ARTE, POLÍTICA E FEMINISMO: AS IMAGENS DA RESISTÊNCIA DAS MULHERES NA DITADURA
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Isabela Fuchs
Alina Nunes
Em regimes de exceção, a resistência encontra seu caminho nos mais variados campos. Além da militância política organizada em partidos de esquerda, em organizações do movimento estudantil ou na luta armada, na ditadura militar brasileira as ideias de resistência também circulavam no cinema, no vídeo, nas artes gráficas, tornando o campo visual palco de embates políticos. Praticamente todo trabalho acadêmico que tem como tema a imagem logo de início se posiciona dizendo que somos uma sociedade da imagem ou que nunca antes vimos tantas imagens ao nosso redor, em um anseio benjaminiano de se falar sobre reprodutibilidade e, ao mesmo tempo, com uma dose de pessimismo de se encontrar pertencente a uma sociedade do espetáculo.
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A questão é que sempre vivemos rodeadas e rodeados por imagens e sempre fizemos imagens. Somos feitas e feitos de imagens.
Muitos trechos da história da resistência à ditadura podem ser contados por meio de imagens. Afinal, a imagem é um fenômeno que combina seus produtores e receptores fazendo dela uma operação dinâmica, não somente contemplativa. Uma imagem depende de quem a fez, imprimiu, emoldurou, transportou, e precisa de uma interpretação de quem a vê para alcançar a sua potência. A imagem vai além do que ela mostra – ela estabelece relações com quem a observa. Relações essas que são ímpares, pessoais, mas que também podem se amarrar em uma experiência coletiva, do campo afetivo e da memória. Um exemplo são os álbuns de fotografia – a história de uma família pode ser contada por meio deles. A história de uma cidade é contada pelas suas pinturas de época, seguidas pelas fotografias de praças e outros pontos turísticos. Os filmes também contam histórias, podendo ser considerados a materialização de relações entre um acontecimento e sua percepção por um grupo de pessoas.
Podemos pensar na vida das imagens. Até que ponto elas duram? Pode uma imagem morrer? Há uma espécie de fio que conecta imagens de diferentes tempos e lugares por meio da memória humana. Afinal, “estar face a face com a imagem é estar face a face com a história” (BURKE, 2004,
p. 17), pois travam-se tensões e conflitos no campo da imagem que ultrapassam a vida dos seus autores, veiculando pensamentos e subjetividades, mesmo que quem os materializou não esteja mais aqui para contar das razões para criá-lo e das suas consequentes escolhas estéticas.
Sabemos que, muitas vezes, as mulheres artistas foram obliteradas no processo de escrita da história dessas imagens, o que reafirma que o processo de escrita da história é um campo de combate e disputa de narrativas. Refletir sobre as imagens produzidas por mulheres, seja no cinema moderno ou nos cartazes do Movimento Feminino pela Anistia, é ponderar sobre a potência da imagem, o seu potencial político, reivindicatório, o seu impacto, principalmente sobre a imagem impressa, pois “em todos os lugares, impressões nos precedem e nos seguem” (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 11)
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, considerando a subjetividade atrelada às relações de gênero como marcantes para as experiências da produção da arte como resistência política.
Desde antes do golpe de 1964, na década de 1960 a produção artística politicamente engajada crescia no Brasil. O cunho político e contra-hegemônico do Cinema Novo e do Teatro do Oprimido era notável desde o início da década, sendo exemplos de manifestações artísticas que subvertem não só no teor político de seus discursos, mas também em sua estética inovadora. Como aponta Rancière (2009), o caráter político da arte é também estético no sentido em que se coloca como resistência a determinada forma de partilha do sensível
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anteriormente estabelecida. Assim, de acordo com Maria Alice Costa e Naiara Coelho, a arte política “encontra no seu teor político, social-crítico e reivindicativo, um movimento para suplantar a técnica formal e tornar visível outros sentidos, significados e subjetividades de protesto” (COSTA; COELHO, 2018, p. 27).
No cinema, na produção gráfica ou na criação de vídeos, as mulheres puderam encontrar mecanismos de resistência e de ação política. A importância da produção dessas imagens reside não só nas imagens em si, mas no que está em suas entrelinhas. A subjetividade das mulheres que produzem imagens as atravessa em todos os aspectos. Ocupar espaços de produção de imagens em uma sociedade marcada pelas hierárquicas relações de gênero é um processo que envolve conflito social, é uma luta.
O cinema
Por muito tempo, a história do cinema foi construída através de olhares masculinos, e essa prática não se restringe apenas ao contexto brasileiro. Seja no neorrealismo italiano, na
Nouvelle Vague
francesa ou no Novo Cine
Latino-americano, a atuação de mulheres foi continuamente invisibilizada. Assim, é preciso afirmar e reafirmar que as mulheres cineastas construíram o movimento do cinema moderno brasileiro
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tanto quanto os homens que tentam centralizar em si as narrativas da história do cinema. O campo da história das mulheres no cinema é um campo bastante novo, e o trabalho de preservação da produção e da história dessas cineastas é praticamente um trabalho arqueológico (HOLANDA; TEDESCO, 2017). Na última década, as produções sobre história e cinema aumentaram significativamente – e graças ao esforço contínuo de muitas pesquisadoras, pouco a pouco a história do cinema vem sendo reescrita, dessa vez, sem invisibilizar as mulheres. O caminho ainda é longo, mas está sendo trilhado.
A popularização do cinema no início do século XX mostrou-se como uma possibilidade para as mulheres reivindicarem seu espaço no campo artístico e na história. Assim, cabe compreendermos que os filmes produzidos por mulheres são importantes fontes históricas, expressões culturais e sociais inseridas em um contexto histórico específico. Como aponta Janet Wolff (1981), a arte é sempre social, situada e produzida historicamente, além de ser atravessada por razões biográficas, psicológicas e sociais. Por isso, fica claro que as relações de gênero estão imbricadas às razões biográficas, psicológicas e sociais, que são determinantes para a produção artística. Assim, por meio da produção cinematográfica feminina, é possível contar a história das mulheres, pois as imagens produzidas por elas permitem que observemos a realidade a partir de suas experiências.
O contexto da ditadura militar é determinante para a construção do cinema moderno brasileiro. Marc Ferro (1976) aponta que o cinema é uma ferramenta de manifestação capaz de transgredir qualquer instância do controle ideológico, até mesmo o Estado. O Cinema Novo, movimento iniciado pouco antes do golpe militar de 1964, “desenvolveu-se em um terreno de resistência a uma TV dominada por interesses políticos e econômicos, direcionada para o controle social” (SANTORO, 1989, p. 57). Além de se opor a isso ao permanecer ausente do circuito televisivo comercial, o movimento do Cinema Novo trouxe novas preocupações para a produção cinematográfica brasileira ao combinar a experimentação estética com o engajamento político. O movimento era guiado pela conhecida frase de Glauber Rocha “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, e, nesse momento, para Ismail Xavier (2001, p. 28), “falou a voz do intelectual militante mais do que a do profissional de cinema”, definindo a linguagem da primeira fase do Cinema Novo ao colocar em cena temas sociais aliados ao “descobrimento” de um Brasil até então invisível às câmeras.
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Após o
golpe, o Cinema Novo entrou em uma nova fase, discutindo a proximidade entre os artistas e as classes populares ao reconhecer a existência de uma alteridade do povo perante as elites que dominam o país. Em 1967, isso foi demonstrado em
Terra em Transe
, filme que conta a história de um poeta e jornalista que trabalha para um candidato a governador. Com a ironia da carnavalização da política, o filme também retrata o regime autoritário de 1964 e exerce uma crítica ao romantismo revolucionário. Para Xavier, esse foi um filme “que colocou em pauta temas incômodos e se pôs como a expressão maior daquela conjuntura cultural e política” (XAVIER, 2001, p. 29).
Por mais revolucionários que sejam considerados os cineastas do Cinema Novo, é importante ressaltar que, como aponta Ana Maria Veiga (2013), a revolução proposta por eles era uma revolução pela metade. Os Novos Cinemas – fossem feitos em Cuba ou no Brasil – “não colocaram em cena o problema da situação inferiorizada das mulheres na sociedade; ao contrário, muitos diretores apenas reafirmaram ou naturalizaram esta questão” (VEIGA, 2013, p. 41). A consolidação do cinema moderno brasileiro contou com a participação de cineastas mulheres em todas suas fases, mas especialmente a partir do início da década de 1970. Helena Solberg, que convivia com muitos dos cineastas do Cinema Novo, fez seu primeiro filme em 1966. A entrevista
é uma obra vanguardista, sendo considerada “o marco fundante do cinema brasileiro moderno de autoria feminina” (HOLANDA, 2017, p. 50). O documentário tem 19 minutos, e mescla imagens de uma mulher que passeia pelas ruas do Rio de Janeiro e se arruma para seu casamento às vozes de várias mulheres que conversam sobre sexo, virgindade, relacionamentos, independência financeira, entre outros temas importantes que circundavam a vida das mulheres de classe média daquele período. A diretora, em uma entrevista realizada em 2005, descreveu a construção de seu filme:
[...] eu fiz o meu primeiro filme, chamado A entrevista
, e que já tem um pouco essa mistura minha que eu acho interessante, e que não era uma coisa totalmente consciente, que é essa coisa de documentário e ficção misturados. Eu saí entrevistando moças da PUC, de formação burguesa como eu, sobre casamento, sexo, política. Eu andava com um Nagra pendurado no ombro, fazendo um áudio, e com esse áudio eu criei uma imagem meio que mítica sobre a mulher se preparando para o casamento. Mário Carneiro foi quem fotografou, é lindíssima a fotografia. É um filme em preto e branco de uma moça sendo vestida como em um ritual para o casamento, e, ao mesmo tempo, essas entrevistas meio que
desmistificam aquela imagem, vão fazendo e costurando um comentário sobre aquilo. (SOLBERG, 2005, s/p).
O documentário dialoga com obras como O segundo sexo,
de Simone de Beauvoir (1949), e A mística feminina,
de Betty Friedan (1963), publicações que se tornaram muito importantes para a fundamentação do feminismo que se consolidou no Brasil a partir da segunda metade da década de 1970. Ainda, ao final da narrativa, a diretora constrói uma crítica sutil à ditadura militar brasileira, reconhecendo seu caráter misógino: é o único momento do filme em que uma voz masculina narra, ao mesmo tempo que são exibidas imagens da “Marcha pela família com deus pela liberdade”. A fala de uma das entrevistadas diz: “eu acho que a política deteriora o homem
” (A Entrevista
, 1966), o que pode demonstrar que Helena Solberg reconhecia que a ditadura militar era uma ditadura de homens. É importante falar de A entrevista
porque, ao contrário dos documentários produzidos pelos cineastas homens do Cinema Novo, que “não continham o ímpeto de diagnosticar o país e sua população por meio de uma voz off
que realinhava qualquer tentativa de ambiguidade do discurso” (HOLANDA, 2017, p. 51), o filme de Solberg “não só se afasta de uma voz totalizante, uníssona, que não se preocupa em enunciar algum saber, mas também traz dilemas caros à época para o centro do filme; é inteiramente protagonizado por mulheres e não fala do outro,
mas do mesmo
de classe” (HOLANDA, 2017, p. 51-52).
Nos anos 1970, é notório o aumento da participação de mulheres na direção de filmes no Brasil (HOLANDA, 2017). Para além do Cinema Novo, cabe tratar de outros momentos e movimentos do cinema moderno que contemplem mulheres cineastas. Para tanto, é preciso delinear algumas brechas que fizeram possível a participação feminina no cinema – como a criação da Embrafilme mediante o decreto-lei n.º 862, em 1969. Em 1970, tornou-se obrigatória a exibição de filmes brasileiros 112 dias por ano, o que, apesar da censura, abriu novas oportunidades para a produção do cinema nacional de oposição à ditadura (VEIGA, 2013). O grande investimento na área do cinema foi importante para a inserção de novos nomes na direção e produção audiovisual, o que incluía a participação feminina (NONATO, 2018). Nesse mesmo sentido, em 1975 foi estabelecida a lei n.º 6.281, a chamada “Lei do Curta”, que estipulava a exibição de um curta-metragem brasileiro antes da exibição de qualquer filme estrangeiro. Essa lei beneficiou as mulheres, já que a maioria dos filmes produzidos e dirigidos por mulheres eram curtas-metragens (NONATO, 2018). A diretora Ana Carolina Teixeira Soares, conhecida simplesmente como Ana Carolina, foi uma das mulheres que teve muitos curtas-metragens colocados em
circulação por conta da Lei do Curta. Ela conta que “houve uma lei ou uma portaria [...] que era obrigado a antes de passar o longa, passar o curta. [...]. Era lei. [...] Eu fiz muito curta, muito curta.” (SOARES, 2015, p. 14).
Um pouco antes de estipulada a Lei do Curta, em 1973, com 21 anos, Tereza Trautman lançou seu segundo longa-metragem, Os homens que eu tive
. O roteiro, a direção e a montagem desse filme foram feitos por Tereza. O filme conta a história de Pity, personagem que encarna a revolução dos costumes que atravessava as mulheres da classe média, vivendo uma relação amorosa com os dois homens ao mesmo tempo. Poucas são as cenas de nudez ou sexo explícito – principalmente se comparadas com os filmes da pornochanchada que dominavam o cinema nacional do período. Entretanto o filme de Tereza foi supostamente denunciado na noite de estreia, no Rio de Janeiro, e a censura o manteve interditado até 1980 (TRAUTMAN, 2010). Foram diversas as tentativas da diretora para o relançamento do filme, dando outros títulos ao longa e cortando as cenas explícitas.
O filme só foi liberado dez anos depois. [...] A gente até ofereceu, vamos mudar de nome, mas nem assim. A gente ofereceu: ‘ah, você quer, a gente muda de nome, começa um novo procedimento, como se fosse um filme novo, né?’ Nada. Era como se você falasse com uma parede, não tinha resposta, não tinha retorno nenhum, sabe, não dava para dar andamento. Se tentou. Se tentou de todas as formas na época. Somente depois é que se conseguiu liberar o filme, porque não fazia o menor sentido o filme estar interditado, não tinha uma cena, não tinha nada. Era o contexto. Era o contexto. (TRAUTMAN, 2010, s/p).
Em meio ao clima de repressão, os filmes de caráter explicitamente contestatórios eram facilmente censurados pelos órgãos do regime. A produção de pornochanchadas passou a dominar as telas do cinema nacional (VEIGA, 2013). Nesse gênero cinematográfico, os corpos das mulheres eram erotizados e exibidos exageradamente – apesar do caráter moralista da ditadura, a censura deixava passar esses filmes, tendo em vista que nas pornochanchadas “as mulheres sexualmente ativas estavam em cena para serem consumidas, não para escolher ou consumir” (VEIGA, 2013, p. 253). É por isso que o filme de Trautman foi tão censurado: o corpo de Pity, uma mulher livre, não estava à disposição do consumo de homens, ela “não tem nenhuma motivação especial para ter relacionamentos fora do casamento; é uma escolha livre” (HOLANDA, 2017). O filme foi considerado “amoral, pornográfico em sua mensagem, debochado, cínico, obsceno que tenta com enredo mal feito justificar a vida irregular de mulher prostituída. É um libelo contra a instituição do casamento [...] uma afronta à moral e aos bons costumes” (PARECER 4680/75 apud
VEIGA, 2013
, p. 251).
Figura 1:
O primeiro cartaz do filme Os homens que eu tive,
de Tereza Trautman, censurado em 1973
Fonte
: Acervo pessoal de Ana Maria Veiga.
O filme
Mar de Rosas
(1977)
,
da diretora Ana Carolina, foi seu segundo longa-metragem de ficção – antes, a diretora produzia apenas documentários
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– e faz parte da trilogia lançada entre 1977 e 1986. Os outros dois filmes,
Das tripas coração
(1982) e
Sonho de Valsa
(1986). Em
Mar de Rosas
, Ana Carolina satiriza a família “tradicional” brasileira, essa calcada nos mesmos ideais conservadores da ditadura militar. A família Felicidade (mãe e esposa), Sérgio (pai e marido) e Betinha (a filha adolescente) viaja de carro para o Rio de Janeiro, e Felicidade e Sérgio começam a discutir até que a mulher tenta matar o marido, e, assustada,
procura fugir de volta para São Paulo com a filha. Entretanto é perseguida por Barde, capanga de Sérgio, que a tortura e a violenta sexualmente ao longo do filme. Assim, além de criticar às instituições do casamento, da família e da moral cristã, outros personagens da ditadura, como os torturadores, são colocados sutilmente em cena, demonstrando uma crítica ao regime. O longa apresenta uma perturbante cena para “costurar” esses símbolos na narrativa:
Numa cena inquietante, nos deparamos com uma Felicidade rota, que já havia sido espancada pelo marido, furada, queimada e soterrada pela filha, atropelada por um ônibus e ameaçada pelo capanga. Com suas roupas sujas e esfarrapadas, faz sexo com seu algoz no banheiro, enquanto mentalmente fala com o marido Sérgio, que ela julgava morto. Depois, sozinha e triste, ela se masturba na banheira. O sexo com o verdugo traz à cena a humilhação e a resignação de uma mulher incapaz de escapar ao seu destino, embora continue com a esperança da fuga (VEIGA, 2013, p. 269).
Apesar de fazer uma crítica ao regime militar e mostrar nudez e sexo, Mar de Rosas
não foi vetado pela censura da ditadura. Segundo Veiga (2013, p. 270), essas imagens “passaram ilesas pelo crivo da censura militar, pois foram construídas sobre códigos conhecidos, como as tramas das já mencionadas pornochanchadas”, ao mesmo tempo em que Ana Carolina se contrapõe a esse tipo de cinema, já que “em Mar de Rosas
o apelo à nudez feminina é psíquico, referindo-se explicitamente à degradação daquela mulher”.
Figura 2:
Cartaz do filme Mar de Rosas
(1977), de Ana Carolina
Fonte
: Acervo pessoal de Ana Maria Veiga.
Existem, ainda, diversas outras histórias de mulheres que dirigiram, escreveram e produziram cinema no Brasil no período da ditadura. Tantas histórias não cabem em uma seção de um capítulo de livro.
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Entretanto cabe dizer que o cinema feito por mulheres levou – e ainda leva – às telas temas políticos, já que, quando falamos sobre mulheres, “o pessoal é político”, o que fortalece os debates anteriormente propostos pelo Cinema Novo que afirmava que a política e a arte eram indissociáveis. Nesse sentido, ao mesmo tempo que a arte foi utilizada como ferramenta política para movimentos sociais já consolidados, também se moldaram movimentos
em torno
da arte. Alguns espaços de debate sobre cinema se tornaram importantes espaços para a articulação política do feminismo. Foi o caso de um encontro organizado por mulheres do cinema brasileiro no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1975, nomeado “A mulher no cinema brasileiro: da personagem à cineasta”. Além da exibição dos filmes, durante o evento foram realizados debates que uniam o feminismo à prática cinematográfica (SARMET; TEDESCO, 2017). Ao longo da década de 1970, as diretoras que participaram desse primeiro encontro se reuniram outras vezes na tentativa de formalizar associações de mulheres cineastas, o que foi
finalmente consolidado em 1985 com a criação do Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro. As mulheres do Coletivo – Ana Carolina, Tereza Trautman, Tizuka Yamasaki, entre outras – conduziam ações que buscavam garantir a igualdade de oportunidades para homens e mulheres no meio cinematográfico, ao mesmo tempo que denunciavam as desigualdades de gênero no meio audiovisual (SARMET; TEDESCO, 2017).
Figura 3
: Um dos cartazes do Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro, de 1985
Fonte
: Acervo Centro de Informação Mulher (CIM).
Entretanto, como aponta Tereza Trautman, todas essas mulheres fizeram filmes de menos. Para ela, essa geração de cineastas é a geração das “cineastas amordaçadas”. Muitos foram os projetos idealizados, mas poucas foram as imagens produzidas.
[...] eu acho que todas nós fizemos filmes de menos. Todas nós ficamos com mais projetos, com mais vontade de fazer filmes do que conseguimos fazer. Acho que houve muitos filmes não feitos, muitos filmes que ficaram somente na ideia – o que é uma grande pena, porque é uma cinematografia tão diversa, você vê, Ana
Carolina [...]. Filmes maravilhosos e cada filme diferente um do outro. Você imagina, se você tivesse tido condições de você filmar à vontade, o que é que não seria, o que é que a gente teria conseguido fazer, quantos filmes? Você tem tantas mulheres que não conseguiram fazer filme, praticamente nenhum, sabe? “Cineastas amordaçadas” - talvez seja esse o título que se dá a toda essa geração, a toda essa leva de mulheres (TRAUTMAN, 2010, p. 27).
Os cartazes e o Movimento Feminino pela Anistia
Foi por meio de uma imagem, um cartaz pregado nas paredes de Bruxelas, capital da Bélgica, denunciando casos de tortura, que foi emitido um documento pelo Departamento da Polícia Federal do Rio de Janeiro, em novembro de 1974, e enviado para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Nele, havia o alerta de que a movimentação pela anistia era um “processo de subversão orientado pela esquerda extremista com a conivência de políticos frustrados e punidos pelos Atos Institucionais da Revolução de março de 1964” (ARQUIVO NACIONAL. ACE 80323/74). Agora, por que um cartaz incomodou tanto? Por que um movimento que reivindicava direitos básicos era tido como potencialmente subversivo?
Therezinha Zerbini não tinha medo desse tipo de ameaça e entendia que as ditaduras tinham brechas que deveriam ser atravessadas.
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Ela ocupava um cargo de liderança no Movimento Feminino pela Anistia, fundado em 1975 junto às outras companheiras.
O Movimento tinha um grande ideal agregador e conciliador, com uma visão da mulher enquanto sujeita que busca a paz social. Ele fazia um extenso trabalho de divulgação, buscando uma conscientização popular a respeito das mazelas cometidas nos porões da ditadura e a consequente importância da assinatura de uma Lei da Anistia. Havia o debate público, com visitas às igrejas, coletando assinaturas para realização de manifestos na rua, em supermercados, em feiras e em pontos de ônibus. Os núcleos do Movimento espalhavam-se pelo país. Apenas mulheres participavam das reuniões e das atividades políticas. Homens eram vetados estatutariamente por “estratégia de guerra” (ZERBINI, 2019, p. 3). Para Therezinha,
onde o homem vai, ele inibe. Você vai numa reunião de operários, de estudantes, tem lá um grupinho de mulheres. Se tem homens, eles inibem. Porque a mulher não foi treinada, ela não tem a velocidade mental porque sempre foi o homem que mandou. Ele sempre foi o chefe e patrão (ZERBINI, 2019, p. 3).
O Movimento Feminino pela Anistia não se reconhecia enquanto de
militância feminista. Entendia-se que as pautas de feministas europeias e americanas não faziam sentido em um lugar de Terceiro Mundo em que os problemas eram decorrentes da fome, desemprego, pobreza extrema e da falta de um ensino de qualidade (ZERBINI, 1979, p. 22). Tanto que debates como o aborto ou sexualidade não eram realizados por esse movimento, que focava mais em atuação política com o foco estrito no reestabelecimento da democracia e no acesso das famílias de periferia a bens de consumo coletivos do espaço urbano, como saneamento básico, asfalto e energia elétrica (SARTI, 1998, p. 5).
Em março de 1974, Ernesto Geisel assumiu seu governo, que se estendeu até o início de 1979. Tido por muitos historiadores e jornalistas como um ditador de uma linha mais leve, em um governo de distensão, por diminuir a censura à imprensa e restabelecer o
habeas corpus
, Geisel mais do que de “linha branda”, era um sujeito contraditório. Ao mesmo tempo que desejava reduzir o poder da chamada “linha dura”, ele também mantinha o controle dos “subversivos”.
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Fica claro que a categorização dicotômica entre linha dura e moderados é insuficiente e não preenche as lacunas dos alinhamentos políticos, afinidades pessoais e crises militares. Gostaria também de retornar a outra pergunta: por que os cartazes sobre a ditadura e o restabelecimento da democracia incomodavam tanto, sendo que, supostamente, o Brasil se encontrava em um período de uma lenta reabertura?
Cartazes, além de serem imagens, são uma obra gráfica, um “conjunto de estampas produzidas de uma mesma matriz, elaborada de acordo com algumas das técnicas gráficas e estampada por meio de um dos vários sistemas de impressão” (CATAFAL; OLIVA, 2003, p. 12). Apresentam-nos múltiplos pensamentos e se mostram como artefatos formadores de um “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva” (PESAVENTO, 2013, p. 43) que expressam o tempo passado “de forma profunda e sensorialmente convincente” (MENESES, 1998, p. 90).
O cartaz, além de sua cor e forma, tem suas pequenas peculiaridades. Tem um tamanho, que pode ser diverso. Pode ter um cheiro, rasgos, ou os cantos dele podem estar amassados. Ao envelhecer, sua cor vai se distorcendo, tornando-se mais amarelada. Ele é pouco durável e cíclico. O cartaz pode ser guardado dentro de casa, nas paredes de um quarto, como um pôster de artista. Pode também ser anexado no ambiente externo, interagindo com o meio em que ele está inserido de maneira direta. Desse modo, ele torna-se uma forte ferramenta política por se integrar à vida cotidiana do espaço urbano e, por consequência, à vida
política.
Muros, postes e paredes falam em períodos de tensão política, “fazendo de uma ideia gráfica também um instrumento de combate” (SACCHETTA, 2012, p. 9). Sacchetta ressalta que os cartazes da anistia eram “criados e impressos no Brasil e em diversos países por artistas militantes, na maioria anônimos, que trabalhavam em condições precárias, não poucas vezes clandestinamente” (SACCHETTA, 2012, p. 9).
Um dos exemplos são os cartazes produzidos por Virginia Artigas (1915-1990):
Figuras 4 e 5
: Cartazes produzidos por Virginia Artigas em 1975
Fonte
: Acervo ASMOB, Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM/UNESP), São Paulo.
O primeiro cartaz nos apresenta uma mulher sentada de pernas dobradas segurando um pombo com sua mão direita e duas flores com sua mão esquerda. Ela, com olhos grandes, faz um bico ao mesmo tempo que o pássaro parece estar piando. Seus cabelos estão presos e o seu vestido cobre praticamente todo seu corpo. O segundo cartaz nos mostra uma outra mulher. Esta olha diretamente para o observador. Os seus acessórios são bastante semelhantes à outra mulher. Pombos e flores são imagens recorrentes para se falar sobre paz. Inicialmente são decorrentes do livro de Gênesis, do Antigo Testamento, em que um pombo foi solto por Noé após o
dilúvio.
Os dois cartazes foram compostos em apenas uma cor e em apenas uma técnica, a gravura. Mais especificamente, linoleogravura, em que a imagem – a matriz – é recortada em linóleo e enfim colada em madeira. Pequenos detalhes não conseguem ficar bem trabalhados, como pode ser visto na padronagem do vestido das mulheres e na frase “1975: Ano Internacional da Mulher”. As letras parecem que foram feitas à mão. Atingida diretamente pelas truculências da ditadura militar que censurava a imprensa e a prisão de seu marido, o arquiteto Vilanova Artigas (1915-1985), Virginia continuava a trabalhar, compondo cartazes e gravuras para a campanha da anistia (ARTIGAS, 2019).
O pombo que estava nas mãos das mulheres de Virginia Artigas apareceu em outro cartaz do Movimento Feminino pela Anistia:
Figura 6:
Cartaz “1945-1975: Movimento Feminino Pela Anistia”, 1975
510x370mm, impressão litográfica sobre papel.
Fonte
: Acervo ASMOB, Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM/UNESP), São Paulo.
Há dois pombos nessa imagem. Eles são iguais, mas um aparece
posicionado mais à frente; o outro, mais atrás. Em primeiro plano, o pombo está totalmente preenchido pela cor rosa, enquanto o de trás tem uma padronagem de flores e folhas ricamente detalhado. Ao centro, há a sigla MFPA, correspondente ao Movimento Feminino pela Anistia, formando uma espécie de logotipo do movimento, obedecendo às formas fluidas, embora geométricas, do pombo. É perceptível um obedecimento à Escola Modernista nesse cartaz, com a tipografia sem serifa e ora em caixa baixa, ora em caixa alta, mas com os tipos em semelhante tamanho, bastante diferente do cartaz criado por Artigas.
Mesmo que ele não contenha uma mulher como figura central, há um símbolo marcante: o uso do cor-de-rosa. O uso do cor-de-rosa nesse caso talvez reafirme a ideia de uma pacificidade feminina, ou também podem fazer um uso político dessa cor na forma do que Luc Capdevila chama de “jogos de gênero”: estratégias de ação propostas por mulheres em um contexto autoritário em que elas brincam com os papéis entendidos enquanto femininos. Assim, são dribladas situações possivelmente perigosas em contextos de repressão na forma de uma dramatização (CAPDEVILA, 2001, p. 104). Usavam a feminilidade como um paradoxo, afinal “ser uma mulher na política, ou ainda, ser uma ‘mulher política’, parece uma antítese da feminilidade” (PERROT, 2013, p. 153).
Mesmo que se veja esse cartaz rapidamente, sem tempo de decifrar a forma um tanto quanto complexa de um pombo abstrato, vê-se nitidamente as palavras “anistia” e “movimento feminino pela anistia”, com um rosa forte que percorre todo o espaço do papel. O cartaz é uma mídia rápida, que tem que se fazer entender em segundos. Ou seja, não pode ser simplificado demais, nem repleto de informações. E ele é uma mídia que nos mostra, de maneira bastante nítida, a articulação entre imagem e texto e em como essa interação é harmoniosa: a escrita não vem substituir a imagem, nem a imagem substituir a escrita, mas as duas formas de expressão se ajudam (MARIN, 2001, p. 19).
Esses cartazes são exemplos de como o Movimento Feminino Pela Anistia se articulava, e em como ele desejava se tornar cada vez mais acessível. Na verdade, ele foi uma fagulha que deu origem a uma enorme movimentação ao redor da Anistia. Em 1978 já havia mais de sessenta comitês pela Anistia espalhados pelo país (MERLINO; OJEDA, 2010), e nesse mesmo ano foi criado o Comitê Brasileiro pela Anistia e realizado o I Congresso pela Anistia. No ano seguinte, em Salvador, foi lançado o “Manifesto dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos do Araguaia”, e mães e
demais familiares organizaram a chamada “Caravana dos Familiares dos Desaparecidos do Araguaia”. No mesmo ano foi realizado um comício na Praça da Sé da campanha pela anistia, e no Rio de Janeiro mais de 20 mil pessoas foram à Cinelândia pedirem uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, e prestando solidariedade aos presos políticos que estavam em greve de fome.
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Em 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia (Lei 6683/79) foi, enfim, aprovada, e permitindo o retorno de 150 pessoas banidas e 2000 exiladas.
Esses cartazes fazem reivindicações por liberdade, democracia e fim de violência a partir da imagem da mulher. E mulheres são utilizadas como ferramenta publicitária, como transmissoras de mensagens, há muito tempo. Seja como mães que zelam por seus filhos, as donas de casa que prezam seus maridos ou a sedutora que chama a atenção dos homens. Mulheres são representadas como um elemento natural de beleza, de pecado ou de pureza. Vênus, Eva, Maria. Nesses cartazes as mulheres não são representadas nesse sentido, não são ideais de beleza e também não remetem exatamente a uma santidade. Mesmo que nos cartazes de Virginia Artigas a mulher esteja segurando pombo e flores, ela não é uma santa.
Abraham Moles (1987, p. 36) nos diz que “a história de um país se traduz em seus cartazes”. Ambições à parte, é difícil dizer que ele está totalmente errado. A história da Anistia de 1979 pode ser traduzida em seus cartazes, bem como a história das mulheres que se engajaram nessa luta.
Os vídeos
Quando pensamos sobre as imagens produzidas em vídeo, a discussão equilibra-se sobre a linha que permeia os limites entre a arte e os meios de comunicação. Afinal, o vídeo pode servir tanto à arte quanto aos meios de comunicação em massa. No Brasil, o vídeo chegou primeiro nas galerias de arte – em 1974, o diplomata e diretor de cinema Jom Tob Azulay levou uma câmera portapack
, vinda dos Estados Unidos, ao Rio de Janeiro, colocando-a à disposição de artistas como Anna Bella Geiger e Letícia Parente (MACHADO, 2007). Nesse sentido, Arlindo Machado (2007) não considera essas primeiras artistas como “videastas”, mas como artistas plásticas que tentavam romper com alguns paradigmas da arte por meio do uso das tecnologias audiovisuais. Apesar da tecnologia de vídeo ter chegado no Brasil a partir do meio artístico, foram poucos os artistas que permaneceram utilizando o vídeo com exclusividade. É importante ressaltar que algumas artistas dialogavam com o feminismo nesse período. Como exemplo disso, há o vídeo Preparação I
(1975), de Letícia Parente, no qual questiona os rituais
cotidianos de muitas mulheres que são submetidas aos estereótipos de feminilidade.
Se no fim dos anos 1970 o acesso ao vídeo no Brasil era muito limitado a grupos de artistas, no início dos anos 1980, alinhado aos movimentos sociais que ascendiam na resistência à ditadura, os usos do vídeo foram expandidos. Em 1983, a Sony lançou a primeira
camcorder,
possibilitando a democratização dos usos do vídeo
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, pois essas câmeras contavam com um videocassete acoplado, sem haver a necessidade de outro aparelho para a exibição das produções (OLIVEIRA, 2001). O vídeo acabou por ocupar o lugar que antes era ocupado pelas câmeras Super 8, largamente utilizadas pelos cineastas da contracultura brasileira na segunda metade dos anos 1970. Além disso, o vídeo pode ser utilizado por “núcleos cuja produção era gerada por ou destinada a escolas, sindicatos, treinamento de pessoal em organizações, grupos religiosos, comunidades de base” (OLIVEIRA, 2001, p. 36), que buscavam formar “comunicadores sociais”. Nesse sentido, era mais forte, no Brasil, o uso do vídeo mais atrelado à esfera dos meios de comunicação do que à esfera da arte.
O fim da censura durante o governo de Ernesto Geisel criou um ambiente favorável para a circulação de produção cultural e política em todo o país. Filmes e livros antes censurados puderam ser lançados. Foi o caso do já citado Os homens que eu tive
, filme de Tereza Trautman, das dezenas de livros de Cassandra Rios, e mesmo da publicação do Relatório Hite
, que trouxe novas perspectivas sobre a sexualidade feminina. O sentimento de liberdade inspirou novas produções políticas e culturais, agora sem o temor da repressão da censura. Nesse mesmo período, o movimento feminista intensificava-se e chegava em locais onde antes não se fazia presente, fazendo-se necessárias outras ferramentas para a difusão de seus debates. No contexto dessa atmosfera política mais aberta, em 1983 foi fundado o coletivo feminista Lilith Vídeo, composto por Jacira Melo, Silvana Afram e Márcia Meireles. É assim que o feminismo toma o vídeo como mais uma ferramenta para sua luta.
Assim, no contexto inicial da redemocratização, “o vídeo chega aos grupos e movimentos populares como um componente de luta” (SANTORO, 1989, p. 60) frente ao silêncio das grandes emissoras de televisão em relação às convulsões sociais que vinham acontecendo no país durante a abertura política. As memórias de Jacira Vieira de Melo, referentes a esse período, demonstram como o vídeo propunha cobrir acontecimentos que eram ignorados pelas grandes emissoras televisivas:
E aí tem uma coisa interessante que eu até anotei... então nós estamos num ambiente ainda de regime autoritário, em que as questões sociais recebiam uma cobertura tímida do telejornalismo brasileiro, nós estamos falando de imagem e sons, nós estamos falando que a rede Globo não cobre um dos grandes atos civis no Brasil por eleições diretas que aconteceu na Praça da Sé, nós estamos falando desse ambiente. (MELO, 2018, s/p).
Jacira Vieira de Melo, assim como muitas mulheres nos anos 1960 e 1970, iniciou sua experiência política dentro do movimento estudantil. Na Universidade de São Paulo (USP), criou o Coletivo Feminista 8 de Março, ao lado de várias companheiras do curso de Filosofia. Dentro do coletivo, Jacira participou de alguns encontros feministas em São Paulo, como I Congresso da Mulher Paulista em 1979. Os desdobramentos do congresso foram múltiplos, levando à organização de novos encontros ao longo da década de 1980. É importante pensar nesses encontros como espaços de articulação política para o movimento feminista, espaços onde foram possíveis a criação de redes entre as mulheres que compartilhavam experiências, ideias, textos e afetos (NICHNIG, 2018).
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Essas redes foram muito importantes para a primeira experiência de Jacira dentro do meio audiovisual. O primeiro filme que ela produziu se chama
Mulheres da Boca
(1981, direção de Inês Castilhos e Cida Aidar), um curta-metragem de 22 minutos filmado em película, idealizado após os casos de violência durante a “Operação Limpeza” encabeçada pelo delegado José Wilson Richetti e o governador de São Paulo, Paulo Maluf. A operação previa “limpar” o centro de São Paulo, e a polícia passou a prender e espancar prostitutas, travestis e homossexuais, revelando o caráter moralista da ditadura militar (CRUZ, 2015).
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Um dos principais alvos da repressão era a conhecida Boca do Lixo, local onde o cinema independente brasileiro se estabeleceu desde o início dos anos 1960, onde as principais pornochanchadas eram produzidas. Segundo Jacira Melo (2018), “algumas mulheres estavam em prostíbulos e a polícia chegou e, a repressão era tão pesada, que elas pularam pela janela”. Foi esse acontecimento que inspirou ela e outras mulheres a trabalhar com a violência contra a mulher.
Então, nós criamos o S.O.S. Mulher, aqui em São Paulo, partimos de quatro pessoas, formamos um grupo, e depois conseguimos um espaço físico para atender as mulheres, e, para resumir, depois que o S.O.S passou a aparecer na mídia etc., nós passamos a ter 60 pessoas lá atendendo [...]. Nisso tudo, o que acontece? Um grupo de mulheres começa a escrever um projeto para um curta-metragem com mulheres prostitutas. [...]. E me chamaram para pensar esse roteiro, para pensar esse trabalho desse curta-metragem. Nós
fizemos um projeto, o projeto foi aprovado pela Secretaria Estadual de Cultura, que à época tinha chamadas públicas para roteiros de curta-metragem, de longa-metragem etc. Foi um dos premiados. E nós fizemos esse curta-metragem na Boca do Lixo. Eu conhecia, em função de ter feito esse trabalho com as prostitutas, eu conheci várias prostitutas que me ajudaram, que eram receptivas à nossa entrada, porque sabiam que éramos parceiras. (MELO, 2018, s/p).
Ao longo do período de abertura política, nos anos 1980, muitas feministas chegaram a importantes cargos políticos, fato esse conhecido como a institucionalização do feminismo.
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Em 1983, no contexto da luta pelas “Diretas Já”, o governador Franco Montoro decretou a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina (CEFC), com o propósito de criar um espaço de diálogo entre os movimentos feministas e o governo estadual. Além de assegurar que algumas bandeiras levantadas pelo feminismo fariam parte da agenda do governo, o CEFC passou a ser um espaço para que a militância feminista pudesse se utilizar das ferramentas audiovisuais. Segundo Leslie Marsh (2012), em 1986, aproximadamente 50% da produção audiovisual feminina em São Paulo era financiada pelo CEFC. Jacira destaca a importância desse agitado momento de abertura democrática para a jovem produção de vídeos no Brasil:
Agora, eu acho legal te falar umas coisas... tudo isso acontece, em termos de produção, de vídeo, acontece muito no ambiente do Diretas Já. Ela acontece muito naquele momento de luta pela redemocratização do Brasil. E o feminismo faz parte dessa luta. Então a gente tem, nos anos 1980, eu até estava anotando aqui, que eu falei para você, antes de vir, então você tem uma produção de vídeo independente que é eminentemente jovem. Jovem, jovem, jovem. (MELO, 2018).
É possível perceber que o desenvolvimento do vídeo facilitou a produção audiovisual dos movimentos populares que cresciam nesse período, dentre eles os movimentos feministas. De acordo com Maria Célia Orlato Selem (2013, p. 42), isso ocorre principalmente porque o vídeo “propiciou autonomia às realizadoras e o barateamento dos custos de produção, o que permitiu a popularização dos filmes entre os mais diversificados setores da sociedade”. A autora também ressalta que “se nas décadas de 1970 e 1980 as feministas utilizavam diversos meios alternativos para divulgar suas ideias [...] aos poucos, começam também a utilizar o vídeo como meio de expressão feminista. Estas eram produções mais independentes, desenvolvidas por meio de um trabalho coletivo” (SELEM, 2013, p. 42), o que expressa a importância da criação de redes feministas para a atuação dessas mulheres no meio audiovisual.
Além da inovação na técnica de produção facilitada pela tecnologia de vídeo, a inovação estética também foi um diferencial da produção de vídeos feministas. Assim como no documentário A entrevista,
de Helena Solberg, os vídeos produzidos coletivo Lilith Vídeo, do qual fazia parte Jacira Melo, não há uma voz over
narradora, elaborando os sentidos do filme por meio da voz dos próprios sujeitos retratados (MESQUITA, 2007), o que, “além de trazer a presença do povo para o primeiro plano”, também “propugnou que o povo se tornasse o narrador de sua própria história” (OLIVEIRA, 2001, p. 132). A edição valoriza a narrativa de cada uma das entrevistadas ao não agrupar os depoimentos por temática, reconhecendo as experiências individuais e cotidianas de cada mulher como singulares (MESQUITA, 2007).
Considerações finais
Falar sobre a relação entre mulheres e imagens não é apenas uma restauração histórica do lugar de mulheres que permaneceram na historiografia enquanto nota de rodapé, mas também é criar um deslocamento do olhar direcionado e convencionado a partir de um ponto de vista androcêntrico e universalizante. Ao vislumbrarmos a relação entre filmes e cartazes produzidos por mulheres, extrapolamos a imagem e vamos de encontro com uma espécie de reviravolta epistemológica no campo imagético. Além de ricas fontes históricas, são janelas que permitem que vejamos a trajetória dos movimentos feministas e da história das mulheres.
Arte feminista ou arte feita por mulheres? Certamente por meio das imagens e histórias aqui contadas não podemos falar de um feminino universal, de um rótulo de arte feminina. Algumas dessas mulheres tampouco se identificavam com o movimento feminista. De fato, é importante que não seja adotada uma posição monolítica para se falar da relação entre gênero e artes visuais, mesmo que haja algumas experiências históricas comuns.
Os cartazes, operando em anonimato, tornam-se uma possibilidade de as mulheres materializarem e difundirem as suas criações sem precisar passar pelas balizas do museu, de um espaço institucionalizado. Situando-se fora de um lugar fechado, o cartaz é uma mídia privilegiada para a difusão de pautas políticas. O meio audiovisual é também um espaço de articulação política, tendo visto a popularização do cinema no início do século XX e do vídeo na segunda metade do mesmo século. O vídeo e o cinema funcionaram – e ainda funcionam – como ferramentas para a difusão de debates políticos que já floresciam em outros ambientes, mas o meio audiovisual também foi
um espaço que serviu para despertar a consciência política de vários sujeitos e sujeitas.
A história das mulheres que produziam imagens da resistência ainda não foi suficientemente escrita. Ainda hoje, existem muitos obstáculos para a produção imagética e audiovisual feminina. Quando falamos sobre as narrativas femininas que não são escritas, é preciso dizer que faltam mulheres contando histórias de mulheres, mas não faltam histórias a serem contadas.
Entrevistas
MELO, Jacira Vieira de. Entrevista concedida a Alina Nunes. Transcrição realizada por Alina Nunes. São Paulo, São Paulo, Brasil, 19/07/2018. Acervo do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/UFSC).
SOARES, Ana Carolina Teixeira. Ana Carolina Teixeira Soares. Entrevista concedida a Adelina Novaes e Cruz e Thais Blank. Transcrição realizada por Letícia Destro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 09/06/2015. Acervo CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL; IIAM. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/memoria-documentario/ana-carolina. Acesso em: 29 jun. 2019.
SOLBERG, Helena. Entrevista concedida ao site Mulheres do Cinema Brasileiro durante a 8ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Tiradentes, Minas Gerais, Brasil. fevereiro de 2005. Disponível em http://www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br/site/entrevistas_depoimentos/visualiza/193/Helena-Solberg. Acesso em: 26 maio 2019.
TRAUTMAN, Tereza. Entrevista concedida a Ana Maria Veiga. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 13/05/2010. Acervo pessoal.
Filmes
A ENTREVISTA. Direção: Helena Solberg. Rio de Janeiro: CAIC (Comissão de Ajuda à Indústria Cinematográfica), 1966. 19 min, son., PB.
Referências
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