Experiência e fantasia*

 

 

 

 

 

O gosto da maravilha e do mistério, quase inseparável da literatura de viagens na era dos grandes descobrimentos marítimos, ocupa espaço singularmente reduzido nos escritos quinhentistas dos portugueses sobre o Novo Mundo. Ou porque a longa prática das navegações do Mar Oceano e o assíduo trato das terras e gentes estranhas já tivessem amortecido neles a sensibilidade para o exótico, ou porque o fascínio do Oriente ainda absorvesse em demasia os seus cuidados, sem deixar margem a maiores surpresas, a verdade é que não os inquietam, aqui, os extraordinários portentos, nem a esperança deles. E o próprio sonho de riquezas fabulosas, que no resto do hemisfério há de guiar tantas vezes os passos do conquistador europeu, é em seu caso constantemente cerceado por uma noção mais nítida, porventura, das limitações humanas e terrenas.

A possibilidade sempre iminente de algum prodígio, que ainda persegue os homens daquele tempo, mormente em mundos apartados do seu, alheios aos costumes que adquiriram no viver diário, não deixará de afetá-los, mas quase se pode dizer que os afeta de modo reflexo: através de idealizações estranhas, não em virtude da experiência. É possível que, para muitos, quase tão fidedignos quanto o simples espetáculo natural, fossem certos partos da fantasia: da fantasia dos outros, porém, não da própria. Mal se esperaria coisa diversa, aliás, de homens em quem a tradição costumava primar sobre a invenção, e a credulidade sobre a imaginativa. De qualquer modo, raramente chegavam a transcender em demasia o sensível, ou mesmo a colori-lo, retificá-lo, complicá-lo, simplificá-lo, segundo momentâneas exigências.

O que, ao primeiro relance, pode passar por uma característica “moderna” daqueles escritores e viajantes lusitanos — sua adesão ao real e ao imediato, sua capacidade, às vezes, de meticulosa observação, animada, quando muito, de algum interesse pragmático — não se relacionaria, ao contrário, com um tipo de mentalidade já arcaizante na sua época, ainda submisso a padrões longamente ultrapassados pelas tendências que governam o pensamento dos humanistas e, em verdade, de todo o Renascimento?

Nada fará melhor compreender tais homens, atentos, em regra geral, ao pormenor e ao episódico, avessos, quase sempre, a induções audaciosas e delirantes imaginações, do que lembrar, em contraste com o idealismo, com a fantasia e ainda com o senso de unidade dos renascentistas, o pedestre “realismo” e o particularismo próprios da arte medieval, principalmente de fins da Idade Média. Arte em que até as figuras de anjos parecem renunciar ao voo, contentando-se com gestos mais plausíveis e tímidos (o caminhar, por exemplo, sobre pequenas nuvens, que lhes serviriam de sustentáculo, como se fossem formas corpóreas), e onde o milagroso se exprime através de recursos mais convincentes que as auréolas e nimbos, tão familiares a pintores de outras épocas.1

Só a obstinada ilusão de que a capacidade de apreender o real se desenvolveu até aos nossos dias numa progressão constante e retilínea pode fazer-nos esquecer que semelhante “retrocesso” não se deu apenas na esfera da arte. Se parece exato dizer-se que aquela ilusão foi estimulada e fortalecida pelo inegável incremento das ciências exatas e da observação da Natureza, a contar do século XVI, é indubitável, no entanto, que nossa noção da realidade só pôde ser obtida em muitos casos por vias tortuosas, ou mesmo por escamoteações ainda que transitórias, do real e do concreto.

É bem significativo o viço notável alcançado, em geral, durante o Renascimento, por estudos tais como os da retórica, da magia, da astrologia, da alquimia, que, na sua maior parte, julgamos hoje anticientíficos e ineficazes, por isso mesmo que nos parecem tender a algumas daquelas escamoteações. Na primavera da Idade Moderna, quando à tradição medieval, árabe e cristã se alia a do mundo clássico, agora ressuscitada, povoando o céu de imagens “onde se transfiguram, ganhando forças novas, as crenças mitológicas da Antiguidade”,2 longe de chegarem a desfalecer é, ao contrário, um recrudescimento o que conhecem muitos desses estudos.

Em todo o longo curso da polêmica dos humanistas contra a escolástica e o aristotelismo, a superioridade frequentemente afirmada da retórica em confronto com a dialética e a lógica relaciona-se para muitos à sua capacidade de aderir mais intimamente ao concreto e ao singular ou, ainda, à sua eficácia maior como instrumento de persuasão.3 Pode dizer-se que o influxo deste modo de sentir vai marcar ulteriormente o pensamento e, segundo todas as probabilidades, a estética dos seiscentistas, dirigindo esta última, de um lado, no sentido de esquivar-se à expressão direta, e de outro, paradoxalmente, para a forma incisiva e sem meandros.

A propósito deste último aspecto houve mesmo quem relacionasse à especulação de certos humanistas a doutrina do estilo chão, propugnada pelos puritanos, e nela visse o prenúncio, quando não exatamente a causa do racionalismo. Contudo, o pano de fundo daquela especulação ainda é o complexo de ensinamentos contra os quais ela procura rebelar-se, ganhando forças através desta rebelião: o aristotelismo e a escolástica medieval, mas a escolástica de físicos e lógicos, como o fora o português Pedro Hispano, não tanto a de teólogos, como o próprio santo Tomás de Aquino.

É principalmente nos países ibéricos que, apesar de Vives, por exemplo, ou dos erasmistas hispânicos, mais poderosos se vão fazer os entraves da tradição (em particular da tradição aristotélica, logo depois retomada, e da escolástica, recuperada e quase canonizada, até fora das universidades) a certas manifestações extremadas do humanismo. Às animadversões de um Pedro Ramus, tão influentes entre os povos do Norte,4 ninguém se há de opor com vivacidade mais agastada, em prol do Estagirita e da Universidade, do que, em sua Responsio, de 1543, o português Antônio de Gouveia.5

Mesmo nesses países, porém, mal se poderá dizer sem exagero que ficará inútil todo o trabalho desenvolvido pelos humanistas, em sua campanha antiescolástica ou antiaristotélica. Da exaltação da retórica, oposto desse modo à lógica e à dialética, e ainda da aversão declarada a todo pensamento de cunho abstrato e puramente especulativo, permanecerão neles sinais duradouros.

Se a tanto vão as consequências do interesse generalizado pela retórica, numa época em que se situam as verdadeiras origens do moderno racionalismo e experimentalismo, dificilmente se dirá que foi menos eminente o prestígio, então, de certas doutrinas que a experiência e a razão parecem hoje repelir. Não é inteiramente justo pretender-se, e houve no entanto quem o pretendesse, que o ocultismo da Idade Média se reduz à baixa magia dos bruxedos, ao passo que a grande magia pertence de fato ao Renascimento. E todavia parece exato dizer que durante a era quinhentista e ao menos até Giordano Bruno e Campanella, se não mais tarde, as ideias mágicas alimentam constantemente a mais conhecida literatura filosófico-teológica.

Não tem mesmo faltado ultimamente quem procurasse assinalar a íntima relação existente entre as operações mágicas e a própria ciência experimental dos séculos XVI e XVII. Por mais que um Bacon, por exemplo, tivesse procurado eliminar de seu sistema as fábulas, maravilhas, “curiosidades” e tradições, a verdade é que não logrou sustar a infiltração nele de princípios dotados de forte sabor mágico e ocultista. E embora sem poupar acres censuras à Astrologia, por exemplo, chega a admitir, não obstante, que essa arte há de depurar-se apenas de excessos e escórias, mas não deve ser inteiramente rejeitada.

Por outro lado, os rastros que muitas concepções mágicas deixariam impressos nas suas teorias filosóficas, em sua biologia, sobretudo em sua medicina, que em alguns pontos parece confundir-se com a charlatanice, só se notam em escala muito menor na doutrina cartesiana, porque o terreno por estar aberto deixa naturalmente poucas oportunidades para uma invasão ostensiva da magia e do ocultismo.

Mas quem, como o próprio Descartes, ousou confessar sua incapacidade de discorrer sobre experiências mais raras antes de conseguir investigar ervas e pedras miraculosas da Índia, ou de ver a ave Fênix e tantas outras maravilhas exóticas, e além disso se valeu de lugares-comuns tomados à magia natural, para abordar segredos cuja simplicidade e inocência nos impedem de admirar as obras dos homens, não pode ser considerado tão radicalmente infenso a tal ou qual explicação oculta de fatos empíricos. E as causas fornecidas para as propriedades do ímã e do âmbar por um espírito como o seu, que tinha em mira dar motivos racionais e mecânicos para fenômenos supostamente ocultos, já puderam ser interpretadas como de molde a animar, e não a destruir, a crença na existência de tais fenômenos.6

Assim, as mesmas correntes espirituais que vão desembocar a seu tempo na negação do sobrenatural, passando sucessivamente pelo naturalismo, o racionalismo, o agnosticismo e enfim pelo ateísmo sem rebuço ou temor, parecem ocupadas, num primeiro momento, em retardar o mais possível e, por estranho que pareça, em contrariar a marcha no sentido da secularização crescente da vida: meta necessária, posto que nem sempre manifesta, dos seus esforços. De modo que não hesitam em ataviar, idealizar ou querer superar a qualquer preço o espetáculo mundano. Propondo-se uma realidade movediça e ativa, rica em imprevistos de toda sorte, elas destoam abertamente do tranquilo realismo daqueles que, ancorados na certeza de uma vida ditosa e perene, ainda que póstuma, consentem em aceitar o mundo atual assim como se oferece aos sentidos, e se recusam a vesti-lo de galas vãs.

O resultado é que uns, meio desenganados, talvez sem o saber, das promessas consoladoras, e movidos de uma desordenada impaciência, procuram ou já cuidam ter encontrado na vida presente o que os outros aguardam da futura, de sorte que o mundo, para suas imaginações, se converte num cenário prenhe de maravilhas. Aos últimos, porém, o viver cotidiano nem os deixa oprimidos, nem os desata dos cuidados terrenos, e o freio que parece moderar sua fantasia é uma esperança contente e sossegada.

Não está um pouco neste caso o realismo comumente desencantado, voltado sobretudo para o particular e o concreto, que vemos predominar entre nossos velhos cronistas portugueses? Desde Gandavo e, melhor, desde Pero Vaz de Caminha até, pelo menos, frei Vicente do Salvador, é uma curiosidade relativamente temperada, sujeita, em geral, à inspiração prosaicamente utilitária, o que dita as descrições e reflexões de tais autores. A extravagância deste ou daquele objeto, que ameaça desafiar o costume e a ordem da Natureza, pode ocasionalmente acarretar, é certo, alguma vaga sugestão de mistério. De que nos serve, porém, querer penetrar a todo o transe esses segredos importunos? Muito mais do que as especulações ou os desvairados sonhos, é a experiência imediata o que tende a reger a noção do mundo desses escritores e marinheiros, e é quase como se as coisas só existissem verdadeiramente a partir dela. A experiência, “que é madre das coisas, nos desengana e de toda dúvida nos tira”,7 assim falou um deles nos primeiros anos do século XVI.

“Madre” das coisas, não apenas sua “mestra”, de acordo com a fórmula antiga, que mal principiavam a reabilitar pela mesma época espíritos do porte de Leonardo. A obsessão de irrealidades é, com efeito, o que menos parece mover aqueles homens, em sua constante demanda de terras ignotas. E, se bem que ainda alheios a esse “senso do impossível”, por onde, segundo observou finalmente Lucien Febvre, pode distinguir-se a nossa da mentalidade quinhentista,8 nem por isso mostravam grande afã em perseguir quimeras. Podiam admitir o maravilhoso, e admitiam-no até de bom grado, mas só enquanto se achasse além da órbita de seu saber empírico. Do mesmo modo, em suas cartas náuticas, continuarão a inscrever certos topônimos antiquados ou imaginários,9 até o momento em que se vejam levados a corrigi-los ou suprimi-los, conforme o caso.

 

 

Não era essa, então, a atitude comum entre povos navegadores. Já às primeiras notícias de Colombo sobre as suas Índias tinham começado a desvanecer-se naquele Novo Mundo os limites do possível. E se todas as coisas ali surgiam magnificadas para quem as viu com os olhos da cara, apalpou com as mãos, calcou com os pés, não seria estranhável que elas se tornassem ainda mais portentosas para os que sem maior trabalho e só com o ouvir e o sonhar se tinham por satisfeitos. Nada parece, aliás, quadrar melhor com certa sabedoria sedentária do que a impaciência de tudo resolver, opinar, generalizar e decidir a qualquer preço, pois o ânimo ocioso não raro se ajusta com a imaginação aventureira e, muitas vezes, de onde mais minguada for a experiência, mais enfunada sairá a fantasia.

Reduzidas porém à palavra impressa, com o prestígio que se associa à novidade, muitas razões falsas e caprichosas deveriam ganhar, por aquele tempo, a força das demonstrações. A Rabelais, ou a quem escreveu o quinto livro de Pantagruel, deve-se certa alegoria que traduz a importância atribuída, entre seus contemporâneos, à literatura corrente sobre as terras incógnitas. Disforme velhinho, de enorme goela em que se agitam sete línguas — ou uma língua repartida em sete —, a falarem simultaneamente em sete idiomas diversos, o prodigioso Ouyr-Dire, apesar de cego e paralítico das pernas, ostenta da cabeça aos pés tanto de orelhas quanto de olhos tivera Argos.

Cercado de uma chusma de homens e mulheres, sempre atentos e gulosos de ciência, não cessa o monstro de ministrar-lhes, ajudado do mapa-múndi, explicações sumárias, em breves e incisivos aforismos, a respeito das mais notáveis maravilhas existentes em toda a superfície desta esfera terrestre, com o que se fazem eles sapientíssimos doutores, aptos a discorrer de cor e com perfeita elegância, sobre os mínimos aspectos da matéria versada. Matéria de que toda uma vida humana haveria de representar, normalmente, muito pouco para se conhecer sua centésima parte.

Não é sem alguma surpresa que, no rol dos historiadores antigos e modernos, dissimulando-se por trás de um tapete, a trabalhar afanosamente para Ouvir-Dizer e seus discípulos, vamos encontrar (único português nominalmente citado entre os membros de vasta equipe, que não inclui um Vasco da Gama, como não inclui, aliás, Colombo, nem Vespúcio) o descobridor da terra de Santa Cruz.10 E é já alguma coisa o fato desse Pietre Álvares surgir na relação mutilado apenas do seu apelido mais notório, quando outros nomes — o de André Thevet, por exemplo, convertido em Tevault, ou o de Cadamosto, transformado em Cadacuist — de tão estropiados se tornam quase irreconhecíveis.

De qualquer modo a presença de Pedro Álvares Cabral numa ilustre companhia de cronistas ou, como lá está, de historiadores, companhia tão larga quanto eclética, pois abrange, entre outros, Estrabão e Plínio, Heródoto e Marco Polo, Haïton, o Armênio e o papa Pio II, ou seja, Eneias Silvio Piccolomini, só seria explicável por alguma estranha confusão: confusão, talvez, entre o almirante lusitano e o chamado Piloto Anônimo, autor de uma das relações conhecidas de sua viagem.11

A parte que cabe aos portugueses nas origens da geografia fantástica do Renascimento acha-se, realmente, em nítida desproporção com a multíplice atividade de seus navegadores. Sensíveis, muito embora, às louçanias e gentilezas dos mundos remotos que a eles se vão desvendando, pode dizer-se, no entanto, que ao menos no caso do Brasil escassamente contribuíram para a formação dos chamados mitos da conquista. A atmosfera mágica de que se envolvem para o europeu, desde o começo, as novas terras descobertas parece assim rarefazer-se à medida que penetramos a América lusitana. E é quando muito à guisa de metáfora, que o enlevo ante a vegetação sempre verde, o colorido, variedade e estranheza da fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e inocência das gentes — tal lhes parece, a alguns, essa inocência que, dissera-o já Pero Vaz de Caminha, “a de Adão não seria maior quanto à vergonha” — pode sugerir-lhes a imagem do Paraíso Terrestre.

Se imagem semelhante alguma vez lhes ocorrera, aliás, no curso de sua já longa tradição náutica, fora, talvez, quando, passados os primeiros decênios de exploração da costa africana, àqueles quadros que até então tinham descortinado quase incessantemente, de baixos de pedra e areia movediça, em que nem cresce erva, nem há mostras de coisa viva, sucede, transposta a foz do Senegal, o espetáculo de um imenso país verdejante, florido e fértil, como a lembrar-lhes um sítio encantado.

Ao majestoso de tal espetáculo imprimia ainda um cunho de mistério a versão de que as águas do mesmo rio vinham da região das nascentes do Nilo. Alcançado o lugar em 1445 por Dinis Fernandes, dez anos depois um navegante veneziano a serviço do infante d. Henrique imagina-se, escudado no parecer de “homens sábios”, em face de um dos muitos ramos do Gion, que nasce no Éden: outro ramo seria o Nilo.12

Note-se, porém, que não era de forja lusitana ou sequer quatrocentista essa curiosa teoria que levava um dos tributários do Gion — por certos autores identificado com o próprio Nilo — a ir despejar as águas no Atlântico. Pretendeu-se com bons argumentos que o primeiro a formulá-lo fora Eutimenes de Massília, e o “périplo” que celebrizou esse nauta data do sexto século antes de Cristo. Impressionara-se ele com a presença em um rio africano que desemboca no Atlântico de bestas-feras em tudo semelhantes às que se encontram no Egito. Assim se lê na transcrição que de seu testemunho nos dá Sêneca, como também a afirmativa lacônica de que o Nilo corre naquelas partes ocidentais: “Navigavi Atlanticum mare. Inde Nilus fluit […]”.13 Outros testemunhos antigos precisam que as tais bestas, semelhantes às do Egito, eram crocodilos e também hipopótamos.

Que Eutimenes tivesse efetivamente alcançado a boca do Senegal, é ponto ainda hoje controverso. Em apoio de semelhante presunção vem justamente aquela referência aos crocodilos, que, a julgar pelas condições atuais, não poderiam encontrar-se em nenhum outro lugar mais ao norte na costa atlântica da África.14 Como esses grandes sáurios passavam então por uma espécie de prerrogativa do Nilo, não custava aparentar a este todo rio onde porventura se achassem. Foi o que se deu com o próprio Indo, que ainda ao tempo de Alexandre, e para o próprio Alexandre, passava por ser, em realidade, o curso superior do Nilo.

Por incrível que possa parecer, a ideia continuou a ter crédito durante muitos séculos, e saiu mesmo fortalecida com o advento do cristianismo. Pois não está no Gênesis que manava do Paraíso Terreal um rio para regá-lo, e dali se tornava em quatro ramos, o Fison, o Gion, o Heidequel e o Eufrates? Desde que os três primeiros passaram a ser em geral identificados com o Ganges, o Nilo e o Tigre, respectivamente, restava todavia um problema de difícil solução: onde e como chegariam suas correntes a confluir? Flávio Josefo dissera do Éden que era regado por um só rio, cuja corrente circunda a Terra, subdividida em quatro braços. A dificuldade foi por alguns resolvida com a sugestão de que as águas desse rio iam unir-se, na sua maior parte, por baixo da terra.

Registrando semelhante versão, que também se acha bem documentada, aliás, na monumental antologia crítica das antigas viagens de descobrimento elaborada pelo dr. Richard Hennig, pôde Howard R. Patch invocar a afirmação de Filostórgio de que as águas do Nilo ou Gion, depois de deixarem o Éden e antes de chegarem a qualquer sítio habitado, se dirigem secretamente ao mar Índico; empreendem então uma espécie de curso circular e logo passam por baixo de todo o continente, que se estende até o mar Vermelho, onde penetram também às ocultas, para irem reaparecer, afinal, sob os montes chamados da Lua. Ali arrebentam de quatro fontes, não muito arredadas umas das outras, que lançam suas águas a grandes alturas. Em seguida cai o rio em um precipício alcantilado e, atravessada a Etiópia, entra por fim em terra do Egito.15

Por menos espantosa, na aparência, a teoria de que o Nilo deitava um braço para o poente e que este bem poderia ser o Senegal dos antigos navegadores portugueses teve mais longa vida do que a de sua comunicação subterrânea e submarina com o Indo ou o Ganges. Segundo observa Rinaldo Caddeo, em nota à sua edição das viagens de Cadamosto, ainda em 1711 o alemão G. B. Homann casa o Nilo com o Níger, chamando a um Nilus albus e a outro Nilus ater: ao último faz desaguar no Atlântico através de vários ramos, um dos quais seria o Senegal.16 Durante toda a Idade Média, a teoria iniciada por Eutimenes e bem acolhida de muitos autores da Antiguidade clássica fora acreditada principalmente pelos geógrafos árabes, que, desde Edrisi, por volta de 1150 de nossa era, tinham conhecimento do Níger, a que denominavam o Nilo dos negros. O próprio Edrisi chegara a dizer textualmente que, se o Nilo egípcio corre do sul para o norte, outra parte do mesmo rio “se dirige do oriente até aos extremos limites, no poente: ao longo deste braço estendem-se em sua totalidade ou maior parte os países dos pretos”.17

Não é impossível que, para Cadamosto e seus companheiros portugueses, razões semelhantes às que tinham levado o marinheiro massiliota a associar ao Nilo um dos rios africanos que desembocam no Atlântico, tivessem servido para fortalecer a mesma convicção. O fato é que, depois de aludir à existência de hipopótamos no Gâmbia e em muitos outros cursos de água da região,18 acrescenta que esse animal não se acha em outras partes navegadas pelos cristãos, ao que ouvira dizer, salvo, talvez, no Nilo: “non si trova in altre parti dove si naviga per nostri Cristiani, per quanto ho potuto intendere, se non per ventura nel Nilo”. De qualquer modo, tão generalizada andava a opinião de que este e o Senegal representam galhos de um mesmo rio, que antes mesmo da primeira viagem do navegador veneziano a serviço do infante d. Henrique, encontrava ela guarida na célebre bula Romanus Pontifex de Nicolau V, onde se diz das caravelas lusitanas mandadas a descobrir as províncias marítimas para a banda do polo antártico, terem alcançado a boca de um rio que se pensava ser o Nilo.

É de crer que, herdando essa opinião dos geógrafos árabes, ou mesmo de numerosos autores da Antiguidade greco-romana, tais como Heródoto, Aristóteles ou Plínio, não duvidassem muitos portugueses em aceitá-la, tanto mais quanto se limitaram suas explorações geralmente à orla marítima, onde não havia lugar para se verificar sua falsidade.

A imagem dessa África insular, abraçada, em grande parte de seu território, pelos dois ramos de um mesmo rio, não deixaria de ser sugestiva, aliás, para um povo dado à navegação. Da mesma forma poderiam figurar ainda uma Índia insular, tendo em conta que, para o gentio daquelas partes, era fama, segundo refere João de Barros, que o Indo e o Ganges saíam de uma veia comum: de onde a fábula dos dois irmãos que entre eles corria.19 E sabe-se como o fato de numerosos mapas quinhentistas e seiscentistas mostrarem as águas do Amazonas e as do Prata unidas no nascedouro, através de uma grande lagoa central, levou o historiador Jaime Cortesão a sugerir ultimamente a ideia de uma “ilha Brasil”, que teria sido concebida entre os portugueses da época sob a forma de mito geopolítico.

Não é fácil, contudo, imaginar de que forma concepções como essa, se é que existiram de fato, poderiam ter tido papel tão considerável na expansão lusitana. No caso particular da África, onde elas deviam encontrar terreno excepcionalmente favorável a seu desenvolvimento, devido à velha sugestão de que as águas do Senegal, assim como as do Nilo, provinham do próprio Paraíso Terreal, nada faz crer que chegassem a exercer sobre aqueles navegantes algum extraordinário fascínio. E se tal crença logrou ser amplamente partilhada em Portugal, o que dela nos chega, em escritos dos primeiros anos do século XVI, é quando muito o abafado eco: certa alusão, por exemplo, a um país abençoado, onde os homens aparentemente não adoecem, ou, se já enfermos, logo ficam sãos em lá chegando.

Com efeito, numa página do Esmeraldo referente à Etiópia inferior, que é como então se chamava a zona limitada ao norte pelo rio do “Çanagá”, Duarte Pacheco Pereira dá como “certo e sabido” que nunca, em algum tempo, morreram ali homens de “pestelencia”. E não somente era dotado o sítio dessa admirável virtude, “que a majestade da grande natureza deu, mas ainda temos, por experiência, que os navios em que para aquelas partes navegamos, tanto que naquele crima são, nenhuns dos que neles vão, desta infirmidade morrem, posto que desta cidade de Lisboa, sendo toda deste mal, partam e neste caminho alguns aconteçam de adoecer e outros morrer; como na Etiópia são, nenhum dano recebem”.20

Mesmo se sucedia capitularem momentaneamente ao pendor para o fabuloso, é quase sempre na experiência “madre das coisas” que vemos fiarem-se os marinheiros e exploradores portugueses da época: os olhos que enxergam, as mãos que tateiam, hão de mostrar-lhes constantemente a primeira e a última palavra do saber. Saber este ainda fiel a ponderados conselhos como os de el-rei d. Duarte, quando reclama de seu leitor que não se deixe mover “sem fundamento certo, nem cure de signos, sonhos ou topos de vontade”.21 E que irá marcar as próprias páginas dos Lusíadas, numa das oitavas finais, onde o poeta, falando a d. Sebastião, exclama, a propósito da “disciplina militar prestante”, que esta não se aprende

 

[…] na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Se não vendo, tratando e pelejando.22

A exploração pelos portugueses da costa ocidental africana e, depois, dos distantes mares e terras do Oriente poderia assimilar-se, de certo modo, a uma vasta empresa exorcística. Dos demônios e fantasmas que, através de milênios, tinham povoado aqueles mundos remotos, sua passagem vai deixar, se tanto, alguma vaga ou fugaz lembrança, em que as invenções mais delirantes só aparecem depois de filtradas pelas malhas de um comedido bom senso.

À inclinação para engrandecer eventualmente ou para falsear as coisas vistas no ultramar desconhecido, opõe-se neles a fidei faciendae difficultas, de que chegará a lamentar-se o bispo d. Jerônimo Osório. Aubrey Bell não hesita em afirmar de “todos os viajantes portugueses” quinhentistas, que se põem de guarda contra a “incredulidade notória” que distingue pela mesma época os seus conterrâneos, e a semelhante regra não abre exceção o próprio Fernão Mendes Pinto, cujos escritos, tidos durante longo tempo como fantasiosos, lhe parecem guardar, apesar de tudo, “o cunho da verdade”.23

Não haverá grande exagero em dizer-se daqueles homens que, alheios, embora, às ruidosas especulações, puderam, com seu tosco realismo, inaugurar novos caminhos ao pensamento científico, no alvorecer dos tempos modernos, pelo simples fato de terem desterrado alguns velhos estorvos ao seu progresso. E dificilmente se poderia deixar de dar razão a historiadores portugueses que assinalam a importante contribuição prestada nesse sentido, por aqueles viajantes e marinheiros. “Eliminar erros e prejuízos”, escreve judiciosamente um desses historiadores, “equivale pelo menos a desbravar o acesso à verdade, e este foi, com efeito, o primeiro e mais retumbante resultado dos descobrimentos. As ideias geográficas acerca da África começaram a ruir subitamente com a passagem do equador, e com este rasgo audaz os nossos pilotos articulam, ao mesmo tempo, os primeiros desmentidos à ciência oficial e aos prejuízos comumente admitidos. A inabitabilidade da zona tórrida, certas ideias sobre as dimensões da Terra, o ‘sítio do orbe’, as imaginadas proporções das massas líquida e sólida de nosso planeta, os horríveis monstros antropológicos e zoológicos, as lendas de ilhas fantásticas e de terrores inibitórios — tudo isso que obscurecia o entendimento e entorpecia a ação foi destruído pelos nossos pilotos com o soberano vigor dos fatos indisputáveis.”24

E um erudito pesquisador da história literária dos descobrimentos marítimos pôde de modo semelhante, e sem intuito, aliás, de pretender associá-la diretamente à sobriedade de imaginativa daqueles pilotos e exploradores, apresentar como uma das consequências de sua obra a progressiva retração da área tradicional dos países da lenda e do sonho. “Na época de Colombo e de Pigafetta”, observa efetivamente Leonardo Olschki, “as experiências coloniais dos portugueses tinham arrebatado, até mesmo às terras da Ásia e da África, muitos dos seus encantos. À medida que, no século XV, prosseguiam os empreendimentos inspirados por Henrique, o Navegador, ao longo da orla ocidental africana, as representações fabulosas e monstruosas preexistentes se iam apagando dos roteiros, dos mapas, das imaginações, deslocando-se para outros rumos. Desde que Dinis Dias tomou posse do Cabo Branco, em 1445, e que, passado um ano, Álvaro Fernandes se lançou até à embocadura do rio Grande, ou que Alvise Da Cá Da Mosto, gentil-homem veneziano, penetrou na região do Senegal, subindo o curso do rio para lugares não sabidos, a costa africana deixou de ser uma incógnita e, em seguida às explorações de Bartolomeu Dias, pareceu despojar-se até de seus mistérios. E quando, mais tarde, Vasco da Gama, dobrando o cabo da Boa Esperança, chega, aos 20 de novembro de 1498, à vista de Calicute, também a Índia fabulosa vai converter-se num imenso mercado que o grande navegador, feito vizo-rei, ensinará a desfrutar em nome de seu soberano.”25

 

 

Seria possível dizer o mesmo, com a mesma ênfase, a propósito das façanhas náuticas de outros povos, dos castelhanos em particular? Não é precisamente um aguçar-se do senso da maravilha e do mistério o que parece ocorrer, ao menos nos primeiros tempos, quando seus marinheiros entram em contato com os mundos distantes e ignorados? Já ao tempo de Colombo, a crença na proximidade do Paraíso Terreal não é apenas uma sugestão metafórica ou uma passageira fantasia, mas uma espécie de ideia fixa, que ramificada em numerosos derivados ou variantes acompanha ou precede, quase indefectivelmente, a atividade dos conquistadores nas Índias de Castela.

Ao chegar diante da costa do Pária, esse pressentimento, que aparentemente animara o genovês desde que se propusera alcançar o Oriente pelas rotas do Atlântico, acha-se convertido para ele, e talvez para os seus companheiros, numa certeza inabalável que trata de demonstrar com requintes de erudição. Assim, na carta onde narra aos reis católicos as peripécias da terceira viagem ao Novo Mundo — “outro mundo”, nas suas próprias expressões —, propõe-se seriamente, logo que tenha mais notícias a respeito, mandar reconhecer o sítio abençoado onde viveram nossos primeiros pais.26

Certas versões geralmente bem apoiadas nos juízos dos teólogos, que tendem a situar o Paraíso nos confins da Ásia, parecem corresponder em tudo aos dados da geografia fantástica em que se deixava embalar o navegante. Se à vista da ilha de Haiti julgara, de início, ter chegado diante da bíblica Ofir — e quantos, depois dele, não entretiveram a mesma ideia sobre as mais diversas regiões do Novo Mundo? —, a interpretação dada aos nomes indígenas firmará logo a obstinada convicção de que aportara ao Extremo Oriente. Cibao, por exemplo, seria uma simples variante fonética do Cipangu de Marco Polo, e no próprio nome de “canibais”, associado ao gentio mais intratável e sanhoso daquelas ilhas, chegava a descobrir uma alusão evidente ao grão-cão da Tartária.

A essa porfia e à de procurar prevenir na medida do possível quaisquer dúvidas sobre a veracidade de suas identificações, prende-se o zelo que teve, segundo relembrou, não há muito, um historiador, de recolher os espécimens da flora do lugar que lhe parecessem aptos a dar-lhes mais peso. Como existisse ali certo arbusto cujas folhas cheiravam a canela, não houve hesitação: era canela. Que melhor prova para sua pretensão de ter alcançado o Oriente das especiarias? Assim também o nogal del país, com suas pequeninas nozes, imprestáveis para a alimentação, viu-se assimilado — lembra-o ainda Samuel Eliot Morison — ao coqueiro das Índias, celebrado por Marco Polo.27 Vários homens acharam umas raízes no mato e levaram-nas logo a mestre Sanchez cirurgião para que as examinasse: este, como os que mais se comprazem em abonar de imediato os próprios pareceres e dá-los por certos do que em cuidar se o são, deliberou arbitrariamente que se tratava, nada menos, do precioso ruibarbo da China.

O próprio ouro, tão vivamente almejado, pressentido e já tocado com a imaginação, ainda antes de dar de si mostra menos equívoca, sendo exato que a só existência dele naquelas partes pagaria todo o trabalho de descobrimento e conquista, devia também contribuir a seu modo para corroborar essa pretensão. Pois não assentara Colombo que até à costa de Veragua se estendiam as famosas minas do rei Salomão, situadas por Josefo na Áurea, ou seja, ao oriente da Índia?28

Não só daria aquele ouro grande acréscimo à Fazenda Real, além de cobrir os gastos havidos para tão gloriosa empresa, como o fora a incorporação de novos mundos ao patrimônio da Coroa, mas sobretudo poderia servir a fins mais devotos, entre estes o da recuperação do Santo Sepulcro em Jerusalém. E a presença de tamanhos tesouros nas terras descobertas, se não bastava para atestar a vizinhança com o paraíso perdido, de qualquer forma dava meios para o acesso à eterna bem-aventurança. Assim cuidava, com efeito, o genovês, e escrevendo da Jamaica, em 1503, aos reis católicos, reafirma com singular veemência essa convicção: o ouro, dizia então, é excelentíssimo: de ouro faz-se tesouro, e com ele, quem o tem, realizará quanto quiser no mundo, e até mandará as almas ao paraíso.29 De sorte que, faltando a remuneração deste mundo, sempre haveria de acudir a celeste.

* Em Visão do paraíso (ed. original 1959). São Paulo, Companhia das Letras, 2010.