Botica da natureza*

 

 

 

 

 

Os recursos alimentares indispensáveis nas jornadas do sertão não eram tudo quanto a fauna indígena podia propiciar ao colono. Os extensos manguezais do Cubatão, que ainda no século XVIII os governadores portugueses procuravam preservar, eram um convite à instalação de curtumes e fábricas de atanados. Não se sabe a que ponto chegaram a desenvolver-se tais manufaturas na São Paulo quinhentista, embora Gabriel Soares, referindo-se às criações de porcos da capitania, afirmasse expressamente que os moradores os esfolavam para fazer botas e couros de cadeiras, chegando a considerá-los melhores e mais proveitosos do que os de vaca.

O emprego do couro como “dinheiro da terra”, atestado em numerosos textos da época, ao lado do açúcar, da cera, dos panos de algodão, constitui prova segura da importância e valia do produto. E a menção frequente dos calçados de couro de veado nas velhas atas da Câmara e nos velhos testamentos e inventários de São Paulo parece indicar, ainda mais, que nessa indústria da terra se empregaria muitas vezes matéria-prima indígena. O primeiro rol de posturas do ofício de sapateiro, aprovado pelos edis paulistanos, o de 1583, fixa em 430 réis o preço das botas de veado (engraxadas), pouco mais do que as de porco e de vaca, que estas, bem consertadas e bem engraxadas, não iam a mais de um cruzado.1 Em épocas posteriores os calçados de couro de veado vêm logo em seguida aos de cordovão.

Não era recente e nem de invenção local e colonial essa aplicação do couro de veado na indústria. No Portugal quinhentista, sobretudo no Alentejo e no Trás-os-Montes, eles constituíram sempre caça numerosa e apreciada, e o aproveitamento de seu couro na sapataria e indústrias anexas está documentado nos versos onde Garcia de Resende mandou dizer a Rui de Figueiredo Oportas de que modo este há de ir vestido à sua pousada do Almeirim:

 

Broseguy largo amarelo,

com çapatos de veado […].2

 

Não é crível que os constantes embargos opostos no reino às montarias de toda espécie permitissem o fabrico de tais sapatos por longo tempo e em escala apreciável. Parece que durante a segunda metade do século XVI, para atender às necessidades de seu ofício, os curtidores, surradores e correeiros portugueses se abasteciam de ordinário nos currais de gado manso, quando não se servissem de peles importadas. E estas, não sendo de cordovão, eram quase sempre de vaca ou carneira, se destinadas à indústria de calçados.3 De limitações semelhantes não padeceriam os colonos no Brasil, principalmente os que povoassem um sertão abundante em caça como o da capitania de Martim Afonso.

Além das peles de veado, também as de anta serviram ao paulista antigo para os usos fabris. Sua rijeza, que as tornava praticamente impenetráveis às frechas, indicava-as principalmente para rodelas e outras armas de defesa. Alguns índios tinham aprendido a utilizar tais vantagens fazendo de peles de anta mal beneficiadas — apenas secas ao sol, informam-nos Anchieta e Léry — os escudos com que se protegiam dos contrários. Não se sabe quando, nem como, teriam descoberto os colonizadores o meio de preparar essas peles. Afirma Gabriel Soares que, bem curtidas, elas fazem “mui boas couraças, que as não passa estocada”.4 Haveria aqui mais do que uma simples presunção do cronista? Nas Índias de Castela, pela mesma época, as antas, posto que numerosas, sobretudo em terras quentes, perdiam-se “por no haber quien sepa adrezar sus cueros”, refere Vargas Machuca.5 E o Brandônio, dos Diálogos das grandezas, repete entre nós a mesma queixa dezenas de anos mais tarde, lamentando a incúria dos moradores do país, que se não serviam dessas peles “por não se disporem a curti-las e consertá-las e, sem nenhum benefício, as deixam perder”.6

Isso talvez na América espanhola e em nossas capitanias do Nordeste. A verdade é que os homens de São Paulo, mais afeitos, por necessidade, aos usos da terra, já então sabiam aproveitar as virtudes do couro de anta, com que se resguardavam melhor durante as incursões ao sertão longínquo. Empregavam-no sem dúvida na fatura de certos gibões protetores e também, provavelmente, de rodelas e gualteiras ou carapuças. As “coiras de anta” surgem repetidas vezes em inventários seiscentistas. A princípio seriam artigo raro e dispendioso, quase de luxo. De uma, arrematada em leilão no ano de 1609 a 4400 réis, preço equivalente para a época ao de duas éguas ou ao de quatro vacas paridas, com suas crianças, pode presumir-se que pertenceu sucessivamente a três pessoas, pelo menos. Comprada a Roque Barreto por seu irmão Francisco, foi vendida mais tarde a Bartolomeu Bueno, o sevilhano. Será a mesma que anos depois, em 1613, figura no inventário de Domingos Luís, o moço, e é avaliada em 4 mil-réis?7

Como quer que seja, as couras de anta iriam tornar-se, com o correr do tempo e com os hábitos aventurosos que distinguiam os paulistas, uma das peças características do arsenal e da indumentária bandeirantes. E é provável que encontrasse igual acolhida em outros lugares do Brasil, onde pudessem desenvolver-se hábitos semelhantes. Escrevendo em 1627, frei Vicente do Salvador já pode observar, em sua História do Brasil, que da pele curtida do tapir “se fazem mui boas couras para vestir e defender de setas e estocadas”.8 Cabe notar, também, que, já em meados do século, o custo do material, tanto quanto se pode julgar da simples leitura dos inventários paulistas, sofre declínio sensível.

Além da elaboração industrial, em que se aproveitavam não só as peles, mas algumas vezes também a banha — a do bicho-de-taquara, por exemplo, servia segundo Anchieta para amaciar couros —, nossa fauna ainda se prestava a outros usos importantes. Na medicina popular e de emergência, os produtos tirados do reino animal são, talvez, apenas superados pelos de procedência vegetal. E foi certamente no contato assíduo do sertão e de seus habitantes que o paulista terá apurado as primeiras e vagas noções de uma arte de curar mais em consonância com nosso ambiente e nossa natureza.

No largo aproveitamento da fauna e flora indígenas para a fabricação de mezinhas, foram eles precedidos, aparentemente, pelos jesuítas. Estes, antes de ninguém, souberam escolher, entre os remédios dos índios, o que parecesse melhor, mais conforme à ciência e à superstição do tempo. Mas só a larga e contínua experiência, obtida à custa de um insistente peregrinar por territórios imensos, na exposição constante a moléstias raras, a ataques de feras, a vinditas do gentio inimigo, longe do socorro dos físicos, dos barbeiros sangradores ou das donas curandeiras, é que permitiria ampliar substancialmente e organizar essa farmacopeia rústica. “Remédios de paulistas”, é como se chamavam em todo o Brasil colonial as receitas tiradas da flora e também da fauna dos nossos sertões.

Constitui aliás matéria controversa a parte que teria cabido aos indígenas no descobrimento e conhecimento de tais remédios. Pode-se admitir, em todo o caso, que essa contribuição teria sido mais considerável e também mais essencial do que desejava acreditar Martius, sempre disposto a diminuir a influência do gentio ou a acentuar apenas seus aspectos negativos. “Um contato prolongado com os índios”, observa o naturalista bávaro em suas Viagens no Brasil, “chegou a certificar-nos de que a indolência desses miseráveis se opunha a que indagassem sequer dos elementos curativos que encerra a natureza.”9 Opinião que não deixa de surpreender um pouco em quem, elaborando sua Matéria médica, tratou de reunir produtos que, segundo sua própria confissão, teriam sido utilizados na maior parte pela medicina dos indígenas. É que para Martius a observação inteligente dos colonos podia tanto quanto a experiência secular dos antigos donos da terra, descobrindo, numa familiaridade prolongada com a natureza, e não por transmissão de conhecimentos, muita coisa que o gentio talvez não ignorasse.

Os adventícios guiavam-se muitas vezes pelos sentidos, que os faziam associar confusamente reminiscências do Velho Mundo às impressões do Novo. Isso explica bem como às espécies encontradas em nossas florestas puderam ser atribuídos, com frequência, nomes e virtudes próprios de espécies diferentes, estas tipicamente europeias. Em muitos casos orientava-os apenas uma segura e audaciosa observação nascida, na luta com o mundo ambiente, dos perigos cotidianos a que se sujeitavam exploradores e conquistadores. Compreende-se que aos naturais de São Paulo coubesse parcela considerável do esforço que iria desvendar em todas as direções a terra ignorada. Martius não deixa de registar esse fato. “O mérito no descobrimento e na utilização das plantas curativas”, diz, “coube em maior grau aos paulistas, tanto quanto o descobrimento das minas de ouro.”10 Poderia acrescentar, sem hesitação, que isso só se tornou possível, em grande parte, dada a circunstância de, em São Paulo, mais do que em outras regiões brasileiras, terem permanecido longamente vivas e fecundas as tradições, os costumes e até a linguagem da raça subjugada.

Nada tão difícil, de resto, como uma análise histórica tendente a discriminar, aqui, entre os elementos importados e os que procedem diretamente do gentio. Traços comuns prepararam, sem dúvida, e anteciparam, a síntese desses diversos elementos. Há motivos para se suspeitar, por exemplo, que os índios, tanto como os portugueses, acreditavam nas virtudes infalíveis de certas concreções, como o bezoar, que se criam nas entranhas dos ruminantes. A flebotomia, corrente na Europa ao tempo da conquista, também não era desconhecida neste continente antes do advento dos brancos. Para as sangrias serviam, em lugar de lancetas, bicos de aves, ferrões de arraias, dentes de quatis ou cutias.

Podem citar-se, também, casos de elementos importados, cujo emprego se generalizou acentuadamente, inclusive entre índios, como ocorreu por exemplo com a aguardente de cana, que servia e ainda serve, misturada a certas ervas e outras mezinhas, para aumentar-lhes o poder curativo.

Práticas indígenas, que tinham todos os requisitos para alarmar ou escandalizar europeus, encontraram, por outro lado, acolhida inesperadamente favorável. Assim sucedeu com o processo que consistia em afoguear-se por meio de brasas o corpo ou parte do corpo afetados por alguma enfermidade. Processo que os pajés, com grande espanto dos jesuítas, tentaram durante as primeiras epidemias de bexigas, no intento de aplacar o mal.

Um depoimento autorizado refere como, em princípio do século XVIII, costumavam os paulistas curar os resfriados mais renitentes. Lançavam sobre a parte constipada “enxofre muito bem moído, acutilando-a depois, muitas vezes, com o gume de uma faca posta em brasa”. O certo é que “com esse remédio único”, diz a testemunha, “vimos ali acudidas muitas queixas, dignas pelo seu aparato de maiores remédios, como foram pleurisia, ciáticas e outras muitas e várias dores em qualquer parte do corpo”.11

Não faltam, finalmente, aspectos de nossa medicina rústica e caseira que dificilmente se poderiam filiar, seja a tradições europeias, seja a hábitos indígenas. Aspectos surgidos mais provavelmente das próprias circunstâncias que presidiram ao amálgama desses hábitos e tradições. A soma de elementos tão díspares gerou muitas vezes produtos imprevistos e que em vão procuraríamos na cultura dos invasores ou na dos vários grupos indígenas. Tão extensa e complexa foi a reunião desses elementos, que a rigor não se poderá dizer de nenhum dos aspectos da arte de curar, tal como a praticam ainda hoje os sertanejos, que é puramente indígena — e só nesse sentido se torna explicável a opinião de Martius — ou puramente europeu.

Não é improvável que um critério a que se pode chamar analógico, derivado da tendência para procurar entre os produtos da terra elementos já conhecidos no Velho Mundo, tenha contribuído de certo modo para a criação da medicina sertaneja. E esse critério terá valido na seleção de drogas como também de amuletos e sobretudo medicamentos bezoárticos. Num caderno de apontamentos que pertenceu ao governador Rodrigo César de Meneses e se conserva manuscrito no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, registam-se alguns desses remédios, em uso entre os antigos paulistas. Não falta na relação um rival da célebre “pedra de porco-espinho”, que era geralmente considerada o mais eficaz dos bezoares do Oriente e indicada nos casos de vômitos, fraqueza de estômago, aflições do coração, afetos uterinos das mulheres, “paixões dos rins”, retenção de urina e febres malignas. No Brasil essa preciosidade era fornecida pelos porcos-do-mato. “Nos ditos porcos”, reza o manuscrito, “se acha no buxo pedra verdoenga do tamanho de hum pequeno limão. Tem hum sabor amargoso e he a celebre pedra do porco espim.” Nas orelhas do porco-do-mato também se achavam, segundo o mesmo documento, certas pedras pardacentas e esbranquiçadas, que constituíam antídoto eficacíssimo para a supressão de urinas. Pedras bezoares de grande eficácia existiam também nos veados e antas. Nos sertões da capitania de São Paulo havia “huns Sapos grandes de cornos que chamão Nambicoaras, e os cornos ou orelhas são o melhor unicórnio para se meter na água, que purifica, apesar da peçonha”. Extraordinário era o efeito de duas pedras encontradas na cabeça do jacaré quando aplicadas aos febricitantes. Era o bastante colocarem-se tais pedras nas mãos do enfermo para que logo se extinguisse a febre.12

Para a mentalidade de muitos dos nossos roceiros de hoje têm aplicação terapêutica ou servem de amuletos, praticamente, todas as partes do corpo dos animais selvagens que não possam servir para a alimentação ou manufatura de couros: os chifres, os dentes, as unhas, os ossos, os cascos, as couraças, as gorduras… Há indícios de que mais de um desses medicamentos já seriam utilizados pelo gentio antes de qualquer contato com os adventícios. Mas são dignos de interesse, por outro lado, os processos de racionalização e assimilação a que o europeu sujeitou muitos de tais elementos, dando-lhes novos significados e novo encadeamento lógico, mais em harmonia com seus sentimentos e seus padrões de conduta tradicionais.

É comum entre grupos indígenas da América do Sul a atribuição de uma espécie de força mágica aos dentes de jacaré, tidos como poderoso talismã, capaz de contrabalançar eficientemente a influência de certas entidades funestas ao homem. Para a crença nessas potências malignas, não custaria aos portugueses encontrar equivalente nas teorias sobre o papel nocivo que pode representar o ar… — ar de estupor, ar de perlesia, ramos de ar, corrupção de ar… — tão generalizada na velha medicina. O ambiente cheio de surpresas e novidades que oferecia o país vinha dar nova ênfase a tais teorias. É o que se exprime já no primeiro tratado escrito por um homem de Portugal sobre a terra do Brasil: “Este vento da terra”, dizia, com efeito, Gandavo, “é mui perigoso e doentio; e se acerta de permanecer alguns dias, morre muita gente, assim portugueses como índios”.13 Um depoimento contemporâneo das monções do Tietê menciona o costume que tinham então os sertanistas de São Paulo de matar jacarés para tirar-lhes os dentes que são “contra o ar”.14

A mesma virtude surge atribuída, outras vezes, às unhas do tamanduá-bandeira, que alguns grupos indígenas utilizam como ornamento corporal, ajuntando-as entre si aos pares, por meio de resina, à maneira de um crescente como o fazem com as do tatu-canastra. Tal a capacidade de persistência dessas crenças que puderam manter-se até aos nossos dias, mesmo nos centros mais adiantados. Em interessante estudo, onde se relatam os resultados de uma investigação efetuada há mais de trinta anos em ervanários da capital paulista, o sr. F. C. Hoehne ainda pôde assinalar a presença de unhas de tamanduá entre os produtos de origem animal expostos à venda em tais estabelecimentos.15 A facilidade com que esse elemento foi acolhido pelos colonos justifica talvez uma conjetura: não seria possível relacioná-la ao fato de o tamanduá caminhar ordinariamente de mãos torcidas, voltando “contra o ar” as longas garras que, destinadas a abrir formigueiros e cupins, em casos extremos a ferir de morte adversários perigosos, não tocam o solo?

Pode-se comparar a essa sugestão a crença, disseminada entre antigos colonos castelhanos na América do Sul, de que as unhas da preguiça constituem eficaz remédio contra moléstias do coração. O fato de a preguiça trazer o peito frequentemente marcado e algumas vezes até chagado pelas próprias garras é considerado motivo plausível para semelhante crença. A mesma virtude atribuiu-se, aliás, às unhas de outros animais, às da anta, por exemplo, que, segundo Lozano, é vítima desse achaque e “sentiendo sus efectos, aplica la mano al corazon y recreandolo con su virtud, sana en breve”.16 Como é fácil imaginar, preferiam-se para esse fim as unhas da mão esquerda.

No Brasil, a anta aparece, perante a velha medicina e o curandeirismo, com outras contribuições igualmente apreciáveis. Do bucho tiravam-se as pedras de que falava Rodrigo César de Meneses, comparáveis na utilidade às do bezoar; os ossos, queimados e dados a beber, eram aconselhados para estancar as câmaras e disenterias; a banha aplicava-se em fricções nos casos de reumatismo e mormente de reumatismo articular… Casos, aliás, em que tinha fortes competidores, pois a tanto forçava o clima do planalto. E realmente não deixa de merecer atenção a extraordinária frequência com que aparecem, entre mezinhas tipicamente paulistanas, as que se destinam a acalmar dores reumáticas. Quase sempre constam de óleos e azeites, e entre estes os de origem animal, se não têm decidida primazia, são, não obstante, largamente aproveitados. O sr. F. C. Hoehne observou nos ervanários de São Paulo, além da banha de anta, a de capivara, “vendida em pequenos vidros ou garrafas”, a de quati, as de cobras — jiboia, sucuri, jararacuçu, cascavel, coral e urutu —, a do gambá, a do tamanduá, a do tatu, todas indicadas especificamente contra o reumatismo.17

Essa estranha farmacopeia explica-se, em muitos casos, pelo gosto do maravilhoso, que perseguia os doutores quinhentistas: herança da ciência medieval, a que o descobridor de novas terras viera dar maior relevo. Não é difícil suspeitar que, para curas miraculosas, se impõem terapêuticas raras e exóticas. Algum afortunado navegante viria, talvez, encontrar nos continentes recém-descobertos o famoso segredo da juventude perene, que atraiu ao litoral da Flórida os companheiros de Ponce de León. Muitos povoadores chegariam às nossas paragens animados certamente de tais ambições. Aqui, diante de uma linha, de um movimento da natureza, onde não se reproduzem exatamente as visões habituais, a imaginação adquiria direitos novos. O espetáculo de uma paisagem diferente, em um mundo diferente, onde o próprio regime das estações não obedece ao almanaque, deveria sugerir aos espíritos curiosos um prodigioso laboratório de símplices. Não faltava, é certo, quem se limitasse a discernir nessas formas inéditas as imagens de algum modelo remoto e quase relegado da memória. Assim é que, na mandioca, vinham procurar o honesto pão de trigo; no pinhão da araucária, a castanha europeia; no abati, o milho, milho alvo do reino; na própria carne de tamanduá, a de vaca — “dirias que é carne de vaca, sendo todavia mais mole e macia”, adverte Anchieta —; na jabuticaba, a uva ferral ou a ginja… Mas, às vezes, interrompia-se o cortejo das visões familiares. E então era preciso acreditar no milagre, promessa de outros milagres.

Contra as razões da sã filosofia, a sensitiva, por exemplo, a que logo chamaram erva-viva, parece desfazer a distinção genérica e necessária entre o animal e a planta. Esse escândalo só podia ser explicado por alguma preciosa e secreta qualidade. E assim o entendeu Gandavo em seu Tratado: “Esta planta deve ter alguma virtude mui grande, a nós encoberta, cujo effeito não será pela ventura de menos admiraçam”. Para a ciência do tempo deviam ser indiscutíveis os motivos em que se apoiava semelhante presunção: “Porque sabemos de todas as hervas que Deus criou”, continua o cronista, “ter cada huma particular virtude com que fizesse operações naquellas cousas pera cuja utilidade foram creadas, e quanto mais esta a que a natureza nisto tanto quiz assignalar, dando-lhe hum tam estranho ser e differente de todas as outras”.18

Não admira se o gambá, que, no reino animal, apresentava uma singularidade comparável à da sensitiva entre as plantas, também parecesse dotado de virtudes admiráveis. Virtudes que os povoadores aproveitariam largamente, pois, a darmos crédito ao que diz Simão de Vasconcelos, fornecia remédio pronto para qualquer achaque. A cauda, que não serve para outra coisa, era a parte preferida no preparo de mezinhas. Pisada e misturada com água, na quantidade de uma onça, era excelente em doenças de rins, especialmente nas litíases, pois algumas doses, tomadas em jejum, limpavam os órgãos e lançavam fora qualquer pedra… Além disso curava cólicas, fazia gerar o leite, tirava espinhas se mastigada, acelerava os partos… Essas, e ainda outras espantosas qualidades, além da bondade da carne, que alguns comparavam no sabor à do coelho europeu, compensariam, talvez, os terríveis danos que o gambá costuma causar às aves domésticas.19

Não parecerá excessivo relacionar à notável singularidade de nosso marsupial a crença de que encerraria grandes virtudes curativas, se nos lembrarmos de que outro prodígio do reino animal, a anhuma, gozava, e ainda hoje goza, de reputação semelhante. Lendo os escritos de antigos cronistas e viajantes, encontramos alusões frequentes a essa ave e ao espanto que causava no europeu, com seu unicórnio frontal, os esporões das asas, os pés desproporcionadamente grandes e o grito, que, segundo Anchieta, fazia pensar num burro zurrando. De sua abundância no sertão da capitania de Martim Afonso há testemunhos antigos e numerosos. A própria designação primitiva do Tietê já é indício dessa abundância, pois Anhembi quer dizer rio das anhumas, ou das anhimas, como ao começo se chamavam. Se hoje seu número se acha consideravelmente diminuído, devemo-lo, talvez, em parte, à perseguição que desde remotas eras lhe movem os caboclos, empenhados em buscar remédio ou preservativo para toda sorte de males. Do unicórnio, sobretudo, mas também dos esporões e até dos ossos, em particular dos ossos da perna esquerda, faziam-se amuletos e mezinhas contra ramos de ar, estupor, mau-olhado, envenenamentos, mordeduras de animais… Raspados em água e dados a beber, curavam os picados de cobras venenosas. Tal a sua eficácia, que até aos mudos davam o dom da palavra, como aconteceu a um menino, que entrou a falar, segundo refere o padre Fernão Cardim, depois que lhe puseram ao pescoço um desses talismãs.20 Refere Couto de Magalhães que uma anhuma caçada no porto da Piedade, durante a viagem que realizou ao Araguaia, foi causa de grande desavença entre alguns dos camaradas que o acompanhavam. Cada qual se achava com direito ao melhor pedaço: este reclamava o unicórnio, aquele os esporões, um terceiro, determinado osso. Era costume, em toda a província de Goiás, levarem as crianças um desses amuletos atado ao pescoço, com o que se livrariam de qualquer moléstia ou acidente.21

Cabe advertir que, se a atração do fabuloso pode explicar de algum modo a popularidade desfrutada em nossa medicina rústica por animais como o gambá ou a anhuma, seria talvez excessivo presumir que ela fosse simplesmente criada pelos adventícios. É mais razoável acreditar que pudessem existir, já entre os primitivos moradores da terra, os motivos que levaram o colono a encontrar certas propriedades miríficas em determinados animais. Pelo menos com relação à anhuma há notícia expressa, nos escritos de Cardim ou de Lacerda e Almeida, de que gozava entre os índios da mesma extraordinária reputação que veio a adquirir para os portugueses e seus descendentes. Onde podem ter influído causas psicológicas poderosas, foi certamente no processo de difusão e arraigamento, na sociedade formada pelos conquistadores, de crendices dos naturais da terra.

Quase o mesmo pode dizer-se de outro aspecto, nada irrelevante, da arte de curar, tal como a praticavam médicos e curandeiros da era colonial e como a praticam em larga escala nossas populações rurais, como seja a utilização terapêutica dos excretos animais. Seria injusto pretender relacionar esse fato à simples influência indígena. Não há talvez exagero em supor-se que nesse terreno a ação do europeu terá sido, ao contrário, antes ampliadora do que restritiva. Martius, em seu ensaio sobre as doenças e medicinas dos nossos índios, teve ocasião de observar como faziam estes uma distinção entre os excretos que consideravam impuros, e por conseguinte nocivos, e aqueles que lhes pareciam puros e medicinais.22 Ora, para a própria ciência europeia, na época da conquista da América, mal se pode afirmar que existissem tais discriminações. Remédios como o album groecum aparecem nas boticas do Velho Continente desde os tempos mais remotos. E no século XVIII um médico português refere-se ao amplo emprego do esterco de cão, o nosso célebre jasmim-de-cachorro, contra tumores de garganta, esquinências e bexigas, insurgindo-se contra o abuso que dele se fazia não só entre gente do povo como até entre sangradores, cirurgiões e médicos, “porque”, observava, “o mesmo he dizer o Pay ou a May, que ao seu filho lhe doe a garganta, estando já com sinaes de bexigas, que já a Alva de Cão vem pelo caminho”.23

É provável, todavia, que as próprias condições do ambiente colonial proporcionassem alguns elementos em que se poderia aplicar essa medicina escatológica. Mário de Andrade, em seu excelente estudo sobre a medicina dos excretos, sugere engenhosamente que o costume de se refinar o açúcar com esterco de vaca pode muito bem ter influído sobre a imaginação popular, favorecendo a crença na ação mundificante do excremento. “Com o excremento o açúcar se purifica e aperfeiçoa. O açúcar se limpa. O excremento adquire assim um conceito de elemento lustral, purificador. Ora […] uma das práticas mais generalizadas da medicina excretícia é justamente a terapêutica das moléstias de pele ou atuando sobre a pele.” O autor não deixa de observar que à própria utilização do estrume animal para vivificar a terra se relacionaria, de algum modo, o poder reconfortante e revitalizante que os desejos assumem com grande frequência para a medicina do povo.24 Fora dos núcleos de habitação permanente e dos centros de produção agrária, onde havia mais ocasião para se formarem dessas associações mentais, outros motivos favoreceriam, sem dúvida, o prestígio de semelhante terapêutica.

Não custa crer que durante as longas expedições ao sertão, onde escasseavam muitos remédios compostos, pudesse expandir-se o emprego medicinal dos excretos. Sabe-se, assim, que na expedição do segundo Anhanguera a Goiás, salvou-se de morte certa um dos seus companheiros, frechado por índios caiapós, unicamente com aplicações de urina e fumo, além das inevitáveis sangraduras. “Retirado o dito Francisco de Carvalho”, relata uma testemunha, “o achamos com a boca, narizes e feridas cheios de bichos, mas vendo que lhe palpitava ainda o coração e que tinha outros mais sinais de vida, o recolhemos na rancharia, curando-lhe as feridas com urina e fumo, e sangrando-o com a ponta de uma faca, por não termos melhor lanceta; aproveitou tanto a cura que o Carvalho pela noite tornou a si, abriu os olhos, mas não pôde falar senão no dia seguinte: o regimento que teve não passou dum pouco de anu e algumas batatas das que achamos na rancharia.”25 É interessante notar que a urina, sobretudo a urina quente, era largamente usada contra inflamações e tumores; de mistura com fumo, essa genuína panaceia de nossa medicina popular, considerada elemento essencialmente purificador, pareceria meio ideal para fazer sarar toda sorte de ferimentos, qualquer que fosse a sua gravidade.

Um tratadista contemporâneo de Bartolomeu Bueno e que viveu largos anos em São Paulo, o dr. José Rodrigues de Abreu, deixou-nos descrição resumida dos principais usos médicos em que entrava a urina. Queriam alguns, diz, que fosse remédio idôneo “para discutir, resolver e absterger”. Na falta de outro medicamento aplicava-se no encalhe mais superficial dos humores; nos tumores frios, produzidos por causas externas; nas inflamatórias incipientes e “fugilações”, como também na aspereza da pele, nas chagas sórdidas, nas gretas e rachaduras das mãos e pés e nos gotosos. “Faz pouco ou nada”, acrescenta, “para preservar o veneno das víboras; he sórdida e menos capaz de louvar-se a sua bebida na occasiam da peste: na Icterícia, no Scirrho do Baço e na Hidropisia contra a opinião de vários Escritores; nem também a Ourina do marido bebida facilita tanto as parturientes, que não falhe este socorro as mais das vezes.”26 A superstição popular e o curandeirismo conservam ainda hoje alguns desses usos, consagrados outrora até pelos eruditos.

O sistema de vida a que eram forçados os sertanistas sugeria-lhes inúmeros recursos de emergência com que se socorressem em casos de moléstia ou de acidente. Já se viu como, à falta de lancetas para a sangria dos enfermos, usavam de simples facas. Nas sezões e pestes gerais do sertão, seriam esses instrumentos de grande socorro, ao lado das ervas medicinais que crescem no mato. O mesmo fogo que cozinhava ou moqueava a caça e que acendia os morrões de escopeta, servia para cauterizar feridas. E finalmente a mesma pólvora, que abate o inimigo, também podia restabelecer os doentes do maculo ou corrupção, ou mal de bicho, que costumava sobrevir às crises de maleita. Com efeito, para combater essa peste, que, restrita inicialmente às terras da marinha, invadiu no século XVIII as minas e quase todo o sertão, nenhum remédio terá adquirido tamanho e tão intenso prestígio quanto o terrível saca-trapo, em que a pólvora figurava como ingrediente obrigatório ao lado da caninha, da pimenta da terra, do fumo e algumas vezes também do suco de limão azedo.

Embora se narrem verdadeiros milagres da eficiência desse remédio colonial, é de crer que a pólvora entrasse no composto antes de tudo pela força de sugestão que encerra e pela crença de que tornaria a droga muito mais violenta e, por conseguinte, de maior eficácia curativa. Para a imaginação do povo é evidente que quanto mais temível for uma enfermidade, tanto mais dolorido deve ser seu tratamento. E dificilmente se desligará da ideia da pólvora a de uma virulência e energia suscetíveis de se manifestarem onde quer que ela encontre aplicação. A própria palavra saca-trapo faz pensar em armas de fogo.

Outros empregos da pólvora na medicina popular teriam nascido da mesma associação mental que aconselhava seu uso contra a enfermidade do bicho. De mistura com caldo de limão, era, ao que consta, o remédio predileto da célebre Donana Curandeira no tratamento de impingens. Isso na capital paulista e em pleno século XIX.

Na mesma classe de muitas das mezinhas e dos preservativos citados, devem incluir-se as fórmulas mágicas de que ainda faz uso nosso sertanejo, ora nos patuás atados ao pescoço, ora em orações, que pronuncia em momentos de perigo. Na maioria dos casos, essas rezas não se diferenciam essencialmente dos simples amuletos, destinados a evitar indiscriminadamente qualquer moléstia ou malefício. Às vezes têm finalidades aparentemente precisas, como sejam a de impedir a ação funesta do mau-olhado, ou das bruxarias, do ar, das bexigas, e sarampos, dos venenos ou das dores de dentes. Na São Paulo seiscentista, certas preces escritas e dirigidas a este ou àquele santo tornavam-se preciosos talismãs para quem as possuía, pois traziam o privilégio de imunizar contra determinados males. As do padre Belchior de Pontes, por exemplo, passavam por eficazes contra picadas de cobras, desde que escritas com sua própria letra.27 E assim todos as queriam ter, menos por devoção do que por precaução e amor a esta vida presente.

As fórmulas usuais contra o ar, designação vaga e que pode abranger diversas enfermidades ou acidentes, seriam muitas vezes do tipo daquela “bênção do ar”, encontrada em apenso a um velho roteiro de bandeirante. É este seu texto: “Em nome de Ds. Padre. Em nome de Ds. fo. Em nome do Espírito Santo. Ar vivo, Ar morto, ar de estupor, ar de perlesia, ar arenegado, ar escomungado, eu te arenego. Em nome da Santicima trindade q. sayas do corpo desta Creatura, homem ou animal e q. vas parar no mar sagrado pa. q. viva sam e alliviado. P. N. Maria Credo”.28

O essencial na maioria dessas fórmulas salvadoras é que a religião (ou a superstição) deve servir a fins terrenos e demasiado humanos. As potências celestiais são caprichosas; uma vez assegurado seu socorro em qualquer transe da vida, que obstáculo se poderá erguer às vontades dos homens? Não admira se em épocas que fizeram da pugnacidade virtude suprema, os ensalmos e rezas se convertessem, muitas vezes, no que chamaríamos hoje, com a mentalidade de hoje, um fator antissocial. É próprio de tais épocas considerar-se que determinados crimes, como o furto, pelo menos o furto desacompanhado de violência física, rebaixam e desclassificam quem os pratica; mas o homicida, inclusive o homicida traiçoeiro, esse poderá contar sempre com a possível benevolência dos homens e dos santos. Tão poderosa foi essa opinião, que consegue subsistir mesmo onde o tempo já dissipou os motivos que a amparavam e que de certo modo a explicavam.29 A religião, por si só, não era o bastante para abrandar os costumes onde todas as condições materiais e morais tendiam a fazê-los rudes. Além disso ninguém negará que a agressividade turbulenta de um Bartolomeu Fernandes de Faria, por exemplo, ou dos irmãos Leme, chegou a ter, muitas vezes, uma função positiva e, ao cabo, necessária.

Um simples patuá, nessas circunstâncias, torna-se, com grande frequência, móvel e inspirador dos atos mais temerários. Na algibeira de um mamaluco paulista, morto em 1638 na redução jesuítica de São Nicolau, encontrou-se um papel que trazia estes dizeres: “Quem me traz consigo não morrerá no fragor das batalhas, nem expirará sem confessar-se e irá para o céu”.30 O uso de amuletos dessa ordem conserva-se, ainda em nossos dias, sobretudo nas paragens sertanejas e incultas. As fórmulas mágicas que encerram deverão agir, ora sobre seu portador, protegendo-o, ora diretamente sobre o inimigo, amolecendo-o ou desarmando-o. No último caso está a seguinte “oração de são Marcos”, que chegou a alcançar terrível celebridade em algumas regiões do sul de São Paulo:

 

São Marcos montou a cavalo e foi bater à porta de Jesus Cristo. Jesus Cristo perguntou o que queria. Senhor, eu vim guerrear com os teus inimigos. Se eles puxarem por armas largas, que são as facas, estas se dobrarão da ponta até ao cabo; se eles puxarem por armas estreitas, que são espadas, estas virarão batedeiras de algodão; se eles puxarem por armas de fogo, cairão os peixes e correrá água pelo cano; se eles puxarem por armas do mato, que são os porretes, virarão em hóstias. Quem rezar esta oração todas as sextas-feiras terá cem anos de perdão. Amém.

 

O facínora Antônio Rodrigues de Sousa, preso em Apiaí pelo ano de 1885, depois de ter resistido com denodo a uma verdadeira multidão de homens armados, inclusive aos soldados de Faxina, declarou-se vencido e perdido sem remissão, quando lhe arrancaram do pescoço um breve contendo a oração de são Marcos.31 Em realidade essa confiança cega na virtude dos patuás é considerada indispensável requisito para sua eficácia. Se eles não dão muitas vezes os resultados prometidos é fácil acreditar que seu portador não confiou plenamente na força mágica que encerram, ou que o adversário possuía alguma oração ainda mais milagrosa.

Vinda do reino, a crença no poder mágico da palavra falada ou escrita encontrou, entre nós, condições adequadas para ganhar terreno. É de notar que os próprios índios já se serviam a seu modo de fórmulas de encantamento, invocações ou rezas, em que certas combinações de palavras, pronunciadas de certa maneira e repetidas determinado número de vezes, podem livrar de qualquer perigo a quem as recite devotamente. Algumas vezes chega a surpreender, nas que Koch-Grünberg coligiu em suas expedições ao extremo norte da Amazônia, a similitude que apresentam com as orações e ensalmos caboclos. Assim, entre o gentio iaricuna ou taulipangue, quem deseje amansar seu pior inimigo terá de preparar-se, conforme determinadas regras de antemão fixadas, executar trejeitos apropriados e recitar um discurso que, vertido para o português, principia, mais ou menos, nestes termos: “Desvio as armas de meus inimigos, quando elas estão prestes a matar-me. Quando [os meus inimigos] estão furiosos, faço com que seus corpos se enfraqueçam. Retiro a força de seus corações. Faço com que se riam […]”.32

Na forma, no conteúdo, na intenção, tais os pontos de contato existentes entre essa e certas orações mágicas largamente conhecidas dos sertanejos, como a de são Marcos, ou a de santa Clara — a última usada ainda hoje no interior de São Paulo pelos que desejam abrandar os inimigos, tornando-os “mansos como cordeiros” —, que é lícito perguntar se não haveria aqui, mais do que mera coincidência, o resultado de uma interação assídua de crendices importadas e práticas indígenas.

* Em Caminhos e fronteiras (ed. original 1957). São Paulo, Companhia das Letras, 1994.