FEMINISMOS PLURAIS, MULHER ES DE LUTA
Cristina Scheibe Wolff
Jair Zandoná
Soraia Carolina de Mello
O projeto “Mulheres de luta: feminismo e esquerdas no Brasil (1964-1985)” 1 foi uma proposta de pesquisa elaborada para o Edital Memórias Brasileiras – Conflitos Sociais – da Capes, lançado em 2015 justamente para apoiar projetos que enfocassem
processos e episódios [...] que, ao longo da história brasileira do período republicano, tenham sido expressão da conflitividade social e significativos para o entendimento da construção do Estado e da sociedade brasileira, com valorização de episódios pouco estudados da história brasileira.
Ao tomarmos ciência do Edital, imediatamente pensamos na necessidade de trazer a temática do feminismo e dos movimentos de mulheres como um conflito social fundamental para a construção do Brasil contemporâneo.
O projeto nasceu também a partir das pesquisas do Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC, que, desde 2005, tem investigado o período da ditadura brasileira e, desde 2007, das ditaduras dos países do Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai). Essas pesquisas se deram a partir de uma perspectiva de gênero, buscando compreender a participação das mulheres nos movimentos de resistência, os usos do gênero nos discursos da resistência, os movimentos feministas e suas relações com a resistência e a esquerda, a partir do que batizamos como projeto “Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul” (PEDRO; WOLFF, 2010; PEDRO; WOLFF; VEIGA, 2011). Este livro é um dos principais resultados 2 do projeto “Mulheres de luta: feminismo e esquerdas no Brasil (1964-1985)”. O projeto partiu da noção de que o feminismo tem sido um conflito social importante na sociedade brasileira, que se consolidou especialmente na sua interação com grupos de esquerda durante o período da Ditadura (1964-1985).
Partimos de uma concepção de conflito social que abrange não somente as lutas por condições materiais de existência e lutas políticas no sentido tradicional, mas também lutas por mudanças culturais e lutas contra hierarquias e preconceitos, em especial os construídos a partir do gênero. Ou seja, entendemos que o feminismo é não apenas movimento social organizado civilmente, mas também uma crítica social e cultural que problematiza algumas naturalizações acerca das hierarquias de gênero. Essas inserções dos feminismos estariam comprometidas com uma leitura crítica dessas hierarquias e das desigualdades marcadas pelo gênero, mas também das demais exclusões articuladas em experiências históricas como as que marcam a sociedade brasileira, tais como as de classe, as de raça e as regionais. Nesse sentido, o feminismo como conflito social nos possibilita pensar a forma com que diferentes esferas da vida – públicas e privadas, sociais e subjetivas – foram (são) passíveis de um olhar menos dicotômico, mais crítico e em escala cotidiana; e, por sua vez, de serem vistas como constituidoras de memórias e histórias. É exatamente nessa constituição que entendemos que está a potencialidade de pensar as mulheres engajadas nas lutas sociais que articularam as lutas e pensamentos feministas e de esquerda no período de 1964 a 1985.
Pensar as associações do pensamento e da luta feminista em contextos como os da ditadura militar (1964-1985) no Brasil é compreender as suas múltiplas relações com outras lutas sociais que emergiram e se realizaram nesse momento, em especial às que se estabeleceram na identificação com os ideários das esquerdas, mas também as lutas do meio rural, antirracistas, dos povos indígenas, dos grupos LGBTQ+, e setores culturais como as artes, a imprensa, o humor.
Nosso objetivo é analisar os feminismos e os movimentos de mulheres percebendo a especificidade da sua emergência no Brasil no período da ditadura civil-militar e suas interfaces com as organizações e movimentos de enfrentamento da ditadura: partidos, organizações armadas, movimentos de familiares de presos e desaparecidos, grupos de exiladas/os, entre outros movimentos que constituíram diferentes frentes de lutas políticas contra o regime militar.
A pesquisa problematizou a história dos feminismos no Brasil, nos anos da Ditadura, investigando como as mulheres que protagonizaram essas lutas estiveram ligadas a movimentos e grupos da esquerda e da resistência de maneira ampla, buscando dados quantitativos e qualitativos sobre essa interação e analisando as trajetórias pessoais e políticas de mulheres e de grupos de mulheres, na sua construção enquanto feministas.
A partir dessa perspectiva, é possível refletir acerca dos feminismos brasileiros de nossa geração, como movimentos e fenômenos de caráter conflituoso não apenas porque foram atravessados pela resistência organizada, armada ou não, à ditadura civil-militar, mas também por sua apropriação de teorias feministas materialistas que nos permitem compreender o feminismo como uma luta do âmbito cultural, mas também material. O fenômeno que teóricas feministas atualmente identificam como feminização da pobreza, as desigualdades salariais, as violações de direitos de propriedade das mulheres, assim como o trabalho reprodutivo gratuito que as mulheres historicamente prestam para o bem de toda a sociedade, são questões amparadas por ampla bibliografia que nos levam a ponderar sobre o quão material essas “questões culturais” das mulheres também são e, simultaneamente, como os conflitos de base material, como os de classe, também são sustentados por questões do âmbito cultural, identificadas na teoria marxista como ideológicas. Teóricas da linha do feminismo materialista francês (SCAVONE, 2007) foram lidas e discutidas pelas feministas brasileiras da geração dos 1970 (PEDRO; WOLFF, 2007; BORGES, 2013) e, por meio da apropriação do conceito de exploração capitalista para uma noção de exploração patriarcal, voltada exclusivamente para as mulheres (DELPHY, 1978), buscaram problematizar os debates feministas como questões mais materiais do que culturais.
Ao mesmo tempo, uma análise dos feminismos do período como movimentos de caráter apenas cultural também nos encaminha para a noção de conflito. A ideia de que “o pessoal é político” – que foi proeminente nos feminismos internacionais do período e no Brasil, em muitos momentos, foi preterida em função das lutas gerais – rendeu seus frutos e conquistas também por aqui, o que não ocorreu sem tensões e resistências. Conquistas como o direito ao divórcio, direitos individuais (ao trabalho sem autorização do esposo, à propriedade, às decisões familiares e sobre as/os filhas/os) da mulher casada, a extinção dos crimes de defesa da honra, o reconhecimento do crime de estupro, a criação das delegacias especiais de proteção às mulheres, entre outras, deram-se no período do recorte temporal da pesquisa e em tributo às mobilizações feministas. Outros direitos conquistados mais recentemente, como a possibilidade de aposentadoria para donas de casa, são também tributários das mobilizações feministas que emergem na década de 1970. Ao acompanhar a história dessas conquistas, percebe-se que elas não se deram sem conflitos no âmbito público e privado: debates em grandes meios de comunicação, preocupações de órgãos religiosos e governamentais, demonstram que as relações desiguais de gênero e a luta contra essas disparidades são sempre conflituosas.
Partindo dessas trajetórias, buscamos a atuação das mulheres em diferentes espaços políticos, culturais e institucionais, procurando entender como essas mulheres se tornaram feministas, isto é, em que lugar social elas estavam quando puderam enunciar sua revolta frente às limitações que sofriam “por serem mulheres” e quando criaram algum espaço de enunciação coletiva para essa revolta por intermédio de jornais, grupos, manifestos, reuniões, grupos de consciência, grupos de estudos, entre outros. Nossa intenção de pesquisa guarda também um vínculo com as questões atuais que atravessam a sociedade brasileira: as lutas feministas ainda não terminaram. Ao nos voltarmos à memória desses movimentos, de suas militantes, sua produção bibliográfica e periódica, é possível historicizar o caráter conflituoso dos feminismos brasileiros do período e refletir sobre seu protagonismo em diferentes questões que são centrais para nossa sociedade ainda hoje. Se hoje temos espaços e direitos profissionais, sociais, políticos e culturais muito significativos, conquistados por essas mulheres de luta, a desigualdade de gênero marca ainda de forma muito proeminente a sociedade brasileira, como comprovam as estatísticas sobre renda, violência e participação na política.
Além disso, entendemos que pensar o feminismo enquanto conflito social é alargar as potencialidades das reflexões e críticas feministas sobre a historiografia brasileira, como também é uma possibilidade de ampliar a compreensão social sobre o que é o feminismo e quais os diferentes espaços de disputa que constituem as lutas feministas na sua historicidade. Entendemos, desse modo, que essa pesquisa traz importantes colaborações para complexificar a história do engajamento das mulheres nas lutas sociais, em especial daquelas que questionaram as hierarquias de gênero e assumiram-se feministas, e das que acreditaram nos ideários de esquerda e resistiram à ditadura civil-militar.
De caráter interdisciplinar e interinstitucional, o projeto envolveu, além do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH), do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC), o Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), além da colaboração de alunas e professoras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), da Universidade Federal de Sergipe (UFS), da University of Nottingham (Inglaterra) e da Université Rennes 2 (França).
Sem o conhecimento, as fontes de pesquisa e a experiência acumuladas dos projetos anteriores do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH), a execução do “Mulheres de luta...” do modo como ocorreu seria impossível. Da mesma maneira, o Instituto de Estudos de Gênero e o Seminário Internacional Fazendo Gênero desempenharam importante apoio, se considerarmos, por exemplo, as entrevistas que foram realizadas com participantes do evento em 2017, edição que ocorreu conjuntamente ao 13.º Mundos de Mulheres, ou como as equipes desses diferentes espaços colaboraram de diferentes modos para o projeto. É por isso que, apesar do financiamento direto vir apenas da Capes, agradecemos indiretamente também ao CNPq, no apoio aos eventos e a projetos vinculados ao LEGH, que possibilitou de diferentes modos o acúmulo de debates, fontes, bibliografia e produção que alicerçaram o “Mulheres de luta...”.
Para realizar esse projeto adotamos uma metodologia de trabalho em equipe, que se articulou em múltiplas pequenas equipes. Iniciamos criando uma lista de temáticas sobre os feminismos em suas relações com as esquerdas e os movimentos sociais no período da Ditadura e começamos a formar equipes com estudantes de graduação e pós-graduação envolvidas/os no LEGH, e também a convidar pesquisadoras de outras instituições, para além da UFSC, UFC e UEPG, para colaborar em áreas de seu domínio. Todas as pesquisadoras tiveram acesso ao acervo do LEGH, tanto ao de entrevistas quanto ao acervo constituído por pesquisas em arquivos. Foram efetuadas novas entrevistas, a sua maioria em vídeo, bem como também foram realizadas novas pesquisas em diversos arquivos, os quais estão citados ao longo dos capítulos do livro. Aos poucos os grupos de pesquisa foram se solidificando, primeiro em torno da produção do material para o webdocumentário e, depois, com a escrita dos capítulos deste livro. Cada capítulo foi lido e discutido pela equipe geral, e reformulado a partir dos comentários e discussões resultantes desses encontros.
Uma das questões fundamentais que enfrentamos ao longo da pesquisa foi a da centralização de grande parte da produção bibliográfica sobre o feminismo brasileiro na região Sudeste, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. Fomos procurando trazer elementos de outras regiões na maior parte dos textos. Nossa equipe incluiu pessoas de três regiões do país: Sul, Centro-Oeste e Nordeste. Sabemos que muito ficou ainda por ser explorado, mesmo nessas regiões, e que a região Norte praticamente não foi contemplada em nossa pesquisa. Temos muito ainda o que pesquisar!
Outra questão muito importante foi a decisão de incluir na pesquisa grupos de mulheres que não se denominavam, à época da Ditadura, como feministas. E nem sempre se constituíam como grupos de mulheres. Foi o caso por exemplo das Mulheres Indígenas, das Mulheres Negras, das Mulheres Camponesas e das Mulheres Lésbicas. Cada um desses grupos ganhou um capítulo e um trecho do webdocumentário. Como se sabe, a história se constrói retroativamente, do presente para o passado, e esses grupos de mulheres são constituintes do que se chama hoje de feminismo no Brasil. Vejam, por exemplo, o vídeo sobre a “Marcha Mundos de Mulheres por Direitos” 3 , que foi organizada por ocasião do 13.º Congresso Mundos de Mulheres e Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, em Florianópolis, Santa Catarina, de 30 de julho a 4 de agosto de 2017. Como se vê no vídeo, os feminismos atuais são plurais e interseccionais. A marcha organizada em torno de um evento com sede na Universidade Federal de Santa Catarina congregou diversos movimentos de mulheres, com cunho feminista: sindicalistas, mulheres indígenas, mulheres negras, lésbicas, estudantes, camponesas, professoras, artistas e muitas outras. Homens também se juntaram a nós naquela marcha e no evento, que consideramos uma excelente amostra dos movimentos atuais.
Mas o que mostramos neste livro é que essa pluralidade e interseccionalidade não começaram agora, somente a partir do que tem sido chamado de movimentos feministas contemporâneos ou jovens, a partir das Marchas das Vadias, da Primavera Feminista. Nos anos 1960 a 1980, muitas mulheres estavam na luta de resistência à ditadura, na luta pela construção da democracia, em suas lutas cotidianas, em suas lutas pelo reconhecimento de seu trabalho, de sua existência, de seus direitos. Se naquele momento não se poderia falar de um feminismo indígena, isso não implica não podermos recuperar as lutas das mulheres indígenas por seu reconhecimento e pela demarcação de suas terras. Se naquele momento as camponesas não se diziam feministas, não se pode negar a luta do Movimento de Mulheres Agricultoras (hoje Movimento de Mulheres Camponesas) pelos seus direitos. Se então as mulheres negras deram prioridade à luta contra o racismo por meio do movimento negro, para compreender a trajetória do que hoje podemos chamar de feminismo negro, é preciso compreender as lutas de militantes que atuavam e buscavam reconhecimento nas esquerdas, no feminismo e no movimento negro. Ou seja, estamos propondo um olhar diferenciado para os feminismos, feminismos plurais, alicerçados em mulheres de muitas lutas.
Historicamente, podemos observar como as lutas das mulheres que não se identificavam necessariamente como feministas naquele período foram importantes para os feminismos e os constituíram, do mesmo modo que os feminismos foram importantes e constituíram de diferentes modos os grupos de mulheres organizadas que não se viam como feministas. As diferentes conexões, os embates, negações, tensões e disputas dessas histórias foram abordados no projeto com acuidade teórica, o que pode ser observado nos capítulos do livro, e contribuem para pensarmos as redes, o rizoma que sustenta e articula os feminismos contemporâneos.
Trouxemos também para esta pesquisa outros aspectos da luta das mulheres: a sexualidade, o trabalho doméstico, a militância política de esquerda marcada pela luta armada, pela prisão, pela tortura e o exílio, a construção de uma imprensa feminista, os encontros feministas, a repressão e vigilância do Estado aos movimentos de mulheres, a produção de documentários, filmes, cartazes, o humor feminista. Um dos capítulos se centra também na construção histórica dos movimentos homossexuais, que se concatenaram com os feminismos, e dialogaram com eles. As freiras são enfocadas como agentes sociais que marcaram a luta de resistência política daquele período. Finalmente, um dos capítulos trata da própria construção do acervo do LEGH e sua trajetória de pesquisa.
Muitas personagens importantes, temáticas fundamentais, não ganharam capítulos neste livro. Mas certamente virão outros, outras pesquisas, outras equipes, que continuarão pelo período posterior à Ditadura, pela redemocratização.
Trazemos nesta coletânea indagações de central importância não apenas para compreendermos as tensões e disputas nas quais os feminismos estudados emergiram e se constituíram, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, mas também para nos ajudar a compreender as complexas relações imbricadas nos discursos feministas e nos discursos sobre os feminismos da atualidade. Partindo da percepção de que olhamos, analisamos e indagamos o passado com questões do presente, é importante destacar que é em um contexto de profunda polarização política, de ataque às instituições democráticas e de proliferação de ideais conservadores, que este livro foi organizado em um esforço de diálogo que foi promovido, de maneira coletiva, por nosso grupo de pesquisa.
Referências
BORGES, Joana Vieira. Trajetórias e leituras feministas no Brasil e na Argentina (1960-1980) . 2013. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópo lis, 2013.
DELPHY (DUPONT), Christine. O inimigo principal. In : Liberação da mulher: ano zero. Belo Horizonte: Interlivros, 1978, p. 93-112.
PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. Nosotras e Círculo de Mulheres brasileiras de Paris. ArtCultura (UFU), v. 9, p. 55-70, 2007.
PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe (org.). Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul . Florianópolis: Mulheres, 2010.
PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe; VEIGA, Ana Maria (org.). Resistências, Gênero e Feminismos contra as Ditaduras no Cone Sul . Florianópolis: Mulheres, 2011.
PORTAL CATARINAS. Marcha Mundos de Mulheres por Direitos [Florianópolis, SC, Brasil, 2 de agosto de 2017]. YouTube . 10/08/2017. Disponível em: https://youtu.be/0jq8tU1WUj4. Acesso em: 28 jul. 2019.
SCAVONE, Lucila. Estudos de Gênero e Feministas: um campo científico? In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, XXXI, 2007, Caxambú. Anais [...] XXXI Encontro Anual da ANPOCS.  São Paulo: ANPOCS, 2007, p. 1-23.