CAPÍTULO 20
EM QUE TRATA DA DIFERENÇA QUE HÁ ENTRE UNIÃO E ARREBATAMENTO. EXPLICA QUE COISA É ARREBATAMENTO E DIZ ALGO SOBRE O BEM QUE TEM A ALMA QUE O SENHOR, POR SUA BONDADE, APROXIMA DELE. DIZ OS EFEITOS QUE PRODUZ. É ADMIRÁVEL
1. Quereria saber explicar, com o favor de Deus, a diferença que há entre união e arrebatamento ou elevação ou voo de espírito ou arroubo, pois é tudo uma coisa só. Digo, esses nomes diferentes todos são uma coisa só e também se chama êxtase. É grande a vantagem que leva sobre a união. Causa efeitos muito maiores e outras muitas operações. Porque a união parece no princípio, no meio e no fim ser no interior. E é. Mas, assim como esses outros fins são em mais alto grau, produzem os efeitos interior e exteriormente. Explique-o o Senhor, como fez com o resto, pois, com certeza, se Sua Majestade não me tivesse dado a entender por que meios e maneiras se pode dizer algo, eu não teria sabido.
2. Consideremos agora que esta última água é tão copiosa que, se não fosse por não o consentir a terra, poderíamos acreditar que está conosco essa nuvem da grande Majestade por aqui na terra. Mas quando agradecemos esse grande bem, valendo-nos de obras segundo nossas forças, colhe o Senhor a alma, digamos agora, da mesma maneira que as nuvens colhem os vapores da terra, e ergue-a toda daí. Ouvi dizer isso assim, que as nuvens colhem os vapores, ou o sol.1 E sobe a nuvem ao céu e leva-a consigo e começa a mostrar-lhe coisas do reino que preparou para ela. Não sei se a comparação se encaixa, mas o fato é assim, de verdade.
3. Nesses arrebatamentos parece que a alma não anima o corpo e assim se sente muito faltar o calor natural dele. Vai esfriando, ainda que com enorme suavidade e deleite.
Aí não adianta nada resistir. Já na união, como estamos na nossa terra, há meios. Ainda que com sacrifício e força, pode-se quase sempre resistir. Nesses arrebatamentos, na maior parte das vezes, não há meio algum. Antes, muitas vezes sem o pensamento prevenir, nem ser de nenhuma ajuda, vem um ímpeto tão acelerado e forte que você2 vê e sente levantar-se essa nuvem ou essa águia poderosa e colher você com suas asas.
4. E digo que você compreende e se vê levar e não sabe para onde. Porque ainda que seja com deleite, a fraqueza de nossa natureza faz ter medo no começo. E é necessária uma alma determinada e valorosa — muito mais do que para o que já foi dito — para arriscar tudo, venha o que vier, e deixar-se nas mãos de Deus e ir aonde nos levarem de bom grado. Porque levam, ainda que apesar de você. E é tão extremo que muitas, muitas vezes eu quereria resistir. E ponho todas as minhas forças, em especial algumas vezes em que ocorre em público, e, outras muitas, em segredo, temendo ser enganada. Algumas vezes conseguia algo, com grande exaustão, como quem lutasse com um gigante forte. Ficava depois cansada. Outras vezes era impossível, levava-me a alma e, quase corriqueiramente, até a cabeça depois dela, sem que eu pudesse segurá-la e algumas vezes o corpo todo, até levantá-lo.
5. Isso foi poucas vezes. Porque como uma vez foi onde estávamos juntas no coro e prestes a comungar, estando de joelhos, dava-me enorme aflição, porque me parecia uma coisa muito extraordinária e que logo haveria muito comentário. Assim, mandei às monjas, porque isso foi agora depois que tenho ofício de priora, que nada dissessem. Outras vezes, quando começava a ver que o Senhor ia fazer o mesmo, e uma vez foi estando senhoras importantes, pois era a festa da Vocação,3 durante um sermão, largava-me no chão e aproximavam-se para segurar meu corpo e mesmo assim dava para ver. Supliquei muito ao Senhor que não me quisesse mais dar dádivas que tivessem sinais exteriores, porque eu já estava cansada de que se reparasse tanto em mim e que aquela dádiva podia Sua Majestade fazer sem que se percebesse. Parece que, por sua bondade, houve por bem ouvir-me, pois nunca mais, até agora, tive isso. É verdade que faz pouco tempo.
6. Assim, parecia-me, quando queria resistir, que de debaixo dos pés me levantavam forças tão grandes que não sei com que comparar. Pois era com muito mais ímpeto do que essas outras coisas de espírito e, assim, ficava em pedaços. Porque é uma luta grande e, no fim, adianta pouco, quando o Senhor quer, pois não há poder contra seu poder. Outras vezes ele decide se contentar com que vejamos que quer fazer a dádiva e que não é por causa de Sua Majestade que ela falta. E resistindo-se por humildade, deixa os mesmos efeitos que deixaria se se consentisse de todo.
7. Para aqueles a quem faz isso, são grandes esses efeitos. Primeiro, mostram o grande poder do Senhor e como não tomamos parte, quando Sua Majestade quer, em controlar tanto o corpo quanto a alma, nem somos senhores deles. Antes vemos que — ainda que nos pese — há um superior e que essas dádivas são dadas por Ele e que nós não podemos nada em nada, e imprime-se muita humildade. E eu até confesso que me deu muito medo. No começo, enorme. Porque ver levantar-se assim um corpo da terra! Pois, ainda que o espírito o leve atrás de si e seja com grande suavidade, se não se resistir, não se perdem os sentidos. Ao menos eu ficava em mim, de maneira que podia perceber que era levada. Mostra-se uma majestade de quem pode fazer aquilo que arrepia os cabelos. E fica um grande temor de ofender a um tão grande Deus. Isso envolto em enorme amor, que se toma de novo a quem vemos ter um amor tão grande por um verme tão podre, pois não parece que se contenta em levar tão de verdade a alma para si, mas quer o corpo, mesmo sendo tão mortal e de terra tão suja por tantas ofensas que se fizeram.
8. Também deixa um desapego estranho que eu não conseguirei dizer como é. Parece-me que posso dizer que é diferente de alguma maneira — digo, é maior do que essas outras coisas só de espírito. Porque, ainda que nelas esteja-se, quanto ao espírito, com todo o desapego das coisas, aqui parece querer o Senhor que o próprio corpo participe. E faz-se uma estranheza nova para com as coisas da terra. Fica muito mais penosa a vida.
Depois dá uma dor que nem podemos buscar por nós mesmos, nem, uma vez vinda, se pode tirar. Quisera muito explicar essa grande dor e creio que não conseguirei, mas direi algo, se souber.
9. Note-se que essas coisas são de agora, muito posteriores, depois de todas as visões e revelações sobre as quais escreverei. E depois do tempo que eu costumava ter oração, quando o Senhor me dava tão grandes prazeres e presentes.
Agora, já que isso não cessa, às vezes, na maior parte delas, o mais comum é essa dor sobre a qual falarei. Pode ser maior ou menor. De quando é maior, quero falar agora. Porque, ainda que mais adiante eu vá falar desses grandes ímpetos que me dava quando o Senhor quis me dar os arrebatamentos, eles não têm mais a ver do que uma coisa muito corporal tem a ver com uma muito espiritual, e creio que não exagero. Porque aquela dor parece, ainda que a alma a sinta, ser em companhia do corpo. Ambos participam dela, parece, e não é com um desamparo tão extremo quanto nesta, para a qual — como disse — não contribuímos. Antes, muitas vezes vem fora de hora um desejo que eu não sei como se move. E desse desejo, que penetra a alma toda em um instante, começa a se cansar tanto, que sobe muito acima de si e de tudo o que foi criado. E Deus a põe como em um deserto, tão afastada de todas as coisas que, por muito que ela se esforce, não lhe parece que haja na terra nenhuma que a acompanhe. Nem ela quereria que acompanhasse, mas gostaria, isso sim, de morrer naquela solidão. Que falem com ela e ela queira fazer toda a força possível para falar, adianta pouco, pois seu espírito, por mais que ela faça, não se retira daquela solidão. E, ao mesmo tempo que parece que Deus está longíssimo, às vezes comunica suas grandezas pelo modo mais estranho que se possa pensar. E, assim, não se sabe dizer. Nem acredito que acreditará, nem entenderá, a não ser aquele que tiver passado por isso. Porque não é a comunicação para consolar, mas sim para mostrar a razão que tem de se cansar de estar ausente de bem que em si tem todos os bens.
10. Com essa comunicação cresce o desejo e o extremo de solidão em que se vê. Com uma dor tão aguda e penetrante que, ainda a alma posta naquele deserto, ao pé da letra se pode dizer então (e talvez o tenha dito o real Profeta4 estando na mesma solidão. Só que, como se tratava de um santo, Deus lhe daria sentir de maneira mais excessiva): "Vigilavi ed fatus sun sicud passer solitarius yn tecto".5 E assim me lembro desse verso, então, que parece que eu o vejo em mim. E consola-me ver que outras pessoas sentiram um tão grande extremo de solidão, ainda mais pessoas tais. Assim, parece que a alma está não em si, mas no teto ou no telhado de si mesma e de todas as coisas criadas. Porque até acima da parte mais superior da alma me parece que está.
11. Outras vezes parece que a alma anda como se necessitadíssima, dizendo e perguntando a si mesma: "Onde está teu Deus?".6 Veja-se que a tradução desses versos eu não sabia bem qual era. E depois que compreendi, consolei-me de que o Senhor os tivesse trazido à minha memória sem que eu os procurasse. Outras vezes me lembrava do que diz São Paulo, que está crucificado para o mundo.7 Não digo eu que isso seja assim, que eu já veja isso. Mas parece-me que a alma fica assim, pois nem lhe vem o consolo do céu e nem está nele. Nem quer que venha da terra e nem está nela. Mas, sim, como crucificada entre o céu e a terra, padecendo sem vir a ela socorro de nenhum lado. Porque o que vem do céu, que é, como já disse, uma notícia de Deus, tão admirável, muito acima de tudo o que podemos desejar, é para maior tormento. Porque aumenta o desejo de modo que — ao que me parece — a grande dor tira os sentidos, embora fique pouco tempo sem eles. Parecem trânsitos da morte, salvo que esse padecer traz consigo uma alegria tão grande que eu não sei com que compará-la. É um duro martírio saboroso. Então, de tudo o que a alma possa imaginar da terra, ainda que seja o que costuma ser a coisa mais saborosa, nada admite, logo, parece, joga para longe de si. Bem sabe que não quer senão a seu Deus, mas não ama nada em particular d'Ele, mas todo inteiro o quer, e não sabe o que quer. Digo "não sabe" porque a imaginação não representa nada. Nem, ao que me parece, durante muito tempo que está assim, operam as potências. Assim como na união e no arrebatamento é o gozo, aqui é a dor que as suspende.
12. Oh, Jesus, quem poderia explicar isso bem ao senhor, até para que o senhor me dissesse o que é, porque é nisso que agora anda sempre a minha alma! O mais comum é que, vendo-se desocupada, seja posta nessas ânsias de morte. E tem medo quando vê que começam, porque não vai morrer. Mas, quando chega a isso, o tempo que tivesse que viver quereria viver nesse padecer, ainda que seja tão excessivo que quem está sujeito a ele mal o consegue levar. E, assim, algumas vezes perco o pulso quase, segundo dizem as pessoas que às vezes se aproximam de mim, dentre as irmãs que entendem já um pouco mais sobre isso. E os membros muito abertos e as mãos tão rígidas, que eu não consigo às vezes juntá-las, e assim me ficam dores até o dia seguinte nos pulsos e no corpo e me parece que me desconjuntaram.
13. Eu bem que penso alguma vez o Senhor há de haver por bem, se continua como agora, acabar de acabar a vida, pois — ao que me parece — é suficiente para isso uma tão grande dor, apenas não o mereço eu. Toda a ânsia é de morrer, então. Nem me lembro do purgatório, nem dos pecados que cometi, pelos quais mereceria o inferno. Esqueço-me de tudo naquela ânsia de ver a Deus e aquele deserto e solidão parecem melhores do que toda a companhia do mundo. Se alguma coisa pudesse dar consolo, seria conversar com quem tivesse passado por esse tormento. E ver que, ainda que se queixe dele, ninguém, parece, vai acreditar nela!
14. Também a atormenta ser tão crescida essa dor, que não quereria solidão, como nas outras, nem companhia, mas sim alguém com quem se pudesse queixar. É como alguém que está com a corda no pescoço e está sufocando, que procura tomar fôlego. Assim me parece que esse desejo de companhia é nossa fraqueza, pois, como a dor nos põe em perigo de morte (o que, sim, ela faz. Eu me vi nesse perigo algumas vezes com grandes doenças e ocasiões — como já contei — e creio que poderia dizer que este é tão grande como os outros), assim o desejo que a alma e o corpo têm de não se separar é o que pede socorro para tomar fôlego. E falando, queixando-se e divertindo-se, busca remédio para viver. Muito contra a vontade do espírito, que não quereria sair dessa dor.
15. Não sei se atino com o que digo, ou se sei dizer. Mas, com toda minha convicção, é assim que acontece. Veja o senhor que descanso se pode ter nessa vida. O que eu tinha — que era a oração e a solidão, porque ali me consolava o Senhor — é já, mais frequentemente, esse tormento. E é tão saboroso e a alma vê que é de preço tão alto que já o quer mais do que a todos os presentes que costumava ter. Parece-lhe mais seguro, porque é caminho de cruz. E tem em si um prazer de muito valor, porque não reparte com o corpo a não ser a dor. A alma é que padece e regozija-se sozinha com o gozo e a alegria que dá esse padecer. Eu não sei como pode ser isso, mas assim se passa, pois, parece-me, não trocaria essa dádiva que o Senhor me faz (que é bem de sua mão — como já disse — e nada adquirido por mim, porque é muito, muito sobrenatural) por todas as que depois direi. Não digo juntas, mas sim tomadas cada uma por si.
E não deixe de se lembrar que isso é agora, depois de tudo o que vai escrito neste livro, e no que me mantém o Senhor agora. Digo que esses ímpetos foram depois das dádivas que aqui vão ditas, que o Senhor me fez.
16. Estando eu, no início, com medo, como me acontece quase em cada dádiva que me faz o Senhor, até que, indo adiante, Sua Majestade me reassegura, disse-me que não tivesse medo. E que tivesse em conta mais essa dádiva do que todas as que me havia feito, pois nessa dor se purificava a alma. E se lavra ou purifica como o ouro no crisol, para poder pôr melhor os esmaltes de seus dons, e que se purgava ali o que deveria estar no purgatório. Eu percebia bem que era uma grande dádiva, mas fiquei com muito mais segurança, e meu confessor me diz que é bom. E ainda que tenha tido medo, por eu ser tão ruim, nunca pude acreditar que era mau. Antes, o bem tão superabundante me fazia ter medo, lembrando-me de quão mal eu o tinha merecido. Bendito seja o Senhor, que é tão bom!
17. Parece que saí do assunto, porque comecei a falar de arrebatamentos e isso de que falei é ainda mais do que arrebatamento e, assim, deixa os efeitos que eu disse.
18. Agora voltemos ao arrebatamento, sobre o que nele é mais comum. Digo que muitas vezes me parecia que deixava o meu corpo tão leve que todo o peso dele tirava, e às vezes era tanto que eu quase não percebia estar pondo os pés na terra.
Então, quando está no arrebatamento, o corpo fica como morto, sem poder nada por si mesmo, muitas vezes, e do jeito que o toma, fica: se em pé, se sentado, se as mãos abertas, se fechadas. Porque, ainda que poucas vezes, se perdem os sentidos, algumas vezes me aconteceu perdê-los totalmente. São poucas e por pouco tempo. Mas o normal é se turbar. E ainda que não consiga fazer nada sozinha quanto ao exterior, não deixa de perceber e ouvir como se fosse uma coisa de longe. Não digo que perceba e ouça quando está no alto do arrebatamento (digo alto, sobre os tempos que se perdem as potências porque estão muito unidas com Deus), pois então não vê, nem ouve, nem sente, ao que me parece. Mas, como disse na oração de união anterior, essa transformação da alma totalmente em Deus dura pouco. Mas isso que dura, nenhuma potência se sente nem sabe o que se passa ali. Não deve ser possível entender enquanto vivemos na terra. Ao menos não o quer Deus, pois não devemos ser capazes disso. Isso eu vi por mim mesma.
19. O senhor me perguntará como dura, às vezes, tantas horas o arrebatamento, e muitas vezes. O que acontece comigo é que — como já disse sobre a oração anterior — experimenta-se o gozo com intervalos. Muitas vezes a alma mergulha ou, para dizer melhor, mergulha-a o Senhor em si e, mantendo-a assim um pouco, só a vontade permanece. Parece-me que o bulício das duas outras potências é como o que tem a linguazinha desses relógios de sol, que nunca para. Mas, quando quer, o Sol de Justiça as faz deterem-se. Digo que isso é por pouco tempo. Mas como foi grande o ímpeto e o levantamento do espírito, e ainda que essas potências voltem a bulir, a vontade fica mergulhada. E faz, como senhora do conjunto, aquela operação no corpo para que, já que as outras duas potências buliçosas querem estorvar, não a estorvem também os sentidos, que, dos inimigos, são os menores. E na maior parte do tempo ficam fechados os olhos, ainda que não queiramos fechá-los, e se ficam abertos alguma vez — como já disse —, não atinam nem discernem o que veem.
20. Aqui é muito menos o que pode fazer por si, para que quando voltarem a se juntar as potências não haja tanto o que fazer. Por isso, aquele a quem o Senhor der isso não se desconsole quando vê o corpo atado assim por muitas horas, e às vezes a inteligência e a memória desviadas. É verdade que o mais comum é elas estarem embebidas em louvores de Deus ou em querer compreender e entender o que aconteceu com elas. E mesmo para isso não estão bem acordadas, mas sim como uma pessoa que dormiu e sonhou muito e ainda não acabou de despertar.
21. Explico-me tanto em relação a isso, porque sei que há agora — até neste lugar8 — pessoas a quem o Senhor faz essas dádivas. E se os que as governam não passaram por isso, talvez lhes pareça que elas devem estar como mortas no arrebatamento, em especial se não forem letrados, dá pena o que se sofre com os confessores que não entendem, como direi depois.
Talvez eu não saiba o que digo. O senhor entenderá, se atino em alguma coisa, pois o Senhor já lhe deu experiência disso, ainda que, como não é de muito tempo, talvez o senhor não a tenha considerado tanto quanto eu. Assim, ainda que eu tente muito, por longos períodos não há força no corpo para poder se mexer. A alma levou todas consigo.
Muitas vezes fica são — ele que estava bem enfermo e cheio de grandes dores — e com mais habilidade, porque é uma coisa grande o que ali se dá. E o Senhor quer algumas vezes — como digo — que o corpo aproveite, pois já obedece ao que quer a alma. Depois que volta a si, se tiver sido grande o arrebatamento, acontece de andar um dia ou dois, e até três, tão absortas as potências ou tão abobadas, que não parece que está em si.
22. Aí vem o tormento de ter que voltar a viver. Aí nasceram as asas para voar bem. Já caiu a penugem. Aí já se levanta totalmente a bandeira de Cristo, pois não parece outra coisa senão que o alcaide dessa fortaleza sobe, ou o elevam, à torre mais alta, para hastear a bandeira por Deus. Olha para os de baixo como quem está a salvo. Já não teme os perigos, antes os deseja, como quem, de certa maneira, tem ali segurança da vitória. Vê-se aí muito claramente o pouco que se deve estimar tudo o que é daqui e o nada que é. Quem está no alto enxerga muitas coisas. Já não quer querer, nem quereria ter livre-arbítrio e isso pede ao Senhor. Dá a Ele as chaves da sua vontade.
Eis aí o jardineiro feito alcaide. Não quer fazer outra coisa a não ser a vontade do Senhor. Nem quer ser senhor de si, nem de nada, nem de uma uva desse jardim, mas sim que, se houver nele algo de bom, que Sua Majestade reparta. Pois desse ponto em diante não quer coisa própria, mas sim que se faça tudo conforme a glória e a vontade d'Ele.
23. De fato, passa-se assim tudo isso, de verdade, se os arrebatamentos forem verdadeiros, pois a alma fica com os efeitos e os proveitos que foram ditos. E se não forem esses, eu duvidaria que é da parte de Deus. Antes teria medo de que fossem os desvarios de que fala são Vicente.9 Isso eu sei e vi por experiência: ficar a alma totalmente senhora de si e com liberdade em uma hora ou menos, a ponto de não conseguir se reconhecer. Bem vê que não é por si mesma, nem sabe como lhe foi dado tão grande bem, mas percebe claramente o enorme proveito que cada arroubo desses lhe traz.
Não há quem acredite, se não tiver passado por isso. E assim não acreditam na pobre alma, como a viram tão ruim, tão depressa pretender coisas tão valorosas. Porque logo ela dá para não se contentar em servir pouco ao Senhor, mas sim no máximo que puder. Pensam que é tentação e disparate. Se entendessem que não nasce dela, mas do Senhor a quem já deu as chaves de sua vontade, não se espantariam.
24. Tenho para mim que uma alma que chega a esse estado já não fala nem faz nada por si mesma, mas, de tudo o que tem que fazer, cuida esse soberano Rei. Oh, valha-me Deus, pois se vê claramente aqui a explicação do verso e como se entende que tinham razão e a terão todos em pedir asas de pomba!10 Entende-se claramente que é voo, o que dá o espírito para erguer-se acima de todas as coisas criadas. E de si mesmo em primeiro lugar. Mas é voo suave, é voo deleitoso, voo sem ruído.
25. Que soberania tem uma alma que o Senhor faz chegar até aqui, pois vê tudo sem estar enredada! Como está longe do tempo em que esteve enredada! Como está espantada de sua cegueira! Como está penalizada daqueles que estão nela, especialmente se for gente de oração a quem Deus já presenteia! Quereria gritar para mostrar como estão enganados. E até faz assim, às vezes, e chovem mil perseguições em sua cabeça. Consideram-na pouco humilde, e acham que quer ensinar às pessoas de quem deveria aprender, especialmente se for mulher. Aí vem a condenação — e com razão —, porque não sabem o ímpeto que a move, pois às vezes não pode se conter, e não aguenta não tirar do engano aqueles a quem quer bem e deseja ver soltos da prisão — pois não lhe parece ser menos do que isso — dessa vida em que ela esteve.
26. Desanima-se do tempo em que prestou atenção em questões de honra e do engano que cometia em acreditar que era honra o que o mundo chama de honra. Vê que é uma enorme mentira, que todos estamos nela. Entende que a verdadeira honra não é mentirosa, mas verdadeira, tendo como alguma coisa o que é alguma coisa, e o que não é nada, como nada. Pois é tudo nada e menos do que nada o que se acaba e não alegra a Deus.
27. Ri-se de si mesma, do tempo em que tinha em alguma conta o dinheiro e a cobiça dele, ainda que, disso, acredito que nunca — e assim é, de verdade — confessei ser culpada. Grande culpa era considerar o dinheiro alguma coisa. Se com ele se pudesse comprar o bem que agora vejo em mim, teria em alta conta o dinheiro. Mas vê que, esse bem, ganha-se abandonando tudo. O que é que se compra com o dinheiro que desejamos? É coisa cara? É coisa durável? Ou, para que a queremos? Um pesado sossego se busca, pois nos custa tão caro. Muitas vezes se busca com ele o inferno, e compra-se fogo eterno e castigo sem fim. Oh, se todos dessem para considerar o dinheiro como terra sem proveito, como o mundo ficaria em harmonia, como ficaria sem tribulações! Com que amizade todos se tratariam, se não houvesse interesse de honras e dinheiro. Tenho para mim que tudo se remediaria.
28. Vê a grande cegueira dos prazeres, e como compra trabalhos com eles, mesmo para esta vida, e desassossego. Que inquietação! Quão pouca alegria! Quanto trabalho em vão!
Aqui não vê apenas as teias de aranha de sua alma e os pecados grandes, mas um pozinho que haja, por pouco que seja, porque o sol está muito claro. E assim, por muito que trabalhe uma alma para se aperfeiçoar, se esse Sol a toma de verdade, vê-se toda muito turva. É como a água que está num copo, pois se o sol não bater, fica muito límpida, mas, se bater, vê-se que está toda cheia de sujeira.
Essa comparação é ao pé da letra. Antes de estar a alma nesse êxtase, parece que tem cuidado em não ofender a Deus e que, segundo suas forças, faz o que pode. Mas, tendo chegado aqui, onde bate esse Sol de Justiça que a faz abrir os olhos, vê tantas manchas que quereria voltar a fechá-los. Porque ainda não é tão filha dessa águia poderosa para que possa olhar esse Sol cara a cara. Mas, por pouco que tenha os olhos abertos, vê-se toda turva. Lembra-se do verso que diz: "Quem será justo diante de Ti?".11
Quando olha esse divino Sol, ofusca-lhe a claridade. Quando olha para si, o barro tapa seus olhos: cega está essa pombinha. Assim, acontece muitas e muitas vezes de ficar cega assim, totalmente, absorta, desvanecida por tantas grandezas que vê. Aí ganha-se a verdadeira humildade, para não se importar nem um pouco em falar bem de si ou que falem os outros. O Senhor reparte a fruta do jardim e não ela, e assim não pega nada em suas mãos. Todo o bem que tem dirige-se a Deus. Se diz algo por si, é para glória d'Ele. Sabe que ela não tem nada ali, e ainda que quisesse não poderia ignorar isso. Porque vê com os próprios olhos que, ainda que lhe pese, faz com que se fechem para as coisas do mundo e se mantenham abertos para entender verdades.