CAPÍTULO 15
PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA E DÁ ALGUNS AVISOS DE COMO SE DEVE COMPORTAR NESSA ORAÇÃO DE QUIETUDE. TRATA DE COMO HÁ MUITAS ALMAS QUE CHEGAM A TER ESSA ORAÇÃO E POUCAS QUE PASSAM ADIANTE. SÃO MUITO NECESSÁRIAS E PROVEITOSAS AS COISAS DE QUE AQUI SE TRATA
1. Agora voltemos ao assunto. Essa quietude e recolhimento da alma é uma coisa que se sente muito na satisfação e paz que nela se apresenta com enorme alegria e sossego das potências e muito suave deleite. Parece-lhe — já que não chegou mais longe — que não sobra o que desejar e que de boa vontade diria com são Pedro que seria ali sua morada.1 Não ousa agitar-se nem sair do lugar, pois lhe parece que aquele bem vai lhe escapar das mãos. Nem respirar quereria, às vezes. Não entende a pobrezinha que, já que não pôde fazer nada para trazer a si aquele bem, menos ainda poderá fazer para interrompê-lo enquanto o Senhor não quiser.
Já falei que, nesse primeiro recolhimento e quietude, não estão ausentes as potências da alma. Mas ela está tão satisfeita com Deus que, enquanto aquilo durar, ainda que as potências se desbaratem, como a vontade está unida com Deus, não se perde a quietude e o sossego. Antes volta ela pouco a pouco a recolher o entendimento e a memória. Porque, mesmo que ela não esteja totalmente envolvida, está tão bem ocupada sem saber como, que — por mais esforço que elas façam — não podem tirar dela sua alegria e seu gozo. Antes, muito sem trabalho, se vai ajudando para que essa centelhinha de amor de Deus não se apague.
2. Queira Sua Majestade me dar graça para que eu faça entender bem isso, porque há muitas, muitas almas que chegam a esse estado e poucas as que passam adiante, e não sei quem tem a culpa. Com certeza não é culpa de Deus, pois já que Sua Majestade faz a dádiva de que se chegue a esse ponto, não creio que cessaria de fazer muitas mais a não ser por nossa culpa.
É muito importante que a alma que chega aqui conheça a dignidade grande em que está, e a grande dádiva que lhe fez o Senhor. E como, com boa razão, não havia de ser da terra. Porque parece que a bondade d'Ele já a faz vizinha do céu, se não ficar por culpa sua. E desventurada será se voltar atrás. Eu penso que será para ir para baixo — como eu ia, se a misericórdia do Senhor não me tivesse virado — porque, na maior parte das vezes, será por culpas graves, ao que me parece, e nem é possível deixar tão grande bem sem grande cegueira vinda de muito mal.
3. E assim peço eu, por amor do Senhor, às almas a quem Sua Majestade fez a tão grande dádiva de chegar a esse estado, que se conheçam e tenham-se em alta conta, numa humilde e santa presunção, para não voltar às panelas do Egito.2
E se por sua fraqueza e maldade e natureza ruim e miserável caírem — como eu fiz —, tenham sempre diante dos olhos o bem que perderam. E suspeitem e andem com temor, pois têm razão para temer, de que, se não voltarem à oração, irão de mal a pior. Esta eu chamo de verdadeira queda, a que repudia o caminho pelo qual ganhou tanto bem, e com essas almas falo. Não digo que não vão ofender a Deus e cair em pecados, ainda que fosse motivo para se guardar muito deles quem começou a receber essas dádivas, mas somos miseráveis. O que aconselho muito é que não deixe a oração, pois ali entenderá o que faz e ganhará arrependimento do Senhor e fortaleza para levantar-se. E acredite, acredite que, se se afastar dessa, corre, na minha opinião, perigo. Não sei se entendo do que falo, porque — como disse — julgo por mim.
4. É então essa oração uma centelhinha do seu verdadeiro amor que o Senhor começa a acender na alma. E quer que a alma vá entendendo que coisa é esse amor, com júbilo. Essa quietude e recolhimento e centelhinha, se for espírito de Deus e não prazer dado pelo demônio ou procurado por nós mesmos (ainda que, para quem tem experiência, seja impossível não saber logo que não é coisa que se possa obter. Mas essa nossa natureza é tão sôfrega de coisas saborosas que experimenta tudo. Fica, porém, muito fria bem rápido, porque, por muito que queira começar a fazer arder o fogo para atingir esse gosto, não parece que faz outra coisa a não ser jogar água para extingui-lo); então, essa centelhinha colocada por Deus, por pequena que seja, faz muito barulho. E se não a extingue por sua culpa, ela é que começa a acender o grande fogo que faz brotar de si chamas, como direi no lugar apropriado, do enorme amor de Deus que Sua Majestade faz que as almas perfeitas tenham.
5. Essa centelha é um sinal ou um penhor que Deus dá a essa alma, de que já a escolheu para grandes coisas, se ela se preparar para recebê-las. É um grande dom, muito maior do que eu poderia dizer. É uma grande pena para mim, porque — como digo — conheço muitas almas que chegam aqui, mas que passem daqui, como têm que passar, são tão poucas que me dá vergonha dizer. Não digo que haja poucas, pois deve haver muitas, pois por algum motivo nos sustenta Deus. Falo do que vi. Quereria muito aconselhá-las a prestar atenção em não esconder o talento, já que parece que Deus quer escolhê-las para proveito de muitas outras, especialmente nesses tempos em que são necessários amigos fortes de Deus para sustentar os fracos. E os que perceberem essa dádiva em si, considerem-se tais, se souberem responder com as leis que a boa amizade mesmo no mundo pede. E, se não, como já disse, temam e tenham medo para que não façam mal a si mesmos, e queira Deus que seja só a si mesmos!
6. O que deve fazer a alma nos períodos dessa quietude não é mais do que agir com suavidade e sem ruído. Chamo de "ruído" ficar buscando com o entendimento muitas palavras e considerações para dar graças por esse benefício e amontoar seus pecados e defeitos para ver que não o merece. Tudo isso se move aqui e o entendimento imagina e a memória se agita. E, com certeza, essas potências me cansam, às vezes, pois, mesmo tendo pouca memória, não consigo subjugá-la. A vontade, com sossego e delicadeza, entenda que não se negocia bem com Deus à força dos braços. Esses são como umas achas de lenha grandes postas sem cuidado de modo a abafar essa centelha, e saiba-o, e com humildade diga: Senhor, o que posso eu aqui? O que tem a ver a serva com o Senhor e a terra com o céu? Ou palavras de amor que ocorrem aqui. Muito apoiada em saber que é verdade o que diz e não faça caso do entendimento que é um importuno. E se a vontade quiser comunicar a ele aquilo de que goza ou se esforça para recolher o entendimento, pois muitas vezes se verá nessa união da vontade e nesse sossego, mas com o entendimento muito desbaratado, vale mais que o deixe, do que ir atrás dele. Mas a vontade, ia eu dizendo, fique gozando daquela dádiva, e recolhida como uma abelha sábia, porque, se nenhuma entrasse na colmeia, mas, levando umas às outras todas se fossem, mal se poderia fazer o mel.
7. Assim perderá muito a alma que não tiver cuidado com isso. Especialmente se a inteligência for aguçada, pois, quando começa a ordenar imagens e procurar razões em insignificâncias, se forem bem-compostas, achará que faz alguma coisa. A razão que se deve entender aqui é perceber com clareza que não há nenhuma para que Deus nos faça tão grande dádiva, a não ser sua bondade. E é ver que estamos tão perto e pedir a Sua Majestade dádivas e rogar-lhe por sua Igreja e pelos que se encomendaram a nós e pelas almas do purgatório, não com ruído de palavras, mas sim com o sentimento de desejar que nos ouça. É oração que abarca muito e alcança-se mais do que por muito refletir a inteligência. Desperte em si a vontade algumas razões para avivar esse amor, das quais a própria razão se utilizará ao ver-se tão melhorada, e faça alguns atos amorosos que fará por aquele a quem tanto deve, sem — como disse — admitir ruído da inteligência em procurar grandes coisas. Vêm mais ao caso aqui umas palhinhas postas com humildade, e serão menos do que palha se as pusermos nós mesmos, e a ajudarão a acender mais do que muita lenha de razões muito doutas, na nossa opinião, que no tempo que se leva para rezar um Credo a abafarão.
Isso é bom para os letrados que me mandam escrever, porque, pela bondade de Deus, todos chegam aqui e pode ser que se gaste o tempo em aplicar Escrituras. E ainda que não deixem de ser de muito proveito as letras, antes e depois, aqui, nesses momentos de oração, pouca necessidade há delas, na minha opinião, se não for para enfraquecer a vontade. Porque o entendimento fica, então, ao ver-se perto da luz, com enorme claridade. Até eu, mesmo sendo quem sou, pareço outra.
E é assim que me aconteceu, estando nessa quietude, mesmo não entendendo quase nada do que rezo em latim, especialmente do Saltério, não só entender o verso como se estivesse em espanhol, mas ir adiante e entender o que o espanhol queria dizer.
Deixemos de lado se tiverem que pregar ou ensinar, pois então é bom se valer daquele bem para ajudar os pobres de pouco saber como eu. Pois é uma grande coisa a caridade e este fazer progredir as almas sempre, indo com simplicidade por Deus.
8. Assim, nesses períodos de quietude, deixe-se descansar a alma com seu descanso. Fiquem as letras de lado. Tempo virá em que sejam proveitosas ao Senhor e as tenham em tão alta conta que por nenhum tesouro quereriam deixar de tê-las, só para servir a Sua Majestade, porque ajudam muito. Mas diante da Sabedoria infinita, creiam-me que vale mais um pouco de esforço de humildade e um ato dela do que toda a ciência do mundo. Aqui não há o que discutir, mas basta conhecer o que somos com franqueza, e com simplicidade apresentar-nos diante de Deus, que quer que a alma se faça boba — como na verdade ela é diante de sua presença —, já que Sua Majestade se humilha tanto que a tolera junto de si, sendo nós o que somos.
9. Também se move a inteligência a dar graças muito compostas. Mas a vontade, com sossego, com um não ousar erguer os olhos como o publicano,3 faz mais ação de graças do que o entendimento, ao transtornar a retórica, pode fazer.
Enfim, aqui não se deve deixar de todo a oração mental, nem algumas palavras, mesmo ditas em voz alta, se quiserem algumas vezes ou puderem, porque se a quietude for grande, mal se poderá falar a não ser com muito esforço.
10. Sente-se, me parece, quando é espírito de Deus ou procurado por nós, com o começo de devoção que dá Deus. Quando queremos, como já disse, passar nós mesmos a essa quietude da vontade, não faz efeito nenhum, acaba logo, deixa secura.
Se for do demônio, alma exercitada, parece-me, perceberá. Porque deixa inquietação e pouca humildade e pouco preparo para os efeitos que causa o que vem de Deus. Não deixa luz no entendimento nem firmeza na verdade. Pode fazer pouco dano ou nenhum, aí, se a alma endereçar seu deleite e a suavidade que sente ali, a Deus, e puser n'Ele seus pensamentos e desejos, como foi aconselhado. Não pode ganhar nada o demônio. Antes Deus permitirá que, com o próprio deleite que o demônio causa na alma, perca muito, porque esse ajudará a fazer com que a alma, como pensa que se trata de Deus, venha muitas vezes à oração com cobiça d'Ele. E se for uma alma humilde, e não curiosa nem interessada em deleites, ainda que sejam espirituais, mas amiga de cruz, fará pouco caso do gosto que o demônio dá, o que não poderá fazer se for espírito de Deus, porém, ao contrário, tê-lo em muito grande conta. Mas coisa que ponha o demônio, como ele é todo mentira, ao ver que a alma com o gosto e deleite se humilha (pois nisso há de importar muito, em todas as coisas de oração e gostos, procurar sair humilde), não voltará muitas vezes o demônio, vendo sua derrota.
11. Por isso, e por muitas outras coisas, eu avisei no primeiro modo de oração, na primeira água, que é grande negócio começar as almas oração começando a desprender-se de todo tipo de alegria e entrar determinadas só a ajudar Cristo a levar a cruz. Como bons cavaleiros que, sem soldo, querem servir a seu rei, pois o têm bem seguro. Os olhos no verdadeiro e eterno reino que pretendemos ganhar. É muito grande coisa trazer isso sempre diante dos olhos. Especialmente no começo, porque, depois, se vê tão claramente, que antes é preciso esquecer para poder viver, do que trazer na memória o pouco que dura tudo e como não é tudo nada e a ninharia que se vai considerar o descanso.
12. Parece que isso é uma coisa muito baixa, e assim é de verdade, que os que estão avançados em mais perfeição tomariam como afronta e entre si se envergonhariam se as pessoas pensassem que deixam os bens deste mundo porque vão acabar. Ao contrário, ainda que durassem para sempre, alegram-se em deixá-los por causa de Deus. E quanto mais perfeitos forem e quanto mais durarem mais se alegram em deixá-los. Aí, nesses, já cresceu o amor e é ele que opera. Mas para os que começam é coisa importantíssima — e não a considerem baixa, pois é grande bem que se ganha — e por isso eu aconselho tanto. Pois será necessário para eles, mesmo nos muito elevados na oração, alguns tempos em que os quer provar Deus e parece que Sua Majestade o deixa. Pois, como já disse — e não quereria que isso fosse esquecido —, nesta vida que vivemos a alma não cresce como o corpo, ainda que digamos que sim, e, de fato, cresça. Mas um menino, depois que cresce e deita um bom corpo e já tem corpo de homem, não volta a decrescer e ter um corpo pequeno. Aí o Senhor quer que sim, pelo que vi por mim, pois não sei por nenhum outro motivo. Deve ser para humilhar-nos, para nosso grande bem e para que não descuidemos enquanto estivermos neste desterro, pois aquele que estiver mais no alto mais deve temer e menos deve confiar em si.
Há vezes em que, para livrar-se de ofender a Deus, mesmo esses cuja vontade já está tão posta na de Deus que, para não fazer uma imperfeição, deixar-se-iam atormentar e passariam por mil mortes, para não cometer pecados — conforme se veem combatidos por tentações e perseguições —, precisam usar das primeiras armas da oração e voltar a pensar que tudo se acaba e que há céu e inferno e outras coisas desse tipo.
13. Voltando, então, ao que dizia, é um grande fundamento, para se livrar dos ardis que arma o demônio, começar com a determinação de levar caminho de cruz desde o princípio e não desejar alegrias, já que o próprio Senhor nos mostrou esse caminho de perfeição dizendo: "Toma tua cruz e segue-me". É o nosso modelo. Não tem o que temer quem, só para agradá-lo, seguir seus conselhos.
14. No aproveitamento que virem em si entenderão que não é o demônio, pois, ainda que voltem a cair, fica um sinal de que esteve aí o Senhor, que é levantar-se depressa, e estas coisas que agora direi. Quando é o espírito de Deus, não é preciso ficar rastreando coisas de onde tirar humildade e embaraço. Porque o próprio Senhor as dá, de maneira bem diferente da que nós podemos ganhar com nossas consideraçõezinhas, que não são nada em comparação com uma verdadeira humildade, com a luz que mostra aí o Senhor, que causa um embaraço que nos faz desfazer. Isto é uma coisa muito conhecida: o conhecimento que Deus dá para que conheçamos que nenhum bem temos por nós mesmos, e quanto maiores as dádivas, mais conhecemos. Dá um grande desejo de ir adiante na oração e não a deixar por nenhum infortúnio que venha a suceder. A tudo se oferece a alma. Uma segurança de que há de salvar-se com humildade e temor. Joga logo fora o temor servil da alma e põe o fiel em um temor muito mais maduro. Vê que começa um amor com Deus muito sem interesse seu. Deseja períodos de solidão para gozar mais daquele bem. Enfim, para não me cansar, é um princípio de todos os bens. Um estar já as flores numa situação que não lhes falta quase nada para brotar. E isso verá muito claramente a alma e de jeito nenhum, então, poderá se convencer de que não esteve Deus com ela, até que volte a se ver com quebras e imperfeições, pois então teme tudo. E é bom que tema, ainda que existam almas para as quais é muito mais proveitoso crer com certeza que é Deus, do que seriam todos os temores que se possam pôr nela. Porque, se for amorosa e agradecida, mais a faz voltar-se para Deus a memória da dádiva que Ele fez, do que todos os castigos do inferno que lhe mostrem. Ao menos à minha, mesmo tão ruim, isso acontecia.
15. Porque os sinais do bom espírito se irão dizendo, mas como a quem muito trabalho custa tirá-los a limpo, não digo agora aqui. Creio, com o favor de Deus, atinarei algo nisso. Porque, à parte a experiência, na qual aprendi muito, sei-o por alguns letrados muito letrados e pessoas muito santas, a quem é razoável dar crédito. E não andem as almas tão desanimadas, quando chegarem aqui pela bondade do Senhor, como andei eu.