LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUISER? FEMINISMOS, DOMESTICIDADE E CONFLITO SOCIAL NO BRASIL (1964-1990) 48
Soraia Carolina de Mello
Existe uma visão ainda muito corrente de divisão das esferas pública e privada. Essa perspectiva já foi criticada, desmontada e desconstruída, quer dizer, questionada por diferentes teóricas feministas (PATEMAN, 2013; OKIN, 2008; JELIN, 1984; YOUNG, 1987; LAMOUREUX, 2009) como artificial, no sentido de ser inventada e operada com a finalidade de servir aos interesses dominantes, aqueles do poder masculino, colonial, hegemônico. Se formos, apesar das críticas, reproduzir, de forma bem grosseira, a divisão estabelecida pela modernidade entre público e privado, poderíamos pensar que a domesticidade não é o espaço do conflito social. Primeiramente porque esse pensamento moderno não considera a domesticidade um espaço propriamente social. A domesticidade nessa perspectiva é privada (portanto não seria política); é familiar e, assim sendo, é uma parte integrante e uma ferramenta na manutenção do que é social, mas não ocupa nem deve ocupar os espaços “sérios”, privilegiados, fundamentais que a economia e a política ocupam na vida social. Mesmo aspectos considerados de segunda importância em relação à economia e à política, como a cultura e o lazer, recebem em muitos sentidos maior prestígio que o privado, o doméstico.
Isso não quer dizer que o político e o social não se importem com o que ocorre no doméstico. Existe um reconhecimento, sempre implícito e raramente explícito, por parte dos poderes hegemônicos, de que o que acontece na domesticidade sustenta a vida social e política. Contudo a separação de esferas tem sido eficiente, de uma forma bastante dinâmica, em manter aquelas designadas como responsáveis pelo doméstico longe dos espaços de decisão do poderio político e econômico, sem deixar de desempenhar suas funções essenciais de manutenção da sociedade. Essas operações, que subjetivam (GUATTARI; ROLNIK, 2010) e constituem mulheres de diferentes formas conforme seu status social, e mobilizam marcadores de raça, classe, nacionalidade e outros, foram e ainda são estudadas pelas teóricas feministas (BEAUVOIR, 1970; OAKLEY, 1974; DELPHY, 1978; BADINTER, 1985; HOLLOWS, 2008; JANY-CATRICE, 2016).
Esse reconhecimento mudo do valor da domesticidade se traduz em não reconhecimento. Partindo da noção de reconhecimento político e justiça social de Nancy Fraser (2009), que pressupõe reconhecimento, distribuição e representação como pilares necessários para a justiça social, podemos entender como o trabalho doméstico e de cuidado e as mulheres que o desempenham não são reconhecidos. A partir desse entendimento se estabelece a noção de conflito social em torno da domesticidade que é tema deste capítulo. Quando se demanda que o reconhecimento seja explícito, quando se denuncia os danos materiais às mulheres relacionados a essa separação de esferas e se exige redistribuição material, assim como quando se denuncia sua privação dos espaços de poder e se reivindica representação e participação política, o conflito se instaura.
Essa visão moderna de esferas separadas, presente nas democracias e nos totalitarismos, no capitalismo e no socialismo, parece ter sido mais ou menos corrente no que se identifica, no século XX, como mundo industrializado. O conflito social, categoria política presente nas sociedades “avançadas”, calcou-se, então, durante muito tempo, no conflito de classes, chave explicativa do mundo industrializado por meio da qual se lia grande parte dos conflitos nas diferentes sociedades. As Ciências Humanas, nascidas na modernidade, nessa matriz eurocentrada, positiva e moderna, descrita de forma breve até aqui, encontraram durante muito tempo dificuldades em interpretar os conflitos sociais por intermédio de outras chaves explicativas que não a economicista ou da política tradicional. Quando chegamos na segunda metade do século XX, entretanto, a história transforma substancialmente o significado desses conceitos, quando questiona-se o que seria política, o que seria conflito, o que seria privado, e as formas como as chaves explicativas das Ciências Sociais até então operavam.
Em um contexto de crescimento da contracultura, de efervescência das novas esquerdas, de questionamentos das hierarquias e proliferação de novos costumes, como, por exemplo, a circulação da noção de liberação sexual, é que teóricas feministas produziram, de forma mais ou menos sistemática no mundo ocidentalizado, teorias que questionaram profundamente essa divisão público/privado. Batendo de frente tanto com a teoria liberal quanto com a teoria marxista, essas teóricas (MALOS, 1980; MITCHELL, 1967; LARGUIA; DUMOULIN, 1982; COSTA; JAMES, 1975; BENSTON, 1969) retomaram escritos como os de Alexandra Kollontai, e experiências de coletivização do trabalho doméstico, como a arquitetura de prédios com cozinhas coletivas nas grandes cidades estadunidenses no começo do século XX (HAYDEN, 1981) ou a experiência bolchevique de coletivização do cuidado de crianças nos primeiros anos após a revolução Russa (GOLDMAN, 2014; NAVAILH, 1995), para desnaturalizar a noção de família nuclear como centro do trabalho reprodutivo.
Essas ideias feministas eram bastante revolucionárias e, caso bem sucedidas, transformariam na prática a vida social, política e material como era conhecida. Nesse contexto, o ideário feminista circulou e foi apropriado no Brasil de diferentes maneiras, como observaremos por meio de alguns exemplos no decorrer deste capítulo. As resistências à “novidade” também foram múltiplas, foram foco de conflito, e uma primeira maneira de buscarmos entender, acessar esse conflito, pode ser mediante as formas como esses debates se constituem em nossos dias (MARCO; FIOL; SCHWARZ, 2019).
Nossos exemplos contemporâneos de reafirmação da associação entre mulheres e domesticidade são múltiplos, e estão imbricados em interesses econômicos e de manutenção de privilégios: as manifestações contrárias aos direitos trabalhistas das empregadas domésticas em 2013, 49 a exaltação da figura da então “quase” primeira-dama como “bela, recatada e do lar” em 2016, 50 ou a fundação em 2019, 51 pelo Governo Federal, eleito pelo discurso do fundamentalismo religioso, de um Ministério que articula mulher (no singular) e família, como uma relação óbvia e naturalizada. Esses acontecimentos seriam suficientes para ilustrar focos de conflito com o pensamento feminista. Infelizmente, temos muitas outras amostras recentes de declarações de autoridades que prescrevem literalmente às mulheres características como a submissão e a domesticidade, e funções como a maternidade e a disponibilidade sexual.
Essas prescrições, contudo, dão-se em um contexto de emergência e fortalecimento dos debates feministas na esfera pública, de ressurgimento das grandes manifestações feministas de rua, de proliferação de publicação de obras feministas pelas editoras, de efervescência da temática nas produções culturais: em músicas, filmes, programas de televisão e principalmente na Internet. As políticas antifeministas, localizadas nos espaços de poder institucional, nesse contexto de “explosão feminista” (HOLLANDA, 2018), demarcam o conflito social que perpassa a temática na atualidade, ao mesmo tempo que nos oferecem um gancho, um mote, para pensarmos como esses conflitos se deram a partir da década de 1960 até finais da década de 1980 no Brasil.
Mulheres, família e a Doutrina de Segurança Nacional
Além do paradoxo de ascensão de ideias conservadoras concomitante ao fortalecimento dos feminismos, existe outra semelhança entre o período analisado pelo Projeto Mulheres de Luta e nossa contemporaneidade que nos permite comparações: a presença de uma profunda polarização política. Por mais complexos e diversos que sejam o entendimento de política, os grupos e as posições políticas na contemporaneidade, existe no Brasil uma polarização evidente, uma noção de “dois lados”, com visões de mundo de muitos modos antagônicas, dentre as quais se divide a sociedade. A Doutrina de Segurança Nacional (DSN), produto da Escola Superior de Guerra (ESP) e da Guerra Fria foi, durante a ditadura civil-militar brasileira, uma política que privilegiou a associação entre mulheres e domesticidade em seus apelos à segurança e ao desenvolvimento nacionais (DUARTE, 2014), representando de forma institucional um dos lados dessa polarização: alinhado aos Estados Unidos e às democracias liberais na luta contra o comunismo.
Por meio da noção de guerra total, entendia-se que a Guerra Fria não dizia respeito apenas à esfera militar, e toda a população estaria engajada nela. Nessa visão, na população civil estaria localizado o “inimigo interno”, associado ao comunismo e a uma degenerada liberação dos costumes (independentemente de haver ou não liberação dos costumes no mundo comunista) que destruiria a família como instituição. Em uma lógica de que todos eram suspeitos até provar o contrário, a Doutrina de Segurança Nacional culpou diretamente as mães pelos desvios de seus filhos ao comunismo, de modo que a família nuclear, a religião, a moral e os bons costumes eram encarados como armas ideológicas de resistência à ameaça comunista.
Em 12 de setembro de 1969, já após o Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, que possibilitava ao executivo legislar de imediato por meio de decretos-lei, sem depender dos trâmites do legislativo, o Decreto-lei n.º 869 torna obrigatório o ensino de Educação Moral e Cívica em todos os níveis de ensino (FILGUEIRAS, 2006). A justificativa era justamente suprir lacunas que a família “moderna” (portanto, não tradicional) estaria criando na formação moral dos jovens e das jovens. Para os propósitos deste capítulo, interessa-nos observar o motivo alegado pelo Estado para a criação da disciplina nas escolas:
No quadro da Guerra Revolucionária, a população materializa a um só tempo, o objetivo e o agente da luta. A conquista dessa população pelo marxismo-leninismo será tanto mais fácil quanto maior fôr a permeabilidade da consciência das massas à redução de hábil propaganda subversiva. A família moderna facilita, de certo modo, a implantação e a evolução da Guerra Revolucionária, de vez que, perturbada pela evolução econômica e social e por solicitações de tôda ordem, ela não mais assegura, de modo completo, sua função educadora.
Freqüentemente dissociada, particularmente em razão do trabalho da mulher fora do lar e da conjuntura econômica que a aflige, seus membros se vêm obrigados a operar fora do quadro familiar típico, cada qual atraído por um pólo exterior. A principal consequência dêsse estado de coisas é a flagrante deficiência da educação moral dos filhos. Por outro lado, a escola moderna ainda não tomou a si o encargo de compensar esta lacuna. (BRASIL, 1969).
Discursos semelhantes são encontrados em documentos produzidos pela censura televisiva do período 52 e também em cartas de leitoras em jornais de grande circulação 53 , o que nos leva à compreensão, em diálogo com a bibliografia de referência (DUARTE; LUCAS, 2014), de que era corrente a ideia de que a família não tradicional criava jovens comunistas, inimigos do regime. Em especial aquelas famílias em que as mães não se dedicavam integralmente aos filhos e ao marido. O trabalho das mulheres fora do lar é, portanto, nesse documento, identificado, mesmo que indiretamente, como inimigo do Estado.
Essa lógica conservadora, contudo, não parece ter sido o foco de conflito, uma vez que ela reproduzia uma lógica de associação das mulheres à domesticidade que, apesar de não ser natural, era secular e amplamente aceita, social a culturalmente. É nesse contexto que o debate feminista, que abordaremos por intermédio de diferentes pontos de vista a seguir, operou como articulador de conflito social no que diz respeito às mulheres e à domesticidade.
Os capítulos deste livro dedicados à imprensa feminista militante e ao humor gráfico já abordam a questão da domesticidade, porque ela foi um dos temas privilegiados dessas publicações no período. Gostaria, entretanto, de destacar aqui um debate publicado no periódico feminista paulistano Mulherio , em 1981. Mais de uma década depois de a Educação Moral e Cívica ter se tornado disciplina obrigatória por lei, em todos os níveis de ensino, e em um momento em que os feminismos daquela geração já estavam mais organizados e eram socialmente reconhecidos como grupo político com reivindicações próprias, uma imagem retirada de um livro de Estudos Sociais 54 é criticada na publicação.
Imagem 1: Imagem de família reproduzida por livro de Estudos Sociais 55
Fonte : Mulherio . São Paulo, ano 1, n. 4, nov./dez. 1981, p. 20.
A divisão de tarefas por gênero e as questões relativas ao trabalho das mulheres, que a partir da década de 1990 de forma mais ou menos consensual são designadas pelas teóricas como divisão sexual do trabalho (KERGOAT, 2009), são já bastante debatidas pelas feministas brasileiras com a chegada da década de 1980 (PRADO, 1979; STUDART, 1969; SAFFIOTI, 1969; BRUSCHINI, 1979). A noção de complementariedade entre os sexos (ainda não existia o conceito de gênero nos termos atuais), quer dizer, a dicotomia público/masculino e privado/feminino, vetando às mulheres casadas a autonomia financeira que significava a possibilidade de acesso ao divórcio e a uma relação conjugal mais equânime, ficam evidentes na ilustração. A socialização das crianças nessa divisão de funções (DURAN, 1983; BELOTTI, 1981), indicando que é uma divisão ensinada e aprendida e, portanto, não natural, também se evidencia. No caso das mulheres de classes trabalhadoras, essa lógica também era reproduzida, apesar da duríssima dupla ou tripla jornada de trabalho. 56
Apesar dessa desproporção do peso das duplas e triplas jornadas das mulheres dos estratos sociais mais baixos, um dos maiores fóruns públicos de denúncia e foco de conflito acerca da domesticidade na década de 1960 dirigia seu olhar para as mulheres de camadas médias privilegiadas. Talvez para elas, o ideário feminista norte-americano, a noção de “problema sem nome” de Betty Friedan (1971), demonstrou ter, naquele momento, maior significado.
“A condição feminina” e a domesticidade: circulação de ideário feminista na grande imprensa comercial
Não nos enganemos: a libertação feminina é um autêntico desafio. O problema milenar irrompeu e a bola de neve pôs-se a rolar: já é tarde para contê-la (SILVA, 1971, p. 130-135) 57 .
O tema do trabalho doméstico, justamente por suas repercussões afetivas com raízes no inconsciente, costuma provocar entre as leitoras uma enxurrada de reações intensas. Cada vez que as incito a trabalharem fora do lar, implicando com isso que a domesticidade não é tudo as cartas de protesto formam sôbre (sic) minha mesa uma pilha vertiginosa (SILVA, 1968, p. 120) 58 .
Há uma especificidade na condição feminina ; todas as mulheres, mesmo pertencentes aos mais diversos estratos sociais, têm em comum um tipo de experiência humana decorrente precisamente do fato de serem mulheres numa sociedade que as discrimina e oprime (SILVA, 1977, p. 166) 59 .
Anos antes de termos notícias sobre movimentos feministas daquela geração 60 organizados no Brasil, ou mulheres mobilizando práticas feministas coletivamente nas décadas de 1960 e 1970 (SARTI, 2004; PEDRO, 2006), as reverberações das movimentações feministas no Norte Global estavam já presentes na chamada esfera pública brasileira. Abordaremos especificamente a figura de Carmen da Silva (1919-1985) e seu trabalho como colunista e também respondendo pessoalmente cartas de leitoras e leitores na Revista Claudia . Claudia começa a ser publicada no Brasil pela Editora Abril em 1961, com tiragem inicial de 150 mil exemplares, distribuição em todos os estados brasileiros e a proposta de ser a “revista da mulher moderna” (NEHRING, 1981). Carmen da Silva começa a assinar a coluna “A arte de ser mulher” em 1963. Escrevendo com marcado viés psicanalítico, é contratada pela revista para dar alguma resposta às inquietações que as aceleradas transformações nos costumes vinham causando nas leitoras (DUARTE, 2005). As respostas prontas, tradicionalmente elaboradas por homens, editores das revistas “femininas” naquele período (SARTI; MORAES, 1980), não eram mais suficientes para tantas novas questões. Os escritos de Carmen reproduziam o tom de conversa íntima e aconselhamento encontrado de forma geral nas revistas para mulheres (BASSANEZI, 1996; BUITONI, 1981), mas também traziam intenção de conscientização, de despertar, que podemos relacionar com a noção de vanguarda revolucionária que circulava naquele período.
O primeiro exemplo, bastante ilustrativo, é uma carta de leitora de setembro de 1965, um documento muito importante no que se refere às reações de indignação que a atuação de Carmem da Silva causava. Ao questionar a associação entre mulheres e domesticidade e frisar a importância das mulheres casadas, mesmo as mães (porque era comum quando se tornavam mães saírem do mercado de trabalho), terem uma vida profissional fora do lar e independência financeira, Carmen da Silva se tornou uma porta-voz reconhecida de ideias novas, consideradas avançadas e não necessariamente bem aceitas no Brasil na década de 1960 e inícios de 1970.
O grande protesto
“Loura antipática” – São Paulo, SP: “Minha amiga Carmen da Silva... Quem lhe escreve é uma das suas “rainhas tristes”. Isto, segundo você, porque eu, pessoalmente, não me considero nenhuma das duas coisas. Claudia agora me irrita, desde que você, a cronista esclarecida e moderna, resolveu dar ataque cerrado às parasitas da sociedade. Já não consigo admirá-la incondicionalmente. Se compreendi corretamente, você não admite em hipótese alguma que uma mulher não trabalhe remuneradamente. É ou não o seu ponto de vista? Realmente, seria ótimo sair e estar sempre bem vestida, bem penteada, unhas sempre manicuradas. Trabalhar em hora certa, descansar em hora certa. Travar relações e arejar as idéias (elas andam mesmo precisando de uma arejada, estão atrofiadas após sete anos de limpar bumbuns de nenês...). Num ponto concordo plenamente com você. É mesmo muito mais fácil ser atualizada e moderna, fora das quatro paredes de uma casa. Só existe um problema, de ordem prática, para o qual eu gostaria de ter a solução. Alguém tem de fazer as vulgares, porém indispensáveis, “tarefas vinculadas às necessidades biológicas imediatas”, não é? [...] Daqui a pouco, além de tôdas as coisas pouco atraentes que temos de fazer, ainda seremos inconformadas e infelizes. É êsse o seu objetivo? [...]” (CLAUDIA , set. 1965).
Reproduzi aqui, em extensão, cerca de ¼ da carta apenas. O trecho nos comunica, apesar das supressões, a indignação, o repúdio, a ojeriza, a recusa às ideias de Carmen da Silva partindo do seu público mais interessado: as mães de família de camadas médias. Ao mesmo tempo, podemos perceber a popularidade da coluna e a curiosidade que levava as leitoras, mesmo se sentindo ofendidas e incomodadas, a não apenas continuar lendo os textos como ainda a escrever e se comunicar com Carmen. As cartas das leitoras geralmente eram brevemente respondidas na própria seção de cartas, mas essa carta ganhou destaque especial, não apenas sendo publicada na íntegra apesar de sua extensão, mas também tendo como resposta um artigo inteiro naquele mesmo número, de setembro de 1965.
Passados meados da década de 1970, Carmen da Silva ainda causava reações semelhantes em suas leitoras, ao seguir firme em seus objetivos de despertar a consciência e afrontar a acomodação, como ela mesma comenta.
[...] “Para mim e milhares de mulheres como eu, você traz todo mês um pouco de amargura, um certo descontentamento e um pouco de autocomiseração que somente ajudam a piorar as coisas.”
Outra me escreve: “Que adianta querer ser livre e independente quando se tem três filhos entre 2 e 6 anos, uma casa para cuidar... Acabo o dia esgotada e nem quero pensar no que seria se ainda fosse trabalhar fora... A preocupação de melhorar a sociedade e a posição da mulher só serviria para me trazer mais dores de cabeça...” (CLAUDIA , out. 1977, p. 225).
“Será que Amélia é mulher de verdade?”, artigo do qual os trechos acima foram retirados, foi publicado em outubro de 1977, momento de efervescência das mobilizações feministas no Brasil. Assim como tem acontecido em nossos dias, principalmente após a “Primavera das Mulheres”, 61 o feminismo estava “em alta”: em 1975 a Organização das Nações Unidas instituiu a Década da Mulher (TABAK, 1985), falava-se sobre encontros feministas na grande imprensa, 62 diferentes livros de autoras feministas eram publicados (ZUCCO, 2014), periódicos feministas circulavam pelas maiores cidades do país (TELES; LEITE, 2013), e até uma protagonista feminista tomou conta da minissérie do canal de maior audiência na televisão, menos de dois anos depois, em 1979 (ALMEIDA, 2012). Apesar disso, como podemos perceber, o incentivo à inserção das mulheres casadas na chamada esfera pública não era, ainda, bem recebido por uma boa parcela dessas mulheres. Ou era então entendido por elas como uma espécie de pressão, de expectativa difícil de corresponder, principalmente porque as expectativas sobre o desempenho de suas tarefas no lar se mantinham altas.
Outro ponto fulcral do conflito social que se estabeleceu, no período estudado, em torno da domesticidade, está na perspectiva masculina sobre a questão. De forma geral, toda a perspectiva tradicional, tanto das ciências (sociais, biológicas, econômicas...) quanto do senso comum, no que se refere à domesticidade, é engendrada a partir do olhar masculino, tido como neutro, universal. Então os discursos autorizados repetidos pela tradição, mas também por médicos, juristas e outras palavras autorizadas, eram de forma geral discursos masculinos. Apesar da presença constante desses discursos na revista, e de homens serem regularmente consultados e citados como palavras autorizadas, 63 os escritos posicionados de Carmen da Silva, que ocupavam cerca de 3 a 5 páginas de uma revista com 200 ou 300 páginas de conteúdo geralmente conservador, incomodavam muitos homens que também enviavam cartas de protesto. Não era comum que essas cartas fossem publicadas, mas vez ou outra Carmen da Silva respondia a elas, individualmente ou em grupo, em seus artigos. A seguir lemos um trecho de “Carta ao homem brasileiro [...]”, de abril de 1970, cujo subitem “Você, e essa sua falta de preparo para a vida doméstica, para o cotidiano” nos ajuda a vislumbrar os conflitos decorrentes dos debates sobre domesticidade naqueles anos.
A culpa não é totalmente sua e sim da formação que você recebeu dos exemplos que a sociedade lhe dá. Você não foi preparado para enfrentar as nimiedades da vida doméstica, o prosaísmo do cotidiano que se desenrola dentro de quatro paredes. Sabe lutar na arena ampla do mundo, mas dentro de casa sua mãe o habituou desde pequeno a não mover um dedo nem para apanhar um copo de água: sempre havia em tôrno de você mãos femininas para realizar o milagre do feijão pronto na hora, das camisas impecáveis, da ordem, da limpeza.
Ocorre que sua mulher pretende comunicar-lhe as experiências dela, pois opina que isso faz parte do casamento. E essas experiências abarcam entre outras coisas o copo de água, o feijão pronto na hora, a camisa impecável, a ordem, a limpeza. E quiçá não abarquem muito mais do que isso, pois você é o primeiro a prendê-la, achando que o lugar dela é o lar e que tôda veleidade de transcendência deve ser desestimulada. Ora, eis que êsse mundinho das coisas materiais começa a irritá-lo. Você tenta outro tipo de diálogo, mas fracassa; ela pouco sabe da luta lá fora – e nem você quer que ela saiba; ela tem menos instrução que você – e foi ignorante que você a quis, feita para olhá-lo com olhos deslumbrados de admiração; os interêsses dela são limitados, como convém a uma mulher criada e condicionada para ser apenas espôsa e mãe – o tipo de mulher que você escolheu precisamente por ela ser assim. [...] (CLAUDIA , abr. 1970, p. 71).
O artigo é finalizado com um dos argumentos que marcam repetida presença em “A arte de ser mulher”.
Prezado Homem Brasileiro: você é muito dono de continuar fazendo o que bem entender – quem sou eu para impedi-lo? A única coisa que digo é que quando incito as mulheres a serem gente , não é contra você, mas sim em seu próprio interêsse: é de pessoa total a pessoa total que vocês vão poder confiar um no outro sem surprêsas, respeitar-se e conviver. Interprete como quiser – sem esquecer entretanto de que quem avisa amigo é. (CLAUDIA , abr. 1970, p. 71, grifos da autora).
Temos, muitos anos depois, publicação semelhante nos comentários de Carmen da Silva sobre a carta de um leitor que a escreve indignado com seu artigo publicado em junho de 1983: “Nossos corpos nos pertencem”. Faz-se um debate sobre o direito ao aborto, mas a resposta a essa carta, no artigo “O pior machismo é aquele que se disfarça”, de outubro de 1983, aponta ainda outras questões colocadas pelo cirurgião mineiro que a escreve. A partir do apontamento do leitor de que machismo e feminismo estariam no mesmo plano, como “o mal daquele século”, Carmen da Silva vem trazendo dados, situações corriqueiras e estatísticas que indicam a necessidade e as urgências do feminismo diante das desigualdades. Ela indica referências feministas ao leitor, recomendando que estude e se informe sobre o trabalho feminino no Brasil: Eva Blay, Heleieth Saffioti, Jacqueline Pintanguy, Moema Toscano, Valéria Junho Pena e a Fundação Carlos Chagas. Podemos apreender, dos nomes citados pela autora, o desenvolvimento da produção acadêmica feminista brasileira, de forma mais consolidada, na década de 1980.
Em um trecho da redação, onde se lê em destaque “Só sabe o custo das mordomias alheias quem paga por elas”, seus comentários à carta do leitor enfocam especificamente o trabalho doméstico.
[...] Quanto à aposentadoria em tempo menor, não seria privilégio nenhum. O trabalhador homem termina sua jornada de labor e dedica-se ao descanso ou ao lazer, atendido e paparicado por uma mulher que, embora também trabalhe fora, limpa e ordena a casa, lava, passa e costura a roupa, alimenta a família, cuida das crianças. Em alguns lugares da roça, ela ainda cultiva um pedaço de terra para garantir a alimentação familiar, perfazendo assim não duas, mas três jornadas de trabalho.
[...] Mesmo as poucas donas-de-casa que ainda têm empregada em tempo integral, precisam dirigir, ensinar, fiscalizar e, quase sempre, fazer as compras em pessoa para garantir o equilíbrio do orçamento doméstico. Cabe-lhes, sobretudo, uma tarefa delicada e indelegável: compensar em qualidade de presença as longas horas passadas longe dos filhos, ouvi-los, comunicar-se com eles, descobrir seus problemas e dificuldades, dar-lhe segurança emocional. Muitas vezes com a preocupação de não fazer barulho para “não incomodar papai, que está cansado”. Enquanto o homem chega em casa, se refestela e acha que as coisas caem do céu. Só sabe o custo das mordomias alheias quem paga por elas. (CLAUDIA , 1983, p. 270, grifos da autora).
Carmen da Silva demonstra, aqui, estar em diálogo direto com a produção científica e militante dos feminismos do período sobre domesticidade e trabalho doméstico. 64 Apesar de certamente ser cansativo repetir alguns dos argumentos, a essa altura, já por 20 anos, mantinha-se firme na defesa dos direitos das mulheres e na desnaturalização da associação entre mulheres e domesticidade. Seus posicionamentos, assim como os de outras “mulheres de luta”, tão importantes na história dos feminismos no Brasil, foram articuladores naquele período dos principais conflitos sociais no que se refere à divisão de tarefas por gênero e à privação, para as mulheres, de acesso a espaços decisórios, direitos e poderes.
Memória, domesticidade e conflito social
Durante o período de execução do Projeto Mulheres de Luta, entre 2017 e 2018, diferentes fontes de pesquisa foram coletadas. Entre elas, a equipe realizou, a partir das metodologias da história oral (ALBERTI, 2004; POLLAK, 1989; ROVAI, 2013; SALVATICI, 2005), entrevistas com mulheres que viveram naquele período e atuaram de diferentes formas na luta por direitos políticos e contra a ditadura. Trazemos aqui depoimentos de duas entrevistadas que contribuíram com suas memórias para a pesquisa do Projeto Mulheres de Luta. Observar seus depoimentos nos possibilita refletir sobre os significados dos debates acerca da domesticidade realizados naquele período, desde uma visão mais contemporânea, dos últimos anos da década de 2010, quando realizamos as entrevistas. As memórias nos aproximam, assim, indubitavelmente, das percepções que reafirmam a importância dessas histórias em nossos dias e personificam, mostram a “carne e o sangue”, como diria Malinowski (1977), dessa importância no passado.
Fani Miranda Tabak nasceu em 1972 e atualmente é professora de literatura da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Ela integra o Grupo de Trabalho “A Mulher na Literatura” da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll), fundado em 1984. Fani é neta de Fanny Tabak, socióloga carioca apontada (por outra entrevistada do projeto, Hildete Pereira de Melo) como fundadora do primeiro Núcleo de Estudos sobre a Mulher em uma universidade brasileira (PUC-Rio) no final da década de 1980; foi filiada ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) e ficou conhecida pela pronunciada atuação no movimento de mulheres na década de 1940, participando inclusive da fundação da Federação de Mulheres do Brasil. Fanny (a avó) foi também uma das militantes apontadas como pioneiras dos feminismos brasileiros das décadas de 1970 e 1980, dedicando-se por muitos anos a estudar e militar nas questões referentes à participação das mulheres na ciência e na política (VASCONCELLOS; LIMA, 2016).
Na entrevista com Fani Miranda Tabak, que nasceu durante a ditadura, recorte temporal de nossa pesquisa, discutimos configurações do feminismo intergeracional e as subjetivações das mulheres feministas nas relações familiares. A partir de suas memórias, podemos refletir sobre como a figura de uma avó profundamente engajada naquilo que se entende como esfera pública, e especificamente na militância feminista, desestabilizava modelos familiares e constituía processos de singularização (GUATTARI; ROLNIK, 2010) para mulheres, tanto para a avó quanto para a neta.
[...] tanto que na época da adolescência a gente tinha aquele conflito com ela, de adolescente que não quer ler jornal, não quer né, tá em outra esfera, e ela sempre muito curiosa querendo saber de tudo e super informada. Então eu me lembro que era um pouco irritante isso porque para a adolescente, que está esperando uma avó que faz bolinho de chuva e tal, e aí tem a dona Fanny como avó, era meio... Tanto que as pessoas sempre me perguntavam: como é a sua avó? Eu brincava: “não queira saber como é minha avó!” Porque no interior as pessoas têm aquela imagem da avó, como uma senhorinha, sei lá, de bengala, os netos chegam na casa dela e fazem tudo que querem... A minha avó não, ela sempre tinha uma série de perguntas, ela queria saber se estávamos informadas. Tinha um interrogatório assim longo para saber. Então foi uma experiência diferente, mas acho que surtiu muitos efeitos a longo prazo. (TABAK, 2 017, s/p).
Outra entrevistada do projeto cujas memórias destacamos neste capítulo é Luci Teresinha Choinacki. Nascida na década de 1950, é agricultora e militante em defesa da agricultura orgânica familiar. Filha de agricultores, começou a atuar nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e em movimentos sociais e, em 1982, ingressou no Partido dos Trabalhadores (PT). Participou da formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da construção do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Santa Catarina. Foi a única mulher eleita em 1986 para a Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina e deputada estadual constituinte em 1987. Em 1990 foi eleita para a Câmara dos Deputados, sendo reeleita para os mandatos de 1999, 2003 e 2011. Teve atuação central na construção da possibilidade de aposentadoria para trabalhadores rurais, em especial as mulheres, na Constituição de 1988, 65 e é autora do Projeto de Lei, de 2005, 66 que permitiu aposentadoria a donas de casa de baixa renda: o sistema especial de inclusão previdenciária de trabalhadores e trabalhadoras sem renda própria que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico de sua residência.
Além de sua destacada atuação política no que se refere ao trabalho doméstico das mulheres, trazendo um exemplo prático bastante ilustrativo do mote feminista “o pessoal é político” e a afirmação de que trabalho doméstico é trabalho, a entrevista de Luci nos aponta para a existência de toda uma articulação política de mulheres em torno da questão do “trabalho invisível”. Ainda que essa articulação tenha adentrado a década de 1990 e o século XXI, a interpretamos como resultado dessas discussões sobre domesticidade levadas à esfera pública por iniciativas feministas no recorte temporal do projeto. Podemos citar as reivindicações sobre a domesticidade que circularam nos grupos feministas, em seus atos e em suas publicações, e também nos veículos da grande mídia. Do ponto de vista da política institucional, é muito importante lembrarmos da “bancada feminina” na Assembleia Nacional Constituinte (SILVA, 2011). Muitos avanços no que se refere à relação entre mulheres e domesticidade que podemos observar hoje, mesmo que sejam muitas vezes mais no plano discursivo do que estatístico, são tributários dessas organizações, da promoção do debate na mídia e em diferentes espaços, e das pressões que resultaram em transformações promovidas pelo ideário feminista. Como podemos observar no depoimento de Luci Choinacki, contudo, a questão não foi sempre consensual.
O trabalho doméstico foi uma coisa muito, muito dura pra ser debatida. Porque nós criamos uma forma de as mulheres donas de casa se aposentarem, aí criou uma crise de concepções, mas não era crise: “ah, mulher tem que ficar em casa!”, mas reconhecer que existia um público, isolado de todo o processo e que precisava de um tratamento diferenciado. É como uma transição, então a gente teve problemas de início, depois a gente fez muito debate em todo o Brasil, nós fizemos seminários, plenárias, aí um grande grupo de feministas assumiu a bandeira e foi junto fazer conferência e discussão: Hildete Pereira, não sei se alguém conhece, a Doutora Salete, que era uma de juíza lá do Rio de Janeiro, aqui do estado, Joana Pedro, e assim foi indo. Pegamos aquele grupo feminista, mas assim todo o Brasil, a gente reuniu muitas mulheres depois, que assumiram a causa. Inclusive eu fiz uma comissão parlamentar para fazer um trabalho “a pobreza tem rosto, que é o rosto das mulheres”. Porque quando ocorre qualquer crise, qualquer golpe que dá, primeiro quem sofre a demissão, a punição, são as mulheres: porque sentem o custo da alimentação, o cuidado dos filhos, a doença em casa, as pessoas especiais para cuidar, sobra para elas. E eu falo isso com conhecimento de causa né. (CHOINACKI, 2017, s/p).
Luci é mãe de quatro filhos, um deles deficiente, com necessidade de cuidados específicos. Fala, portanto, de um lugar privilegiado no que se refere não só ao contato com o trabalho das mulheres no campo e na cidade, mas também ao equilíbrio entre trabalho doméstico e de cuidados e trabalho na esfera pública com grande demanda de tempo e energia. Ou seja, além de ter grande carga de trabalho de cuidado familiar, esteve por muitos anos engajada em trabalho de tempo integral, daqueles que via de regra são desempenhados apenas por pessoas que contam com alguém que cuide de todo o trabalho relacionado ao privado em suas vidas (geralmente a figura da esposa) (FRIEDAN, 1983), que é a carreira política. Ela segue comentando sobre como debates feministas correntes na bibliografia temática acerca da domesticidade, como cálculo do valor do trabalho não pago, socialização do trabalho por meio das creches, os sentimentos de culpa e a falta de oportunidades para mulheres em espaços considerados masculinos (e portanto, mais valorizados) foram articulados em sua atuação em políticas públicas.
Então a gente foi fazendo essa discussão e ela pegou uma dimensão muito grande. Inclusive teve pesquisas: “quanto custaria se tivesse que pagar o trabalho doméstico que as mulheres fazem?”. Agora não tenho os dados, mas teve até pesquisa feita em universidades que apresentaram, a partir daquilo que a gente levantou, essa discussão, quanto que o trabalho gratuito que as mulheres estão prestando para a sociedade que não é reconhecido, de nenhuma forma, custa. Então nós trabalhamos pra isso, foi um momento assim muito legal, que a gente comprou esse debate juntas. Depois as mulheres vieram para fazer esse debate, mas de início acharam que a gente estava... tinha uma diferença, pensando que a gente queria que as mulheres continuassem [em casa]. Não, acho que as mulheres devem ter opções de vida, quer ser professora, todo mundo não pode ser professora, todo mundo não pode ser enfermeira, todo mundo não vai plantar, trabalhar numa horta, daí quem que vai comprar, quem que vai comer, não é? Então a gente tem que respeitar a vocação que a gente tem, as escolhas, oportunidades, que todos pudessem ter oportunidades, e que as mulheres tenham oportunidades também. Por isso que a gente incluiu a questão da educação infantil, as creches, como uma coisa importante para as mulheres, o tratamento com as pessoas especiais também como importante porque, como é que uma mãe, com um filho ou dois, se não tem onde deixar, vai trabalhar? Ou se tem uma criança especial em casa com deficiência, como é que... quem que vai cuidar? Normalmente, o homem, noventa por cento lava as mãos e vai partir para outra, e ela fica lá, assumindo as consequências da vida, e tomando conta e fazendo o melhor possível, e se achando ainda culpada.
Luci Choinacki comenta ainda como sua própria presença na Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina, como mulher parlamentar, 67 foi foco de conflito social no período.
Eu estava em um lugar que não era, não era pra mim [...] Não sei de onde eu tive tanta coragem para fazer, falar, as palavras serem sábias e defender o projeto. Eles diziam que eu era dona de casa não podia estar ali, dona da enxada, então foi difícil, mas o que me manteve de pé, e me deu força, coragem, foi acreditar, ter o movimento social junto, o partido na época estava junto, estava unido, estava junto me defendendo. Não todos, mas uma boa parte estava defendendo.
As memórias de Luci Choinacki podem ser também ponto de partida para pensarmos como as relações entre movimentos de mulheres, feminismos e esquerdas não foram e nem são tranquilas, e como aspectos da domesticidade foram e são usados, também pelas esquerdas, para ridicularizar e desqualificar as mulheres, em especial as que se engajam em protagonismo político com pautas feministas (FARREL, 2004; SOIHET, 2005). Nesse contexto também se localiza a querela entre feminismo e marxismo, e a disputa encampada principalmente por feministas marxistas (ARRUZZA, 2010; ROWBOTHAM; SEGAL; WAINWRIGHT, 1981; HARTMANN, 1979; MORAES, 2000) para que as pautas de reivindicação feministas fossem aceitas pelos movimentos sociais “gerais” como pautas importantes, e não secundárias – que seriam resolvidas uma vez instaurada a revolução social.
Algumas considerações: transformações e continuidades
A partir da década de 1990, quando o feminismo como movimento social, que ocupa as ruas e as manchetes, perde força no Brasil, e pode-se observar uma institucionalização dos feminismos por meio das Universidades, Organizações Não Governamentais (ONGs) e dentro da própria estrutura da política formal, a temática da domesticidade e do trabalho doméstico parece perder ainda mais força do que já havia perdido na década de 1980. Dentre discussões sobre mulheres e política, mulheres e ciências, trabalho formal, direitos reprodutivos, saúde, sexualidade e violência, o trabalho doméstico perde espaço no debate público e nas produções teóricas. Entretanto, não desaparece.
Podemos citar como exemplo teóricas dedicadas à temática do trabalho que continuaram pensando sobre o trabalho doméstico nos anos 1990 e 2000, como Cristina Bruschini, Helena Hirata e Hildete Pereira de Melo; a preocupação teórica e política sobre as trabalhadoras rurais, que vinha discutindo também a domesticidade, como no caso de Maria Ignez Paulilo e na atuação de Luci Choinacki; e a articulação em ONGs focadas tanto no trabalho doméstico não remunerado quanto no remunerado, como na Sempreviva Organização Feminista (SOF), SOS Corpo e CFEMEA. Ou seja, se é um debate naquele momento publicamente reconhecido como antigo, ultrapassado, como era possível observar nas produções culturais de grande circulação, 68 essa nunca foi questão totalmente abandonada pelos feminismos institucionalizados.
Em meados da década de 2010, quando da “explosão feminista” já brevemente comentada neste capítulo, essas pautas voltam com força, junto a uma articulação entre teorias materialistas e trabalho não pago das mulheres. Silvia Federicci, Cinzia Aruzza, Nancy Fraser e Jules Falquet são autoras materialistas publicadas em português que se popularizam, muitas obras já esgotadas sobre a temática são reeditadas. A questão do trabalho não remunerado das mulheres circula pelos textos de blogs, quadrinhos e redes sociais, fazendo-se presente também nos motes escritos nos muros, camisetas, cartazes e “pirulitos” dos feminismos nas ruas. Temos propostas de leis preocupadas em quantificar e valorizar o trabalho não pago que as mulheres prestam à sociedade, como o PL 638/2019, que está tramitando na Câmara dos Deputados, de Luizianne Lins, que “Dispõe sobre a inclusão da economia do cuidado no sistema de contas nacionais, usado para aferição do desenvolvimento econômico e social do país para a definição e implementação de políticas públicas.” 69
Convivemos, então, com essa ascensão do ideário feminista concomitante à retomada de conservadorismos e crescimento de fundamentalismos religiosos, como também já foi brevemente comentado, que buscam demarcar o espaço doméstico como espaço naturalizado das mulheres. Foi nesse contexto que a pesquisa deste projeto foi realizada, e também nele que este capítulo foi construído. O capítulo se propôs a pensar sobre o debate promovido pelos feminismos e movimentos de mulheres acerca da domesticidade que emergiu entre 1960 e 1980 no Brasil como agente fundamental de significativo conflito social, que provocou reações enérgicas e discussões acaloradas nos grandes meios de comunicação e na esfera política, tanto autônoma quanto institucional. 70 Esse caráter conflituoso do questionamento da associação entre mulheres e a chamada esfera privada pode ser percebido também nas preocupações do regime de exceção com a educação moral e cívica, ou na argumentação das feministas marxistas sobre o papel central da reprodução para o trabalho produtivo (uma resposta ao desdém e à desqualificação das lideranças das esquerdas a respeito das pautas feministas).
Também nos interessou, aqui, buscar compreender as articulações entre presente e passado na história da relação das mulheres com a domesticidade, e essa relação como foco de conflito social. Escrevemos lembrando que a história não se repete, que as conjunturas e contingências são múltiplas, que nosso contexto é particular e, apesar das semelhanças com o período estudado, não estamos buscando cometer anacronismos. Contudo existe sim um caráter de aprendizado político que podemos levar dessa história para a construção de um mundo em que a equidade de gênero em todas as esferas, e particularmente no mundo do trabalho (pago e não pago), seja uma realidade palpável, possível, e não um sonho impossível como questiona a animação institucional da ONU de 1983, “O sonho impossível”. 71 Nela, após demonstrar a duríssima dupla jornada de trabalho de uma mãe de família (e sua filha pequena, que já vem aprendendo as tarefas socialmente atribuídas às mulheres desde muito cedo), a protagonista sonha com a possibilidade de uma divisão de trabalho mais igual, harmônica e empática com seu companheiro e seu filho. Essa história, da luta pela construção da igualdade de gênero dentro e fora de casa, da luta feminista por democracia e das mulheres de luta, é a história que buscamos construir aqui, articulando o debate sobre historicidade (KOSELLECK, 2006; HARTOG, 2014) que integra passado, presente e nosso horizonte de expectativa para um futuro mais justo.
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