“QUEREMOS SER O QUE SOMOS”: O MOVIMENTO HOMOSSEXUAL NO BRASIL (1964-1985)
135
Luiz Augusto Possamai Borges
Lara Lucena Zacchi
Jair Zandoná
São Paulo, junho de 1980
[...]
Sabedor que fui da existência desse grupo de afirmação, gostaria de receber informações de como me inscrever como membro dessa organização.
Também gostaria de entrar em contato com outros membros para maior conhecimento sobre homossexual masculino ou feminino, pois no meu campo profissional e social torna-se um tanto difícil discutir o assunto.
[...] tenho pleno conhecimento de minha posição como ser humano útil à sociedade e não posso permitir que outras pessoas como nós sejam marginalizados por uma machista e decadente. [...]
Porto Alegre, 4 de agosto de 81.
[...]
Gostaria muito de participar desse grupo, pois me sinto muito só e preciso saber que existem pessoas igual a mim.
Gostaria de saber o que debatem, o que fazem e como conseguiram reunir tantas pessoas que [se] vissem interessadas em debater esse assunto.
[...] tenho certeza que me ajudarão nesse momento não tão agradável de minha vida, pois como já disse, sinto-me só. [...]
Capela, 5 de janeiro de 1982
[...]
Estou escrevendo esta, para vocês me darem uma força, pois não estou suportando tanta opressão aqui comigo! Eu não sei nem o que é mais ser feliz, eu acho que nunca fui – espero que algum dia eu possa ser feliz.
Eu sou um rapa[z] transexual e não sei o que eu deva fazer para me tornar logo mulher. [...].
(AEL/Unicamp)
Os trechos das cartas que abrem este capítulo situam algumas das discussões que nos propomos a elaborar neste texto com o propósito de
compreender as redes e relações que foram se estabelecendo no período da ditadura brasileira. Nossa abordagem leva em consideração a atuação do movimento homossexual, em consonância com o feminista, negro, de mulheres, de trabalhadores/as, entre outros, e como reverberou nas diversas regiões do Brasil em diálogo profícuo entre as diferentes organizações de esquerda. A insígnia da dissidência que marca a diferença dos/nos corpos se evidencia nas muitas cartas endereçadas ao Grupo Somos: Grupo de Afirmação Homossexual de São Paulo, fundado em 1978. Provenientes de diferentes lugares do país, Alagoas, Bahia, Maranhão, Pará, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, entre muitos outros, tal como podemos ler em algumas das correspondências encontradas no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/Unicamp), trazem à tona narrativas com experiências e subjetividades outras, as quais são atravessadas não apenas pela orientação sexual, mas também pelo gênero, pela raça, pela classe, a importância das redes (d)e solidariedade que encontramos entre as pessoas, os grupos, os movimentos – sem deixar de considerar, é claro, as especificidades e embates próprios de projetos que envolvam o coletivo.
Nesse sentido, entendemos as resistências
136
para que as existências sejam possíveis – no plural –, como as que divisamos no movimento homossexual, campo profícuo para a interseccionalidade das lutas. Em outras palavras, que possibilite e promova não apenas a interseccionalidade das identidades, mas a interseccionalidade das lutas, em sentido próximo ao sugerido por Angela Davis (2018) ao se referir às solidariedades transnacionais, mas que entendemos como estratégia possível e necessária para pensar as pautas, lutas, resistências marcadas (não apenas) pelas dissidências.
Para entender o movimento homossexual no contexto brasileiro é interessante levarmos em conta a rede de movimentos homossexuais
137
no mundo ocidental – pensando sua expansão/espacialização em um mundo extremamente interligado e globalizado. Movido por interações transnacionais que influenciam e agem nos âmbitos econômicos, sociais, políticos e culturais, é possível debruçar-se na utilização da identidade sexual como instrumento político e de equidade em sentido global (RAMALHO, 2002).
Embora a conjuntura de contestação de valores na qual o movimento homossexual se insere seja percebida ainda nos anos 1960, isso não ocorreu de maneira homogênea, pois países como Estados Unidos, Inglaterra e África do Sul foram palco de movimentos de gays e lésbicas que se organizaram
durante esse momento. Na América Latina, encontramos na Argentina a formação de vários grupos, como foi o caso do Nuestro Mundo, em 1967, e o Frente de Liberación Homosexual (FLH)
138
, em 1971 (INSAUSTI, 2015, SIMONETTO, 2017). Somos: Grupo de Afirmação Homossexual/SP foi o primeiro grupo brasileiro engajado na causa e luta homossexual. Não por acaso, a escolha do nome “Somos” retoma o periódico lançado pelo FLH, o qual recorrentemente fazia críticas ao governo peronista
139
.
Com o Golpe de 1964 no Brasil, especialmente após a promulgação do AI-5, em 1968, podemos compreender as práticas de poder que o regime ditatorial exerceu, num primeiro momento, para enfraquecer os movimentos de resistência. Como instituição de poder e mantenedor do status quo
, o regime exerceu intensa repressão no âmbito moral, para censurar esses grupos com o preceito de proteger a juventude, e, sobretudo, preservar a moral e os bons costumes (QUINALHA, 2018). Como explica Renan Quinalha (2018), a ditadura sustentou um estado de perseguição às sexualidades dissidentes, atuando em várias agências de controle social, como nas de comunicação, nos aparatos de divulgação e em discursos que desenhavam uma imagem de representação da homossexualidade sob a ótica conservadora do regime. Ainda segundo o pesquisador, esses dispositivos tiveram um papel crucial na vida social para sedimentar a ideologia autoritária dos militares sobre a população. Quinalha relaciona esse projeto nacional a um grande laboratório social elaborado pelo exército, de maneira a moldar e a manipular o inconsciente coletivo da população por diversas vias, imagens e/ou representações da vida social. A sexualidade, para os militares, foi tratada como assunto de segurança nacional, os desejos e afetos foram inimigos que deveriam ser moralmente higienizados, com o intuito de construir uma “nova subjetividade” (QUINALHA, 2018, p. 31), motivo pelo qual o autor defende que esse paradigma deve ser lido pela lógica da “ditadura hétero-militar” (QUINALHA, 2018, p. 20).
Mesmo com o golpe em 1964, setores da sociedade brasileira entre os anos de 1965 a 1968, mobilizados pela resistência, produziram diferentes movimentos de resistência, de modo a culminar em grandes mudanças no comportamento e na cultura da juventude (GREEN, 2015). Nesse sentido, ainda que as práticas de repressão e de controle tenham sido devastadoras, repercutiram de diferentes maneiras na sociedade, mobilizando espaços criativos de resistência (CASTELO BRANCO, 2018). Essas estratégias podem ser percebidas por meio do envolvimento e da participação de grupos homossexuais e os diálogos estabelecidos com o movimento feminista e outros movimentos “minoritários”. Para compreender as dinâmicas e as redes de
confluências do movimento homossexual, num exercício de (re)construção de memórias desse período quanto às homossexualidades, recorremos a algumas coleções disponíveis no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/Unicamp)
140
. Esse levantamento
141
mostra que não apenas os contextos do eixo Rio-São Paulo integram o Arquivo, mas também materiais de outras regiões, a exemplo de documentações provenientes do Grupo Gay da Bahia (GGB)/BA, do Adé Dúdú – Grupo de Negros Homossexuais/BA, do Grupo de Atuação Homossexual (GATHO)/PE, do Grupo Nós Também/PB, do Somos/MA e do Grupo Dialogay/SE, os quais redimensionam a atuação do movimento homossexual nesse momento.
A imprensa também se faz dissidente
Na conjuntura pré-1964, foi lançada a primeira publicação abertamente homossexual divulgada no Brasil (PÉRET, 2012). Decorrente do descontentamento de um concurso de moda, chamado de Miss Traje Típico, feito pela Turma OK, Agildo Guimarães decidiu produzir um “jornalzinho” para protestar contra a decisão do júri. O periódico
O Snob
, publicado de 1963 a 1969, contou com 99 números e uma edição retrospectiva. Inicialmente, dedicava-se ao universo da sociabilidade gay carioca, fofocas e moda. Mesmo tendo uma circulação pequena, sendo distribuído entre amigos e conhecidos em bairros da cidade do Rio, como na Cinelândia e em Copacabana (GREEN, 2000), o jornal mimeografado teve papel importante na produção de espaços simbólicos de resistência e de luta. Também, sua atuação instigou a criação de uma rede de vozes dissidentes que se materializaram por meio de mais de trinta publicações similares (GREEN, 2000) e que abrigaram pontos de vista e outras formas de expressão que não circulariam na mídia tradicional. Hélio, conhecido por Gato Preto no periódico
142
, foi um dos editores d’
O Snob
e um dos precursores a abordar questionamentos com relação aos estereótipos, incorporando uma visão mais profunda sobre a questão. Em 1966, críticas ao modelo binário e patriarcal das figuras “bicha” e “bofe” já eram problematizadas no próprio meio homossexual de maneira a questionar a própria noção de masculinidade. Seguindo essa discussão, Gato Preto foi um dos primeiros a abordar essa pauta em suas produções, pois se identificava como homossexual no seu conceito mais amplo, tensionando os papéis sociais e sexuais hegemônicos. Até 1968, poucos números contemplavam a discussão sobre política, ou mesmo abordavam, num sentido crítico, a identidade homossexual. Como pondera Green (2000), nem Hélio nem Agildo Guimarães participavam diretamente como ativistas de esquerdas ou do
movimento estudantil engajados contra a ditadura. Essa perspectiva se altera com a consciência de ocuparem um espaço marginal, corroborada com a tendência de verem-se como intelectuais. Às vésperas de seu fechamento, o editor d’
O Snob
, Clau Renoir, publica um texto no qual situa simbólica e historicamente esse momento de ruptura ideológica do jornal, como demonstra o editorial desse número (v. 7, n. 1, de 31 de março de 1969), ao também problematizar o uso caricatural e despolitizado das figuras femininas durante suas edições anteriores:
1969 parece ser o ano das novidades, pelo menos para nós, de O Snob,
muita coisa nova acontecerá no decorrer desse ano. Iniciamos com um jornal mais adulto, onde as crônicas, poesias, artigos de real interesse, contos e colunas sociais sadias, sem fofoquinhas, aliás abandonada há muito tempo por nossos colunistas, e o suprimento de desenhos de figuras femininas… mostrarão nossos propósitos de atingirmos uma realidade do que realmente somos. Estamos próximos do século XXI, a dois passos da lua e não podemos permitir que nossa mente fantasiosa estacione desde há cem anos atrás. Sabemos que seremos criticados inicialmente, mas lutaremos para que todos sigam-nos em nossa marcha para o progresso, como o eterno bandeirante (O Snob
, 1969 apud
GREEN, 2000, p. 310).
Essa virada ideológica do periódico também contribuiu para que seus editores percebessem o contexto ainda mais repressivo, tendo em vista a promulgação do AI-5 no ano anterior – apreensão que se confirmou, por exemplo, com a perseguição sistemática dos editores do jornal
O Lampião da esquina
algum tempo depois –, motivo pelo qual muitos temiam que o jornal fosse confundido como de esquerda, contribuindo para seu fechamento em meados de 1969 (GREEN, 2000)
143
. Entre 1969 e 1974, com o governo do ditador Emílio Garrastazu Médici intensificou-se a repressão e censura por meio de perseguições, prisões e torturas. Inserido nesse contexto de resistências, foi lançado no ano de 1969 o primeiro jornal difundido como “alternativo”, conhecido como
O
Pasquim
144
. Nos anos seguintes, uma gama de jornais alternativos destinados a todo tipo de leitor/a passa a ser produzida com o objetivo de existir e resistir contrastando à mídia tradicional (RODRIGUES, 2015).
Autores como James Green (2015), Hiro Okita (2015) e Edward MacRae (2018a; 2018b) discutem sobre esse período e fundamentam que, por volta de 1974-1975, abriu-se um determinado espaço para fazer críticas ao sistema. O contexto da efervescência desses movimentos é sintomático à própria decadência do regime militar e da chamada “abertura” política. A
transição de regime foi iniciada pelo ditador Ernesto Geisel (1974-1979) a partir de sua promessa de que o Brasil passaria por uma transição “lenta, gradual e segura” para a normalidade democrática. Seu sucessor, o ditador João Batista Figueiredo (1979-1985), continuou esse processo de “distensão política” (MACRAE, 2018a, p. 94), decisão que alimentou esperança, haja vista o cenário de sangria e terror que pairava nos últimos anos de ditadura no Brasil. A ativista feminista-lésbica e historiadora Marisa Fernandes (2018), em entrevista, conta-nos que ainda no governo Geisel havia grande censura e camburões da polícia na rua para garantir o estado higiênico
145
. Esse procedimento era recorrente, pois várias foram as ações jurídicas e policiais de higienização contra as sexualidades dissidentes, mulheres, feministas, indígenas, prostitutas/os e negros/as, que ocorreram nesses dois últimos governos do regime, considerados como “governos transitórios” para a redemocratização
146
.
Nesse cenário conflituoso e de transições políticas, Agildo Guimarães, Anuar, Hélio e outros antigos participantes d’O Snob
decidem fundar, em dezembro de 1976, o jornal Gente Gay
(1976-1978). Feito em fotocópias, e não mais a partir de matriz mimeografada, de modo a possibilitar maior reprodução de exemplares dos números produzidos, “é a primeira onda de novas publicações que marcam o início de um movimento politizado de gays e lésbicas no país” (GREEN, 2000, p. 314). O nome escolhido é explicado na contracapa do primeiro número do jornal, que, segundo os editores, é fundado a partir:
Da necessidade de ser, já que estávamos sendo gerado dentro do ventre do Boletim Informativo da Caixinha, apareceu GENTE GAY. Hoje estamos aquí para vocês, pois é chegado a hora de existir. É mais um passo a frente da comunicação entre a gente gay. E para isso, fazemos notícias de vocês para vocês (Gente Gay
, n. 1, 1976, AEL/Unicamp).
Dois anos após o Gente Gay
, é inaugurada em 1978 uma nova proposta editorial no jornalismo alternativo voltada para o debate acerca das homossexualidades e outras “minorias”, com o título de O Lampião da Esquina
. Sediado no Rio de Janeiro, foi o primeiro jornal no país com essa proposta e de ampla circulação nacional.
O Lampião
é resultado do inconformismo diante da repressão e do conservadorismo, atuando como um dos primeiros a abordar a sexualidade e a homossexualidade em um sentido mais amplo, além de forjar alianças e solidariedades, em sentido interseccional, com outras minorias, tais como o movimento feminista, lésbico, travesti, negro, indígena, ecologista e outros. Esse processo de
alianças não alcançou o êxito inicialmente esperado, porque seus números discutem sobretudo aspectos da homossexualidade masculina, deixando as outras representações pouco contempladas. Apesar disso, o jornal Lampião
teve considerável importância nas discussões que abordaram a homossexualidade de forma positiva, assim como em seus aspectos políticos, existenciais e culturais (FRY; MACRAE, 1991). O testemunho de Marisa Fernandes, nesse sentido, é significativo:
Eu não sei que nome dar, eu não sei que luz na minha vida, e sei que na vida de tantos e tantas outras, ele representou. Uma coisa, um brilho de sol, talvez, talvez só comparável a um brilho de sol. O Lampião da Esquina, nossa! Foi tudo, assim, tudo. Dentro de um regime ditatorial, dentro de um conservadorismo, de um moralismo, de uma repressão absurda a juventude, de censura, lá cai ele, falando, né, gente? (FERNANDES, 2018, p. 11-12).
O Lampião
teve o propósito de alcançar públicos diversos e com pautas específicas, ao tratar de temas ou de pessoas que estavam à margem, seja pela censura, seja pelo apagamento/invisibilização na imprensa hegemônica. A identidade do seu público era diversa, tendo em vista as matérias feitas a “bichas, gays, entendidos, viados, homossexuais, travestis, negros, mulheres, feministas, ecologistas etc.” (RODRIGUES, 2015, p. 97). Seu ideal era de criar e ressignificar uma consciência homossexual, bem como defender a filosofia de assumir-se e ser aceito, o que, de fato, teve grande potência por meio de suas matérias, seus textos de denúncias e reportagens.
Nos seus três anos de funcionamento, de 1978 a 1981, o
Lampião
deixou sua marca em 40 edições, das quais 3 foram números extras. Por sua perspectiva contra-hegemônica, circulou em várias localidades do Brasil
147
. Por exemplo, na cidade de Porto Alegre/RS havia determinados lugares da capital onde se podia ter acesso à publicação, tal como narra o historiador Fernando Seffner. Quando ainda era um estudante de geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, havia:
[...] uma banca, que já perdeu essa característica, [...] a Santa Cruz [localizada] na rua da praça da alfândega, que era um lugar de pegação, onde era uma banca que a gente podia ter acesso a essas revistas. Claro que nunca estava exposto na parte de fora. Até hoje não é muito assim. Uma outra na Avenida Borges. [...] Mas de fato havia lugares onde era possível obter esse material (SEFFNER, 2019, s/p).
A milhares de quilômetros dos pampas gaúchos, em 1980, o jornal
O
Lampião da esquina
começou a ser divulgado também em Aracaju/SE, por
intermédio de um jovem operador de fotocópia que trabalhava no cartório da capital chamado Wellington Andrade (MELO; COSTA; VASCONCELOS, 2018, p. 27). Seu lançamento aconteceu no Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Sergipe, com a presença da transformista baiana Suzana Vermont (MELO, 2013, p. 79)
148
. Por meio desses dois breves exemplos, percebemos a circulação do
Lampião
, em um momento tão sensível da História presente.
Outro ponto significativo para entendermos a importância da circulação do Lampião
e do próprio movimento homossexual no Brasil está no seu caráter político de mobilizar e de articular vozes dissidentes, na medida em que além de acolher em suas edições pontos de vista diversos, teve importância inquestionável ao possibilitar que as/os leitoras/es se sentissem discursivamente representadas/os. Dessa forma, serviu como agência para a circulação de conteúdos, representação e diálogo com pessoas engajadas em discutir as sexualidades, tal como percebemos com sua seção “Escolha seu grupo”:
Imagem 1:
Escolha seu grupo
Fonte
: O Lampião da Esquina
. Rio de Janeiro, dez. 1980.
Nesse sentido, algumas edições trazem, inclusive, os nomes dos grupos que estavam atuando nesse momento, ressaltando seu papel em incentivar a participação das/os leitoras/es nesses espaços, de modo que atuou não somente a partir de sua proposta editorial, mas por meio de uma prática política abrangente, como indicado na Imagem 1: Lampião/RJ, “Bando de Cá”/RJ, “GOLS”/ABC-SP, Gatho/PE, Nós Também/PB, AUÊ/PE, Grupo Gay da Bahia/BA, Terceiro Ato/MG, Beijo Livre/DF, Somos/RJ, Coligay/RS, AUÊ/RJ, Somos/Guarulhos-SP, Libertos/SP, Grupo Lésbico Feminista/SP, Somos/SP, Facção Homossexual da Convergência Socialista/SP e Grupo Outra Coisa/SP. Dentro dessa ótica, várias/os leitoras/es do jornal carioca,
em diferentes cantos do Brasil, podiam ter acesso aos códigos postais, facilitando, assim, a própria adesão e trocas de correspondências, tal como os documentos que abrem o texto.
O movimento homossexual brasileiro: (r)ex(s)istências
Nos anos 1960 e 1970, vários movimentos, como o negro, indígena, feminista e homossexual, conforme discutido, contestavam valores historicamente pré-estabelecidos. Além disso, o período de exílio decorrente da ditadura civil-hétero-militar possibilitou que essas pessoas travassem contato com os movimentos dedicados aos debates sobre ecologia, racismo e feminismo que contribuíram para desestabilizar os papéis de gênero (binários e sexistas).
No ano de 1976 na cidade de São Paulo, o ativista e jornalista João Silvério Trevisan, depois de seu autoexílio nos Estados Unidos, funda o primeiro grupo de reflexão sobre homossexualidade (TREVISAN, 1986), o qual emergiu de práticas de grupos feministas e de mulheres. Apesar de seu pioneirismo, o grupo não durou muito tempo, tendo em vista as inúmeras tensões entre os integrantes, como acentua o Trevisan, em Devassos no Paraíso
(1986).
Em 1978, ano histórico e simbólico, marca a criação do Movimento Negro Unificado, da expansão do movimento feminista, da criação dos primeiros núcleos do movimento homossexual no Brasil (FRY; MACRAE, 1991) e da greve dos metalúrgicos do ABC, episódio que resultou na primeira prisão de Luiz Inácio Lula da Silva (GREEN, 2015). Logo após o lançamento do
Lampião
, um grupo de artistas, intelectuais e profissionais liberais, descontentes de sua categorização de “gueto”
149
, decidem se posicionar mais ativamente sobre sua condição marginal, devido a suas sexualidades dissidentes, em uma sociedade heteropatriarcal. Num primeiro momento, essas pessoas, insatisfeitas com os discursos pejorativos a respeito de suas sexualidades não hegemônicas, levam essa pauta ao Sindicato dos Jornalistas, demarcando a sua primeira reivindicação contra as opressões vivenciadas por eles, bem como contra as formas que eram representados na mídia dominante, igualmente pejorativas (GREEN, 2015).
Os membros desse manifesto, dois anos após o fechamento do primeiro grupo discussão da homossexualidade, em 1978, fundaram na capital paulista o Somos.
A organização iniciou suas atividades na emergência de movimentos homossexuais no Brasil, a princípio como “Núcleo de Ação pelos Direitos do Homossexual” e, a posteriori, oficializado como “Somos: Grupo de
Afirmação Homossexual”. Essa reformulação na proposta do grupo foi resultado da confluência político-cultural com o movimento argentino FLH. Green (2018b, p. 72) argumenta que essa reconfiguração “representava um gesto de internacionalismo e de identificação com o movimento homossexual vizinho”. E, de fato, as relações foram significativas e dialéticas na medida em que se ampliou a luta e militância entre esses dois países do Cone Sul, como aconteceu a partir da instauração da ditadura na Argentina e a consequente vinda de militantes homossexuais argentinos para o Brasil – haja vista, por exemplo, a vinda de Nestor Perlongher para cá a partir de 1982.
O slogan “queremos ser o que somos” do grupo paulista traduz a bandeira e, sem dúvida, uma das características mais presentes na luta do movimento homossexual brasileiro: o empoderamento pela própria identidade de ser homossexual. Segundo Elaine Zanatta (1996; 1997), o tripé que constituía as ações do grupo articulava-se na defesa da identidade, sexualidade e cidadania.
O antropólogo Edward MacRae explica sobre o funcionamento do grupo, cuja concepção considerava que o mundo estava dividido entre heterossexuais, homossexuais e bissexuais e que essas categorias ou identidades faziam parte das personalidades dos indivíduos. Compreendiam que existia um regime patriarcal na sociedade e que os heterossexuais masculinos buscavam impor seus padrões normativos sobre o mundo. Essa discussão era normalmente aceita por muitos homossexuais que, embora repudiassem práticas normativas, não percebiam ou não se reconheciam, naquele momento, como inseridos sócio e historicamente em uma sociedade machista e que, portanto, reproduziam em seu cotidiano essa mesma lógica. Dessa forma, “um dos grandes objetivos a ser alcançado seria [...] o auto reconhecimento, por parte desses, e a criação de uma nova ‘consciência homossexual’” (MACRAE, 2018a, p. 114).
Especialmente nos movimentos feminista, gay e lésbico era comum a realização de pequenos grupos de reflexão ou de conscientização para debater a dimensão social de exclusão e preconceito (GREEN, 2018b). Sobre essa prática, vale lembrar que um dos primeiros grupos de reflexão foi o Grupo de Conscientização Feminista, que emergiu em 1972 na cidade de São Paulo. A construção desse grupo se deu também a partir da influência de mulheres que vivenciaram experiências em grupos no exterior e o envolvimento dessas com as discussões feministas (PEDRO, 2012). Nesse sentido, esses grupos foram compostos apenas pela participação de mulheres e
intencionavam discutir questões relacionadas à sexualidade, ao corpo e ao prazer da mulher, defendendo a importância de compartilhar as vivências pessoais enquanto constituição de uma identidade coletiva de mulheres. Esses grupos são considerados, então, como uma “metodologia revolucionária de divulgação de ideias” (PEDRO, 2012, p. 241), na medida em que possibilitaram a construção de redes feministas nacionais e internacionais. Da mesma forma, essas práticas de grupos de reflexão e discussão de mulheres influenciaram também os grupos homossexuais. No Somos/SP, esse processo teve o formato de “Grupo de Reconhecimento”, considerado um dos pilares para a recepção de novos integrantes (GREEN, 2018b)
150
. A proposta da atividade era estruturada, tal como analisa o historiador brasilianista, levando em conta que o:
[...] processo dialético e dialógico entre o particular e o universal ou entre o pessoal e o social partia dos mesmos fundamentos, [e que] embora não [eram] explicitamente assumidos no momento, da conscientização-ação ou reflexão-ação-reflexão, [...] estava[m] na base do trabalho feito por setores da esquerda, como a pedagogia inspirada no pensamento de Paulo Freire e a ala progressista da igreja católica (GREEN, 2018b, p. 71).
Dessa maneira, seus integrantes participavam e atuavam na construção do grupo a partir de diversas ações, desde a realização de reuniões internas, ou de planejamento de realização de festas, de encontros – “Dia 22 de outubro, Noite Afro-Brasileira na Sede do Grupo Somos, Rua Abolição 244”, “Festa Folia no Matagal, sábado - 4 de abril, Rua Abolição 244”, “Grupo Somos e Mistura Fina convidam você e seus amigos para se reunir conosco todos os domingos a partir das 15hs na ‘Tarde do Lazer’ Shows, brincadeiras, danças, sorteios etc... ‘Não deixe a solidão tomar conta de você, faça amigos no Mistura Fina’” –, das sessões de cinema – entre os filmes exibidos no Clube de Cinema Somos
151
é possível mencionar
Eu te amo, eu te mato
(Uwe Brandner e lançado, 1970),
Dois perdidos numa noite suja
(Braz Chediak, 1970) e
A queda
(Ruy Guerra, 1976), assim como atuavam no planejamento e participação de atividades externas ao grupo, como a participação e organização de atos, de palestras e outros eventos que efervesciam no grupo e fora dele.
MacRae (2018a) pondera que naquele momento não se aceitava levar para o grupo os debates propostos pela comunidade acadêmica, mesmo quando se referia à temática do autoconhecimento da condição homossexual ou da própria etiologia da homossexualidade. Segundo o pesquisador, muitos integrantes desconfiavam da linguagem científica. Essa relutância se
justificava sobretudo porque, naquele momento, os especialistas – como psiquiatras e psicólogos –, legitimados pelo debate científico, defendiam a homossexualidade numa ótica patologizante, higienista e moralista. Com a hecatombe da hiv/aids, em fins de 1970 e início dos anos 1980, dispositivos como o Estado, religião, medicina e mídia associaram a homossexualidade ao vírus, que também era referida como “câncer gay”, “castigo de Deus” ou “os leprosos dos anos 80” (BRITO; ROSA, 2018)
152
.
Redes interseccionais
O cenário de abertura política do final dos anos 1970 possibilitou novas discussões no campo das lutas promovidas pelas várias organizações clandestinas de esquerda que, a partir de então, atuavam na regularidade. Nesse momento destacam-se os movimentos como o negro e feminista, que, além de discutirem questões políticas já estabelecidas, também passaram a discutir preceitos culturais ou relacionados às relações de poder do dia a dia dos seus militantes (MACRAE, 2018a). Os “movimentos minoritários”, cada qual com suas pautas específicas – as quais eram inicialmente rechaçadas tanto por setores da esquerda, mas sobretudo pela direita –, procuraram estabelecer laços de solidariedade entre si. Os movimentos homossexual, feminista e negro tensionaram a prática política tradicional da esquerda, a qual idealizava a utopia de um projeto único, voltado para a “luta maior”, ou a luta de classes, como o meio que garantiria as transformações necessárias. Esses movimentos estruturavam suas resistências em defesa da compreensão das diversas estruturas e mecanismos de controle do cotidiano que forçavam e reforçavam as desigualdades e preconceitos.
Considerando essa perspectiva, o movimento homossexual brasileiro se aliou com ações envolvendo os movimentos feminista e negro, tal como ocorreu na passeata contra Richetti realizada em 1980 em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. O momento dessas alianças pode ser percebido no panfleto que circulou chamando a população para o ato:
Uma nova onda de violência policial está se abatendo sobre São Paulo. Sob o pretexto de “moralizar” a cidade o delegado da Seccional Centro, Sr. José Wilson Ricchetti, tem comandado operações policiais durante os fins de semana, prendendo indiscriminadamente todas as pessoas que, por ventura, estiverem passando pelo local das “batidas” (portando ou não documentos). O alvo preferido do delegado são os homossexuais, os negros, travestis e prostitutas. Porém, qualquer outra pessoa pode ser detida. Por isso estamos convocando todas as pessoas a participarem do ATO PÚBLICO CONTRA A REPRESSÃO POLICIAL
a ser realizado na
sexta-feira, dia 13/06/80, nas escadarias do Teatro Municipal, às 18:30 horas. Precisamos dar um basta à essa onda de violência. TODOS AO ATO PÚBLICO (AEL/Unicamp).
A marca do coletivo de mobilização está representada pelo uso do pronome “TODOS”. Esse termo propõe mobilizar todas as pessoas para que se conscientizem das arbitrariedades recorrentes pelo Estado de repressão. Além disso, representa a pluralidade de pautas e instituições que assinam o documento: Grupo Somos, Movimento Negro Unificado, Grupo Feminista “8 de Março”, Associação das Mulheres, Sociedade e Jornal Brasil Mulher
, Convergência Socialista, Grupo de Mulheres do Jornal O Trabalho
, Grupo Nós Mulheres, Grupo Ação Lésbico Feminista, Ação Homossexualista, Jornal Causa Operária
, Grupo Eros, Grupo Libertus, Frente das Mulheres Feministas e o Núcleo de Defesa à Prostituta. Essas mobilizações coletivas apontam para as relações de poder baseadas nos recortes de gênero, raça, classe e sexo, entre outros, que definiam as estratégias de repressão e os mecanismos do Estado ditatorial. Jacira Melo, cineasta brasileira e que atuava no S.O.S. Mulher em São Paulo nesse momento, relata sobre sua participação nas manifestações que ocorriam:
Nós nos juntamos com algumas outras militantes feministas e protestamos. Fizemos manifestação pública na Ipiranga, ali com a São João, e fomos pra Boca do Lixo, manifestar contra a repressão à prostitutas e travestis. Para você ter uma ideia – era regime militar – algumas mulheres estavam em prostíbulos e a polícia chegou e a repressão era tão pesada que elas pularam pela janela. Então era uma coisa muito difícil e nós, na nossa juventude, fomos manifestar. E isso nos inspirou, muito forte, a trabalhar com violência contra as mulheres. (MELO, 2018, p. 7).
O depoimento de Jacira Melo enfatiza a mobilização coletiva por pautas comuns, como a violência contra as mulheres. Nesse sentido percebemos que as alianças passam a existir e a se conectar interseccionalmente, mesmo que houvesse divergências e questões internas dentro dos respectivos movimentos, como percebemos no feminista, por exemplo, que começa a incorporar a questão da mulher negra e lésbica. Também o movimento negro passa a considerar a existência de diferenças entre seus e suas militantes, ao entender que há relações hierarquizantes nos campos do gênero, da classe e da sexualidade (MACRAE, 2018a, p. 307). Segundo Edward MacRae (2018b), passa-se a compreender a noção de um/a sujeito/a “duplamente discriminado/a”
153
, posto que precisam reivindicar uma dupla militância, atuação que para muitos grupos era considerada suspeita, pois não se dedicava unicamente à luta de classes.
Ao entendermos o ser humano como constituído de identidades múltiplas, e, portanto, atravessado por vivências e subjetividades diversas, evidenciamos que a temática da identidade era potencializada nesse momento por meio dessas redes interseccionais, promovendo debates e ações que alargassem a atuação das minorias. Se tomarmos como exemplo o Grupo Somos/SP e sua atuação no cenário brasileiro, a primeira aparição em público se deu na Semana das Minorias da Universidade de São Paulo e sua primeira manifestação nas ruas foi numa passeata para marcar o Dia de Zumbi em 1979, junto ao movimento negro (MACRAE, 2018a, p. 212). Essa interlocução se deu também nos anos subsequentes, tais como encontramos em outros panfletos desse período: “– Basta de opressão a(o) homossexual – Abaixo a repressão policial – Chega de violência a mulher – Contra a marginalização do negro MAIS AMOR E MAIS TESÃO”, assim como o documento encontrado no acervo do Grupo com o título “O trabalhador negro: de escravo a desempregado!...”. O texto é uma convocação assinada por diversos grupos e movimentos negros para que o/a trabalhador/a “compareça à manifestação do dia nacional de denúncia contra o racismo – dia 13 de maio de 1983 – 19hs – Largo do Paissandu – São Paulo”.
O Grupo Somos/SP, ao atuar nesse espaço de militância política, resistência, sociabilidade e reconhecimento, integrou um grande número de pessoas – sobretudo homens homossexuais. Também contou com a participação e atuação de mulheres heterossexuais, bissexuais e lésbicas, as quais, não raro, não obtinham tanta visibilidade e possibilidades de atuação dentro do grupo quantos os homens. A partir de suas participações no Somos/SP e da interlocução com outros movimentos sociais que emergiam no período, essas mulheres promoveram um diálogo, não somente com a luta homossexual, mas também com o feminismo. Para diversas/os integrantes, então, o grupo Somos/SP significou o primeiro espaço de ativismo, o qual abriria novos caminhos na militância de esquerda.
O historiador e ex-integrante do Somos/SP James N. Green narra que nos primeiros anos de atuação do grupo havia uma parcela de seus integrantes que se mostrava resistente à atuação de mulheres, principalmente ao alegar que elas não entendiam suas pautas, marginalizando-as. Nesse sentido, aponta que “algumas mulheres começaram a passar pelo grupo, mas não tinham uma permanência [...], por uma falta de outras mulheres no grupo, e parte de uma consciência política de tentar criar uma coisa nova” (GREEN, 2018a). Dessa maneira, percebemos a questão da pouca representatividade de mulheres dentro do Somos/SP, fato que, não raro, limitava a aderência para que se sentissem
efetivamente incluídas nas lutas e ações do grupo, refreando seus envolvimentos e atuações nos movimentos sociais e políticos.
Considerando essas tensões, retomamos o debate ocorrido na Semana das Minorias da Universidade de São Paulo em 1979, evento que marcou o diálogo interseccional, posto que objetivava pensar e discutir as vivências de mulheres, homossexuais, indígenas e negras/os inseridas/os naquele contexto. Como ex-integrante do grupo em questão, James N. Green (2018a) narra sobre a construção desse espaço de diálogo:
Eu disputava dessa ideia, naquela época eu falava ‘a gente tem que falar sobre setores oprimidos que não foi tão pouco’ [...] Então eles organizaram um segundo debate de quatro dias, no dia sobre os homossexuais, e provocou todo um debate nosso sobre o nome e como nós íamos participar, quem ia participar. [...] então houve várias pessoas falando e chegaram mais ou menos 100 pessoas nesse debate, e as primeiras mulheres, que entraram no grupo logo depois dessa reunião, muito animadas a participar do grupo.
A partir desse relato, visualizamos que esse evento representou, para muitas pessoas, um primeiro contato público voltado às pautas dos “grupos minoritários”, a exemplo das mulheres lésbicas, que tiveram algumas de suas subjetividades representadas nas falas e discussões durante o evento. Percebemos que esse episódio significou um momento de rearticulação dos movimentos sociais daquele contexto, principalmente por sua recorrente menção nas memórias que retomam aspectos do movimento feminista, negro, indígena, lésbico e homossexual da época. A fala de James Green sobre a importância da representatividade trazida aos “grupos minoritários”, a partir do espaço de debate, aproxima-se da experiência rememorada pela historiadora e também ex-integrante do Somos/SP, Marisa Fernandes (2018, p. 11):
Mas em 08/02/1979 vai ter o debate sobre minorias dentro da própria USP, no prédio de frente da História, no de Ciência Sociais, e as minorias eram: mulheres, negros, indígenas, e homossexuais! “aaaaaaaah, que que é aquilo? Que que é aquilo?” Aquilo, pra mim, meu deus. “Não acredito! Quem vai vir falar? A igreja? Os psiquiatras?” Porque era quem falava [antes daquele contexto]. Quem falava pelos homossexuais? [...] Dali, quando acabou o debate, bom, vocês podem imaginar que a mesa dos palestrantes ficou tão lotada, o assédio foi tão grande [...] Aí eu lembro de ter perguntado “vocês se reúnem?” “Sim”. “Que dia?” “De sábado”. “Manhã, tarde ou noite?” “De tarde”. “Onde?”... Me passou o endereço e no sábado eu estava lá.
Em seu relato, Marisa demonstra que foi a partir dessa mesa de debate
que ela pôde estabelecer sua relação com o movimento homossexual e iniciar, posteriormente, sua militância como mulher lésbica
154
. O evento se tornou, assim, um “pontapé inicial” em sua atuação no movimento da esquerda não clandestina, visto que Marisa iniciou sua participação no grupo nesse mesmo ano, em 1979.
A partir da entrada das mulheres no grupo Somos/SP, aconteciam, não raramente, episódios de silenciamentos de suas experiências e subjetividades, principalmente por parte de outros integrantes. Podemos perceber essa prática no relato de Marisa Fernandes (2018, p. 12-14):
Dentro do Grupo Somos, nós ficamos incomodadas, porque a gente tinha critérios lá. Primeiramente nós éramos um grupo homogêneo, um grupo de gays e de lésbicas. [...] e aí éramos todos nas mesmas ações, nas mesmas causas. E nós tínhamos adotado, ser chamados de... [...] Bom, mas enfim, a gente queria ser chamada de lésbica. Pra esvaziar esse conteúdo maldito, pejorativo, que tinha, né? Mas as bichas se referiam a todas as mulheres como “as rachas” e isso nos incomodou. Racha. Nem inteira a gente não era, a gente era rachada, não só pelo desenho da vagina, né? [...] E tinham muito preconceito contra as mulheres, e tinham muito medo das lésbicas, também. [...] Poxa, mas a gente tava ali dentro do Somos né, será que não podia? Eles achavam que a gente tinha que ajudá-los a deixar de ter preconceito. E nós falamos “não gente, a gente vai ter que começar a discutir essas coisas porque o feminismo tá acontecendo, o feminismo tá acontecendo no mundo”.
Sua fala deixa perceptível que as opressões estabelecidas no interior do Somos/SP – sobretudo com relação às mulheres – basearam-se nas construções socioculturais impostas sobre os diferentes corpos e subjetividades, reproduzindo as desigualdades de sexo e gênero, por exemplo. Os episódios de misoginia sofridos pelas mulheres do Somos/SP, ao serem compreendidos por elas, foram uma das questões que culminaram para a necessidade de incorporar no interior do grupo os debates feministas que emergiam em outros espaços
155
.
Consideramos essas opressões percebidas no interior e fora do grupo, somadas às influências do contexto em que essas mulheres integraram o Somos/SP, como um dos fatores que levaram diversas integrantes a constituírem redes de fortalecimento e novos grupos de reconhecimento que discutissem suas pautas de modo prioritário. Em 1979 – mesmo ano em que a maioria das mulheres ingressou ao grupo – parte de suas integrantes compreendeu a necessidade de criação de um subgrupo do Somos/SP
denominado Grupo Lésbico Feminista (LF). O parágrafo introdutório do Documento “Histórico do Grupo Lésbico Feminista – Atividades” (1979) demonstra os motivos de sua criação, relacionando-os também com a atuação do jornal O Lampião da Esquina
:
A partir do convite do Jornal Lampião para a elaboração de uma matéria sobre lesbianismo, para a publicação em maio/79, foi formado um coletivo de mulheres. Após o final deste trabalho, algumas de nós notamos a importância de continuarmos juntas discutindo a nossa dupla discriminação enquanto mulher e homossexual. Dessas discussões surgiu a necessidade de conversarmos sobre feminismo e trabalharmos nesta perspectiva. (AEL/Unicamp).
Em decorrência dessa iniciativa de construção de um subgrupo de reconhecimento, essas mulheres atuaram a partir de diversas ações no âmbito político, social e cultural. Entre essas atividades, citamos: realizações de debates públicos sobre homossexualidade; produção de textos e entrevistas para jornais alternativos e panfletos para circulação pública que abordavam sobre as questões lésbicas; participação e organização de eventos como o II Congresso da Mulher Paulista, o I Encontro Brasileiro de Homossexuais, a 2.ª Semana da Mulher em Campinas e o Encontro Nacional da criação publicitária; reuniões e encontros com outros grupos feministas, a exemplo do “Nós Mulheres” e do “Associação das Mulheres” para discutir sobre feminismo e lesbianismo; elaboração de materiais, como o jornal
Shana com Shana
156
, pôsteres e livros artísticos com ilustrações lésbicas, entre outras (AEL/Unicamp).
Percebemos a variedade de ações nas quais o LF se propunha a realizar em seus primeiros meses de organização e atuação. Destacamos para o diálogo que essas mulheres buscavam estabelecer com outros grupos de reconhecimento lésbicos e feministas, a fim de construir redes de fortalecimento entre mulheres diversas, além de evidenciar a preocupação do grupo em publicizar as pautas feministas e lésbicas, fosse por meio de produções e publicações em jornais alternativos, ou por intermédio da divulgação de panfletos, cartazes e livros que abordassem questões como a violência sexual contra a mulher, por exemplo. Dentre outras atividades, salientamos, enfim, as participações desse grupo de mulheres em eventos – anteriormente citados –, os quais tiveram importância para o movimento feminista. Esses eventos, na medida em que possibilitavam realizar em espaço público o debate de algumas das pautas e reivindicações discutidas no âmbito privado de diversos grupos e de mulheres independentes, foram capazes de dialogar com a opinião pública sobre as contestações feministas e lésbicas, ampliando suas redes de reconhecimento e fortal
ecimento.
Face às diversas atividades que pensavam o ativismo lésbico e feminista fortalecidas pela atuação das integrantes do LF, somadas a fatores como a dupla discriminação das mulheres e as tensões que envolviam comportamentos misóginos no interior do Somos/SP, influenciando negativamente no “processo de afirmação das lésbicas e o bem andamento dos trabalhos em conjunto”, conforme apontam em documento de 1982 (AEL/Unicamp), a autonomia do LF mostrava-se cada vez mais premente. Nesse sentido, Marisa Fernandes (2018) destaca a participação das integrantes do LF na passeata do 1.º de maio de 1980 de São Bernardo do Campo – levantada pelos/as trabalhadores/as metalúrgicos/as com o objetivo de enfrentamento à ditadura – como um marco para o grupo, visto que a mobilização motivou a construção de um grupo independente ao Somos/SP. Dessa forma, em 17 de maio de 1980 – cerca de um ano após sua criação e início de suas atividades – o grupo LF respondeu à demanda em reivindicar sua autonomia, desvinculando-se do Somos/SP. As integrantes do Grupo Lésbico Feminista, ao desenvolverem um grupo autônomo, optaram pela mudança do nome, passando a denominarem-se “Grupo de Ação Lésbica Feminista” (Galf). Marisa Fernandes (2018, p. 23) explica que os motivos dessa mudança de nome relacionaram-se com o fato de elas passarem a se identificar como um grupo de “ação” e não somente “atuação”, reivindicando sua militância política lésbica e feminista, identificando-se somente a partir de termos femininos.
De acordo com o documento “Estatuto do Grupo de Ação de Liberação Feminista” (AEL/Unicamp), o Galf propunha “conhecer, discutir e tornar públicas as questões que envolviam discriminação e opressão a que estão submetidas todas as mulheres”. A partir de um trabalho de solidariedade e conscientização, então, o grupo deu continuidade às atividades do LF, realizando ações que refletiam sobre as diversas opressões e lutas das mulheres e de lésbicas. Nesse sentido, promoveu e formou grupos de reflexão e discussões, propiciou debates públicos por meio de veículos de comunicação – a exemplo do jornal Chana com Chana
–, construiu departamentos e comissões de trabalho e estabeleceu estratégias para agregar quaisquer pessoas que estivessem interessadas na militância em prol dos direitos das mulheres.
Dessa forma, considerar as propostas e projetos empreendidos, seja pelos Somos/SP, seja pelo Galf, seja por outros grupos, demarca a importância dos movimentos, na medida em que repercutem e se conectam
interseccionalmente, a partir da emergência dos conflitos sociais. Mesmo havendo singularidades entre as pautas específicas, foram importantes porque possibilitaram a construção de redes de reconhecimento, fortalecimento e solidariedade das e entre as pessoas.
Algumas (possíveis) considerações finais
Judith Butler (2018) elabora algumas reflexões quanto à mobilização e ao exercício público do gênero, cujo propósito é o de reivindicar e de assegurar os direitos das minorias em ocupar as ruas, garantir a manutenção do emprego, bem como “combater o assédio, a patologização e a criminalização” (BUTLER, 2018, p. 77). Dito isso, a filósofa situa a importância da noção inerente ao sintagma “nós”, posto que se trata de uma luta que não se restringe a determinadas identidades, e requer o estabelecimento das ligações entre as pessoas, com o propósito de “se opor às forças e aos regimes militares, disciplinadores e reguladores que nos exporiam à condição precária” (BUTLER, 2018, p. 77-78). Além disso, pondera sobre o fato de que a atribuição de direitos de um grupo é de tal maneira instrumentalizada para privar outro/s de prerrogativas básicas que Butler defende a necessidade de reconhecermos “que os direitos só são significativos no âmbito de uma luta mais ampla por justiça social, e que, se [...] são distribuídos diferencialmente, então a desigualdade está sendo instituída por meio do emprego e da justificação táticos dos direitos para gays e lésbicas” (BUTLER, 2018, p. 79). Nesse sentido, muito embora a leitura de Butler faça referência ao contexto mundial recente, nosso propósito foi compreender como – por meio da história oral, da memória e do patrimônio, sobretudo documental –, em determinadas circunstâncias, o movimento homossexual brasileiro atuou, construiu estratégias e resistências de, para e por homens e mulheres homossexuais – cujos corpos eram marcados tanto pela sexualidade quanto pelo gênero dissidentes (sintetizado aqui no título do capítulo que retoma o slogan do Grupo Somos/SP) – que se mobilizaram coletivamente no contexto ditatorial do país, tal como se percebe em outros movimentos, como o feminista, o estudantil, o negro, o trabalhista, entre outros. Já nesse momento pudemos perceber alianças entre esses diferentes movimentos, sobretudo em passeatas, organizações e participação em eventos e manifestações públicas. Ademais, elaboramos algumas reflexões quanto à atuação dessas mulheres e desses homens homossexuais em diferentes grupos e contextos diversos, mas que tinham em comum o propósito de contestar valores socialmente impostos, bem como defendiam o que passamos a compreender como alinhado à bandeira feminista em plena
ditadura.
Consideramos que os sintagmas “nós” e “todos” perpassaram este texto no sentido de emoldurar pautas, lutas, resistências, mobilizações que articularam e articulam pessoas desde suas atuações tanto no âmbito privado quanto no público. Muito embora os documentos aqui apresentados digam respeito sobretudo ao Grupo Somos/SP, cujo acervo dispõe de diferentes tipos de documentos manuscritos, datilografados, desenhos, esboços, matrizes – d’
O corpo
, por exemplo –, sejam aqueles relativos à rotina e organização do grupo
157
, ou ao contato com outros grupos e organizações no Brasil e exterior, dispõe-se também de materiais recolhidos em jornais, revistas, panfletos avulsos distribuídos em mobilizações, até correspondências enviadas por pessoas de diversas localidades – mesmo de lugares onde
O corpo
ou o
Lampião da Esquina
tivessem circulação rarefeita –, exercendo nas diversas regiões do Brasil um diálogo profícuo entre as diferentes organizações de esquerda.
Entender que o arquivo nos permite acessar um determinado passado – filtrado, evidentemente, por aqueles e aquelas que o constituíram – desencadeia a indubitável curiosidade aos materiais ausentes, aqueles que foram em algum momento descartados por seus responsáveis, e que, portanto não deixam rastros. Como arquivar sexualidades e afetos
158
, experiências das minorias historicamente invisibilizadas das narrativas oficiais? A troca de correspondência das mais variadas e outros documentos entre Grupo Somos/SP, Somos/RJ, Somos/MA, Grupo Gay da Bahia (GGB), Adé Dúdú – Grupo de Negros Homossexuais, Grupo de Atuação Homossexual (GATHO), Grupo Nós Também, Outra Coisa e Grupo Dialogay, por exemplo, bem como a realização de eventos, publicações entre outros, permite-nos dimensionar projetos de resistência e de existência de vidas dissidentes.