CAPÍTULO 36

PROSSEGUE NO ASSUNTO COMEÇADO E DIZ COMO SE ACABOU DE CONCLUIR E SE FUNDOU ESTE MOSTEIRO DO GLORIOSO SÃO JOSÉ, E AS GRANDES CONTROVÉRSIAS E PERSEGUIÇÕES QUE HOUVE, DEPOIS DE TOMAREM HÁBITO AS RELIGIOSAS, E AS GRANDES PROVAÇÕES E TENTAÇÕES QUE ELA PASSOU, E COMO DE TUDO A TIROU O SENHOR COM VITÓRIA E EM GLÓRIA E EM LOUVOR DELE

1. Tendo já partido daquela cidade, vinha muito contente pelo caminho decidindo-me a passar tudo o que agradasse ao Senhor com toda a vontade. Na mesma noite em que cheguei a esta terra, chega o despacho para o mosteiro e o Breve de Roma. E eu me espantei, e espantaram-se todos os que sabiam a pressa que o Senhor me havia dado para vir, quando souberam a grande necessidade que tinha disso e a conjuntura a que o Senhor me trazia. Porque encontrei aqui o bispo e o santo frei Pedro de Alcântara e outro cavalheiro1 muito servo de Deus, em cuja casa esse santo homem se hospedava, que era uma pessoa em cuja casa os servos de Deus encontravam apoio e acolhida.

2. Ambos conseguiram que o bispo2 aceitasse o mosteiro, o que não foi pouco, por ser mosteiro pobre. Mas era tão amigo de pessoas que via assim decididas a servir ao Senhor que logo se afeiçoou à ideia de favorecê-lo. E aprová-lo esse santo velho e insistir muito com uns e com outros para que nos ajudassem, foi o que resolveu tudo. Se eu não tivesse vindo a essa conjuntura — como já disse —, não sei como poderia ser feito, porque esteve pouco por aqui esse santo homem, pois creio que não foram oito dias, e esses, muito doente, e depois de muito pouco tempo levou-o o Senhor consigo.3 Parece que Sua Majestade o havia protegido até acabar esse negócio, pois havia muitos dias — não sei se mais de dois anos — que andava muito mal.

3. Tudo se fez sob grande segredo, porque, se não fosse assim, não se poderia fazer nada. Porque o povo estava insatisfeito com isso, como se revelou depois. Ordenou o Senhor que ficasse mal um cunhado4 meu com sua mulher longe daqui e em tanta necessidade que me deram licença para ficar com ele. E, com essa oportunidade, não se ficou sabendo de nada, ainda que algumas pessoas não deixassem de suspeitar de alguma coisa, mas ainda não acreditavam. Foi uma coisa de espantar, pois não esteve doente mais do que o que foi necessário para o negócio. E, sendo necessário que tivesse saúde para que eu me desocupasse e ele deixasse a casa desocupada, deu-a logo o Senhor, tanto que ele estava maravilhado.

4. Passei por grande provação tentando que uns e outros aceitassem, e com o doente, e com funcionários, para que se terminasse a casa com muita pressa, para que tivesse forma de mosteiro, pois faltava muito para terminar. E a minha companheira não estava aqui, pois nos pareceu melhor que estivesse ausente para dissimular melhor. E eu via que ia tudo rapidamente por muitas causas e uma era que a cada momento tinha medo de que me mandariam partir. Foram tantas as coisas de provações que tive, que me fizeram pensar se era esta a cruz. Ainda que me parecesse que era pouco para a grande cruz que eu tinha sabido pelo Senhor que ia passar.

5. Tudo acertado, então, o Senhor quis que, no dia de são Bartolomeu, tomassem hábito algumas,5 e se instalou o Santíssimo Sacramento, e com toda a autoridade e poder ficou pronto nosso mosteiro do gloriosíssimo pai são José, no ano de 1562. Fui eu a dar-lhes o hábito e outras duas monjas6 de nossa própria casa que calhou de estarem fora.

Como nessa casa em que se fez o mosteiro era aquela em que estava meu cunhado (pois, como eu disse, ele a tinha comprado para dissimular melhor o negócio), eu estava nela com licença. E não fazia nada que não fosse com a opinião de letrados, para não ir, em nenhum ponto, contra a obediência. E ao verem que era muito proveitoso para a ordem, por vários motivos, pois, ainda que eu fizesse em segredo e me guardasse de que meus prelados ficassem sabendo, diziam-me que podia fazê-lo. Porque, se me dissessem que era imperfeição, por menor que fosse, me parece que teria abandonado mil mosteiros, quanto mais um. Isso é certo. Porque, ainda que eu o desejasse para me afastar mais de tudo e levar minha profissão e minha vocação com maior perfeição e clausura, eu desejava de tal maneira que, no momento em que entendesse que era mais serviço ao Senhor abandonar totalmente o projeto, eu o faria — como disse da outra vez — com todo sossego e paz.

6. Então foi para mim como estar em glória ver instalar o Santíssimo Sacramento e que se remediaram quatro órfãs pobres — porque não eram recebidas com dote — e grandes servas de Deus. Porque isso se pretendeu no início: que entrassem pessoas que, com seu exemplo, fossem fundamento para que se pudesse efetuar o intento que tínhamos de muita perfeição e oração. E ver feita uma obra que tinha entendido ser para o serviço do Senhor e honra do hábito de sua gloriosa Mãe, pois essas eram minhas aspirações. E também me deu grande consolo ter feito o que o Senhor tanto me havia mandado, e outra igreja mais neste lugar, e de são José, que não havia. Não porque me parecesse que eu tivesse alguma coisa nisso, pois nunca me pareceu, nem parece. Entendo sempre que o Senhor é que faz, e o que era a minha parte saía com tantas imperfeições que vejo que antes deveria me desculpar do que agradecer. Mas era para mim um grande prazer ver que Sua Majestade me tinha tomado como instrumento — sendo eu tão ruim — para tão grande obra. Assim, fiquei com tão grande alegria que estava como fora de mim, com grande oração.

7. Terminado tudo, seria depois de umas três ou quatro horas, voltou a me dar uma batalha espiritual, como direi agora. Pôs-se diante de mim a dúvida se havia sido malfeito o que eu tinha feito. Se ia contra a obediência ter buscado sem que o provincial mandasse, pois bem me parecia que seria para ele algum desgosto, por causa de eu sujeitar o mosteiro ao ordinário, e não ter dito a ele antes. Ainda que, como ele não tinha autorizado e eu não conseguisse sua opinião, também me parecesse que, por outro lado, ele não se importaria. E se haviam de ter alegria as que ficavam aqui em tão grande rigor, se havia de lhes faltar o que comer, se tinha sido um disparate. Pensava: quem me havia metido nisso, já que eu tinha um mosteiro? Tudo o que o Senhor me havia mandado e todas as opiniões e orações que fazia dois anos que quase não cessavam, tudo tirado da minha memória como se nunca tivesse ocorrido. Só da minha opinião me lembrava, e todas as virtudes e a fé então suspensas em mim, sem ter eu força para que nenhum operasse e me defendesse de tantos golpes.

8. Também me punha na mente o demônio: como queria eu com tantas doenças me encerrar em uma casa tão rigorosa? Como aguentaria tanta penitência e deixava uma casa grande e agradável onde eu sempre tinha estado contente, e tantas amigas? Talvez as daqui não fossem do meu agrado, e eu tivesse me comprometido a muita coisa. Talvez eu estivesse desesperada e porventura o demônio tivesse pretendido isto: tirar-me a paz e a quietude e, assim, não poderia ter oração estando desassossegada, e perderia a alma. Coisas desse feitio juntas ele punha diante de mim, e não estava em minhas mãos pensar em outra coisa. E com isso, uma aflição e escuridão e trevas na alma que eu não sei descrever. Ao me ver assim, fui ver o Santíssimo Sacramento, ainda que não conseguisse encomendar-me a Ele. Parecia-me que estava com uma angústia como quem está em agonia de morte. Conversar com alguém não ousaria, porque nem confessor designado eu tinha.

9. Oh, valha-me Deus! Que vida tão miserável esta! Não há alegria segura nem coisa sem mudança. Havia tão pouquinho tempo que me parecia que eu não trocaria minha alegria por nenhuma da terra, e a mesma causa da alegria me atormentava agora de tal modo que eu não sabia o que fazer de mim. Oh, se olhássemos com discernimento as coisas da nossa vida! Cada um veria por experiência a pouca consideração em que se deve ter a alegria e a tristeza dela. Com certeza me parece que foi um dos duros períodos que passei na minha vida. Parece que o espírito adivinhava o que haveria de passar, ainda que não tenha chegado a ser tanto quanto isto, se tivesse durado.

Mas não deixou o Senhor padecer muito sua pobre serva, porque nunca deixou de me socorrer nas tribulações. E assim foi nessa, pois me deu um pouco de luz para ver que era o demônio, e para que pudesse perceber a verdade e que tudo era querer ele me assustar com mentiras. E assim comecei a recordar-me de minhas grandes decisões de servir ao Senhor e desejos de padecer por Ele. E pensei que, se havia de cumpri-los, não deveria andar à procura de descanso. E que, se tivesse provações, esse era o mérito, e se tivesse tristeza, desde que eu a tomasse para servir a Deus, me serviria de purgatório. De que tinha medo? Se desejava provações, que boas eram estas! Na maior oposição estava o lucro. Por que haveria de me faltar a coragem para servir aquele a quem tanto devia? Com essas e outras considerações, esforçando-me muito, prometi diante do Santíssimo Sacramento fazer tudo o que pudesse para ter licença para vir para esta casa e, podendo fazê-lo com boa consciência, prometer clausura.

10. Fazendo isso, num instante fugiu o demônio e me deixou sossegada e contente. E fiquei e tenho estado sempre assim. E tudo o que nesta casa se observa de fechamento e penitência e o resto para mim parece extremamente suave e pouco. A alegria é tão enorme que eu penso algumas vezes o que poderia escolher na terra que fosse mais saboroso? Não sei se isso contribui para eu ter muito mais saúde do que nunca, ou querer o Senhor — por ser necessário e correto que eu faça o mesmo que todas — dar-me esse consolo que eu possa fazê-lo, ainda que com trabalho. Mas as pessoas que conhecem minhas doenças se espantam por eu poder. Bendito seja o que dá tudo e em cujo poder podemos.

11. Fiquei bem cansada por tal contenda e fiquei rindo do demônio, pois vi claramente ser ele. Creio que o Senhor permitiu, por eu nunca ter sabido o que é descontentamento por ser monja nem um momento nos mais de 28 anos que sou, para que eu percebesse a grande dádiva que com isso me havia feito e o tormento de que me havia livrado. E também para que, se visse que alguma irmã estava descontente, não me espantasse e me apiedasse dela e soubesse consolá-la.

Passado então isso, quis depois de comer descansar um pouco. Porque durante toda a noite quase não tinha sossegado, nem, em outras, tinha deixado de ter trabalhos e preocupações, e todos os dias andava bem cansada. Como se tinha ficado sabendo em meu mosteiro e na cidade o que se havia feito, havia muito alvoroço pelos motivos que eu já disse, e parecia haver algum exagero. Logo a prelada enviou recado mandando eu ir para lá na hora. Eu, vendo sua ordem, deixo minhas monjas muito pesarosas, e vou logo. Vi bem que se me haviam de oferecer grandes provações, mas, como já estava feito, muito pouco me importava. Fiz uma oração suplicando ao Senhor que me favorecesse, e a meu pai são José que me trouxesse à sua casa, e ofereci a ele o que devia passar e, muito contente de que se oferecesse algo em que eu padecesse por Ele e pudesse servir, fui, apesar de ter achado que me iam pôr na cadeia. Mas, na minha opinião, dar-me-ia grande alegria, por não falar com ninguém e descansar um pouco em solidão, de que eu estava bem necessitada, porque estava moída de tanto andar com gente.

12. Quando cheguei e fiz meu relato à prelada, ela se aplacou um pouco e todas comunicaram ao provincial e a causa ficou para ser resolvida diante dele. Vindo ele, fui a julgamento com grande alegria por ver que sofria algo pelo Senhor, porque nem à Sua Majestade, nem à ordem eu achava que tinha ofendido nada nesse caso. Antes tentava fazer crescer a ordem com todas as minhas forças, pois todo o meu desejo era que se cumprisse sua regra com toda a perfeição. Lembrei-me do julgamento de Cristo e vi quão nada era aquele meu. Confessei minha culpa como muito culpada, e parecia ser assim para quem não conhecia todas as razões.

Depois de me ter feito uma grande repreensão, ainda que não com tanto rigor quanto merecia o delito pelo que muitos diziam ao provincial, eu não quis me defender, porque estava decidida a isso. Antes pedi que me perdoasse e castigasse e não ficasse mais bravo comigo.

13. Em algumas coisas eu via bem que me condenavam sem culpa. Porque me diziam que eu tinha feito aquilo para que me tivessem em alta conta e para ter nome e outras coisas semelhantes. Mas em outras percebia claramente que diziam a verdade: no fato de que eu era pior do que outras. E, já que eu não tinha observado a vida muito religiosa que se levava naquela casa, como pensava em observá-la em outra, com mais rigor? E que escandalizava o povo e levantava coisas novas.7 Tudo aquilo não me causava nenhum alvoroço nem sofrimento, ainda que eu mostrasse sofrer para não parecer que eu fazia pouco do que me diziam.

Afinal, mandou que eu desse meu depoimento diante das monjas, e tive que fazê-lo.

14. Como eu tinha quietude em mim e o Senhor me ajudava, dei meu depoimento de uma maneira tal que não achou o provincial, nem as que estavam ali, motivo para me condenar. E depois, a sós, falei com ele mais claramente e ficou muito satisfeito. E me prometeu — se eu fosse em frente —, uma vez sossegada a cidade, dar-me autorização para ir para o novo convento. Porque o alvoroço na cidade toda era grande como direi agora.

15. Depois de uns dois ou três dias juntaram-se alguns dos regedores e o corregedor e os do cabildo e todos juntos disseram que de maneira nenhuma se permitiria, pois adviria reconhecido dano à coisa pública. E tirariam o Santíssimo Sacramento e de maneira nenhuma tolerariam que continuasse. Fizeram juntar-se todas as Ordens para que dessem seu parecer. De cada uma, dois letrados. Uns calavam, outros condenavam. Ao final, concluíram que logo se desfizesse. Só um presentado8 da Ordem de São Domingos, ainda que fosse contra — não contra o mosteiro, mas contra a ideia de que fosse pobre —, disse que não era uma coisa que se pudesse desfazer assim. Disse que se verificasse bem, que havia tempo para isso. Disse que era um caso para o bispo, ou coisas dessa sorte que foram de grande proveito. Porque, apesar da fúria, foi decidido não levar a decisão a efeito logo. Era, enfim, porque tinha que ser, pois o Senhor se agradava e todos podiam pouco contra sua vontade. Davam suas razões e tinham um bom zelo e, assim, sem que ofendessem a Deus, faziam sofrer a mim e a algumas pessoas que apoiavam o mosteiro, pois havia algumas, e passaram por muita perseguição.

16. Era tanto o alvoroço do povo que não se falava de outra coisa. E todos a condenar-me e a ir ao provincial e ao meu mosteiro. Eu nenhuma tristeza sentia pelo que diziam de mim. Não mais do que se não dissessem. Mas tinha medo de que se desfizesse o mosteiro. Isso me dava uma grande tristeza e ver que perdiam crédito as pessoas que me ajudavam e ver a grande provação por que passavam, pois do que diziam de mim eu antes me alegrava. E se tivesse tido alguma fé, não teria tido nenhuma alteração, mas faltar algo em uma virtude basta para adormecer todas. E assim estive muito atormentada os dois dias em que houve essas juntas de que falei, no povoado. E estando bem desanimada me disse o Senhor: "Não sabes que sou poderoso? De que tens medo?". E me assegurou que não se desfaria o mosteiro. Com isso fiquei muito consolada.

17. Enviaram ao Conselho Real as informações. Veio uma provisão para que se fizesse um relato sobre como se tinha feito o mosteiro. E aqui começou um grande processo, porque representantes da cidade foram à Corte, e tiveram que ir da parte do mosteiro, e nem havia dinheiro nem sabia eu o que fazer. O Senhor proveu, pois nunca o meu padre provincial mandou que eu deixasse de me envolver nisso. Porque é tão amigo da virtude que, ainda que não ajudasse, não queria ficar contra. Não me deu licença, até ver em que pé ficaria, de vir para cá. Estas servas de Deus estavam sozinhas e faziam mais com suas orações do que com o tanto que eu andava negociando, ainda que tenha sido necessária muita diligência.

Às vezes parecia que faltava tudo. Especialmente um dia, antes que viesse o provincial, pois a priora me mandou que eu não falasse nada e era para deixar tudo. Eu fui a Deus e disse-lhe: "Senhor, essa casa não é minha. Para Vós foi feita. Agora que não há ninguém que negocie por ela, faça-o Vossa Majestade". Fiquei tão descansada e tão sem tristeza como se tivesse o mundo inteiro negociando por mim. E logo considerei o negócio seguro.

18. Um grande servo de Deus, sacerdote, que sempre me havia ajudado, amigo de toda perfeição, foi à Corte envolver-se no negócio e trabalhava muito. E o cavalheiro santo — que já mencionei — fazia muito nesse caso e de todas as maneiras ajudava. Passou por muitas provações e perseguições e sempre em tudo eu o considerava como um pai, e ainda o considero. E naqueles que ajudavam o Senhor punha tanto fervor que cada um tomava a coisa como própria, como se nisso estivesse sua vida e sua honra e não lhes importava nada além de ser coisa em que a eles parecia que se servia ao Senhor. Pareceu claramente que Sua Majestade ajudava ao Mestre9 de que falei, clérigo, que também era um dos que me ajudavam muito e a quem o bispo pôs, de sua parte, em uma junta grande que se formou. E ele estava sozinho contra todos e, no fim, os aplacou, dizendo-lhes certos meios que bastaram para que se entretivessem muito. Mas nenhum meio bastava para que não voltassem logo a empenhar a vida, como se diz, em desfazer o mosteiro. Esse servo de Deus de quem falo foi quem deu os hábitos às monjas e quem instalou o Santíssimo Sacramento, e viu-se em grande perseguição.

Durou esse ataque quase meio ano. Contar em detalhe as grandes provações seria longo.

19. Espantava-me o tanto a que se dava o demônio contra umas mulherzinhas e como parecia um grande dano ao lugar apenas doze mulheres e a priora, pois não haveriam de ser mais — digo, parecia aos que se opunham — e de vida tão restrita. Porque se fosse dano ou erro, seria para elas mesmas. Para mais dano ao lugar não parece que houvesse jeito, mas eles viam tantos jeitos que com boa consciência contradiziam isso. Chegaram até a dizer que, se tivesse renda, aceitariam e o mosteiro poderia seguir em frente. Eu já estava tão cansada de ver o trabalho por que passavam todos os que me ajudavam, mais do que o meu, que me parecia que não seria ruim — até que se acalmassem — ter renda e abandoná-la depois. E outras vezes, como sou ruim e imperfeita, me parecia que talvez o Senhor quisesse isso, já que sem ela não sairíamos disso, e já aceitasse esse acordo.

20. Estando em oração na noite anterior ao acordo, e já iniciada negociação, disse-me o Senhor que não o fizesse. Disse que, se começássemos a ter renda, não deixariam depois que a deixássemos, e algumas outras coisas. Na mesma noite me apareceu o santo frei Pedro de Alcântara, que já estava morto, e antes de morrer me escrevera — quando soube da grande perseguição e oposição que tínhamos — que se alegrava de que a fundação fosse com uma oposição tão grande, pois era sinal de que se serviria muitíssimo ao Senhor neste mosteiro, já que o demônio se empenhava tanto para que não se fizesse. E que de maneira nenhuma eu concordasse em ter renda. E ainda duas ou três vezes me persuadiu na carta e que, fazendo isso, tudo viria a ser feito como eu queria. Eu já o tinha visto duas vezes depois que morreu, e vi a grande glória que tinha. E assim não me deu medo, antes, alegrei-me muito. Porque sempre aparecia como corpo glorificado, cheio de grande glória, e dava-me enorme glória vê-lo. Lembro-me que me disse na primeira vez que o vi, entre outras coisas, o grande gozo que tinha e que feliz penitência tinha sido aquela que tinha feito, que lhe havia alcançado tão grande prêmio.

Por crer que já disse algo sobre isso, não digo aqui mais do que como, dessa vez, mostrou rigor comigo e só me disse que de nenhuma maneira aceitasse renda. E perguntou por que eu não queria aceitar seu conselho, e desapareceu depressa.

21. Eu fiquei assustada e logo no dia seguinte disse ao cavalheiro — que era quem em tudo acudia, e o que mais fazia nesse negócio — o que se passava e que não era para concordar de maneira nenhuma em ter renda, mas que fosse adiante o processo. Ele estava muito mais forte do que eu nessa posição e alegrou-se muito. Depois me contou quão de má vontade tratava do acordo.

22. Depois voltou a se levantar outra pessoa, e muito serva de Deus e com muito bom zelo. Já que estava em bons termos, disse que se pusesse na mão dos letrados. Aí eu tive grandes desassossegos. Porque alguns dos que estavam comigo concordavam, e foi esse o emaranhado de mais difícil digestão de todos os que fez o demônio. O Senhor ajudou em tudo, pois dito assim em resumo não se pode dar bem a entender o que se passou nos dois anos desde que foi iniciada esta casa até que se deu por terminada. Esse último meio ano, e o primeiro, foi o mais trabalhoso.

23. Então, aplacada um pouco a cidade, usou tão boa manha o padre presentado dominicano que nos ajudava! Ainda que não estivesse presente, mas o Senhor o tinha trazido num momento em que nos fez grande bem. E pareceu que Sua Majestade o havia trazido só para esse fim, pois ele me disse, depois, que não tinha tido por que vir, e ficou sabendo do processo por acaso. Ficou o tempo que foi preciso. Tendo ido de volta, procurou por algumas vias fazer com que o nosso padre provincial nos desse licença para eu vir para esta casa com algumas outras comigo, pois parecia quase impossível dá-la tão rápido, para rezar o ofício e ensinar às que ficavam aqui. Foi um enorme consolo para mim o dia que viemos.

24. Estando fazendo oração na igreja antes de entrar no mosteiro, estando quase em arrebatamento, vi a Cristo que com grande amor se mostrou a mim recebendo-me e pondo-me uma coroa e agradecendo o que eu havia feito por sua Mãe.

De outra vez, estando todas no coro em oração depois de Completas, vi Nossa Senhora com enorme glória, com um manto branco e debaixo dele parecia abrigar todas nós. Percebi quão alto grau de glória daria o Senhor às desta casa.

25. Tendo se iniciado a reza do ofício, foi muita a devoção que o povo começou a ter com esta casa. Foram recebidas mais monjas e começou o Senhor a mover os que mais nos tinham perseguido a nos favorecer muito e dar esmola. E, assim, aprovavam o que tanto tinham reprovado. E pouco a pouco se afastaram do processo e diziam que já percebiam ser obra de Deus, já que com tanta oposição Sua Majestade havia querido que fosse em frente.

26. E não há, no presente, ninguém a quem pareça que teria sido certo deixar de fazer o mosteiro. E, assim, têm em tanta conta prover-nos com esmolas, que sem haver demanda nem pedir a ninguém, desperta-os o Senhor para que nos enviem e vivemos sem que nos falte o necessário, e espero no Senhor que será assim sempre. Porque, como são poucas, se fizerem o que devem — como Sua Majestade agora lhes dá a graça para fazer —, estou segura de que não lhes faltará nem terão necessidade de ser cansativas nem de importunar a ninguém, pois o Senhor as terá em seu cuidado, como até agora. Pois é para mim enorme consolo ver-me metida aqui com almas tão desapegadas. Sua conversa é para entender como progredirão no serviço de Deus. A solidão é seu consolo, e pensar em ver alguém que não seja para ajudá-las a entender mais o amor de seu Esposo é trabalho para elas, ainda que sejam parentes próximos. E assim não vem ninguém a esta casa, a não ser quem trata disso. Porque nem as alegra, nem alegra a eles. Não é sua linguagem outra coisa senão falar de Deus e, assim, não entendem, nem as entende, a não ser quem fala a mesma linguagem.

Observamos a Regra de Nossa Senhora do Carmo, e, obedecida essa sem relaxamento, mas como a ordenou frei Hugo, cardeal de Santa Sabina, que foi dada no ano de 1248, no ano V do Pontificado do papa Inocêncio IV.

27. Parece-me que serão bem empregados todos os trabalhos por que se passou. Agora, ainda que tenha algum rigor, porque não se come carne nunca sem necessidade e há jejum de oito meses e outras coisas, como se vê na mesma primitiva Regra, de muitas coisas ainda fazem pouco as irmãs e observam outras coisas que, para cumprir essa regra com mais perfeição, nos pareceram necessárias. E espero no Senhor que há de avançar muito o que foi começado, como Sua Majestade me disse.

28. A outra casa que a beata de quem falei procurava fazer também o Senhor favoreceu e está instalada em Alcalá. E não faltou a ela muita oposição nem deixou de passar por grandes provações. Sei que se observa nela toda a vida religiosa conforme a essa primitiva Regra nossa. Queira o Senhor que seja tudo para glória e louvor seu e da gloriosa Virgem Maria, cujo hábito vestimos, amém.

29. Creio que o senhor vai se enfadar com o longo relato que fiz sobre este mosteiro. E ficou muito curto para as muitas provações e maravilhas que o Senhor realizou nisso e de que há muitas testemunhas que poderão jurar. E assim eu peço ao senhor, pelo amor de Deus, que se lhe parecer que deve riscar o resto do que aqui escrevi, o que toca a este mosteiro, o senhor conserve e, morta eu, dê às irmãs que aqui estiverem, pois animará muito a servir a Deus as que vierem e a procurar que não caia o que se começou, mas sim que vá sempre em frente, quando virem o muito que se empenhou Sua Majestade em fazê-la por meio de uma coisa tão ruim e baixa quanto eu.

30. E, já que o Senhor quis tão particularmente se manifestar em favorecer para que se fizesse, parece-me que fará muito mal e será muito castigada por Deus a que começar a relaxar a perfeição que o Senhor começou e favoreceu aqui para se levar com tanta suavidade. Pois vê-se muito bem que é tolerável e se pode levar sem cansaço e a grande instalação que têm para viver sempre nele as que, sozinhas, quiserem desfrutar de seu esposo Cristo. Pois é isto o que sempre haverão de pretender, e sós com Ele só, e não ser mais de treze. Porque isso eu aprendi por muitas opiniões que convém, e vi por experiência. Porque para levar o espírito que se leva e viver de esmola e sem demandas, não sustenta mais. E sempre creiam mais em quem com muito trabalho e oração de muitas pessoas procurou o que seria melhor para elas. E no grande contentamento e na alegria e na pouca provação que nesses anos que estamos nesta casa vemos ter todas, e com muito mais saúde do que costumavam, se verá ser isso o que convém. E a quem parecer áspero jogue a culpa em sua falta de espírito e não no que aqui se observa, já que pessoas delicadas e não saudáveis, porque têm o espírito, podem levar com tanta suavidade, e vão a outro mosteiro, onde se salvarão conforme seu espírito.