5
O complexo industrial-prisional
Para as empresas privadas, a mão de obra prisional é um pote de ouro. Sem greves. Sem organização sindical. Sem plano de saúde, seguro-desemprego ou indenização em caso de acidente. Sem barreiras linguísticas, como em países estrangeiros. Novas prisões-leviatã estão sendo construídas nos milhares de hectares sinistros de fábricas do lado de dentro dos muros. Os prisioneiros fazem processamento de dados para a Chevron, fazem reservas por telefone para a TWA, criam porcos, removem esterco, fabricam placas de circuito, limusines, colchões d’água e lingerie para a Victoria’s Secret, tudo por uma fração do custo do “trabalho livre”.
Linda Evans e Eve Goldberg
100
A exploração da mão de obra prisional por corporações privadas é apenas um dos aspectos de uma série de relações que ligam corporações, governo, comunidades correcionais e mídia. Essas relações constituem o que chamamos de complexo industrial-prisional. O termo “complexo industrial-prisional” foi introduzido por ativistas e estudiosos para contestar a crença predominante de que o aumento dos níveis de criminalidade era a principal causa do crescimento das populações carcerárias. Na realidade, argumentaram, a construção de prisões e a eventual necessidade de ocupar essas novas estruturas com corpos humanos foram guiadas por ideologias racistas e pela busca desenfreada de lucro. O historiador social Mike Davis usou o termo pela primeira vez para se referir ao sistema penal da Califórnia, que, observou ele, já na década de 1990 havia começado a rivalizar com o agronegócio e a expansão imobiliária como uma das principais forças econômicas e políticas.
101
Para compreender o significado social da prisão hoje, no contexto de um complexo industrial-prisional em desenvolvimento, é preciso que a punição, ou o castigo, seja dissociada conceitualmente de sua ligação aparentemente indissolúvel com o crime. Com que frequência encontramos a expressão “crime e castigo”? Em que medida a perpétua repetição dessa expressão na literatura, como título de programas de televisão, tanto fictícios como documentais, e nas conversas diárias tornou extremamente difícil pensar na punição para além dessa conexão? Como essas representações colocaram a prisão em uma relação causal com o crime como um efeito natural, necessário e permanente, inibindo assim debates sérios sobre a viabilidade da prisão hoje?
A noção de complexo industrial-prisional exige entendimentos do processo de punição que levem em conta estruturas e ideologias econômicas e políticas, em vez de se concentrar de forma míope na conduta criminal individual e nos esforços para “conter o crime”. O fato, por exemplo, de muitas corporações com mercados globais agora contarem com as prisões como uma importante fonte de lucro nos ajuda a entender a rapidez com que as instituições prisionais começaram a proliferar justamente no momento em que estudos oficiais indicavam que as taxas de criminalidade estavam caindo. A ideia de um complexo industrial-prisional também sustenta que a racialização das populações carcerárias — e isso não é verdade apenas no que diz respeito aos Estados Unidos, mas também à Europa, à América do Sul e à Austrália — não é incidental. Dessa forma, as críticas ao complexo industrial-prisional feitas por ativistas e estudiosos abolicionistas estão estreitamente ligadas às críticas à persistência global do racismo. Os movimentos de combate ao racismo e outros movimentos de justiça social não dão a devida atenção às políticas de encarceramento. Na Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo realizada em 2001 em Durban, na África do Sul, alguns indivíduos que atuam em campanhas abolicionistas em vários países tentaram levar essa conexão à atenção da comunidade internacional, salientando que o sistema de prisões em expansão em todo o mundo ao mesmo tempo depende de estruturas racistas e continua a promovê-las, mesmo que seus defensores afirmem categoricamente que ele é neutro no que diz respeito a raça.
Alguns críticos do sistema prisional empregam o termo “complexo industrial-correcional”, e outros, “complexo industrial-penal”. Esses termos e o termo que escolhi destacar, “complexo industrial-prisional”, ecoam claramente o conceito histórico de “complexo industrial-militar”, cujo uso remonta à presidência de Dwight Eisenhower. Pode parecer irônico que um presidente republicano tenha sido o primeiro a ressaltar uma crescente e perigosa aliança entre os mundos militar e corporativo, mas isso claramente parecia correto para ativistas antiguerra e estudiosos na época da Guerra do Vietnã. Hoje, alguns ativistas argumentam de forma equivocada que o complexo industrial-prisional está ocupando o espaço deixado pelo complexo industrial-militar. No entanto, a chamada Guerra contra o Terror iniciada pelo governo Bush depois dos ataques ao World Trade Center, em 2001, deixou bem claro que os vínculos entre militares, corporações e governo estão ficando cada vez mais fortes, e não mais fracos.
Uma maneira mais convincente de definir a relação entre o complexo industrial-militar e o complexo industrial-prisional seria chamá-la de simbiótica. Esses dois complexos se apoiam e se promovem mutuamente e, na verdade, muitas vezes compartilham tecnologias. No início da década de 1990, quando a produção de armamentos estava temporariamente em declínio, essa conexão entre a indústria militar e a justiça criminal/indústria da punição foi reconhecida em um artigo publicado em 1994 no
Wall Street Journal
intitulado “Making Crime Pay: The Cold War of the ’90s” [Fazendo o crime compensar: A Guerra Fria dos anos 1990].
Parte das empresas da área de defesa também está faturando, identificando uma nova linha lógica de negócios para ajudá-las a compensar os cortes militares. Westinghouse Electric Corp., Minnesota Mining and Manufacturing Co., GDE Systems (uma divisão da antiga General Dynamics) e Alliant Techsystems Inc., por exemplo, estão investindo em equipamentos de combate ao crime e criaram divisões especiais para adequar sua tecnologia de defesa às ruas dos Estados Unidos.
102
O artigo descreve uma conferência patrocinada pelo Instituto Nacional de Justiça, o braço de pesquisa do Departamento de Justiça, intitulada “Tecnologias de Aplicação da Lei no século XXI”. O secretário de Defesa foi um dos principais palestrantes da conferência, que explorou temas como “O papel da indústria de defesa, particularmente para duplo emprego e conversão”.
Assuntos em pauta: tecnologia da indústria de defesa que poderia diminuir a violência empregada no combate ao crime. Sandia National Laboratories, por exemplo, está fazendo experimentos com uma espuma densa que pode ser pulverizada em suspeitos, deixando-os temporariamente cegos e surdos sob bolhas respiráveis. Stinger Corporation está desenvolvendo “armas inteligentes”, que disparam apenas quando acionadas pelo proprietário, e faixas de obstáculos retráteis com espigões para serem colocadas diante de veículos em fuga. Westinghouse está promovendo o “carro inteligente”, no qual minicomputadores poderiam ser conectados a servidores centrais na delegacia, permitindo o fichamento imediato de prisioneiros, bem como trocas rápidas de informação (...)
103
Uma análise da relação entre o complexo industrial-militar e o complexo industrial-prisional, porém, não leva em conta apenas a transferência de tecnologia dos militares para a indústria da aplicação da lei. O que pode ser ainda mais importante para a nossa discussão é em que medida eles compartilham características estruturais importantes. Ambos os sistemas geram enormes lucros a partir de processos de destruição social. Precisamente aquilo que é vantajoso para as corporações, autoridades eleitas e agentes do governo com interesses óbvios na expansão desses sistemas é o que gera sofrimento e devastação nas comunidades pobres e racialmente dominadas nos Estados Unidos e em todo o mundo. A transformação dos corpos encarcerados — e eles são, em sua maioria, corpos de pessoas de cor — em fontes de lucro que consomem e, muitas vezes, produzem todo tipo de mercadoria devora recursos públicos que poderiam ser utilizados em programas sociais nas áreas de educação, habitação, assistência à infância, lazer e combate às drogas.
A punição não constitui mais uma área marginal da grande economia. Empresas que produzem todos os tipos de bens — de edifícios a dispositivos eletrônicos e produtos de higiene — e fornecem todo tipo de serviço — de refeições a terapias e assistência médica — estão agora diretamente envolvidas no negócio da punição. Ou seja, empresas que poderíamos presumir que estivessem muito distantes do trabalho de punição estatal desenvolveram importantes interesses na perpetuação de um sistema prisional cuja obsolescência histórica torna-se, portanto, muito mais difícil de reconhecer. Foi durante a década de 1980 que os laços corporativos com o sistema penitenciário se tornaram mais abrangentes e profundos do que nunca. Ao longo da história do sistema prisional dos Estados Unidos, contudo, os prisioneiros sempre constituíram uma fonte potencial de lucro. Por exemplo, serviram de valiosos sujeitos na pesquisa médica, posicionando assim a prisão como um elo importante entre universidades e empresas.
Durante o período pós-Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os experimentos médicos em populações carcerárias ajudaram a acelerar o desenvolvimento da indústria farmacêutica. De acordo com Allen Hornblum,
o número de programas americanos de pesquisa médica que recorriam a prisioneiros como cobaias se expandiu rapidamente à medida que médicos e pesquisadores zelosos, universidades que concediam financiamentos e uma indústria farmacêutica em expansão competiam por uma maior participação no mercado. As pessoas à margem da sociedade eram, como sempre tinham sido, fonte de lucro para a indústria médico-farmacêutica, e os prisioneiros, em particular, iriam se tornar matéria-prima para fins lucrativos e avanço acadêmico no pós-guerra.
104
O livro de Hornblum,
Acres of Skin: Human Experiments at Holmesburg Prison
[Hectares de pele: experimentos humanos na prisão de Holmesburg], destaca a carreira do dermatologista e pesquisador Albert Kligman, professor da Universidade da Pensilvânia. Kligman, o “Pai do Retin-A”,
105
realizou centenas de experiências usando como cobaias os detentos da prisão de Holmesburg e, no processo, treinou muitos pesquisadores para usar técnicas que mais tarde foram reconhecidas como métodos antiéticos de pesquisa.
Quando o Dr. Kligman entrou na antiga prisão, ficou impressionado com o potencial que ela representava para sua pesquisa. Em 1966, recordou em uma entrevista dada a um jornal: “Tudo o que eu via diante de mim eram hectares de pele. Era como um agricultor contemplando um campo fértil pela primeira vez.” As centenas de presos caminhando sem rumo diante dele representavam uma oportunidade única para pesquisas médicas ilimitadas e sem interrupções. Ele a descreveu nessa entrevista como “uma colônia antropoide, majoritariamente saudável” em condições de controle perfeitas.
106
Quando o programa de experimentos foi encerrado, em 1974, e novas regulamentações federais proibiram o uso de prisioneiros como cobaias em pesquisas acadêmicas e corporativas, diversos cosméticos e cremes para a pele já haviam sido testados. Alguns tinham causado grandes males aos prisioneiros e não puderam ser comercializados em sua forma original. Johnson & Johnson, Ortho Pharmaceutical e Dow Chemical são apenas algumas das empresas que obtiveram grandes benefícios materiais dessas experiências.
O impacto potencial do envolvimento corporativo no sistema de punição poderia ter sido vislumbrado nos experimentos de Kligman na prisão de Holmesburg nos anos 1950 e 1960. No entanto, foi apenas na década de 1980 e com a crescente globalização do capitalismo que o grande afluxo de capital para a economia correcional teve início. Os processos de desindustrialização que resultaram no fechamento de fábricas em todo o país criaram um enorme grupo de seres humanos vulneráveis, indivíduos para quem não havia nenhum emprego disponível. Isso também levou mais pessoas a recorrer a serviços sociais como o Programa de Assistência a Famílias com Crianças Dependentes e outras agências de assistência social. Não foi acidental que “as políticas de bem-estar social como as conhecemos” — para usar as palavras do ex-presidente Clinton — tenham sido severamente atacadas e, por fim, extintas. Isso ficou conhecido como “reforma do bem-estar social”. Ao mesmo tempo, vivenciamos a privatização e a corporativização de serviços anteriormente geridos pelo governo. O exemplo mais óbvio desse processo de privatização foi a transformação de hospitais e serviços de saúde administrados pelo governo em um gigantesco complexo do que chamamos eufemisticamente de organizações de manutenção da saúde. Nesse sentido, podemos também falar de um “complexo industrial-médico”.
107
Na verdade, há uma conexão entre uma das primeiras corporações de hospitais particulares, a Hospital Corporation of America — hoje conhecida como HCA — e a Corrections Corporation of America (CCA), empresa do setor carcerário. Os membros da diretoria da HCA, que hoje tem duzentos hospitais e setenta centros cirúrgicos ambulatoriais em 24 estados norte-americanos, na Inglaterra e na Suíça, ajudaram a fundar a Corrections Corporation of America em 1983.
No contexto de uma economia movida por uma busca sem precedentes de lucro, não importa qual seja o custo humano, e pelo desmantelamento concomitante do estado de bem-estar social, a capacidade das pessoas pobres de sobreviver ficou cada vez mais limitada pela presença ameaçadora da prisão. O grande projeto de construção de prisões que começou na década de 1980 produziu os meios de concentrar e gerenciar o que o sistema capitalista tinha declarado implicitamente ser um excedente humano. Nesse ínterim, as autoridades eleitas e a mídia dominante justificavam as novas práticas draconianas de sentenciamento, que mandavam cada vez mais pessoas para a prisão na tentativa frenética de construir mais e mais penitenciárias, argumentando que essa era a única maneira de proteger nossas comunidades de assassinos, estupradores e ladrões.
A mídia, especialmente a televisão (...), tem um grande interesse em perpetuar a noção de que a criminalidade está fora de controle. Com a nova concorrência de redes de televisão a cabo e canais de notícias 24 horas, noticiários e programas sobre crimes (...) proliferaram loucamente. De acordo com o Centro de Mídia e Negócios Públicos, a cobertura de crimes foi o tópico número um dos noticiários noturnos na última década. De 1990 a 1998, as taxas de homicídio caíram pela metade em todo o país, mas as histórias de homicídios nas três principais redes de televisão aumentaram quase quatro vezes.
108
No mesmo período em que as taxas de criminalidade estavam diminuindo, as populações carcerárias cresceram. De acordo com um relatório recente do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, no final de 2001, havia 2.100.146 pessoas encarceradas no país.
109
Os termos e números que aparecem nesse relatório do governo requerem uma discussão preliminar. Eu hesito em fazer um uso não mediado dessas evidências estatísticas porque isso pode desencorajar justamente o pensamento crítico que deve ser suscitado por uma compreensão do complexo industrial-prisional. É precisamente a abstração numérica que desempenha um papel central na criminalização de quem vivencia o infortúnio do encarceramento. Existem muitos tipos diferentes de homens e mulheres nas prisões, cadeias, centros de detenção do Serviço de Imigração e Naturalização e centros de detenção militares cujas vidas são apagadas pelos números do Departamento de Estatísticas Judiciais. Os números não fazem distinção entre a mulher que está presa por tráfico de drogas e o homem que está preso por ter matado a esposa, homem que pode, inclusive, passar menos tempo atrás das grades do que a mulher.
Com essa observação em mente, eis uma análise estatística mais detalhada: havia 1.324.465 pessoas em “prisões federais e estaduais”, 15.852 em “prisões territoriais”, 631.240 em “cadeias locais”, 8.761 em “centros de detenção do Serviço de Imigração e Naturalização”, 2.436 em “instalações militares”, 1.912 em “cadeias no território dos nativos” e 108.965 em “reformatórios juvenis”. Nos dez anos entre 1990 e 2000, 351 novos locais de confinamento foram inaugurados pelos estados e mais de 528 mil leitos foram criados, totalizando 1.320 instalações estatais, o que representou um aumento de 81%. Além disso, existem atualmente 84 prisões federais e 264 prisões privadas.
110
Os relatórios do governo nos quais constam esses números enfatizam como as taxas de encarceramento estão diminuindo. O relatório do Departamento de Estatísticas Judiciais intitulado “Prisioneiros em 2001” apresenta o estudo indicando que “a população carcerária do país cresceu 1,1%, número inferior ao crescimento anual médio de 3,8% desde o fim de 1995. Durante 2001, a população carcerária aumentou à taxa mais baixa desde 1972 e teve o menor crescimento absoluto desde 1979”.
111
Por menor que seja o aumento, esses números por si só desafiariam a imaginação se não estivessem tão ordenadamente classificados e racionalmente organizados. Para colocá-los em uma perspectiva histórica, tente imaginar como as pessoas nos séculos XVIII e XIX — e na verdade durante a maior parte do século XX — que acolheram com satisfação o novo, e na época extraordinário, sistema de punição chamado prisão teriam reagido se soubessem que um número tão colossal de vidas acabaria sendo reivindicado permanentemente por essa instituição. Já compartilhei minhas memórias de um tempo, há três décadas, em que a população carcerária correspondia a um décimo dos números atuais.
O complexo industrial-prisional é alimentado por padrões de privatização que, vale lembrar, também transformaram drasticamente os serviços de saúde, a educação e outras áreas de nossas vidas. Além disso, as tendências de privatização da prisão — tanto a crescente presença de corporações na economia prisional quanto a abertura de prisões privadas — lembram os esforços históricos para criar uma indústria de punição lucrativa baseada no novo suprimento de trabalhadores negros “livres” no período pós-Guerra Civil. Steven Donziger, com base no trabalho do criminologista norueguês Nils Christie, argumenta:
Empresas que atendem o sistema de justiça criminal precisam de quantidade suficiente de matéria-prima para garantir o crescimento em longo prazo. (...) No campo da justiça criminal,
a matéria-prima são os prisioneiros
, e a indústria fará o que for necessário para garantir um abastecimento constante. Para que o suprimento de prisioneiros cresça, as políticas da justiça criminal devem garantir um número suficiente de americanos encarcerados, independentemente de a criminalidade estar aumentando ou de esse encarceramento ser necessário.
112
No período pós-Guerra Civil, os homens e mulheres negros emancipados constituíam uma enorme reserva de mão de obra em um momento em que os donos das
plantations
— e das indústrias — não podiam mais contar com a escravidão, como tinham feito no passado. Essa mão de obra ficou cada vez mais disponível para uso por agentes privados, precisamente por intermédio do sistema de arrendamento de condenados, discutido anteriormente, e de sistemas relacionados, como a servidão por dívida. Lembremos que, depois do fim da escravidão, a população carcerária mudou drasticamente, de modo que no Sul não demorou a se tornar desproporcionalmente negra. Essa transição preparou o terreno histórico para a fácil aceitação de populações carcerárias desproporcionalmente negras nos dias atuais. De acordo com dados do Departamento de Estatísticas Judiciais, em 2002, os afro-americanos representavam a maioria dos detentos nas prisões dos condados e nas prisões estaduais e federais, totalizando 803.400 presos negros — 118.600 a mais do que o número total de presos brancos. Se incluirmos os latinos, teremos que acrescentar a essa conta outros 283 mil corpos de pessoas de cor.
113
Conforme a taxa de encarceramento de prisioneiros negros continua a aumentar, a composição racial da população carcerária se aproxima da mesma proporção de prisioneiros negros para prisioneiros brancos que vigorava na época dos sistemas de arrendamento de condenados e de grupos de presos acorrentados que executavam trabalhos forçados nos condados. Quer essa matéria-prima humana seja usada como mão de obra, quer seja usada para consumir bens fornecidos por um crescente número de corporações diretamente envolvidas no complexo industrial-prisional, fica claro que os corpos negros são considerados dispensáveis no “mundo livre”, mas são encarados como uma importante fonte de lucro no sistema prisional.
A privatização característica do arrendamento de condenados tem seus paralelos contemporâneos, já que empresas como a CCA e a Wackenhut literalmente administram prisões com fins lucrativos. No início do século XXI, as diversas empresas privadas do setor penitenciário em operação nos Estados Unidos possuíam e administravam instituições que abrigavam 91.828 prisioneiros federais e estaduais.
114
Os estados do Texas e de Oklahoma têm o maior número de pessoas encarceradas em prisões privadas. Mas o Novo México aprisiona 44% de sua população carcerária em instalações privadas, e estados como Montana, Alasca e Wyoming transferiram mais de 25% da sua população carcerária para empresas privadas.
115
Em arranjos que lembram o sistema de arrendamento de condenados, os governos federal e estadual e os governos dos condados pagam às empresas privadas uma taxa por cada preso, o que significa que essas empresas privadas têm interesse em reter os detentos na prisão pelo maior tempo possível e em manter suas instalações cheias.
No estado do Texas, há 34 prisões estatais administradas por empresas privadas nas quais cerca de 5.500 prisioneiros de outros estados estão encarcerados. Essas instalações geram cerca de 80 milhões de dólares por ano para o Texas.
116
Um exemplo dramático envolve a Capital Corrections Resources, Inc., que administra o Centro de Detenção de Brazoria, uma instalação do governo localizada a 65 quilômetros de Houston, no Texas. Brazoria chamou a atenção em agosto de 1997, quando um vídeo veiculado em rede nacional mostrou os prisioneiros de lá sendo mordidos por cães policiais e violentamente golpeados na virilha e pisoteados pelos guardas. Os presos, forçados a rastejar no chão, também levavam choques de armas paralisantes, enquanto os guardas — que se referiam a um prisioneiro negro como “garoto” — gritavam “rastejem mais rápido!”.
117
Após a divulgação desse vídeo, o estado do Missouri retirou seus 415 prisioneiros abrigados no Centro de Detenção de Brazoria. Embora poucas referências tenham sido feitas nas reportagens que acompanharam a divulgação dos vídeos ao caráter indiscutivelmente racializado do comportamento ultrajante dos guardas, no trecho do vídeo de Brazoria exibido em rede nacional era possível perceber que os prisioneiros negros eram os principais alvos dos ataques.
O vídeo de 32 minutos, que as autoridades de Brazoria alegaram ser um vídeo de treinamento — supostamente mostrando aos guardas “o que não fazer” —, foi filmado em setembro de 1996, depois que um guarda supostamente sentiu cheiro de maconha na prisão. Evidência importante dos abusos que acontecem por trás dos muros e portões das prisões privadas, o vídeo veio a público em conexão com um processo movido por um dos prisioneiros que foi mordido por um cachorro; ele estava processando o condado de Brazoria e pedia 100 mil dólares de indenização. As ações dos carcereiros de Brazoria — que, segundo os prisioneiros de lá, eram muito piores do que as retratadas no vídeo — são um indicativo não apenas da forma como muitos prisioneiros são tratados em todo o país, mas de atitudes generalizadas em relação às pessoas encarceradas nas cadeias e prisões.
De acordo com uma reportagem da Associated Press, os prisioneiros do Missouri, depois de serem transferidos de Brazoria de volta para seu estado de origem, disseram ao
Kansas City Star
:
[Os] guardas no Centro de Detenção do Condado de Brazoria usavam aguilhões e outras formas de intimidação para impor respeito e forçar os prisioneiros a dizer: “Eu adoro o Texas.” “O que vocês viram no vídeo não foi nem uma fração do que aconteceu naquele dia”, disse o preso Louis Watkins, referindo-se à filmagem da batida no pavilhão em 18 de setembro de 1996. “Nunca vi nada parecido nos filmes.”
118
Em 2000, havia 26 corporações com fins lucrativos atuando no setor penitenciário nos Estados Unidos, que operavam cerca de 150 instituições em 28 estados.
119
As duas maiores dessas empresas, a CCA e a Wackenhut, controlam 76,4% do mercado privado de prisões no mundo. A CCA está sediada em Nashville, Tennessee, e, até 2001, sua maior acionista era a multinacional sediada em Paris Sodexho Alliance, que, por meio de sua subsidiária americana Sodexho Marriott, fornecia serviços de alimentação a novecentas faculdades e universidades nos Estados Unidos. O Prison Moratorium Project, organização que promove o ativismo juvenil, liderou uma campanha de protesto contra a Sodexho Marriott em campi por todo o país. Entre os campi que deixaram de usar os serviços da Sodexho estavam os da SUNY Albany, da Goucher College e da James Madison University. Os estudantes já tinham feito protestos pacíficos e organizado manifestações em mais de cinquenta campi quando a Sodexho finalmente se desfez de sua participação na CCA, no outono de 2001.
120
Embora as prisões privadas representem uma pequena fatia das prisões nos Estados Unidos, o modelo de privatização está rapidamente se tornando o principal modo de organizar a punição em muitos outros países.
121
Essas empresas tentaram se aproveitar da expansão da população carcerária feminina, tanto nos Estados Unidos quanto no restante do mundo. Em 1996, a primeira prisão feminina privada foi inaugurada pela CCA em Melbourne, na Austrália. O governo de Victoria “adotou o modelo de privatização dos Estados Unidos, de acordo com o qual o financiamento, o projeto, a construção e a propriedade da prisão são concedidos a uma empresa contratada, e o governo paga a ela pela construção ao longo de vinte anos. Isso significa que é praticamente impossível remover a empresa, porque ela é dona da prisão”.
122
Como consequência direta da campanha organizada por grupos de ativistas antiprisionais em Melbourne, o estado de Victoria cancelou o contrato com a CCA em 2001. No entanto, uma parcela significativa do sistema prisional da Austrália continua privatizada. No outono de 2002, o governo de Queensland renovou o contrato com a Wackenhut para administrar uma prisão com 710 leitos em Brisbane. O valor do contrato de cinco anos foi de 66,5 milhões de dólares. Além da instalação em Brisbane, a Wackenhut administra outras onze prisões na Austrália e na Nova Zelândia e fornece serviços médicos em onze prisões públicas no estado de Victoria.
123
No comunicado à imprensa que anunciava a renovação desse contrato, a Wackenhut descreveu suas atividades comerciais ao redor do mundo da seguinte forma:
A WCC, líder mundial na indústria carcerária privada, tem contratos/concessões para administrar sessenta centros de detenção/instituições correcionais na América do Norte, Europa, Austrália, África do Sul e Nova Zelândia, totalizando cerca de 43 mil leitos. A WCC também fornece serviços de transporte de presos, monitoramento eletrônico para pessoas em prisão domiciliar, assistência médica nas prisões e serviços de saúde mental. A WCC oferece às agências governamentais uma abordagem completa para o desenvolvimento de novas instituições correcionais e de saúde mental que inclui projeto, construção, financiamento e administração.
124
Mas, para entender o alcance do complexo industrial-prisional, não basta evocar o poder cada vez maior do negócio da prisão privada. Por definição, essas empresas adulam o Estado dentro e fora dos Estados Unidos com a finalidade de obter contratos para construir e administrar prisões, unindo punição e lucro em um abraço ameaçador. Ainda assim, essa é apenas a dimensão mais visível do complexo industrial-prisional, e ela não deve nos fazer ignorar a corporativização mais abrangente, que é uma das características da punição contemporânea. Em comparação com épocas históricas anteriores, a economia carcerária não é mais um pequeno conjunto de mercados, identificável e passível de ser controlado. Muitas corporações, cujos nomes são facilmente reconhecíveis para os consumidores do “mundo livre”, descobriram novas possibilidades de expansão ao vender seus produtos para instituições correcionais.
Na década de 1990, a variedade de empresas que ganham dinheiro com prisões é realmente vertiginosa, indo da fabricante de sabão Dial Soap aos cookies da Famous Amos, da AT&T aos prestadores de serviços médicos. (...) Em 1995, a Dial Soap vendeu 100 mil dólares em produtos de sua marca apenas para o sistema prisional de Nova York. (...) Quando foi contratada para fornecer aos prisioneiros do estado do Texas seu substituto de carne à base de soja, a VitaPro Foods, de Montreal, no Canadá, fechou um contrato no valor de 34 milhões de dólares por ano.
125
Entre as muitas empresas que anunciam nas páginas amarelas do site corrections.com estão Archer Daniel Midlands, Nestle Foodservice, Ace Hardware, Polaroid, Hewlett-Packard, RJ Reynolds e as empresas de comunicação Sprint, AT&T, Verizon e Ameritech. Uma conclusão a que se pode chegar a partir disso é que, mesmo que fosse proibida a administração de prisões por empresas privadas — uma perspectiva realmente improvável —, o complexo industrial-prisional e suas muitas estratégias para obter lucro permaneceriam relativamente intactos. As prisões privadas são fontes diretas de lucro para as empresas que as administram, mas as prisões públicas estão tão completamente saturadas dos produtos e serviços lucrativos de empresas privadas que a distinção não é tão significativa quanto se poderia imaginar. As campanhas contra a privatização que apresentam as prisões públicas como alternativa adequada às prisões privadas podem ser enganosas. É verdade que uma das principais razões para a rentabilidade das prisões privadas é a mão de obra não sindicalizada que elas empregam, e essa importante distinção deve ser destacada. No entanto, as prisões públicas estão agora igualmente atadas à economia corporativa e constituem uma fonte cada vez maior de lucro capitalista.
O amplo investimento corporativo nas prisões aumentou significativamente as implicações do trabalho antiprisional. Isso significa que ativistas antiprisionais sérios precisam, em suas análises e estratégias de organização, estar dispostos a olhar a prisão muito além da simples instituição. A retórica da reforma prisional que sempre embasou as críticas dominantes ao sistema não vai funcionar nesta nova configuração. Se as abordagens reformistas tendiam a reforçar a permanência da prisão no passado, certamente não serão suficientes para questionar as relações econômicas e políticas que a sustentam hoje. Isso significa que, na era do complexo industrial-prisional, os ativistas devem levantar questões difíceis sobre a relação entre o capitalismo global e a disseminação de prisões que seguem o modelo dos Estados Unidos por todo o mundo.
A economia prisional global é indiscutivelmente dominada pelos Estados Unidos. Essa economia não consiste apenas nos produtos, serviços e ideias comercializados diretamente para outros governos, mas também exerce uma enorme influência sobre o desenvolvimento do estilo de punição estatal ao redor do mundo. Um exemplo drástico pode ser visto na oposição às tentativas da Turquia de transformar suas prisões. Em outubro de 2000, prisioneiros na Turquia, muitos dos quais associados a movimentos políticos de esquerda, começaram uma “greve de fome” como forma de expressar sua oposição à decisão do governo turco de inaugurar prisões do tipo “F-Type” americano. Em comparação com as instalações tradicionais no estilo de dormitórios, essas novas prisões consistem em celas onde ficam encarceradas de uma a três pessoas, algo a que os prisioneiros se opõem por causa dos regimes de isolamento que isso facilita e porque é muito mais provável que, nesse isolamento, aconteçam maus-tratos e tortura. Em dezembro de 2000, trinta presos foram mortos em confrontos com forças de segurança em vinte prisões.
126
Em setembro de 2002, mais de cinquenta presos morreram de fome, incluindo duas mulheres, Gulnihal Yilmaz e Birsen Hosver.
As prisões “F-Type” na Turquia foram inspiradas no recente surgimento da prisão de segurança supermáxima nos Estados Unidos, cujo objetivo seria controlar presos que de outra forma seriam impossíveis de controlar, mantendo-os em confinamento solitário permanente e submetendo-os a diferentes graus de privação sensorial. Em seu
Relatório Mundial 2002
, a Human Rights Watch dedicou especial atenção às preocupações suscitadas pela
proliferação de prisões de “segurança supermáxima” ultramodernas. Originalmente predominante nos Estados Unidos (...) o modelo
supermax
passou a ser cada vez mais adotado em outros países. Os prisioneiros confinados nessas instalações passavam uma média de 23 horas por dia em suas celas, submetidos a um isolamento social extremo, à ociosidade forçada e a oportunidades recreativas e educacionais extraordinariamente reduzidas. Enquanto as autoridades penitenciárias defendiam o uso de instalações de segurança supermáxima afirmando que elas abrigavam apenas os presos mais perigosos, insubordinados e propensos a escapar, havia poucas garantias no sentido de evitar que outros prisioneiros fossem transferidos de forma arbitrária ou discriminatória para essas instalações. Na Austrália, o inspetor dos serviços de custódia descobriu que alguns prisioneiros estavam sendo mantidos indefinidamente em unidades especiais de alta segurança sem saber o motivo de seu isolamento ou quando ele terminaria.
127
Entre os muitos países que construíram recentemente prisões de segurança supermáxima está a África do Sul. A construção da prisão de segurança supermáxima em Kokstad, na província de KwaZulu-Natal, foi concluída em agosto de 2000, mas a inauguração oficial só ocorreu em maio de 2002. Ironicamente, o motivo para o atraso foi a disputa por água entre a prisão e um novo projeto habitacional de baixo custo.
128
Ressalto a adoção da prisão de segurança supermáxima pela África do Sul por causa da aparente facilidade com que essa versão mais repressiva da prisão nos Estados Unidos se estabeleceu em um país que recentemente iniciou o projeto para construir uma sociedade democrática, não racista e não sexista. A África do Sul foi o primeiro país do mundo a criar garantias constitucionais para os direitos dos homossexuais e aboliu imediatamente a pena de morte após o fim do
apartheid
. No entanto, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, o sistema prisional sul-africano está se expandindo e se tornando cada vez mais opressivo. A empresa privada de serviços prisionais Wackenhut, dos Estados Unidos, fechou vários contratos com o governo sul-africano e, ao construir prisões privadas, legitima ainda mais a tendência de privatização (que afeta a disponibilidade de serviços básicos, dos serviços públicos à educação) na economia como um todo.
A participação da África do Sul no complexo industrial-prisional constitui um grande obstáculo à criação de uma sociedade democrática. Nos Estados Unidos, já sentimos os efeitos insidiosos e socialmente prejudiciais da expansão prisional. A expectativa social dominante é de que homens jovens negros, latinos, nativos americanos e oriundos do sudeste asiático — e cada vez mais também mulheres — passem naturalmente do mundo livre para a prisão, onde se supõe que seja seu lugar. Apesar dos importantes ganhos dos movimentos sociais antirracistas durante o último meio século, o racismo se esconde dentro das estruturas institucionais, e seu refúgio mais certo é o sistema prisional.
A prisão racista de diversos imigrantes oriundos de países do Oriente Médio após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a subsequente retenção de informações sobre o nome de um grande número de pessoas presas em centros de detenção do Serviço de Imigração, alguns dos quais pertencem e são administrados por corporações privadas, não pressagiam um futuro democrático. A detenção incontestada de um número cada vez maior de imigrantes sem documentos oriundos do hemisfério sul tem sido consideravelmente favorecida pelas estruturas e ideologias associadas ao complexo industrial-prisional. Não poderemos avançar na direção da justiça e da igualdade no século XXI se não estivermos dispostos a reconhecer o enorme papel desempenhado por esse sistema no sentido de ampliar o poder do racismo e da xenofobia.
A oposição radical ao complexo industrial-prisional global vê o movimento antiprisional como um meio vital para expandir o terreno no qual a busca pela democracia possa se desdobrar. Esse movimento é, portanto, antirracista, anticapitalista, antissexista e anti-homofóbico. Ele exige a abolição da prisão como a forma dominante de punição, mas ao mesmo tempo reconhece a necessidade de solidariedade genuína para com os milhões de homens, mulheres e crianças que estão atrás das grades. Um dos grandes desafios desse movimento é levar adiante um trabalho que crie ambientes mais humanos e habitáveis para as pessoas na prisão sem reforçar a permanência do sistema prisional. Como, então, alcançar o equilíbrio entre estar atento de maneira fervorosa às necessidades dos prisioneiros — exigindo condições menos violentas, o fim do abuso sexual estatal, melhores cuidados médicos e mentais, mais acesso a programas de tratamento para o vício em drogas, melhores oportunidades de trabalho educativo, sindicalização da mão de obra penitenciária, maior conexão com as famílias e as comunidades, penas mais curtas ou alternativas — e, ao mesmo tempo, defender alternativas às penas de encarceramento como um todo, o fim da construção de prisões e estratégias abolicionistas que questionam o lugar da prisão em nosso futuro?