CAPÍTULO 19

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA. COMEÇA A EXPLICAR OS EFEITOS QUE PRODUZ NA ALMA ESSE GRAU DE ORAÇÃO. EXORTA MUITO A QUE NÃO VOLTEM ATRÁS, AINDA QUE DEPOIS DESSA DÁDIVA VOLTEM A CAIR, NEM DEIXEM A ORAÇÃO. FALA DOS DANOS QUE VIRÃO POR NÃO SE FAZER ISSO. É PARA TER MUITO EM CONTA E DE GRANDE CONSOLAÇÃO PARA OS FRACOS E PECADORES

1. Fica a alma por essa oração e união com enorme ternura, de modo que quereria se desfazer, não de tristeza, mas sim de lágrimas de regozijo. Acha-se banhada nelas sem sentir nem saber quando nem como as chorou, mas dá-lhe grande deleite ver aplacado aquele ímpeto do fogo com uma água que o faz crescer mais.

Isso parece uma algaravia, mas é assim que se passa. Aconteceu-me algumas vezes no término de oração estar tão fora de mim, que não sabia se era sonho ou se acontecia de verdade a glória que eu havia sentido. E ao ver-me cheia de água que sem tristeza destilava, com tanto ímpeto e presteza que até parecia que aquela nuvem do céu a jogava de si, via que não tinha sido sonho. Isso era no começo, pois passava depressa.

2. Fica a alma tão valente, que, se naquele momento fizessem-na em pedaços por Deus, seria para ela um grande consolo. Aí estão as promessas e decisões heroicas, a vivacidade dos desejos, o começar a abominar o mundo e ver muito claramente sua vaidade. Está muito mais avançada, e altamente, do que nas orações anteriores. E a humildade, muito mais crescida. Porque vê claramente que, para aquela excessiva dádiva, e grandiosa, não houve providência sua, nem tomou parte em trazê-la ou mantê-la. Vê-se claramente indigníssima, porque, em um cômodo em que entra muito sol não há nem teia de aranha escondida. Vê sua miséria. Está tão longe a vanglória que não lhe parece que poderia tê-la, porque salta aos olhos o pouco ou nada que pode. Pois ali quase nem houve consentimento. Parece, sim, que, ainda que não quisesse, se fecharia a porta para todos os sentidos para que pudesse gozar mais do Senhor. Fica sozinha com Ele, que há de fazer senão amá-lo? Não vê nem ouve, a não ser com muito esforço. Há pouco a agradecê-la. Sua vida passada se lhe apresenta, depois, e a grande misericórdia de Deus, com grande verdade e sem haver necessidade de que a inteligência vá à caça, pois ali vê já cozido o que há de comer e entender. Vê por si mesma que merece o inferno e que a castigam com a glória. Desfaz-se em louvores a Deus. E eu quereria me desfazer agora. Bendito sejais, Senhor meu, pois tirais de lodo tão sujo quanto eu água tão clara que serve para vossa mesa! Sede louvado, oh, delícia dos anjos, pois quereis erguer assim um verme tão vil!

3. Permanece algum tempo esse avanço da alma. Já pode, desde que entenda claramente que a fruta não é sua, começar a reparti-la e não faltará para si. Começa a dar sinais de alma que guarda tesouros do céu, e a ter desejo de reparti-los com outros, e suplicar a Deus que não seja só ela a rica. Começa a ser proveitosa para os que estão próximos, quase sem perceber nem fazer nada por si. Eles percebem, porque as flores já têm tão crescido o aroma que os faz desejar aproximar-se delas. Percebem que tem virtudes e veem a fruta que é apetitosa e quereriam ajudá-la a comer.

Se essa terra está muito cavada por trabalhos e perseguições e murmurações e doenças — pois poucos devem chegar a esse ponto sem isso — e se está lavrada graças a ir muito desapegada do interesse próprio, a água a embebe tanto que quase nunca seca. Mas se for terra que ainda está na terra e com tantos espinhos quanto eu estava no começo, e ainda não tirada das ocasiões de pecado, nem tão agradecida como merece uma dádiva tão grande, a terra volta a secar. E se o jardineiro se descuidar e o Senhor não voltar a querer chover só por sua bondade, dê por perdida a horta, pois assim me aconteceu algumas vezes. Porque, com certeza, me espanto e, se não tivesse se passado comigo, não conseguiria acreditar.

Escrevo isso para consolo das almas fracas como a minha. Que nunca desesperem nem deixem de confiar na grandeza de Deus. Ainda que, depois de tão elevadas — como é tê-las levado o Senhor a esse ponto —, caiam, não desanimem, se não quiserem se perder totalmente, pois as lágrimas ganham tudo. Uma água atrai a outra.

4. Uma das coisas graças às quais me animei — sendo eu quem sou — a escrever isso e dar conta da minha vida ruim e das dádivas que me fez o Senhor sem eu o servir, mas sim ofendê-lo, foi essa. Por certo eu queria aqui ter grande autoridade para que acreditassem em mim nisso. Ao Senhor suplico que Sua Majestade a dê a mim.

Digo que não desanime ninguém que tenha começado a ter oração dizendo: "se voltar a ser mau, é pior ir em frente com a prática dela". Eu creio que sim, se deixar a oração e não se emendar do mal. Mas, se não a deixar, acredite que ela o levará a porto de luz.

Nisso me deu grande combate o demônio e passei tanto tempo em achar que era pouca humildade ter oração sendo tão ruim que, como já disse, deixei-a por um ano e meio. Pelo menos um ano, pois do meio eu não me lembro bem. E não teria sido, e não foi, mais do que meter-me eu mesma no inferno, sem ter necessidade de demônios que me fizessem ir. Oh, valha-me Deus, que cegueira tão grande! E como acerta bem o demônio para seu propósito em pesar a mão aqui! O traidor sabe que terá perdido a alma que mantiver a oração com perseverança. E sabe que todas as quedas que a faz dar a ajudam, por bondade de Deus, a dar, depois, um salto maior no que é serviço a Ele. Alguma coisa o demônio perde nisso.

5. Oh meu Jesus! O que é ver uma alma que chegou até aqui caída em um pecado quando Vós, por vossa misericórdia, voltais a lhe dar a mão e a levantais! Como conhece a multidão de vossas grandezas e misericórdias e sua miséria! Aí está o desfazer-se de verdade e conhecer vossas grandezas. Aí o não ousar erguer os olhos. Aí está o levantá-los para saber o que vos deve. Aí se torna devota da Rainha do Céu, para que ela vos aplaque. Aí evoca os santos que caíram depois de Vós os terdes chamado, para que a ajudem. Aí está o parecer amplo tudo o que dais, porque vê que não merece a terra que pisa. O acudir aos Sacramentos. A fé viva que aqui lhe fica por ver a virtude que Deus pôs neles. O louvar-vos, porque deixastes um remédio e unguento tal para nossas chagas, que não as fecha, mas, sim, tira totalmente. Espanta-se por isso. E quem, Senhor de minha alma, não se há de espantar com misericórdia tão grande e dádiva tão crescida a uma traição tão feia e abominável? Não sei como não se me parte o coração quando escrevo isso, porque sou ruim.

6. Com essas lagriminhas que aqui choro, dadas por Vós — água de tão mau poço, no que vem da minha parte —, parece que vos faço o pagamento de tantas traições, sempre fazendo males e tentando desfazer as dádivas que me fizestes. Ponde Vós, Senhor meu, valor nelas. Clareai água tão turva. No mínimo para que não dê a alguém a tentação de julgar — como deu a mim — pensando: por que, Senhor, deixais pessoas muito santas, que sempre vos serviram e por Vós trabalharam? Criadas na vida religiosa e sendo religiosas, não como eu, que não tinha de religiosa mais do que o nome. E se vê claramente que não fazeis a elas as dádivas que fazeis a mim. Bem via eu, meu Bem, que guardais para elas o prêmio para dá-lo de uma vez, e que minha fraqueza tem necessidade disso. Já eles, por serem fortes, vos servem sem prêmio e Vós os tratais como gente esforçada e não interesseira.

7. Mas, com tudo isso, sabeis Vós, Senhor meu, que eu clamava muitas vezes diante de Vós, desculpando as pessoas que murmuravam contra mim, porque me parecia que tinham razão de sobra. Isso já era, Senhor, depois que me seguráveis por vossa bondade para que não vos ofendesse tanto, e eu já estava me desviando de tudo o que me parecia que podia desgostar-vos. Pois fazendo eu isso, começastes, Senhor, a abrir vossos tesouros para vossa serva. Parece que não esperáveis outra coisa, a não ser que houvesse vontade e preparação em mim para receber-vos. Então, rapidamente começastes não só a dá-los, mas também a querer que notassem que dáveis.

8. Percebido isso, começou-se a ter boa opinião sobre aquela que todos ainda não tinham entendido bem quão má era, ainda que muita coisa transparecesse. Começou a murmuração e a perseguição de repente e — na minha opinião — com muito motivo. E assim eu não pegava inimizade com ninguém, antes suplicava a Vós que vísseis como elas tinham razão. Diziam que eu queria me fazer de santa e que inventava novidades. Não tendo chegado, então, nem de longe a cumprir toda a minha regra. Nem chegava perto das muito boas e santas monjas que havia em casa. Nem chegarei, creio, se Deus, por sua bondade, não fizer tudo por sua conta. Mas sim que eu estava lá para tirar o bom e pôr costumes que não o eram. Ao menos, fazia o que podia para pô-los, e no mal podia muito. Assim, sem culpa sua, me culpavam. Não digo que fossem só as monjas, mas também outras pessoas. Descobriam verdades sobre mim porque Vós permitíeis.

9. Uma vez, rezando as horas, no tempo em que, às vezes, tinha essa tentação, cheguei ao verso que diz: "Justus es, Domine, e teus juízos".1 Comecei a pensar que grande verdade era. Porque, nisso, não tinha nunca o demônio força para me tentar, de maneira que eu duvidasse de que Vós tendes, meu Senhor, todos os bens. Nem de nenhuma coisa da fé. Antes me parecia que, quanto mais sem caminho natural eram as coisas da fé, mais firme eu as tinha, e me davam grande devoção. Em ser Todo-poderoso ficavam resumidas para mim todas as grandezas que Vós fizestes. E disso — como disse — jamais tinha dúvidas.

Oh, pensando então como, com justiça, permitíeis a muitas, pois havia — como já disse — muitas que eram muito vossas servas, e que não tinham os presentes e as dádivas que fazíeis a mim, sendo eu quem era, respondestes-me, Senhor: "Serve-me tu a mim, e não te metas nisso". Foi a primeira palavra que vos ouvi dizer-me, e, assim, assustou-me muito.

Porque depois explicarei essa maneira de ouvir, junto com outras coisas. Não falo disso aqui porque é fugir do assunto e creio que já saí muito. Eu quase não sei o que disse. Não tem outro jeito, meu filho, a não ser que o senhor tem que aguentar essas interrupções. Porque, quando vejo o que Deus aguentou de mim, e me vejo neste estado, não é grande coisa que eu perca o tino do que digo e deva dizer. Queira o Senhor que sejam sempre esses meus desatinos e já não permita Sua Majestade que eu tenha poder para ser contra Ele em algum momento, antes me consuma neste em que estou.

10. Já basta, para ver suas grandes misericórdias, que não uma, mas muitas vezes perdoou tanta ingratidão. A são Pedro foi uma, a mim, muitas. E com razão me tentava o demônio a não pretender amizade estreita com Aquele a quem eu tratava tão publicamente com inimizade. Que cegueira tão grande a minha, Senhor! Onde eu pensava, meu Senhor, encontrar remédio senão em Vós? Que disparate fugir da luz para andar sempre tropeçando! Que humildade tão orgulhosa inventava em mim o demônio: afastar-me de estar apoiada na coluna e no báculo que havia de me sustentar, para não sofrer uma queda tão grande! Agora faço o sinal da cruz, e não me parece que tenha corrido perigo tão perigoso como essa invenção que o demônio me ensinava pelo caminho da humildade. Punha-me no pensamento: como uma coisa tão ruim e tendo recebido tantas dádivas, haveria de me aproximar da oração? Que me bastava rezar o que devia, como todas. Que, já que nem isso eu fazia bem, como queria fazer mais? Que era falta de respeito e fazer pouco das dádivas de Deus.

Era bom pensar e entender isso. Mas, pôr isso em prática foi o maior dos males! Bendito sejais Vós, Senhor, que me remediastes assim!

11. Me parece o princípio da tentação que fazia a Judas, só que não ousava o traidor agir tão às claras. Mas ele viria, pouco a pouco, a dar comigo onde deu com ele. Atentem para isso, pelo amor de Deus, todos os que falam de oração. Saibam que, no tempo em que estive sem ela, era muito mais perdida a minha vida. Veja-se que bom remédio me dava o demônio e que graciosa humildade: um desassossego grande em mim. Mas como haveria de sossegar minha alma? Afastava-se a coitada de seu sossego, tinha presentes as dádivas e os favores, via serem asco as alegrias daqui. Como pude passar por isso me espanta.

Era com esperança que eu nunca pensava em deixar de estar decidida a voltar à oração, pelo que me lembro agora, porque isso já deve fazer mais de vinte anos. Mas esperava para estar muito limpa de pecados. Oh, que mal encaminhada ia nessa esperança! Até o dia do juízo me manteria nela o demônio, para dali levar-me ao inferno.

Então, tendo oração e leitura — pois via as verdades e o caminho ruim em que andava — e importunando o Senhor com lágrimas muitas vezes, era tão ruim que não conseguia me valer. Afastada disso, punha-me em passatempos e ocasiões de pecado e poucas ajudas, e, ousarei dizer, nenhuma ajuda a não ser para cair. O que eu esperava, senão aquilo que disse?

12. Creio que tem muito mérito diante de Deus um frade de são Domingos,2 grande letrado, pois ele me despertou desse sono. Ele me fez, como creio que já disse, comungar de quinze em quinze dias. E o mal já não era tanto. Comecei a voltar a mim, ainda que não deixasse de fazer ofensas ao Senhor. Mas, como não havia perdido o caminho, ainda que pouco a pouco, caindo e levantando, ia por ele. E aquele que não deixa de andar e ir em frente, ainda que demore, chega. Parece-me que perder o caminho não é outra coisa que deixar a oração. Deus nos livre, por quem Ele é!

13. Fica aqui entendido — e repare bem pelo amor de Deus — que, ainda que Deus chegue a fazer tão grandes dádivas a uma alma, não confie ela em si, pois pode cair, nem se ponha em ocasião de pecado de maneira nenhuma.

Observe-se muito, pois é muito importante. O engano que pode fazer o demônio aí, depois, ainda que a dádiva seja certamente de Deus, é aproveitar-se o traidor da própria dádiva, como puder, e de pessoas não maduras na virtude, nem mortificadas, nem desapegadas. Porque nisso não ficam fortalecidas o quanto baste, como direi mais adiante, para se pôr em ocasiões e perigos, por grandes que sejam os desejos e a determinação que tenham.

14. É uma excelente doutrina essa, e não minha, mas ensinada por Deus. E, assim, quereria que pessoas ignorantes como eu a soubessem. Porque, ainda que esteja uma alma nesse estado, não deve confiar em si para sair em combate, porque já fará bastante em defender-se. Aí são necessárias armas para defender-se dos demônios. E a alma ainda não tem forças para lutar contra eles e pô-los debaixo dos pés, como fazem os que estão no estado de que falarei depois.

Esse é o engano com que o demônio pega, pois, quando se vê uma alma tão próxima de Deus, e vê a diferença que há entre o bem do céu e o da terra, e o amor que mostra o Senhor, desse amor nasce a confiança e segurança de não cair do estado de que goza. Parece-lhe que vê claramente o prêmio, que já não é possível deixar coisa que mesmo na vida é tão deleitosa e suave em troca de coisa tão baixa e suja como é o deleite. E com essa confiança tira o demônio a pouca que deve ter em si. E, como disse, põe-se nos perigos e começa, com zelo, a dar sem medida da fruta, crendo que não há o que temer por si. E isso não é com soberba, pois a alma entende bem que nada pode por si mesma, mas sim por muita confiança em Deus, porém sem discernimento, porque não vê que ainda tem só penugem. Pode sair do ninho, e Deus a tira dele, mas ainda não está pronta para voar, porque as virtudes ainda não estão fortes, nem tem a experiência para conhecer os perigos, nem sabe o dano que causa confiar em si.

15. Isso foi o que me destruiu. E para isso e para tudo há necessidade de mestre e conversa com pessoas espirituais. Bem creio que a alma que Deus faz chegar a esse estado, se não abandonar Sua Majestade muito totalmente, não deixará Ele de favorecer e não a deixará se perder. Mas quando cair, como disse, veja, veja pelo amor do Senhor, que não a enganem a deixar a oração, como faziam a mim com humildade falsa, como já disse e muitas vezes quereria dizer. Confie na bondade de Deus, que é muito maior do que todos os males que podemos fazer, e não se lembra de nossa ingratidão quando nós, reconhecendo-nos, queremos voltar à sua amizade, nem das dádivas que nos fez para castigar-nos por elas. Antes ajudam-no a nos perdoar mais depressa, como pessoas que já eram de sua casa e comeram, como se diz, de seu pão. Lembrem-se de suas palavras e vejam o que fez comigo, que me cansei de ofendê-lo antes que Sua Majestade deixasse de me perdoar. Nunca se cansa de dar, nem se podem esgotar suas misericórdias. Não nos cansemos nós de receber. Seja bendito para sempre, amém, e louvem-no todas as coisas.