CAPÍTULO 31
TRATA DE ALGUMAS TENTAÇÕES EXTERIORES E APARIÇÕES QUE FAZIA O DEMÔNIO E DE TORMENTOS QUE LHE DAVA. TRATA TAMBÉM DE ALGUMAS COISAS MUITO BOAS PARA ADVERTÊNCIA DE PESSOAS QUE VÃO POR CAMINHO DE PERFEIÇÃO
1. Quero falar, já que falei de algumas tentações e perturbações interiores e secretas que o demônio me causava, de outras que fazia, quase públicas, em que não se podia ignorar que era ele.
2. Estava uma vez em um oratório e apareceu-me, na direção do lado esquerdo, uma figura abominável. Olhei especialmente a boca, porque falou comigo, e era assustadora. Parecia que lhe saía uma grande chama do corpo, pois estava toda clara, sem sombra. Disse-me assustadoramente que eu me tinha bem livrado de suas mãos, mas que ele me faria voltar a elas. Eu fiquei com muito medo e me benzi como pude, e ele desapareceu e voltou logo. Duas vezes isso aconteceu. Eu não sabia o que fazer e joguei água benta nele, naquela direção, e nunca mais voltou.
3. De outra vez ficou cinco horas me atormentando com dores tão terríveis e desassossego interior e exterior, que me parecia que eu não podia mais aguentar. As irmãs que estavam comigo estavam assustadas, sem saber o que fazer nem como me ajudar. Tenho por hábito, quando as dores e o mal corporal são muito intoleráveis, fazer como posso atos1 comigo mesma, suplicando ao Senhor, se aquilo o serve de alguma maneira, que me dê Sua Majestade paciência e que eu fique daquele jeito até o fim do mundo. Então, como daquela vez vi o padecer com tanto rigor, remediava-me com esses votos e decisões para poder aguentar.
4. Quis o Senhor que eu percebesse que era o demônio, porque vi a meu lado um negrinho muito detestável, arreganhando como um desesperado porque, onde pretendia ganhar, perdia. Eu, quando o vi, ri, e não tive medo, porque havia ali algumas irmãs comigo que não conseguiam fazer nada nem sabiam que remédio usar contra tanto tormento, pois eram grandes as pancadas que me fazia dar, sem que eu pudesse resistir, com o corpo, a cabeça e os braços. E o pior era o desassossego interior, pois de nenhuma forma eu conseguia ter sossego.
Não ousava pedir água benta para não dar medo nelas e para que não percebessem o que era. Tenho experiência de muitas vezes que não há coisa com a qual fujam mais para não voltar do que água benta. Da cruz também fogem, mas voltam. Deve ser grande a virtude da água benta. Para mim é uma particular e muito conhecida consolação que sente minha alma quando a tomo. O certo é que é muito comum eu sentir uma recuperação que eu não saberia explicar, como um deleite interior que me conforta a alma toda. Isso não é fantasia nem coisa que aconteceu uma vez só, mas muitas e muitas, e que eu olhei com bastante atenção. Digamos que é como alguém que estivesse com muito calor e sede e bebesse um jarro de água fria, pois parece que todo ele sente refrescar-se. Penso em que grande coisa é tudo o que está ordenado pela Igreja e dá-me grande prazer ver que têm tanta força aquelas palavras para pô-la assim na água, para que seja tão grande a diferença que fazem em relação à água que não é benzida.
5. Então, como não acabava o tormento, disse: se não fossem rir de mim, eu pediria água benta. Trouxeram e jogaram em mim e não adiantava. Joguei onde ele estava e num instante se foi e saiu de mim todo o mal, como se o tirassem de mim com a mão. Só que fiquei cansada, como se me tivessem dado muitas pauladas. Foi-me de grande proveito ver que, mesmo não sendo dele uma alma e um corpo, quando o Senhor dá licença, faz tanto mal o demônio. Que fará quando os possua como seus? Deu-me de novo vontade de me livrar de companhia tão ruim.
6. De outra vez, há pouco, aconteceu-me a mesma coisa, ainda que não tenha durado tanto e eu estivesse sozinha. Pedi água benta e as que entraram depois que já tinham ido embora, que eram duas monjas em quem bem se podia acreditar, pois de maneira nenhuma diriam mentira, sentiram um cheiro muito ruim, como de enxofre. Eu não senti. Mas durou algum tempo, de modo que elas perceberam.
De uma outra vez eu estava no coro e deu-me um grande ímpeto de recolhimento. Fui-me dali para que não percebessem, ainda que, ali perto, ouviram todas grandes pancadas onde eu estava. E eu ouvi perto de mim umas falas, como se combinassem algo, ainda que não tenha entendido o que. Era uma voz grossa. Mas eu estava tão em oração que não entendi nada e nem tive medo algum. Quase toda vez era quando o Senhor me fazia a dádiva de que, persuadida por mim, alguma alma progredisse.
7. E é certo que me aconteceu o que contarei agora. E disto há muitas testemunhas, especialmente quem agora ouve minhas confissões, pois viu isso escrito em uma carta. Sem dizer-lhe eu quem era a pessoa de quem era essa carta, bem sabia ele quem era. Procurou-me uma pessoa que, havia dois anos e meio, estava em pecado mortal, dos mais abomináveis que já escutei, e em todo esse tempo nem o confessava nem se emendava. E dizia missa. E ainda que ouvisse confissões dos outros, esse se dizia: como iria confessar uma coisa tão feia? E tinha grande desejo de sair disso e não conseguia se ajudar. A mim, me deu enorme pena, e ver que se ofendia a Deus de tal maneira me causou muita tristeza. Prometi a ele suplicar muito a Deus que o remediasse e fazer com que outras pessoas fizessem o mesmo, pois eram melhores do que eu, e escrevia a certa pessoa a quem ele me disse que podia dar as cartas. E assim foi que a primeira se confessou, pois quis Deus, por causa das muitas pessoas muito santas que haviam suplicado a Deus o que eu havia pedido, fazer com essa alma essa misericórdia. E eu, ainda que miserável, fazia o que podia, com muito cuidado. Escreveu-me que estava já com tanta melhora que havia dias em que não caía no pecado, mas que era tão grande o tormento que a tentação lhe dava, pois parecia estar no inferno pelo que ele padecia, que pedia que eu lhe encomendasse a Deus.
Eu o tornei a encomendar a minhas irmãs, por cujas orações devia o Senhor me fazer essa dádiva. E tomaram a peito essa tarefa. Era uma pessoa que ninguém podia atinar em quem era. Supliquei a Sua Majestade que se aplacassem aqueles tormentos e tentações, e que viessem aqueles demônios atormentar a mim, desde que eu não ofendesse em nada ao Senhor. E assim foi que passei um mês de enormes tormentos. Então foi que aconteceram essas duas coisas que eu contei.
8. Aprouve ao Senhor que deixassem a ele. Assim me escreveram, porque eu lhe disse o que passava ao longo desse mês. Ganhou força sua alma e ficou totalmente livre, a ponto de não se fartar de dar graças a Deus e a mim, como se eu tivesse feito alguma coisa. Mas é que o crédito que eu tinha, de que o Senhor me fazia dádivas, foi proveitoso para ele. Dizia que quando se via muito angustiado, lia minhas cartas e a tentação o deixava, e estava muito assustado do que eu havia padecido e como ele havia se livrado. E até eu me espantei e teria sofrido outros muitos anos para ver aquela alma livre. Seja louvado por tudo, pois pode muito a oração dos que servem ao Senhor, como creio eu que fazem nesta casa estas irmãs. Mas, como eu buscava isso, os demônios deviam se indignar mais comigo, e o Senhor, por meus pecados, permitia.
9. Nesse tempo também, numa noite, pensei que me sufocava. E quando jogaram muita água benta, vi ir embora grande multidão deles, como quem vai despencando ladeira abaixo. São tantas as vezes que esses malditos me atormentam e tão pouco o medo que eu tenho deles já, por ver que não podem se mover se o Senhor não lhes dá licença, que cansaria ao senhor e me cansaria se contasse.
10. O que foi contado sirva para que o verdadeiro servo de Deus dê pouca importância a esses espantalhos que esses demônios põem para dar medo. Saibam que, a cada vez que damos pouca importância a eles, ficam com menos força e a alma mais senhora de si. Sempre fica algum benefício, que, para não me estender, não digo. Só direi isto que me aconteceu numa noite das Almas.2
Estando em um oratório, tendo rezado um noturno e dizendo umas orações muito devotas — que ficam no final dele —, muito devotas, que temos em nosso breviário,3 pôs-se o demônio sobre o meu livro, para que eu não acabasse a oração. Eu me benzi e ele se foi. Tornando a começar, voltou. Creio que foram três vezes que comecei e, até que joguei água benta, não consegui acabar. Vi que saíram algumas almas do purgatório no mesmo instante, pois devia faltar pouco para elas, e pensei que talvez fosse isso que ele pretendia impedir.
Poucas vezes o vi tomando forma e muitas sem forma nenhuma, como na visão em que, sem forma, vê-se claramente que está ali, como já disse.
11. Quero também contar isto, porque me assustou muito: estando no dia da Trindade4 no coro de certo mosteiro e em arrebatamento, vi uma grande contenda de demônios contra anjos. Eu não conseguia entender o que queria dizer aquela visão. Antes que se passassem quinze dias entendeu-se bem por certa contenda que ocorreu entre gente de oração e muitos que não eram, e muito dano proveio à casa em que estava. Foi uma contenda que durou muito tempo e de grande desassossego.
Outras vezes via grande multidão de demônios ao redor de mim e parecia-me haver uma intensa claridade que me cercava toda e essa não permitia que eles se aproximassem de mim. Entendi que Deus me protegia para que não se aproximassem de mim de modo que me fizessem ofendê-lo. Pelo que vi em mim algumas vezes percebi que era visão verdadeira.
O fato é que percebi tão bem seu pouco poder que, se eu não for contra Deus, quase nenhum medo tenho deles. Porque não são nada as suas forças se não veem almas rendidas a eles e covardes, pois aí eles mostram seu poder. Algumas vezes, nas tentações que já contei, parecia-me que todas as vaidades e fraquezas de tempos passados voltavam a despertar em mim, e então tinha que me encomendar bem a Deus. Depois era o tormento de parecer-me que, já que me ocorriam aqueles pensamentos, devia ser tudo demônio, até que meu confessor me sossegava. Porque mesmo um primeiro movimento de maus pensamentos parecia-me que não deveria ter quem tantas dádivas recebia do Senhor.
12. Outras vezes me atormentava muito, e até agora me atormenta, que façam muito caso de mim, especialmente pessoas importantes, e que falem muito bem de mim. Com isso sofri e sofro muito. Olho logo para a vida de Cristo e dos santos e me parece que caminho ao contrário, pois eles não andavam senão em meio ao desprezo e às injúrias. Faz-me ficar temerosa e eu não ouso levantar a cabeça e nem quereria aparecer. Coisa que não faço quando tenho perseguições. Aí a alma anda tão soberana, ainda que o corpo sinta, e, por outro lado, anda aflita, e não sei como pode ser isso. Mas é assim que acontece. E então parece que a alma está em seu reino e põe tudo debaixo dos pés.
Algumas vezes dava-me, e durava alguns dias, e parecia ser virtude e humildade, por um lado, e agora vejo claramente que era tentação. Um frade dominicano, grande letrado, explicou-me bem. Quando pensava que essas dádivas que o Senhor me faz deviam servir a ser conhecidas publicamente, era tão exagerado o tormento que me inquietava muito a alma. Cheguei a um estado que, pensando nisso, eu me decidiria com mais boa vontade a ser enterrada viva que passar por isso. Assim, quando começaram esses grandes recolhimentos ou arrebatamentos a que eu não conseguia resistir, mesmo em público, ficava eu depois tão envergonhada que não queria aparecer onde qualquer pessoa me visse.
13. Estando uma vez muito cansada disso, perguntou-me o Senhor de que eu tinha medo. Que não podia haver nisso senão duas coisas: ou que murmurassem contra mim, ou que o louvassem. Dava a entender que os que criam louvariam, e os que não, condenavam-me sem culpa, e ambas as coisas eram lucro para mim e que eu não desanimasse. Isso me tranquilizou muito e me consolo muito quando me lembro.
Chegou a um ponto a tentação, que queria ir embora deste lugar e professar em outro mosteiro5 muito mais fechado do que aquele em que eu estava no momento, pois tinha ouvido falar muito bem dele. Também era da minha Ordem e muito distante. E isso era o que me consolava: ficar onde não me conhecessem. E nunca meu confessor deixou.
14. Tiravam muito da minha liberdade de espírito esses medos, que depois vim a entender que não eram a boa humildade, pois tanto inquietavam. E me mostrou o Senhor essa verdade: se eu estava tão convencida e certa de que não se tratava de nenhuma coisa boa minha, mas de Deus, assim como não me incomodava ouvir louvar outras pessoas, antes me alegrava e consolava muito ver que Deus se mostrava ali, tampouco me incomodaria que mostrasse em mim suas obras.
15. Também fui dar em outro exagero, que foi suplicar a Deus — e fazia-o em oração particular — que, quando para alguma pessoa se mostrasse algo bom em mim, que Sua Majestade lhe mostrasse meus pecados, para que visse o quanto era sem mérito meu que fazia dádivas, pois isso eu sempre desejo muito. Meu confessor me disse que não o fizesse. Mas até agora há pouco, se eu via uma pessoa que pensava muito bem de mim, por rodeios ou como pudesse, fazia saber meus pecados, e com isso parece que eu sossegava. Também me fizeram ter muito escrúpulo nisso.
16. Isso procedia não da humildade, na minha opinião, mas é que de uma tentação vinham muitas. Parecia-me que mantinha todos enganados, e ainda que seja verdade que andam enganados em pensar que há algum bem em mim, não era meu desejo enganá-los, nem nunca pretendi tal coisa, mas o Senhor, com algum objetivo, permite. E assim, até com os confessores, se não visse que era necessário, não conversaria nada, pois tinha muitos escrúpulos.
Todos esses temorezinhos e aflições e sombras de humildade sei eu agora que eram grande imperfeição e sei que era por não estar mortificada. Porque uma alma posta nas mãos de Deus não se importa se falam bem ou mal, se ela entende bem, bem entendido — quando o Senhor quiser fazer-lhe a dádiva de entender —, que não tem nada por si mesma. Confie em quem dá a ela, pois saberá por que torna tudo manifesto, e prepare-se para a perseguição, pois é garantido, nos tempos de hoje, quando o Senhor quer que se saiba de alguma pessoa que faz a ela semelhantes dádivas. Porque há mil olhos para uma alma dessas enquanto, para mil almas de outro feitio, não há nenhum.
17. Na verdade, não há poucas razões para temer, e esse devia ser meu medo. E não humildade, mas pusilanimidade. Porque bem pode se preparar uma alma que Deus permite que ande assim aos olhos do mundo, a ser mártir do mundo. Porque se ela não quiser morrer para ele, ele mesmo, mundo, a matará. Com certeza não vejo outra coisa nele que me pareça bem, a não ser o não consentir faltas nos bons que, graças às murmurações, aperfeiçoam-nos.
Digo que, se alguém não for perfeito, é preciso mais coragem para andar em caminho de perfeição, do que para ser subitamente mártir. Porque a perfeição não se alcança depressa, a não ser por aqueles a quem o Senhor quiser, por particular privilégio, fazer-lhe essa dádiva. O mundo, vendo-o começar, já o quer perfeito, e a mil léguas percebe uma falta. E que talvez, nele, seja virtude. Mas quem o condena faz aquilo mesmo por vício e assim o julga no outro. Não pode comer, nem dormir, nem respirar, como se diz. E quanto mais em alta conta o têm, mais devem esquecer que ainda estão no corpo. Por mais perfeita que tenham a alma, ainda vivem na terra, sujeitos a suas misérias, por mais que a mantenham debaixo dos pés. E assim, como digo, é preciso grande coragem porque a pobre alma ainda não começou a andar e já querem que voe. Ainda não venceu as paixões e querem que, em grandes ocasiões de pecado, estejam tão inteiras como eles leem que estavam os santos depois de confirmados na graça.
É para louvar a Deus o que se passa aí, e também para dar muita pena no coração, porque muitas almas voltam atrás, pois não sabem se valer as pobrezinhas. E assim teria feito a minha, creio, se o Senhor não fizesse, tão misericordiosamente, tudo por sua parte. E, até que, por sua bondade, tivesse disposto tudo, já verá o senhor que não houve em mim nada senão cair e levantar.
18. Quereria saber contar, porque creio que aqui se enganam muitas almas que querem voar antes que Deus lhes dê asas. Creio que já fiz antes essa comparação, mas fica bem aqui. Tratarei disso porque vejo muitas almas muito aflitas por essa causa. Quando começam com grandes desejos e fervor e determinação de ir adiante na virtude, e algumas quanto às coisas exteriores deixam tudo por Ele, ao ver em outras pessoas, que são mais crescidas, coisas muito grandes de virtudes que o Senhor dá a elas, que não são coisas que podemos tomar por nós mesmos, e veem todos os livros que foram escritos sobre oração e contemplação afirmar todas essas coisas que temos que fazer para subir a esse grau de dignidade e que elas não conseguem por si mesmas, desconsolam-se. Coisas como: não nos importar que falem mal de nós, antes ter maior alegria com isso do que quando falam bem; pouca estima pela honra; desapego dos parentes, pois, se não têm oração, não quereria nem falar com eles, antes cansam; e muitas outras coisas desse teor que me parece que Deus dará, porque me parece que já são bens sobrenaturais ou contrários a nossa inclinação natural.
Não desanimem. Esperem no Senhor, pois o que agora têm como desejo, Sua Majestade fará com que cheguem a ter de fato. Esperem com oração e fazendo por sua parte o que está a seu alcance. Porque é muito necessário para essa nossa fraca natureza ter grande confiança e não perder as forças, nem pensar que deixaremos de sair com vitória, se nos esforçarmos.
19. E, porque tenho muita experiência disso, direi algo ao senhor como conselho. Não pense, ainda que lhe pareça que sim, que já está ganha a virtude, se não a experimentar com seu contrário. E sempre temos que ficar desconfiados e não nos descuidar enquanto vivermos. Porque muita coisa pega rápido em nós, se — como digo — não estiver dada a graça toda para saber como são as coisas todas. E nesta vida nunca se tem tudo sem muitos perigos.
Parecia-me, até há pouco tempo, que não apenas não estava apegada a meus parentes, como até me cansavam. E, assim, era seguro que não conseguia conviver com eles. Deu-se um negócio de grande importância e tive que ficar com uma irmã minha6 de quem gostava muitíssimo, antes, embora na conversa, ainda que ela seja muito melhor do que eu, não me dava com ela. Porque como ela tem um estado diferente, pois é casada, a conversa não pode ser sempre sobre aquilo que eu quereria e eu ficava sozinha o maior tempo que podia. Vi que me atormentavam os tormentos dela. Muito mais do que os do meu próximo. E me preocupavam um pouco. Enfim, percebi que eu não estava tão livre como pensava e que ainda tinha necessidade de fugir das ocasiões de pecado, para que essa virtude que o Senhor havia começado a me dar fosse crescendo. E assim procurei fazer sempre, com o favor d'Ele desde então.
20. Em muito alta conta se deve ter uma virtude quando o Senhor começa a dá-la e nunca nos devemos pôr em perigo de perdê-la. Assim é em questões de honra e em muitas outras. Pois acredite o senhor que nem todos os que pensamos estar desapegados de tudo estão. E é necessário nunca descuidar disso. E qualquer pessoa que se ressinta por alguma questão de honra, se quiser progredir, acredite em mim e deixe para trás essa amarra, pois é uma corrente que não tem lima que rompa, a não ser Deus com oração e fazer muito de nossa parte. Parece-me um impedimento para esse caminho e me espanta o dano que causa.
Vejo algumas pessoas santas em suas obras, que fazem obras tão grandes que espantam as pessoas. Valha-me Deus! Por que ainda está na terra essa alma? Como não está no cume da perfeição? O que é isso? Quem está detendo quem faz tanto por Deus? Oh, é que tem um ponto de honra! E o pior é que não quer perceber que tem. E é porque às vezes o demônio a faz achar que é obrigada a mantê-la.
21. Então, creiam-me, creiam pelo amor de Deus nesta formiguinha que o Senhor quer que fale: se não tirarem essa lagarta, toda a árvore ficará estragada. Porque sobrarão algumas outras virtudes, mas todas carcomidas. Não é uma árvore bonita, mas uma que não medra nem deixa medrar aquelas que ficam junto dela. Porque a fruta, de bom exemplo que dá, não é nada sadia. Dura pouco. Muitas vezes eu digo que, por menor que seja o ponto de honra, é como cantar com o órgão, pois, uma nota ou um tempo que se erra desafina toda a música. É uma coisa que em toda parte causa danos à alma, mas neste caminho de oração é uma pestilência.
22. Andas procurando juntar-te a Deus por união, e queremos seguir seus conselhos de Cristo carregado de injúrias e testemunhos e queremos muito íntegra nossa honra e credibilidade? Não é possível chegar lá, pois não ficam no mesmo caminho. Aproxima-se o Senhor da alma quando nos esforçamos e procuramos perder muitas coisas de nosso direito. Dirão alguns: "Não tenho em que, nem se me oferece oportunidade". Eu creio que, quem tiver essa determinação, não quererá o Senhor que perca um tão grande bem. Sua Majestade arranjará tantas coisas em que ganhe essas virtudes que não quereria tantas. Mãos à obra.
23. Quero falar das ninharias e miudezas que eu fazia quando comecei. Ou de algumas delas. As palhinhas de que já falei, ponho no fogo, que não sou capaz de mais do que isso. O Senhor recebe tudo, seja bendito para sempre.
Entre minhas faltas tinha esta: sabia pouco do breviário e do que tinha que fazer no coro e como dirigi-lo, por puro descuido e por estar envolvida em coisas vãs. E via outras noviças que podiam me ensinar. Acontecia-me de não perguntar a elas para que não percebessem que eu sabia pouco. Logo se põe na minha frente o bom exemplo. Isso é muito comum. Desde que Deus abriu-me um pouco os olhos, mesmo sabendo, um tantinho de dúvida que tivesse, perguntava às meninas. Não perdi a honra nem o crédito. Ao contrário, quis o Senhor, pelo que me parece, dar-me, depois, uma memória melhor. Cantava mal. Incomodava-me muito se não tivesse estudado o que me pediam. E não para não fazer feio diante do Senhor, pois isso teria sido virtude, mas sim pelas muitas que me ouviam. E por puro orgulho me perturbava tanto que dizia muito pior do que sabia. Incomodava-me muito, no começo. Depois gostava disso. E assim é que, quando comecei a não me importar se perceberiam que eu não sabia, passei a dizer muito melhor. E a negra honra tirava de mim saber fazer isso que eu tinha como ponto de honra saber, pois cada um põe a honra naquilo que quer.
24. Com essas ninharias que não são nada — e eu não sou nada em grande medida, já que isso me atormentava — pouco a pouco vão se fazendo esforços e coisas pequeninas como essas, que sendo feitas por Deus dá-lhes Sua Majestade importância, Sua Majestade ajuda para coisas maiores. E assim em coisas de humildade me acontecia que, vendo que todas progrediam, menos eu — porque nunca servi para nada —, quando saíam do coro, recolher todos os mantos parecia-me ser um serviço àqueles anjos que ali louvavam a Deus, até que — não sei como — vieram a saber, pois me escondia muito. Porque minha virtude não chegava a querer que soubessem essas coisas. E não por humildade, mas para que não rissem de mim, já que eram tão ninharias.
25. Oh, meu Senhor, que vergonha é ver tantas maldades e contar uns grãozinhos de areia, em meio a tantos males, que nem levantava da terra a vosso serviço, mas ia tudo envolto em mil misérias! Não minava ainda de debaixo dessa areia a água da vossa graça para que a fizesse subir.
Oh, meu Criador, quem haveria de ter alguma coisa para contar, entre tantos males, que fosse de alguma importância, uma vez que conto as grandes dádivas que recebi de Vós! Assim, Senhor meu, não sei como meu coração pode aguentar, nem como poderá, quem ler isto, deixar de ter repulsa a mim, vendo tão mal aplicadas tantas enormes dádivas, e que não tenho vergonha de contar esses serviços, enfim, como meus. Sim, tenho, Senhor meu, mas não ter outra coisa a contar a meu favor me faz contar tão baixos inícios, para que tenha esperança quem os fizer grandes, pois, já que aqueles meus parece que o Senhor levou em consideração, levará em maior consideração a esses. Queira Sua Majestade me dar a graça para que eu não fique sempre no início.