misto de esperança e apreensão. Através das notícias que lhes chegavam pelo telégrafo, sabiam que no Chile as opiniões sobre o seu exílio se dividiam e que eram motivo de apaixonadas discussões no Parlamento e na Imprensa. Mas também se inteiraram de que havia um programa destinado a auxiliá-los na obtenção de trabalho e de alojamento, levado a cabo pelo Governo, por partidos de esquerda, por sindicatos e por associações de emigrantes espanhóis que ali haviam chegado muitos anos antes deles. Não estariam completamente desamparados.
8 Canção catalã composta a partir de um poema de Jacint Verdaguer, cuja tradução literal é impossível. «Ó doce Catalunha, / pátria do meu coração, / quando de ti nos apartamos, / é saudade a lonjura!» (N. do T.)