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O Estado arrojado: da “redução
de risco” ao “manda ver!”


Em visita recente aos Estados Unidos, o presidente francês François Mitterrand fez um passeio pelo Vale do Silício, na Califórnia, onde esperava aprender mais sobre a criatividade e o espírito empreendedor que deu origem a tantas empresas ali. Durante o almoço, Mitterrand ouviu Thomas Perkins, sócio do fundo de capital de risco que lançou a Genentech Inc., exaltar as virtudes dos investidores arrojados que financiam os empreendedores. Perkins teve a fala cortada por Paul Berg, professor da Universidade de Stanford, ganhador do Prêmio Nobel pelo trabalho em engenharia genética. “Onde estavam vocês nas décadas de 1950 e 1960, quando foi preciso fazer todo o financiamento em ciência básica? A maioria das descobertas que têm alimentado a indústria foi feita nessa época.”

Henderson e Schrage, The Washington Post (1984)

O debate sobre o tipo de pesquisa que deve ser conduzida pelo setor público ou pelo setor privado tende a se resumir a uma discussão sobre duas características importantes. A primeira é o horizonte de tempo necessário (isto é, para a pesquisa “básica”) seguida do fato de que muitos investimentos em pesquisa contribuem para o bem público (dificultando a apropriação dos resultados por parte das empresas). Essas questões fornecem a justificativa para o financiamento do setor público e estabelecem o argumento clássico da falha do mercado para a pesquisa (Bush, 1945).

O que não é tão bem compreendido é o fato de que o financiamento do setor público geralmente acaba fazendo muito mais do que corrigir falhas de mercado. Por estar mais disposto a se engajar no mundo da incerteza knightiana, investindo em desenvolvimento de tecnologia no estágio inicial, o setor público pode de fato criar novos produtos e os mercados correspondentes. Dois exemplos incluem seu papel no sonho que tornou possível a internet ou a nanotecnologia quando esses termos sequer existiam. Ao vislumbrar novos espaços, criar novas “missões” (Foray et al., 2012), o Estado lidera o processo de crescimento em vez de apenas incentivá-lo ou estabilizá-lo. E voltando à questão de Judt sobre a batalha “discursiva”, esse ato corajoso é descrito apenas como “redução de riscos”. O papel do Estado tem sido muito mais arrojado, assumindo o risco com coragem e visão — e não apenas eliminando o risco para que alguém mais fique com o retorno. Como dissemos no final do capítulo 1, o Estado investe em um acidentado cenário de risco ligado a uma divisão dinâmica de trabalho inovador. A fim de evitarmos os mitos examinados no capítulo 2, precisamos mapear os tipos de risco de que estamos falando. Neste capítulo vamos ilustrar melhor esse assunto.

Que tipo de risco?

O empreendedorismo, como o crescimento, é um dos temas menos compreendidos em economia. O que é, afinal? Segundo o economista austríaco Joseph Schumpeter, empreendedor é alguém, ou um grupo de pessoas, disposto e capaz de transformar uma nova ideia ou invenção em uma inovação bem-sucedida. Não se trata apenas de montar um novo negócio (definição mais comum), mas fazê-lo de forma a produzir um novo produto, ou um novo processo, ou um novo mercado para um produto ou processo existente. O empreendedorismo, ele escreveu, emprega “um vendaval de destruição criativa” para substituir, no todo ou em parte, inovações inferiores nos mercados e indústrias, criando ao mesmo tempo novos produtos, incluindo novos modelos de negócios, e ao fazê-lo, acabando com a liderança existente (Schumpeter, 1949). Dessa forma, a destruição criativa é amplamente responsável pelo dinamismo das indústrias e do crescimento econômico de longo prazo. Cada grande nova tecnologia leva à destruição criativa: a máquina a vapor, a estrada de ferro, a eletricidade, a eletrônica, o carro, o computador, a internet. Cada uma delas teve sua cota de destruição e de criação, mas cada uma levou também ao aumento da riqueza global.

Para Frank H. Knight (1921) e Peter Drucker (1970), o empreendedorismo está ligado ao risco. O comportamento do empreendedor é o de uma pessoa disposta a arriscar sua carreira e segurança financeira em nome de uma ideia, dispondo de seu tempo e também de seu capital em um empreendimento incerto. Na verdade, o risco do empreendedorismo, como a mudança tecnológica, não é apenas arriscado, é altamente “incerto”. Knight (2002, p. 233) distinguiu o risco da incerteza da seguinte maneira:

A diferença prática entre as duas categorias, risco e incerteza, é que na primeira a distribuição do resultado em um grupo de ocorrências é conhecida […]. Ao passo que no caso da incerteza isso não se aplica, e a razão é que geralmente é impossível formar um grupo de ocorrências, pois a situação em questão é em grande medida única.

John Maynard Keynes (1937, pp. 213-4) também enfatizou essas diferenças:

Por conhecimento “incerto”, deixe-me explicar, não me refiro apenas à distinção entre o que é conhecido e o que é apenas provável. Nesse sentido, o jogo de roleta não está sujeito à incerteza […]. O sentido em que estou usando o termo é aquele em que a perspectiva de uma guerra europeia é incerta, ou o preço do cobre e portanto a taxa de juros daqui a vinte anos, ou a obsolescência de uma nova invenção […]. Em relação a essas questões, não há base científica sobre a qual formar qualquer probabilidade calculável. Simplesmente não sabemos!

A mudança tecnológica é um bom exemplo de situação realmente única. Investimentos em P&D que contribuem para ela não apenas levam anos para se materializar em novos produtos, como a maioria dos produtos fracassa. No setor farmacêutico, por exemplo, a inovação de um projeto de P&D pode levar até dezessete anos desde o início até o final. Há um custo de aproximadamente 403 milhões de dólares por medicamento, e o índice de fracasso é extremamente alto: apenas um em 10 mil compostos atinge a fase de aprovação do mercado, um índice de sucesso de apenas 0,01%. Quando bem-sucedida, muitas vezes a procura por um produto leva à descoberta de outro completamente diferente, em um processo caracterizado pelo acaso. 1 É claro que isso não significa que a inovação se baseia na sorte, longe disso. Ela se baseia em estratégias de longo prazo e investimentos direcionados. Mas os retornos desses investimentos são altamente incertos e por isso não podem ser compreendidos através da teoria econômica racional (como mostramos, essa é uma das críticas que os schumpeterianos modernos fazem à “teoria do crescimento endógeno”, que descreve P&D como uma escolha da teoria dos jogos). Além disso, a capacidade de se envolver com inovação varia muito de uma empresa para outra e é uma das principais razões para que as companhias sejam tão diferentes umas das outras. Por esse motivo é praticamente impossível encontrar empresas distribuídas “normalmente” em torno de uma “empresa de tamanho ideal” (o agente “representativo”), um conceito tão caro à teoria microeconômica neoclássica.

O alto risco e as características aleatórias do processo de inovação são alguns dos principais motivos para as empresas que maximizam os lucros investirem menos em pesquisa básica; elas podem ter retornos maiores e mais imediatos com pesquisa aplicada. O investimento em pesquisa básica é um exemplo típico de uma “falha de mercado”: é uma situação em que o mercado sozinho não produziria pesquisa básica suficiente, portanto o governo precisa intervir. É por isso que existem poucas pessoas, em todos os lados do espectro político, que não concordam que deve ser o Estado (e é) que costuma financiar a maior parte da pesquisa básica. Em relação à economia dos Estados Unidos, por exemplo, os gráficos 3 e 4 mostram que, embora os gastos do governo com P&D representem apenas 26% do total, 2 com o setor privado respondendo por 67%, a proporção é muito maior quando se considera a pesquisa básica isoladamente. Os gastos públicos respondem por 57% da pesquisa básica nos Estados Unidos, com o setor privado assumindo apenas 18%.

Gráfico 3. Fontes de financiamento para P&D nos Estados Unidos em 2008

FONTE : National Science Foundation (2008).

A principal diferença ente Estados Unidos e Europa é a forma como os gastos públicos em P&D são destinados ao “progresso geral” em vez de ter um objetivo definido. As teorias da falha do mercado são mais úteis para entender P&D do tipo “avanço do conhecimento” do que o “objetivo definido”. O investimento em P&D com objetivo definido visa o programa de uma agência governamental ou objetivo que pode ser encontrado, por exemplo, em agricultura, saúde, energia, defesa e área espacial ou programas de tecnologia industrial. Enquanto os gastos públicos em P&D para o progresso geral normalmente representam menos de 50% do total de P&D , em 2003–4 a P&D com objetivo definido representou mais de 60% dos gastos públicos em P&D na Coreia do Sul, Estados Unidos, Reino Unido, França, Canadá, Japão e Alemanha (Mowery, 2010).

Gráfico 4. Fontes de financiamento para pesquisa básica em P&D nos Estados Unidos em 2008

FONTE : National Science Foundation (2008).

Mowery (2010) afirma que é perigoso tentar cortar e colar as lições aprendidas em um programa com objetivo definido em outro, pois cada um tem suas especificidades (defesa e saúde, por exemplo). Para entender as diferenças entre os programas, ele argumenta que a abordagem dos “sistemas de inovação” é muito mais útil do que a abordagem da falha do mercado. Ela é capaz de levar em conta a variação na dinâmica de cada setor e país, bem como a forma pela qual cada objetivo é definido pelas estruturas, instituições e incentivos específicos usados para realizá-lo.

O Estado liderando em inovação radical (arriscada)

A principal razão pela qual o conceito de falha de mercado é problemático para a compreensão do papel do governo no processo de inovação é que ele ignora um fato fundamental da história da inovação. O governo não apenas financiou a pesquisa mais arriscada, seja básica ou aplicada, como muitas vezes foi a fonte da inovação mais radical e pioneira. Para isso, empenhou-se na criação de mercados, em vez de apenas corrigi-los, tema examinado em profundidade no capítulo 4. Analisando os exemplos de protagonismo do Estado no desenvolvimento da internet e da nanotecnologia, ampliaremos nossa compreensão da ligação entre P&D e crescimento, e da divisão público-privado.

Nem todas as inovações levam a um amplo crescimento econômico, que geralmente é provocado por novos produtos ou processos que têm um impacto sobre uma grande variedade de setores da economia, como foi o caso da eletricidade e dos computadores. Isso é o que os macroeconomistas chamam de tecnologias de propósito geral [em inglês, GPT s — general purpose technologies ], caracterizadas por três qualidades fundamentais:

Elas se infiltram, espalhando-se por vários setores.

Melhoram com o tempo, reduzindo os custos para seus usuários.

Facilitam a geração de inovação, através da invenção e da produção de novos produtos ou processos (Grossman e Helpman, 1991).

Ruttan (2006) argumenta que o investimento governamental em grande escala e de longo prazo foi o motor por trás de quase todas as GPT s do último século. Ele analisou o desenvolvimento de seis complexos de tecnologia diferentes (o sistema de “produção em massa” americano, tecnologias de aviação, tecnologias espaciais, tecnologia da informação, tecnologia da internet e energia nuclear) e concluiu que os investimentos governamentais foram importantes para a criação dessas técnicas. Acrescenta que a energia nuclear muito provavelmente não teria sido desenvolvida sem grandes investimentos governamentais. Em cada caso, o desenvolvimento bem-sucedido de novos complexos de tecnologia não foi resultado apenas do financiamento e da criação de condições corretas para a inovação. Igualmente importante foi vislumbrar o espaço de oportunidade, envolvendo-se na mais arriscada e incerta pesquisa inicial, e supervisionar o processo de comercialização (Ruttan, 2006). No capítulo 4, mostrarei que esse é também o caso do desenvolvimento recente da nanotecnologia, que muitos acreditam ser a próxima GPT .

São inúmeros os exemplos do papel de liderança exercido pelo governo dos Estados Unidos em desenvolvimento de tecnologia. Lazonick (2013) apresenta um resumo convincente de casos em que o Estado desenvolvimentista americano teve um papel proeminente, desde a concessão de terras para empresas privadas para a construção de ferrovias e o apoio financeiro da pesquisa agrícola no século XIX até o financiamento, apoio e desenvolvimento ativo das indústrias aeronáutica e espacial no século XX , e subvenções para P&D e outros tipos de financiamento para indústrias ligadas às ciências naturais, nanotecnologia e energia limpa no século XXI .

A extensa pesquisa de Abbate (1999) mostra como a internet cresceu a partir do pequeno projeto de rede do Departamento de Defesa (ARPANET ) para conectar uma dúzia de sites de pesquisa dos Estados Unidos e se transformou em uma rede ligando milhões de computadores e bilhões de pessoas. Leslie (2000) argumenta que apesar de ter sido um modelo influente e atrativo para o desenvolvimento regional, o Vale do Silício é também difícil de copiar, pois cada defensor desse modelo conta uma história envolvendo “empresários descontraídos e investidores visionários”, mas esquece um fator crucial: o papel dos militares em sua criação e manutenção. Leslie mostra que o “Vale do Silício deve sua atual configuração a padrões de gastos federais, estratégias corporativas, relações indústria-universidade e inovação tecnológica moldada pelos pressupostos e prioridades da política de defesa da Guerra Fria” (Leslie, 2000, p. 49). No entanto, o modelo do Vale do Silício permanece no imaginário coletivo dos formuladores de políticas como um lugar em que o capital de risco fez uma revolução. O relatório de 1999 do National Research Council [Conselho Nacional de Pesquisa], Funding a Revolution: Government Support for Computing Research [Financiando uma revolução: apoio governamental para a pesquisa de computação], é na verdade uma tentativa de lembrar e reconhecer o importante papel do governo americano no lançamento e desenvolvimento da revolução da informática. Examinaremos isso mais à frente.

Considerando o papel de liderança desenvolvimentista que o governo americano desempenha em inúmeros setores, não é de surpreender que Block e Keller (2011b) tenham descoberto que, no nível mais micro, entre 1971 e 2006, 77 das 88 inovações mais importantes (avaliadas pela premiação anual da revista R&D Magazine ) — ou 88% — dependeram inteiramente do apoio de pesquisa federal, principalmente, mas não apenas, em seus estágios iniciais — e o prêmio da R&D Magazine exclui inovações em TIC .

Gráfico 5. Classificação de novos fármacos

Esses exemplos são fundamentais para a compreensão do impacto das pesquisas feitas com financiamento público. Não se trata apenas de financiar pesquisas sem finalidade prática, mas de ter visão em torno de tecnologias novas e importantes. Para ilustrar a questão mais geral, volto-me agora para exemplos específicos de investimento governamental em estágios iniciais de pesquisa nos setores farmacêutico e de biotecnologia dos Estados Unidos.

Setor farmacêutico: fármacos radicais vs. similares

A indústria farmacêutica é interessante por causa da nova divisão de trabalho inovador. As grandes indústrias farmacêuticas multinacionais, as pequenas empresas de biotecnologia, os laboratórios do governo e das universidades, todos fazem parte da ecologia da indústria. Mas são principalmente os laboratórios do governo e os das universidades apoiados pelo governo que investem na pesquisa responsável pela produção dos novos fármacos mais radicais — as novas entidades moleculares com classificação prioritária no gráfico 5. A ex-editora do New England Journal of Medicine , Marcia Angell (2004), afirmou energicamente que apesar de as empresas farmacêuticas privadas justificarem seus preços exorbitantes pela necessidade de cobrirem os altos custos em P&D , na verdade quase todos os medicamentos realmente “inovadores”, isto é, novas entidades moleculares com classificação prioritária, são criados em laboratórios financiados com dinheiro público. As empresas privadas se concentram mais nos medicamentos similares (com pequenas variações em relação aos já existentes), no desenvolvimento (incluindo testes clínicos) e no marketing do negócio. Certamente é uma situação bastante irônica, considerando as queixas constantes do setor em relação à regulamentação sufocante.

Os economistas medem a produtividade comparando input e output da produção. Nesse sentido, as multinacionais farmacêuticas foram consideravelmente improdutivas nos últimos anos em termos de produção de inovação. Como mostra o gráfico 6, houve um crescimento exponencial em gastos com P&D pelos membros da Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PhRMA ) sem o aumento correspondente no número de novos fármacos, mais conhecidos como novas entidades moleculares (NEM ). Isso também vale no caso das patentes: enquanto o número de patentes disparou desde que o Bayh-Dole Act (1980) permitiu que a pesquisa com financiamento público fosse patenteada, a maior parte dessas patentes tem pouco valor (Demirel e Mazzucato, 2012). Quando as patentes são avaliadas pelo número de citações que recebem (indicador comum das patentes “importantes”), o resultado é pouco significativo.

Gráfico 6. Número de nems aprovadas comparadas com o gasto dos membros da Phrma nos Estados Unidos, 1970‑2004

FONTE : Departamento de Orçamento do Congresso (2006).

Gráfico 7. Porcentagem de novos fármacos por tipo de indústria farmacêutica (1993-4)

FONTE : Angell (2004).

Dos 1072 fármacos aprovados pela FDA entre 1993 e 2004, apenas 357 eram NEM e não apenas variações de medicamentos similares aos já existentes. O número de medicamentos novos e “prioritários” importantes é ainda mais preocupante: apenas 146 deles receberam a classificação prioritária. No gráfico 7 vemos que apenas 14% foram considerados novos medicamentos importantes.

Tendo em vista a argumentação feita neste livro, o importante é que 75% das NEM s não são financiadas por empresas privadas mas por recursos públicos dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH ) dos Estados Unidos. Enquanto os laboratórios financiados pelo Estado investiram na fase mais arriscada, as multinacionais farmacêuticas preferiram investir nas variações menos arriscadas de medicamentos existentes (com uma dosagem diferente de uma versão anterior do mesmo medicamento).

Tudo muito distante, por exemplo, da declaração feita por Andrew Witty, CEO da GlaxoSmithKline, com sede no Reino Unido: “A indústria farmacêutica é extremamente inovadora […]. Se os governos trabalharem para apoiar, e não para conter a inovação, a indústria entregará a próxima era da medicina revolucionária” (The Economist , 2010b). É o espírito “revolucionário” dos laboratórios do Estado, produzindo 75% dos novos fármacos radicais, que permite a Witty e seus colegas passarem a maior parte do tempo pensando em como aumentar o preço de suas ações (isto é, através de programas de recompra de ações). Examinaremos mais profundamente se essa relação parasitária é sustentável ou não nos capítulos 8 e 9.

Biotecnologia: líder público, retardatário privado

No Reino Unido, o Medical Research Council (MRC ) [Conselho de Pesquisa Médica] recebe uma subvenção anual do Parlamento através do Department for Business, Innovation and Skills (BIS ) [Departamento para Negócios, Inovação e Proficiência]. Apesar de financiado pelo governo, tem independência para escolher que pesquisa apoiar. Trabalha em estreita colaboração com o Department of Health [Departamento de Saúde] e outros conselhos de pesquisa, indústrias e partes interessadas para identificar e responder às necessidades do Reino Unido. Foram pesquisas do MRC na década de 1970 que levaram ao desenvolvimento dos anticorpos monoclonais — que, segundo o MRC , representam um terço de todos os novos tratamentos para inúmeras doenças importantes, como câncer, artrite e asma.

História semelhante pode ser contada a respeito da indústria biofarmacêutica nos Estados Unidos. Seu crescimento não ocorreu devido ao financiamento empresarial (como o capital de risco), como se costuma alegar, mas surgiu e foi orientado por investimentos e gastos governamentais (Mazzucato e Dosi, 2006). Na verdade, o imenso interesse do capital de risco e das grandes empresas farmacêuticas em biotecnologia mostrou-se paradoxal em virtude do processo arriscado e lento para a recuperação do investimento (Pisano, 2006). Segundo Lazonick e Tulum (2011), existem duas respostas para esse paradoxo intrigante. Em primeiro lugar, os investidores iniciais tiveram oportunidades para sair facilmente através das flutuações das ações no mercado especulativo e dos investidores dispostos a financiar as ofertas públicas iniciais (IPO ). Em segundo lugar, o apoio e o envolvimento significativos do governo ajudaram essa indústria a florescer durante as últimas décadas.

Na verdade, o desenvolvimento da indústria de biotecnologia nos Estados Unidos é um produto direto do papel fundamental do governo na liderança do desenvolvimento da base de conhecimento que proporcionou seu sucesso e crescimento global. Como resumiram eloquentemente Vallas, Kleinman e Biscotti (2009, p. 66):

[…] a economia do conhecimento não surgiu espontaneamente de baixo para cima, mas foi motivada por uma discreta política industrial de cima para baixo; líderes do governo e da indústria defenderam simultaneamente a intervenção governamental para estimular o desenvolvimento da indústria de biotecnologia e hipocritamente argumentaram que o governo deveria “deixar o mercado livre funcionar”.

Como mostra essa citação, essa economia do conhecimento não apenas foi conduzida pelo governo como, surpreendentemente, isso aconteceu enquanto os líderes da indústria exigiam a intervenção governamental, em particular, ao mesmo tempo em que declaravam publicamente seu apoio ao livre mercado. Diante dessa hipocrisia, não é de admirar que haja tanta confusão entre os formuladores de políticas e o público em geral em relação ao papel do governo na economia. Sem dúvida, parte dessa confusão é explicada por Block (2008), ao argumentar que os Estados Unidos continuam com uma política industrial “escondida”, esclarecendo que está escondida basicamente pelo fato de que não é discutida como questão de debate público, pelos formuladores de políticas ou pela grande mídia. Block (2008, p. 15) alega que “como a carta roubada, o Estado desenvolvimentista oculto está à vista de todos. Mas foi posto na invisibilidade pelo sucesso da ideologia fundamentalista de mercado” que costuma ocorrer no debate partidário (também examinado no capítulo 1). Considerando os esforços dos formuladores de políticas internacionais para tentar fazer avançar suas próprias economias e copiar os sucessos dos Estados Unidos, torna-se imperativo, agora mais do que nunca, que a “verdadeira” história da inovação, do crescimento econômico e do desenvolvimento seja contada. Se os componentes do Estado desenvolvimentista já estão visíveis e atuando, por que triunfa a lógica que desafia seu valor?

Resumindo suas descobertas a respeito do vigoroso papel do governo no desenvolvimento da indústria de biotecnologia, Vallas, Kleinman e Biscotti enfatizam a importância das “transferências maciças em P&D federais envolvidas”, acrescentando que “é difícil evitar a conclusão de que a economia do conhecimento não nasceu, mas foi feita” (2009, p. 71). Apesar de as empresas farmacêuticas gastarem muito em P&D , a complementação desses investimentos privados tem sido inteiramente dependente do “pronto fornecimento de conhecimento científico que foi financiado ou efetivamente produzido pelas agências federais”.

Institutos Nacionais de Saúde: criando a onda vs. surfando na onda

O apoio e envolvimento do Estado em biotecnologia tomam várias formas, sendo a mais importante delas o fato de que a enorme base de conhecimento da qual dependem as empresas biofarmacêuticas se desenvolveu mais com investimento do governo do que das empresas. Essa base de conhecimento se expandiu com o investimento fundamental do governo no financiamento da ciência básica. Na linha de frente estão os Institutos Nacionais de Saúde (NIH ) e outros programas governamentais que investiram em muitas das conquistas fundamentais sobre as quais a indústria construiu seu sucesso. Com base nos dados relativos aos gastos do NIH levantados por Lazonick e Tulum (2011), é fácil ver como esse financiamento foi crucial para a inovação biotecnológica. De 1978 a 2004, os gastos do NIH com pesquisas em ciências naturais chegaram a 365 bilhões de dólares. Entre 1970 e 2009, com exceção de uma pequena queda em 2006, o financiamento dos NIH cresceu ano a ano em termos nominais, ao contrário dos financiamentos flutuantes do capital de risco e do mercado de ações.

O gráfico 8 mostra que o gasto total dos NIH entre 1936 e 2011 (em dólares de 2011) foi de 792 bilhões de dólares. Só o orçamento para 2012 chegou a 30,9 bilhões de dólares. Assim, enquanto o empresariado continua a pressionar por cortes tributários e menos burocracia, no fim das contas ele se mostra bastante dependente do financiamento das receitas fiscais que tanto combate. E de fato, aqueles países, como o Reino Unido, que estão cada vez mais convencidos de que o que impulsiona os negócios são “impostos baixos e regulamentação fraca” estão sofrendo com a fuga de muitas empresas, como a Pfizer e a Sanofi.

O mais impressionante é que nos 35 anos desde a criação da Genentech como primeira empresa de biotecnologia, em 1976, os NIH financiaram o setor de farmabiotecnologia com 624 bilhões de dólares (números até 2010). Como esses dados indicam, Lazonick e Tulum (2011, p. 9) argumentam que o governo americano, através dos NIH e, por extensão, dos contribuintes americanos, “há muito tempo é o investidor mais importante do país (e do mundo) na criação de conhecimento na área médica”. Essa base de conhecimento foi “indispensável” e sem ela, o capital de risco e os fundos de ações públicas não teriam se debandado para essa indústria. Eles “surfaram na onda” em vez de tê-la criado.

Através de um sistema de aproximadamente 50 mil bolsas competitivas, os NIH apoiam mais de 325 mil pesquisadores em mais de 3 mil universidades, faculdades de medicina e outras instituições de pesquisa em cada estado dos Estados Unidos e em todo o mundo. Essas subvenções representam 80% do orçamento da agência, e outros 10% são usados para empregar diretamente 6 mil pessoas em seus próprios laboratórios. Os 26 centros de pesquisa da agência em Maryland têm papel de destaque na indústria da biotecnologia — que está crescendo à medida que mais centros e institutos continuam a se desenvolver nos NIH . Além desses “programas de criação de conhecimento”, vestígios do apoio governamental também podem ser vistos em quase todos os principais produtos biofarmacêuticos nos Estados Unidos (Vallas, Kleinman e Biscotti, 2009). Embora muitos estudiosos de biotecnologia reconheçam o imenso apoio governamental na base científica, no que se refere ao todo eles não conseguem perceber a relação causal entre o crescimento bem-sucedido dessa indústria, sua atratividade para os investidores e os esforços governamentais diuturnos que desenvolvem e sustentam a base substancial de conhecimento encontrada nos Estados Unidos.

Gráfico 8. Orçamento dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), 1938-2012

FONTE : Departamento de Orçamento, Institutos Nacionais de Saúde (2011), p. 1176.

Por que então o capital de risco costuma receber tanto crédito pela criação da revolução biotecnológica? A história dos investimentos públicos e privados em biotecnologia é perfeitamente descrita na frase atribuída a Paul Berg (ganhador do Prêmio Nobel de Química em 1980) e citada no início deste capítulo. Berg tinha consciência de que o Estado abriu o caminho para o futuro desenvolvimento da indústria com a coragem, a visão e os financiamentos que faltavam ao setor privado. Ou talvez, para sermos mais justos, investindo em novas tecnologias até que a incerteza causadora do medo se transformasse em mero risco.

A questão central deste capítulo foi mostrar que o investimento do Estado vai além da pesquisa básica “sem objetivo definido”. Na verdade, ele se aplica a todos os tipos de pesquisa “arriscada” e incerta, uma vez que o setor privado é, sob muitos aspectos, menos empreendedor do que o setor público: ele foge de produtos e processos radicalmente novos, deixando os investimentos mais incertos para o Estado. Assim, apesar de necessária para que ocorra a inovação, a pesquisa sem finalidade prática imediata está longe de ser suficiente e na verdade o papel do Estado é mais profundo. Continuo a examinar o fôlego e a profundidade da liderança do Estado na produção da economia do conhecimento no capítulo 4. No capítulo 5 analiso o caso específico da Apple como um exemplo de empresa que se beneficiou enormemente tanto da pesquisa sem finalidade prática imediata financiada com recursos públicos como das políticas do Estado que facilitam a comercialização.


1 . Em inúmeros casos históricos, as explicações e teorias científicas surgiram depois das tecnologias que tentavam explicar. Os irmãos Wright conseguiram voar antes do desenvolvimento da aerodinâmica, e a máquina a vapor tornou-se operacional antes que a termodinâmica fosse compreendida. A tecnologia geralmente está um pouco à frente da ciência e a inovação industrial apresenta problemas para os acadêmicos resolverem. Ver P. Nightingale, “Technological Capabilities, Invisible Infrastructure and the Un-social Construction of Predicability: The Overlooked Fixed costs of Useful Research”, Research Policy 33, n. 9, 2004.

2 . Também é importante observar que nos Estados Unidos, uma parte do financiamento público em P&D é feita com a expectativa de que será acompanhado por financiamento privado equivalente, ou usado para atrair outros financiamentos, o que significa que boa parte da P&D “privada” foi induzida publicamente.

* Referência ao conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe. (N. E.)