CAPÍTULO 30

VOLTA A CONTAR O RELATO DE SUA VIDA E COMO REMEDIOU O SENHOR MUITO DE SEUS TORMENTOS LEVANDO-A AO LUGAR ONDE ESTAVA O SANTO HOMEM FREI PEDRO DE ALCÂNTARA, DA ORDEM DO GLORIOSO SÃO FRANCISCO. TRATA DE GRANDES TENTAÇÕES E TRABALHOS INTERIORES QUE PASSAVA ÀS VEZES

1. Então, vendo eu o pouco ou nada que podia fazer para não ter esses ímpetos tão grandes, também tinha medo de tê-los. Porque dor e alegria eu não conseguia entender como podiam estar juntos. Dor corporal e alegria espiritual eu já sabia que era bem possível. Mas tão excessiva dor espiritual e com tão enorme prazer, isso me desatinava. Também não parava de tentar resistir, mas conseguia tão pouco que às vezes me cansava. Amparava-me na cruz e queria me defender daquele que com ela nos amparou a todos. Via que ninguém me entendia, e que eu entendia isso muito claramente. Mas não ousava dizer a não ser ao meu confessor, porque isso teria sido dizer bem de verdade que não tinha humildade.

2. Quis o Senhor remediar grande parte de meu tormento — e, na época, todo — trazendo a esse lugar o bendito frei Pedro de Alcântara, de quem já fiz menção e contei algo sobre sua penitência, pois, entre outras coisas, certificaram-me que ele tinha levado durante cinco anos seguidos um silício de folha de lata. É autor de uns livros pequenos de oração de que agora se fala muito, em espanhol, porque, como alguém que a tinha praticado bem, escreveu muito proveitosamente para os que têm oração. Observou a primeira regra do bem-aventurado são Francisco com todo o rigor e as outras coisas que foram ditas ali.

3. Então, quando a viúva serva de Deus, de que falei, e minha amiga,1 soube que estava ali um tão grande homem, e sabia da minha necessidade, porque era testemunha das minhas aflições e me consolava muito. Porque era tão grande sua fé que não podia acreditar que não era espírito de Deus o que todos os demais diziam que era o demônio. E como é uma pessoa de muito grande inteligência e de muita discrição, e a quem o Senhor fazia muitas dádivas na oração, quis Sua Majestade dar-lhe luz naquilo que os letrados ignoravam. Meus confessores me davam licença para que desabafasse com ela algumas coisas, porque por muitas razões tinha a ver com ela. Referia-se a ela parte das dádivas que o Senhor me fazia com avisos muito proveitosos para sua alma.

4. Assim que soube, para que pudesse conversar melhor com ele, sem me dizer nada, obteve licença da minha provincial para que eu ficasse oito dias em sua casa, e nela e em algumas igrejas, falei com ele muitas vezes, nessa primeira vez que esteve aqui, porque depois, em diversas ocasiões, comuniquei a ele muitas coisas. Quando prestei contas, em resumo, da minha vida e maneira de agir na oração com a maior clareza que soube usar, pois isso tive sempre: falar com toda a clareza e verdade com aqueles a quem abro minha alma; até os primeiros movimentos queria que fossem conhecidos dele. E as coisas mais duvidosas e suspeitas eu alegava com argumentos contra mim. Assim, sem duplicidade e disfarce, falei-lhe de minha alma.

Quase desde o começo vi que me entendia por experiência, que era tudo o que era necessário. Porque então eu não sabia me compreender como agora para saber dizer, pois depois me deu Deus que saiba entender e falar das dádivas que Sua Majestade me faz. E era necessário que tivesse passado por isso quem me houvesse de entender totalmente e explicar o que era. Ele me deu enorme luz, porque, ao menos nas visões que não eram imaginárias, eu não conseguia entender o que poderia ser aquilo. E parecia-me que as que via com os olhos da alma tampouco eu entendia como podia ser, pois — como já disse — só das que se veem com os olhos corporais me parecia que se devia fazer caso, e essas eu não tinha.

5. Esse santo homem me deu luz em tudo e me explicou, e disse que eu não tivesse tristeza, mas que louvasse a Deus e estivesse tão certa que era espírito d'Ele, que, a não ser as verdades de fé, não poderia haver coisa mais verdadeira nem em que eu pudesse acreditar tanto. E ele se consolava muito comigo e fazia-me todo favor e dádiva. E sempre, depois, teve-me em alta conta e contava-me de suas coisas e atividades. E como me via com os desejos daquilo que ele já possuía por obra — pois Deus me dava esses desejos muito decididos — e me via com tanto ânimo, alegrava-se de conversar comigo. Porque para aqueles a quem o Senhor leva a esse estado não há prazer nem consolo que se iguale a topar com quem lhe parece que deu o Senhor um começo disso. Porque então eu não devia ter muito mais do que isso, ao que me parece, e queira Deus que eu tenha agora.

6. Teve enorme pena de mim. Disse que um dos maiores tormentos da terra era o que eu havia sofrido, que é a contradição dos bons. E que ainda me restava muito dele, porque eu sempre tinha necessidade, mas não havia nessa cidade quem me entendesse. Disse que falaria com o que ouvia minha confissão e a um dos que me causavam mais tormentos, que era esse cavalheiro casado de que já falei. Porque, como era quem tinha por mim maior bem-querer, movia-me toda a guerra. E é uma alma temerosa e santa, e como tinha me visto tão pouco tempo antes tão ruim, não conseguia sentir-se seguro.

E assim fez o santo homem, que falou com ambos. E deu as causas e as razões para que se assegurassem e não me inquietassem mais. O confessor tinha pouca necessidade. O cavalheiro, muita, pois ainda não bastou completamente, mas ajudou para que ele não me amedrontasse tanto.

7. Ficamos acertados que eu escreveria para ele sobre o que mais me acontecesse dali para a frente e de encomendar-nos muito a Deus, pois era tanta sua humildade que ele tinha em alguma conta as orações desta miserável, pelo que era grande meu embaraço.

Deixou-me com enorme consolo e alegria. E com a recomendação de que mantivesse a oração com segurança e não duvidasse de que era Deus. E, daquilo que eu tivesse alguma dúvida e para maior segurança, de tudo prestasse conta a meu confessor e, com isso, vivesse segura.

Mas tampouco conseguia ter essa segurança completamente, porque me levava o Senhor por um caminho de dar medo, como era o de crer que era demônio quando me diziam que era. Assim, nem medo nem segurança ninguém conseguia que eu tivesse de maneira a que eu pudesse dar mais crédito do que ao que o Senhor punha em minha alma. Assim, ainda que tenha me consolado e tranquilizado, não lhe dei tanto crédito para ficar totalmente sem medo. Especialmente quando o Senhor me deixava nos tormentos da alma de que agora falarei. Contudo fiquei — como disse — muito consolada. Não me fartava de dar graças a Deus e ao meu glorioso pai são José, pois me pareceu que ele o tinha trazido, porque frei Pedro de Alcântara era comissário-geral da Custódia de São José, santo a quem eu muito me encomendava, e a Nossa Senhora.

8. Acontecia-me às vezes — e até agora me acontece, ainda que não tantas vezes — ficar com enormes tormentos da alma junto com tormentos e dores no corpo, de males tão duros que eu não podia me conter.

Outras vezes tinha males corporais mais graves e, como não tinha os da alma, passava-os com muita alegria. Mas quando era tudo junto, era um tormento tão grande que me angustiava muito. De todas as dádivas que me havia feito o Senhor eu me esquecia. Só ficava uma memória, como de uma coisa que eu tivesse sonhado, para causar dor. Porque o entendimento entorpece-se, de modo que me fazia ficar com mil dúvidas e suspeitas, parecendo-me que eu não tinha sabido perceber e talvez fantasiasse. E era suficiente que eu ficasse enganada, sem enganar os bons. Parecia-me tão má para mim mesma que todos os males e heresias que se haviam levantado me parecia ser por meus pecados.

9. Essa é uma humildade falsa que o demônio inventava para me desassossegar e ver se conseguia levar uma alma ao desespero. Tenho já tanta experiência de que é coisa do demônio, que, como ele vê que eu o percebo, não me atormenta com isso tantas vezes quanto costumava. Vê-se claramente pela inquietação e desassossego com que começa. E o alvoroço que provoca na alma por todo o tempo que dura. E a escuridão e aflição que põe nela. A secura e a má disposição para a oração e para qualquer bem. Parece que afoga a alma e amarra o corpo para que de nada aproveite. Porque a humildade verdadeira, ainda que com ela a alma se reconheça ruim e cause dor ver o que somos, e ainda que avaliemos ser grande a nossa maldade, tão grande como se diz, e que se sinta de verdade, não vem com alvoroço, nem desassossega a alma nem a escurece nem dá secura. Antes a presenteia e é tudo ao contrário: com calma, com suavidade, com luz. É tristeza que, por outro lado, conforta ao ver quão grande dádiva lhe faz Deus em que tenha aquela tristeza e como é bem empregada. Dói-lhe ter ofendido a Deus. Por outro lado, sua misericórdia expande essa alma. Recebe luz para se embaraçar e louva a Sua Majestade porque a suportou tanto. Nessa outra humildade, que o demônio põe, não há luz para nenhum bem, tudo parece que Deus põe a ferro e fogo. Apresenta-lhe a justiça e, ainda que tenha fé de que há a misericórdia, porque o demônio não pode tanto que consiga fazer perder essa fé, é de uma maneira que não consola. Antes, quando olha para tanta misericórdia, ajuda-lhe a ter mais tormento, porque me parece que estava obrigada a fazer mais.

10. É uma invenção do demônio das mais penosas e sutis e dissimuladas que eu tenha percebido dele. E assim quereria avisar ao senhor para que, se por esse caminho ele o tentar, tenha alguma luz e o reconheça, se ele deixar entendimento para reconhecê-lo. Pois não pense que é uma questão de erudição e saber, pois, ainda que a mim falte tudo isso, depois que saio disso, percebo bem que é um desatino. O que entendi é que quer e permite o Senhor e lhe dá licença, como deu para tentar a Jó,2 ainda que comigo — como uma pessoa ruim — não seja com aquele rigor.

11. Aconteceu-me, e lembro-me de ser um dia antes da véspera de Corpus Christi, festa de que eu sou devota, ainda que não tanto quanto deveria. Dessa vez durou só até o dia. Outras duram oito, quinze dias e até três semanas, e não sei se mais, em especial durante as Semanas Santas, que costumavam ser meu festim de oração. Acontece-me às vezes que prende o entendimento de repente com coisas tão levianas, que em outras ocasiões eu teria rido delas. E a faz ficar transtornada com tudo o que ele quer. E a alma aprisionada ali, sem ser senhora de si nem poder pensar outra coisa além dos disparates que ele apresenta, que quase nem têm importância, não atam nem desatam, só servem para afogar a alma de uma maneira que ela não fica em si. E assim me ocorreu que os demônios parecem que jogam bola com a alma, e ela não é capaz de se livrar do poder deles. Não se pode dizer o que se sofre nesse caso. Ela anda a buscar amparo e Deus permite que não ache. Só permanece sempre a razão do livre-arbítrio, mas não clara. Quero dizer, estão quase tampados os olhos, como uma pessoa que muitas vezes foi a uma parte que, ainda que seja noite e esteja escuro, pela experiência passada sabe onde pode tropeçar, porque viu de dia, e protege-se daquele perigo. Assim é, para não ofender a Deus, pois parece que se caminha por hábito. Sem falar que a mantém o Senhor, que é o que realmente vem ao caso.

12. A fé fica então tão amortecida e adormecida quanto as demais virtudes, ainda que não perdida, pois acredita no que a Igreja sustenta. Mas da boca para fora e parece que, por outro lado, a apertam e entorpecem para que ela pareça que conhece a Deus quase como uma coisa de que ouviu falar de longe. Tem o amor tão morno que, se ouve falar d'Ele, escuta como uma coisa que crê ser o que é porque o diz a Igreja, mas não tem memória do que experimentou em si. Ir rezar ou ficar em solidão não é outra coisa senão mais angústia. Porque o tormento que sente em si, sem saber por que, é insuportável. Ao que me parece, é um pouco como ir para o inferno. E é assim mesmo, conforme o Senhor, em uma visão, me fez entender. Porque a alma queima-se em si mesma sem saber quem ou por onde lhe ateiam fogo, nem como fugir dele nem como o extinguir.

Querer remediar as coisas lendo é como se não soubesse ler. Uma vez aconteceu-me ir ler a vida de um santo para ver se me absorveria e para consolar-me com o que ele sofreu e li quatro ou cinco vezes outras tantas linhas e, mesmo sendo em espanhol, entendia menos delas depois do que antes de ter lido, e assim deixei o livro. Isso me aconteceu muitas vezes. Só que dessa eu me lembro em particular.

13. Ter, então, uma conversa com alguém é pior. Porque o demônio põe um espírito tão desagradável de ira que parece a todos que eu os quereria comer, sem que eu possa evitar. E parece que já é alguma coisa eu conseguir me segurar, ou o Senhor segura com sua mão quem está assim para que não diga nem faça contra seus próximos alguma coisa que os prejudique ou com a qual se ofenda a Deus.

Ir ao confessor, então! Com certeza! Porque muitas vezes me acontecia o que direi: apesar de serem tão santos como são aqueles com quem nesse tempo conversei e converso, diziam-me palavras e me repreendiam com tanta aspereza que, depois que eu as dizia, eles mesmos se espantavam e diziam que não estava em seu poder evitar. Porque, ainda que tivessem ficado muito mal por ter feito isso outras vezes, o que lhes dava pena e até escrúpulos depois, quando eu tinha tais tormentos de corpo e de alma, e tivessem se decidido a consolar-me com piedade, não conseguiam. Eles não diziam más palavras — digo, com as quais ofendessem a Deus —, mas as mais desagradáveis que se toleravam para um confessor. Deviam pretender mortificar-me, e, ainda que em outras vezes me alegrassem e eu estivesse disposta a suportá-las, naqueles momentos era um tormento.

Acontece então também parecer que os engano. Eu ia a eles e avisava-os de verdade para que se protegessem de mim, pois podia ser que os estivesse enganando. Eu sabia bem que de propósito não o faria, nem lhes diria mentiras, mas eu tinha medo de tudo. Uma vez um deles me disse que, quando percebesse a tentação, não tivesse aflição, pois, ainda que eu quisesse enganá-lo, ele teria senso para não se deixar enganar. Isso me deu grande consolo.

14. Às vezes — quase normalmente ou, ao menos, o mais frequentemente — acabando de comungar eu tinha um descanso. E até algumas vezes, aproximando-me do Sacramento, logo na hora ficava tão boa, de alma e de corpo, que me espanto. Não parece outra coisa a não ser que, num instante, se desfazem todas as trevas da alma e, saído o sol, reconhecia os absurdos em que tinha estado. Outras vezes, com apenas uma palavra que me dizia o Senhor, apenas dizendo: "Não fiques desanimada, não tenhas medo" — como eu já disse em outra oportunidade —, ficava totalmente curada. Ou vendo alguma visão, era como se não tivesse tido nada. Deliciava-me com Deus. Queixava-me a Ele de como consentia que eu padecesse tantos tormentos. Mas eles eram bem pagos, pois quase sempre, depois, eram as dádivas em grande abundância. Não me parece outra coisa senão que a alma sai do crisol como o ouro, mais refinada e purificada para ver em si o Senhor. E assim, esses tormentos se fazem pequenos, depois, apesar de parecerem insuportáveis. E se deseja voltar a sofrê-los, se o Senhor vai se servir mais deles. E ainda que haja mais tribulações e perseguições, desde que se as passem sem ofender a Deus, mas sim alegrando-se de padecer por Ele, tudo é para maior lucro, ainda que eu não os leve como se deve levar, mas sim muito imperfeitamente.

15. Outras vezes me vinham de outro tipo, e vêm. Imediatamente me parece que me tiram a possibilidade de pensar uma coisa boa nem de desejar fazê-la. Uma alma e um corpo totalmente inúteis e pesados. Mas não tenho, com isso, essas outras tentações e desassossegos. Tenho, sim, um desgosto, sem entender por que. E nada contenta a alma. Tentava fazer boas obras exteriores para ocupar-me meio à força e reconheço bem o pouco que é uma alma quando se esconde a graça. Não me causava muita dor, porque esse ver minha baixeza me dava alguma satisfação.

16. Outras vezes me acho de um jeito que tampouco uma coisa formada consigo pensar sobre Deus, nem sobre o bem, que seja com propriedade. Nem ter oração, ainda que esteja em solidão. Mas sinto que o conheço. O entendimento e a imaginação, percebo, são o que me atrapalha aqui, pois a boa vontade parece-me que está disposta a todo o bem. Mas esse entendimento está tão perdido que não parece outra coisa senão um louco furioso que ninguém consegue amarrar e eu não sou senhora dele para fazê-lo ficar quieto pelo tempo que leva para rezar um Credo. Algumas vezes rio-me e reconheço minha miséria e fico olhando para ele para ver o que vai fazer. E — glória a Deus — admiravelmente nunca é coisa má, mas indiferente: o que há para fazer aqui, ali, acolá. Reconheço mais, então, a enorme dádiva que me faz o Senhor quando mantém amarrado esse louco em perfeita contemplação. Vejo o que seria, se me vissem nesse desvario as pessoas que me tomam por boa. Tenho muita pena da alma por vê-la em tão má companhia. Desejo vê-la com liberdade, e assim digo ao Senhor: "Quando, meu Deus, chegarei a ver minha alma unida a louvar-vos de modo que gozem de Vós todas as potências? Não permitais, Senhor, seja jamais despedaçada, pois parece que cada pedaço anda para um lado".

Isso eu passo muitas vezes. Em algumas percebo bem que a pouca saúde corporal vem muito ao caso. Lembro-me, então, muito do mal que nos fez o primeiro pecado, pois daqui me parece que nos vem sermos incapazes de gozar de tanto bem. E devem ser os meus pecados, pois, se não tivesse tido tantos, estaria mais inteira no bem.

17. Passei também outro grande tormento: como parecia entender todos os livros que lia que falam de oração, e que já me havia dado aquilo o Senhor, pareceu-me que não tinha necessidade deles. E, assim, não os lia. Só as vidas dos santos, pois como eu me acho tão em falta no que eles serviam a Deus, isso parece que me traz proveito e me anima. Parecia-me muito pouca humildade pensar eu que havia chegado a ter aquela oração. E como não conseguia pensar outra coisa, dava-me muita aflição até que letrados e o bendito frei Pedro de Alcântara me disseram que não me importasse com nada. Bem vejo que no servir a Deus nem comecei — e que sou uma perfeição, a não ser nos desejos e em amar, pois nisso eu vejo bem que me favoreceu o Senhor para que eu possa servi-lo em alguma coisa. Parece-me bem que o amo, mas as obras me desconsolam, assim como as muitas imperfeições que vejo em mim.

18. Outras vezes me dá uma bobeira de alma — eu digo que é — que nem bem nem mal me parece que faço, mas ando atrás dos outros, como dizem, nem com aflição nem com glória, nem a da vida nem a da morte, nem prazer nem pesar, parece que não sinto nada. Parece-me que a alma anda como um burrico que pasta, que se sustenta porque lhe dão de comer e come quase sem sentir. Porque a alma nesse estado não deve ficar sem comer algumas grandes dádivas de Deus, já que em vida tão miserável não lhe pesa viver e passa por isso com indiferença, mas não se sentem movimentos nem efeitos para que perceba a alma.

19. Parece-me agora um navegar com um vento muito sossegado, que faz andar muito sem perceber como. Porque nessa outra maneira são tão grandes os efeitos que quase imediatamente vê a alma sua melhora. Porque logo se agitam os desejos e nunca consegue se satisfazer uma alma. Isso têm os grandes ímpetos de amor de que falei para aqueles a quem Deus os dá. É como umas fontezinhas que vi minar em que nunca para de fazer movimentos para cima a areia.

Natural me parece esse exemplo ou comparação das almas que chegam a esse ponto: sempre está bulindo, o amor, e pensando no que vai fazer. Não cabe em si, como não parece que caiba na terra aquela água, mas a jorra de si. Assim fica muito comumente a alma que não sossega nem cabe em si por causa do amor que tem. Já a tem ensopada dele. Quereria que bebessem os outros, já que a ela não faz falta, para que a ajudassem a louvar a Deus. Oh, quantas vezes me lembro da água-viva que deu o Senhor à Samaritana e, assim, gosto muito daquele evangelho. E com certeza é por isso que, sem entender esse bem como agora, desde muito criança gostava e suplicava muitas vezes ao Senhor que me desse aquela água e tinha-o escrito sempre, onde estivesse, num letreiro, a frase de quando o Senhor se aproximou do poço: "Domine, da miqui aguan".3

20. Parece também um fogo que é grande e que, para que não se apague, precisa que haja sempre o que queimar. Assim são as almas de que falo: ainda que seja muito custoso para elas, quereriam carregar lenha para que não parasse esse fogo. Eu sou de tal maneira que mesmo com palha que pudesse jogar nele me contentaria, e assim acontece às vezes, e muitas vezes. Em algumas, rio, em outras, me desanimo muito. O movimento interior me incita a que sirva em alguma coisa — já que não sirvo para mais — pondo raminhos e flores em imagens, em varrer, em montar um oratório, em umas coisas tão baixas que me causava embaraço. Se fazia alguma coisa de penitência, era tudo pouco e de tal maneira que, se não fosse o Senhor considerar a boa vontade, eu via que era sem nenhuma importância, e eu mesma zombava de mim.

Pois não têm pouca provação as almas a que Deus dá por sua bondade esse fogo de amor seu em abundância, não terem forças corporais para fazer alguma coisa por Ele. É uma tristeza bem grande, porque como lhe faltam forças para pôr alguma lenha nesse fogo, e ela morre por não se matar, parece-me que ela entre si se consome até as cinzas e desfaz-se em lágrimas e se queima e é muito tormento, ainda que seja saboroso.

21. Louve muito ao Senhor a alma a que fez chegar aqui e a que dá forças corporais para fazer penitência, ou deu letras e talento e liberdade para pregar e confessar e aproximar as almas de Deus, pois não sabe nem percebe o bem que tem, se não passou por experimentar o que é não poder fazer nada no serviço do Senhor e receber sempre muito. Seja bendito por tudo e deem-lhe glória os anjos, amém.

22. Não sei se faço bem de escrever tantas minúcias. Como o senhor tornou a me mandar que não me importasse com me estender nem deixasse nada de fora, vou falando com clareza e verdade do que me lembro. E não pode ser diferente de deixar muita coisa de lado, porque teria que gastar muito mais tempo, e tenho tão pouco, como já disse, para talvez não tirar nenhum proveito.