Quando a verdade nos alcança, não sejamos heróis. Fujamos. Mas eu tive o cuidado de ir a passo, lentamente, por Dolphin Street e subir até ao apartamento seguro onde sabia que nunca mais iria dormir. Correr as cortinas, suspirar resignadamente pelo televisor, fechar a porta do quarto. Extrair o passaporte francês da caixa de recolha de correio por detrás da tabuleta de precauções em caso de incêndio. Há um ritual calmante na fuga. Vestir uma muda de roupa lavada. Enfiar a navalha de barba na algibeira da gabardina e deixar o resto no lugar. Descer até à churrasqueira, encomendar uma refeição ligeira, pôr-me a ler o meu enfadonho livro como um homem reconciliado com uma noite solitária. Meter conversa com a empregada húngara para o caso de ela ter responsabilidades de transmitir informações. Na realidade vivo em França, digo-lhe eu, mas estou aqui para tratar de negócios com uma mancheia de advogados ingleses, consegue ela imaginar alguma coisa pior, ah, ah? Pagar a conta. Deambular até ao pátio com senhoras reformadas de chapéus brancos e camisas de croquet, sentadas aos pares ao longo dos bancos de jardim, gozar o sol extemporâneo. Preparar-me para me juntar ao êxodo em direção ao Embankment, para nunca mais voltar.
Só que eu não faço nenhuma destas duas últimas coisas, porque nesta altura avistei Christoph, o filho de Alec, com o seu comprido sobretudo preto e chapéu de feltro, recostado a vinte metros num banco por sua conta, com um braço afetuosamente passado pelo espaldar e uma perna comprida cruzada sobre a outra, numa atitude de lazer, e a mão direita enfiada, ostensivamente para eu ver, no bolso do sobretudo. Está a olhar diretamente para mim e sorri, que é uma coisa que nunca o tinha visto fazer, seja em criança a assistir a uma partida de futebol ou em adulto a comer um bife com batatas fritas. E talvez o sorriso seja novidade para ele também, porque surge com uma palidez singular do rosto, intensificada pelo negrume do chapéu, e há um tremular no seu sorriso como o de uma lâmpada avariada que não sabe se está acesa ou apagada.
E eu estou tão perplexo como ele parece estar. Apossou-se de mim um cansaço que eu suspeito que seja medo. Ignorá-lo? Dirigir-lhe um aceno jovial e prosseguir a minha planeada fuga? Ele há de ir atrás de mim. Há de fazer alarido. Ele também tem um plano, mas qual é?
O sorriso doentiamente pálido continua a estremecer. Há qualquer coisa no seu maxilar inferior, uma irritação que ele parece incapaz de controlar. E terá mesmo partido o braço direito? Será por isso que o tem tão desajeitadamente enfiado no bolso do sobretudo? Não faz qualquer esforço por se levantar. Eu começo a andar na sua direção, detidamente observado pelas senhoras sentadas dos chapéus brancos. Em todo o pátio, somos os únicos dois homens, e Christoph constitui uma figura excêntrica, para não dizer gigantesca, ocupando sozinho um palco inteiro. Que tenho eu que ver com ele?, estão a interrogar-se. Eu também. Paro diante dele. Nada dele se move. Dir-se-ia uma daquelas estátuas de bronze de grandes homens que se veem sentadas em locais públicos: um Churchill, um Roosevelt. A mesma tez húmida, o mesmo sorriso pouco convincente.
A estátua volta lentamente à vida de uma maneira diferente da das outras estátuas. Descruza as pernas e a seguir, com o ombro direito levantado e a mão direita ainda enfiada no bolso do sobretudo, desloca o corpo volumoso até haver espaço no banco para mim à sua esquerda. E é verdade, está doentiamente pálido e agitado na zona do maxilar, ora sorrindo, ora fazendo uma careta, e o seu olhar é febril.
– Quem lhe disse onde podia encontrar-me, Christoph? – pergunto-lhe eu o mais jovialmente que posso, porque nesta altura estou a braços com a peregrina ideia de que Bunny ou Laura, ou mesmo Tabitha, o puseram no meu encalço, com o objetivo de negociar qualquer outro tipo de acordo por baixo da mesa entre o Serviço e os seus litigantes.
– Lembrei-me – com o sorriso a alargar-se, de orgulho sonhador. – Eu sou um génio em termos de memória, certo? O cérebro da porra da Alemanha. Portanto temos a nossa simpática refeição e você diz-me que me vá foder. Pronto, não disse. Eu vou-me embora. Sento-me ao pé dos amigos. Fumo um bocado, resmungo um bocado, escuto. O que é que ouço? Quer arriscar?
Eu abano a cabeça. Estou também a sorrir.
– O meu pai. Ouço o meu pai. A voz dele. Num dos nossos pequenos passeios juntos à volta do pátio da prisão. Eu estou a cumprir pena, e ele está a tentar desempenhar o papel de quem recupera o tempo perdido, ser o pai sempre fiel que nunca foi. Portanto está a falar de si próprio, a entreter-me, a falar dos anos que não passámos juntos, como quem finge que passámos. Como era ser espião. Como todos vocês eram especiais, como eram dedicados. Os traquinas que vocês eram. E sabe uma coisa? Ele está a falar da Hood House. A casa dos secretas. Essa piada que todos vocês faziam. Que o Circus tinha aqueles reles apartamentos seguros num sítio chamado Hood House. Nós somos todos secretas, de maneira que é onde nos põem. – O sorriso torna-se um franzimento de indignação. – Sabe que a merda do seu Serviço até o tem registado aqui com o seu verdadeiro nome, foda-se? P. Guillam. Que tal como segurança? Sabia disso? – inquiriu.
Não, não sabia. Tão-pouco estava espantado, como devia estar, pelo facto de em mais de meio século o Serviço não ter pensado em alterar os seus hábitos.
– Então porque é que não me diz o que veio fazer? – perguntei-lhe eu, transtornado pelo seu sorriso, de que ele parecia incapaz de se libertar.
– Matá-lo, Pierrot – explicou ele, sem elevação nem variação da voz. – Para lhe fazer saltar a porra dos miolos. Bingo. Está morto.
– Aqui? – perguntei eu. – Diante de toda esta gente? Como?
Com uma pistola semiautomática Walther P38: a que ele tirou do bolso direito do sobretudo e agora está a brandir à vista de todos; e só depois de decorrida uma porção de tempo para eu a admirar volta a metê-la na algibeira, mantendo a mão sobre ela e, na melhor tradição dos filmes de gangsters, apontando-me o cano através das dobras do sobretudo. O que pensam as senhoras dos chapéus brancos desta exibição, se é que pensam alguma coisa, nunca saberei: talvez que somos uma equipa de filmagens. Talvez que somos apenas uns rapazes crescidos patetas, a fazer um jogo com uma pistola de brinquedo.
– Santo Deus! – exclamo eu (uma expressão que até hoje nunca utilizei conscientemente na vida) –, onde foi você desencantar isso?
A pergunta aborreceu-o, extinguindo o sorriso.
– Julga que eu não conheço mafiosos na porra desta cidade? Pessoas que me emprestem uma pistola assim sem mais nem menos? – inquiriu ele, fazendo estalar o polegar e o indicador da mão livre diante do meu rosto.
Instigado pela palavra «emprestem», perscrutei instintivamente em redor à procura do legítimo possuidor, uma vez que não estava a imaginar um empréstimo de longo prazo: foi por isso que os meus olhos deram em poisar numa carrinha Volvo reparada com várias cores e estacionada num duplo traço amarelo mesmo defronte da arcada do lado do Embankment; e o seu único condutor calvo com ambas as mãos no volante, a olhar fixamente para diante através do para-brisas.
– Tem alguma razão especial para me matar, Christoph? – perguntei-lhe eu, mantendo o melhor que podia o mesmo tom de pergunta despreocupada. – Falei da sua oferta aos poderes constituídos, se é isso que o preocupa – acrescentei mentirosamente. – Estão a pensar nela. Os responsáveis pelas massas de Sua Majestade não arranjam um milhão de euros da noite para o dia, naturalmente.
– Eu era a melhor coisa da desgraçada vida dele. Ele disse-me isso.
Dito num tom grave, pronunciado a custo através dos dentes rígidos.
– Eu nunca duvidei de que ele o amava – disse eu.
– Você matou-o. Mentiu ao meu pai e matou-o. O seu amigo, o meu pai.
– Isso não é verdade, Christoph. O seu pai e a Liz Gold não foram mortos por mim nem por ninguém do Circus. Foram mortos por Hans-Dieter Mundt, da Stasi.
– Vocês são todos doentes. Todos vocês, os espiões. Não são a cura, são a porra da doença. Artistas de merda, a fazerem jogos de merda, julgando-se a porra dos tipos mais espertos do universo. Vocês não são nada, está a ouvir? Vivem na porra da escuridão porque não são capazes de lidar com a porra da claridade. Ele também. Ele disse-me isso.
– Disse? Quando?
– Na prisão, onde raio julgava você que fosse? A minha primeira prisão. Uma prisão de miúdos. Tarados sexuais, drogados e eu. Tens uma visita, Christoph. Diz que é o teu melhor amigo. Algemam-me e levam-me até ao pé dele. É o meu pai. Escuta isto, diz ele. És um caso perdido e já não há porra nenhuma que eu ou quem quer que seja possa fazer por ti. Mas Alec Leamas ama o filho, portanto nunca se esqueça disso, porra. Falou?
– Não.
– Ponha-se em pé, porra. Caminhe. Para aquele lado. Pela arcada. Como o resto das pessoas. Se me lixar, mato-o.
Ponho-me em pé e caminho até à arcada. Ele segue-me, com a mão direita ainda no bolso e a pistola apontada para mim através do tecido. Há coisas que se supõe que façamos nestes casos, como girar nos calcanhares e atingi-lo com o cotovelo antes que ele tenha tempo de disparar. Em Sarratt praticávamos isso com pistolas de água e era frequente a água esguichar sem nos atingir e acertar no colchão do ginásio. Mas aqui não é uma pistola de água nem estamos em Sarratt. Christoph caminha um metro atrás de mim, que é onde o atirador bem ensinado deve estar.
Passámos pela arcada. O careca sentado na carrinha Volvo multicor continua com as mãos no volante e, embora estejamos a andar na sua direção, não nos presta atenção, está demasiado ocupado a olhar para diante. Tencionará Christoph levar-me a dar a proverbial volta antes de me vibrar o golpe de misericórdia? Se assim for, a minha melhor hipótese de me libertar ocorrerá quando ele tentar enfiar-me na carrinha Volvo. Já uma vez o fiz, há muito tempo: parti a mão do homem com a porta do carro quando ele tentava fazer-me entrar para o banco de trás.
Passam outros carros em ambas as direções e temos de esperar por uma aberta no trânsito antes de atravessarmos a rua, e eu pergunto a mim mesmo se terei alguma possibilidade de lutar com ele e na pior das hipóteses atirá-lo de encontro a um carro que venha contra nós. Chegámos ao passeio do outro lado e eu continuo a interrogar-me. Também passámos pela carrinha Volvo sem que tenham sido trocados qualquer sinal ou palavra entre Christoph e o condutor calvo, de maneira que talvez eu esteja enganado e eles não tenham nada que ver um com o outro, e quem quer que emprestou a Walther a Christoph esteja sentado em Hackney ou algures a jogar uma partida de cartas com os seus colegas mafiosos.
Estamos postados no Embankment; há um parapeito de tijolos de um metro e meio de altura e eu estou de frente para ele, com o rio diante de mim e as luzes de Lambeth na outra margem porque já é ao entardecer, ainda ameno para a hora, com uma brisa agradável a levantar-se e barcos bem grandes a passar, e eu tenho as mãos no parapeito e estou de costas para ele e espero que ele se aproxime o suficiente para tentar o estratagema da pistola de água, mas sinto a sua presença e ele não está a falar.
Mantendo as mãos onde ele as possa ver, viro-me lentamente e ele está postado a dois metros de mim, ainda com a mão no bolso. Respira às golfadas e o seu largo rosto pálido está húmido e luminoso à meia-luz. As pessoas passam por nós, mas não pelo meio de nós. Há qualquer coisa em nós que as faz contornarem-nos. Mais rigorosamente, é qualquer coisa no corpanzil de Christoph, no sobretudo e no chapéu de feltro. Estará ele a brandir a arma de novo, ou tê-la-á no bolso? Continuará a assumir a sua postura de gangster? Ocorre-me, tardiamente, que o homem que veste daquela maneira quer ser temido; e o homem que quer ser temido tem ele próprio medo, e talvez seja isso que me dê a fanfarronice para o desafiar.
– Vamos, Christoph, força – digo eu, na altura em que um casal de meia-idade passa apressadamente. – Dispare, se é para isso que veio. O que é mais um ano para um homem da minha idade? Contento-me com uma morte limpinha em qualquer momento. Dispare. Depois passe o resto da vida a congratular-se enquanto apodrece na cadeia. Já viu velhos morrerem na prisão. Seja mais um.
Nesta altura os músculos das minhas costas estão a contorcer-se e há um pulsar a martelar-me nos ouvidos e não seria capaz de vos dizer se vinha de uma barcaça a passar ou se era alguma coisa que se passava na minha própria cabeça. Tinha a boca seca de tanto falar e a vista deve ter-se-me toldado, porque levei um pedaço a perceber que Christoph estava ao meu lado, debruçado sobre o parapeito, a vomitar e a soluçar em golfadas de dor e raiva.
Passei-lhe um braço pelas costas e arranquei-lhe a mão direita do bolso. Quando ela apareceu sem pistola nenhuma, tirei-a por ele e arremessei-a ao rio para o mais longe que pude, mas não ouvi nada em resposta. Ele poisara os braços sobre o parapeito e mergulhara a cabeça entre eles. Vasculhei-lhe o outro bolso, para o caso improvável de ele se ter munido de um carregador sobresselente para se encorajar, e claro que tinha. Acabara de o lançar também ao rio quando o careca da carrinha Volvo multicor, que ao contrário de Christoph era muito baixo e parecia meio morto de fome, o agarrou por detrás pela cintura e puxou por ele, sem êxito.
Entre os dois arrancámo-lo do parapeito e entre os dois levámo-lo à força até à carrinha Volvo. Ao fazermo-lo, ele começou a gemer. Eu ia para abrir a porta ao lado do condutor, mas o meu companheiro de armas já tinha aberto a porta de trás. Entre os dois enfiámo-lo lá dentro e fechámos a porta com força, amortecendo mas não silenciando os gemidos. A carrinha Volvo arrancou. Eu fiquei sozinho no passeio. Aos poucos, o trânsito e os sons voltaram. Estava vivo. Mandei parar um táxi e pedi ao motorista para me levar ao Museu Britânico.
*
Primeiro o beco empedrado. Depois o estacionamento privado que tresandava a lixo apodrecido. Depois as seis estreitas cancelas: a nossa era a última do lado direito. Se os gemidos de Christoph ainda me ressoavam nos ouvidos, eu recusava-me a ouvi-los. O fecho da cancela rangeu. Isso ouvi eu, sem dúvida. Sempre rangera, por mais vezes que o lubrificássemos. Se sabíamos que o Controlo lá ia, deixávamos a cancela aberta, a fim de não termos de ouvir o azedo comentário do velho demónio acerca de ser anunciado pelo toque de címbalos. Lajes de pedra de York. Tínhamos sido Mendel e eu a assentá-las. E relva semeada entre eles. A nossa casa de pássaros. Nenhum pássaro recusado. Três degraus até à porta da cozinha, e a sombra imóvel de Millie McCraig a olhar para mim cá em baixo pela janela, de mão no ar, a proibir-me a entrada.
Estamos num barracão de jardim improvisado, erguido contra o muro para abrigar os baldes de lixo dela e os restos da sua bicicleta urbana de senhora, posta fora de casa por Laura, embrulhada num oleado e com as rodas tiradas por uma questão de segurança. Falamos em murmúrios. Talvez sempre o tenhamos feito. O gato classificado observa pela janela da cozinha.
– Não sei o que eles cá puseram, Peter – confidencia-me ela. – Não confio no meu telefone. Bem, nunca confiei. Também não confio nas minhas paredes. Não sei de que é que eles hoje em dia dispõem nem onde o colocam.
– Ouviu o que a Tabitha me disse acerca de provas?
– Ouvi parte. O suficiente.
– Ainda tem tudo aquilo que eu lhe dei? Os depoimentos originais, a correspondência, tudo o mais que o George lhe pediu para esconder?
– Posto em micropontos por mim. Escamoteado. Tenho, pois.
– Onde?
– No meu jardim. Na minha casa de pássaros. Nas respetivas cassetes. Em oleados. Nisto – isto eram os restos da sua bicicleta. – Hoje em dia eles não sabem onde procurar. Não têm formação como deve ser – acrescenta, indignadamente.
– Incluindo a entrevista do George com Bambúrrio no Campo 4? A entrevista de recrutamento? O acordo?
– Tenho. Como parte da minha coleção clássica de discos de gramofone. Transferida para mim pelo Oliver Mendel. Ouço-os de vez em quando. Por causa da voz do George. Ainda a adoro. Você é porventura casado, Peter?
– Só com a herdade e os animais. Quem é que você tem, Millie?
– Tenho as minhas recordações. E o meu Criador. A nova malta deu-me até segunda-feira para sair. Não vou fazê-los esperar.
– Para onde é que vai?
– Hei de morrer. Tal como você. Tenho uma irmã em Aberdeen. Não lhe entrego as coisas, Peter, se foi para isso que veio.
– Nem pelo bem geral?
– Não há bem geral sem o beneplácito de George. Nunca houve.
– Onde está ele?
– Não sei. E se soubesse não lhe dizia. Vivo, decerto. Os postais que recebo no meu aniversário e pelo Natal. Ele nunca se esquece. Sempre para a minha irmã, nunca para aqui, segurança. O costume.
– Se eu tivesse de o descobrir, a quem deveria dirigir-me? Há alguém, Millie. Você sabe quem é.
– Talvez o Jim. Se ele lho disser.
– Posso telefonar-lhe? Qual é o número dele?
– O Jim não é pessoa de telefones. Deixou-se disso.
– Mas está no mesmo sítio?
– Creio que sim.
Sem uma palavra mais, agarra-me pelos ombros com as suas mãos fortes e magricelas e concede-me um único austero beijo dos seus lábios selados.
*
Nessa noite fui até Reading e fiquei num hotel próximo da estação ferroviária onde ninguém se preocupava com nomes. Se ainda não tinha sido dado como desaparecido de Dolphin Street, a primeira pessoa a dar pela minha ausência seria Tabitha às dez horas da manhã seguinte, não às nove. Se houvesse alvoroço, não estava a ver que ele se armasse antes do meio-dia. Tomei o pequeno-almoço com vagar, comprei um bilhete para Exeter e segui de pé no corredor de um comboio superlotado até Taunton. Passando pelo parque de estacionamento, dirigi-me aos arredores da cidade e deambulei por lá à espera do anoitecer.
Não punha a vista em cima de Jim Prideaux desde que o Controlo o tinha enviado para a missão abortada na Checoslováquia que lhe valera uma bala nas costas e a atenção insone de uma equipa de torturadores checos. De nascimento, éramos ambos arraçados: Jim meio checo e meio normando, ao passo que eu sou bretão. Mas as comparações ficavam-se por aí. A marca de eslavo era profunda em Jim. Em rapaz, tinha passado mensagens e cortado gargantas alemãs na Resistência Checa. Cambridge pode tê-lo educado, mas nunca o domesticou. Quando entrou para o Circus, até os instrutores de luta corpo a corpo de Sarratt aprenderam a temê-lo.
Um táxi deixou-me junto ao portão principal. Uma tabuleta verde enlameada tinha escrito: AGORA ABERTO A RAPARIGAS. Uma esburacada estrada de acesso conduzia sinuosamente a uma imponente casa dilapidada rodeada de atarracados edifícios prefabricados. Escolhendo o caminho pelo meio dos buracos, passei por um campo de jogos, um pavilhão de críquete a cair aos pedaços, um par de casas de trabalhadores e um grupo de póneis desgrenhados a pastar num relvado. Passaram dois rapazes de bicicleta, o mais corpulento com um violino às costas e o mais pequeno com um violoncelo. Mandei-os parar com um gesto.
– Estou à procura de Mr. Prideaux – disse. Eles olharam inexpressivamente um para o outro. – Faz parte do pessoal docente daqui, segundo me disseram. Ensina línguas. Ou ensinava, dantes.
O rapaz mais corpulento abanou a cabeça e começou a arrancar.
– Não estará porventura a referir-se ao Jim? – perguntou o mais novo. – Um velhote coxo. Vive numa caravana na Cova. Dá Francês Extra e Râguebi Infantil.
– Onde é a Cova?
– Siga pela esquerda a seguir à Casa da Escola e desça pelo carreiro até ver um Alvis antigo. A verdade é que estamos atrasados.
Sigo pela esquerda. Por detrás das altas janelas, rapazes e raparigas estão debruçados nas carteiras sob luzes de néon brancas. Ao chegar ao outro lado do edifício, passei por uma avenida de salas de aula temporárias. Um carreiro que desce até a uma pequena mata de pinheiros. Diante deles, por baixo de um encerado, a silhueta de um carro de coleção, e ao lado desta uma caravana com uma luz acesa por detrás da janela tapada por uma cortina. Ouviam-se através dela acordes de Mahler. Bati à porta e uma voz roufenha respondeu furiosa.
– Vai-te embora, rapaz! Fous-moi la paix!25 Vai à procura.
Contornei a janela tapada pela cortina e, com uma caneta que tirei do bolso, levantei o braço e fiz soar o meu sinal identificador, após o que lhe dei tempo para poisar a pistola, se era isso que estava a fazer, porque com Jim nunca se sabe.
*
Com uma garrafa de slivovitz na mesa, meio bêbedo, Jim foi buscar um segundo copo e desligou o gira-discos. À luz de petróleo o seu rosto anfractuoso está deformado pela dor e pela idade e as costas assimétricas estão apoiadas no estofo ordinário. Os torturados são uma classe à parte. Pode imaginar-se (dificilmente) onde eles estiveram, mas nunca o que trouxeram consigo.
– A porra da escola veio por aí abaixo – regouga ele, com um acesso de riso febril. – Thursgood, era o nome do sujeito. Diretor. Uma mulher absolutamente satisfatória. Um par de filhos. Acontece que era o raio dum maricas – declarou, com exagerado escárnio. – Pirou-se com o cozinheiro da escola. Levou as propinas com ele. Para a Nova Zelândia ou lá para onde foi. Não havia o suficiente no fundo para pagar ao pessoal até ao fim da semana. Nunca pensei que ele tivesse essa inclinação. Bem – dando uma risadinha enquanto volta a encher-nos os copos –, o que havemos de fazer, hein? Não podemos deixar os miúdos em apuros, no meio dum ano escolar. Os exames à porta. Os encontros dos onze melhores. Os prémios escolares. Eu tinha a minha pensão, mais um pequeno adicional por ter levado uma porrada. Alguns pais deram uma contribuição. O George conhecia um banqueiro. Bem, depois disso, a escola não me vai pôr no olho da rua, não é? – Bebeu, olhando para mim por cima do copo. – Não me vão despachar para a Checoslováquia outra vez à procura duma agulha num palheiro, pois não? Agora que estão novamente a fazer-se amiguinhos de Moscovo.
– Preciso de falar com o George – disse eu.
Durante um pedaço não aconteceu nada. Do mundo que ia escurecendo lá fora, apenas o sussurrar das árvores e o gemido do gado. E, diante de mim, o corpo cambado de Jim içado, imóvel, de encontro à parede da pequena caravana, e o seu olhar fixo de eslavo a olhar carrancudamente para mim por baixo de umas irregulares sobrancelhas negras.
– Foi porreiro para mim ao longo dos anos, o velho George. Ajudando um tipo estafado, que não agradava a toda a gente. Não sei bem se ele precisa de si, com franqueza. Tem de lhe perguntar.
– Como é que faria isso?
– Não é um jogador inato no jogo da espionagem, o George. Não sei como se meteu nele. Arcava com tudo em cima dos ombros. No nosso ofício não se pode fazer isso. Não podemos sentir toda a dor do outro parceiro como a nossa. Isto, se quisermos continuar. A sacana da mulher dele tinha uma data de coisas pelas quais responder, na minha opinião. Que diabo andava ela a tramar? – perguntou ele, e calou-se mais uma vez, fazendo uma careta e desafiando-me a responder à sua pergunta.
Mas Jim nunca tinha gostado muito de mulheres, e não havia resposta que eu lhe pudesse dar que não incluísse o nome da sua Némesis e seu antigo amante Bill Haydon, que o recrutara para o Circus, o denunciara aos seus patrões e de caminho dormira com a mulher de Smiley como camuflagem.
– Ficou todo transtornado com o Karla, logo com ele – estava a queixar-se, ainda sobre o tema de Smiley. – O espertalhão do filho da mãe do Centro de Moscovo que recrutou todos aqueles tipos a longo prazo contra nós.
Dos quais Bill Haydon era o mais espetacular, poderia ter acrescentado, caso fosse capaz de pronunciar o nome do homem cujo pescoço tinha supostamente quebrado com as próprias mãos quando Haydon estava a definhar em Sarratt, à espera de ser expedido para Moscovo no âmbito de um acordo de troca de agentes.
– Primeiro, o velho George convence o Karla a vir ao Ocidente. Descobre o seu ponto fraco e trabalha nele, tudo por seu mérito. Faz o debriefing ao sujeito. Arranja-lhe um nome e um emprego na América do Sul. A ensinar Estudos Russos a latino-americanos. Realoja-o. Nada que dê demasiado trabalho. Anos mais tarde o sacana mata-se e despedaça o coração do George. Como raio aconteceu aquilo? Eu disse-lhe: o que é que lhe deu, George? O Karla matou-se. Que passe muito bem! Foi sempre o problema do George, ver ambos os lados de tudo. Isso esgotou-o.
Com um grunhido de dor ou censura, serviu outra dose de slivovitz a ambos.
– Anda fugido, porventura? – inquiriu.
– Ando.
– Para França?
– Sim.
– Que tipo de passaporte?
– Britânico.
– A Repartição já pôs o seu nome a circular?
– Não sei. Estou a jogar em que não.
– Southampton é a sua melhor aposta. Não dê nas vistas e apanhe um ferry do meio-dia cheio de gente.
– Obrigado. É o que tenciono fazer.
– Não é por causa de Tulipa, pois não? Não vai desenterrar isso, pois não? – cerrando um punho e atravessando-o diante da boca como que para afastar com um soco uma recordação intolerável.
– É toda a operação Bambúrrio – disse eu. – Há uma comissão parlamentar gigante que tem a faca apontada ao Circus. Na ausência do George, puseram-me a mim como o vilão da peça.
Mal eu tinha pronunciado as palavras, ele pregou um murro na mesa entre nós, fazendo tilintar os copos.
– O George não é para aqui chamado! Foi o filho da mãe do Mundt que a matou! Foi ele que matou todos! Matou o Alec e a rapariga dele!
– Bem, isso é uma coisa que temos de ser capazes de dizer em tribunal, Jim. Eles acusam-me de tudo e mais alguma coisa. E talvez a si também, se conseguirem desencantar o seu nome nos ficheiros. Por isso preciso imenso do George. – E, como ele continuasse a não reagir: – Então como é que eu contacto com ele?
– Não pode.
– E como é que você faz?
Outro silêncio irado.
– Cabinas telefónicas, se quer saber. Locais não, nessas nem lhes toco. Nunca duas vezes a mesma. Combinamos sempre o próximo treff antecipadamente.
– Você para ele? Ele para si?
– Um bocado de ambas as coisas.
– O telefone dele é todas as vezes o mesmo?
– Pode ser.
– É um telefone fixo?
– Pode ser.
– Então sabe onde pode encontrá-lo, não sabe?
Tirando um caderno de exercícios escolares de uma pilha ao seu lado, arrancou uma folha em branco. Eu passei-lhe um lápis.
– Kollegiengebäude drei – entoou ele enquanto escrevia. – Biblioteca. Uma mulher chamada Friede. Chega-lhe? – e, entregando-me a folha, recostou-se, de olhos fechados, aguardando que eu o deixasse em paz.
*
Não era verdade que eu tencionasse apanhar um ferry do meio-dia cheio de gente em Southampton. Não era verdade que viajasse com um passaporte britânico. Não me agradava enganá-lo, mas com Jim nunca se sabia.
Um voo matutino de Bristol levou-me até Le Bourget. Ao descer a escada, fui assaltado por recordações de Tulipa: esta foi a minha última visão de ti viva; foi aqui que te prometi que não tardarias a reunir-te a Gustav; foi aqui que rezei para que voltasses a cabeça, mas não chegaste a fazê-lo.
De Paris, apanhei um comboio para Basileia. Quando me apeei em Friburgo, toda a raiva e perplexidade que tinha reprimido durante dias vieram à tona em catadupas. Quem era de responsabilizar pela minha vida de obediente encobrimento, senão George Smiley? Era eu que tinha sugerido que devia tornar-me amigo de Liz Gold? Tinha sido ideia minha mentir a Alec, a nossa cabra presa, como lhe chamara Tabitha, e depois vê-lo ir direito à armadilha que George tinha preparado para Mundt?
Bem, agora vamos ao ajuste de contas, por fim. Agora vamos a respostas diretas a perguntas difíceis, como: você, George, propôs-se conscientemente suprimir a humanidade que há em mim, ou também eu fui um dano colateral? Como: e quanto à sua humanidade, e por que razão é que ela teve sempre de estar em segundo plano em relação a uma causa mais elevada e mais abstrata que eu já não consigo identificar, se é que alguma vez o consegui?
Ou, dito de outra maneira: de quanto do nosso sentimento humano podemos prescindir em nome da liberdade, diria você, antes de deixarmos de nos sentir humanos ou livres? Ou estávamos simplesmente a padecer da incurável doença inglesa de precisar de jogar o jogo do mundo quando já não éramos jogadores no plano mundial?
A biblioteca do Kollegiengebäude Número Três, disse-me a prestável senhora da receção chamada Friede com algum vigor, ficava no prédio em frente, do outro lado do pátio, passando pelo grande portal e virando à direita. Não estava assinalada BIBLIOTECA, e na realidade não era uma biblioteca, mas sim uma comprida e sossegada sala de leitura reservada para estudiosos de visita.
E poderia eu ter presente, por favor, que o silêncio era a regra?
*
Não sei se Jim tinha avisado George de algum modo de que eu ia ter com ele, ou se ele pressentiu simplesmente a minha presença. Estava sentado a uma secretária juncada de papéis, no vão de uma janela, de costas para mim, um ângulo que lhe proporcionava luz para ler e, quando dela precisava, a paisagem das colinas e florestas circundantes. Tanto quanto me foi dado ver, não havia mais ninguém na sala: apenas uma fiada de nichos revestidos de madeira com secretárias e confortáveis cadeiras vazias. Dei a volta até podermos ver-nos um ao outro. E, visto que George sempre parecera mais velho do que era, fiquei aliviado ao ver que não me aguardava uma surpresa desagradável. Era o mesmo George, tendo apenas atingido a idade que sempre parecera ter; mas George de pulôver vermelho e calças de bombazina amarelo-clara, o que me espantou porque sempre o tinha visto somente com um fato de má qualidade. E se as suas feições em repouso conservavam a tristeza de mocho, não havia tristeza na sua saudação quando, com um surto de energia, se pôs em pé de um salto e me estreitou a mão entre ambas as suas.
– Então o que é que está para aí a ler? – protesto eu erraticamente, mantendo a voz baixa porque o silêncio era a regra.
– Oh, meu caro, nem sequer pergunte. Um antigo espião na caquexia procura a verdade dos tempos. Você está com um ar vergonhosamente jovem, Peter. Tem andado nas suas habituais travessuras?
Está a juntar os seus livros e papéis e a guardá-los num cacifo. Levado pelo antigo hábito, dou-lhe uma ajuda.
E uma vez que isto não é o género de local para a minha projetada confrontação, pergunto-lhe como está Ann.
– Está bem, obrigado, Peter. Sim. Muito bem, atendendo às circunstâncias – fechando o armário e enfiando a chave no bolso. – Vem ver-me de vez em quando. Passeamos. Na Floresta Negra. Não propriamente as maratonas de antigamente, confesso. Mas passeamos.
A nossa conversa abafada chega ao fim quando uma senhora idosa entra e, depois de se desfazer com dificuldade do saco a tiracolo, espalha os seus papéis, põe os óculos de ler, ajustando-os a uma orelha de cada vez, e, com um sonoro suspiro, instala-se num dos nichos. E eu penso que foi o seu suspiro que minou o que me restava de determinação.
*
Sentamo-nos no espartano apartamento de solteiro de George, que fica numa colina sobranceira à cidade. Ele escuta como ninguém que eu alguma vez tenha conhecido. O seu pequeno corpo entra numa espécie de hibernação. As longas pálpebras semicerram-se. Não há um franzir da testa, não há um aceno de cabeça, nem sequer um arquear de sobrancelhas até terminarmos. E quando terminamos – e ele se certificou de que terminámos, chamando-nos à pedra relativamente a qualquer aspeto obscuro que omitimos ou camuflámos – continua a não haver surpresa, nem momento avaliativo de aprovação ou do contrário. Foi, por isso, tanto mais surpreendente que, quando eu cheguei penosamente ao final da minha longuíssima narrativa – com o dia a declinar e a cidade lá em baixo a desaparecer sob sudários de névoa vespertina e as luzes a espreitarem através deles –, ele corresse ruidosamente e com grande energia as cortinas sobre o mundo e desse largas a uma fúria tão desenfreada como eu nunca lhe ouvira.
– Os cobardes. Os grandessíssimos cobardes. Isso é odioso, Peter. Karen, é como você diz que ela se chama? Vou procurar imediatamente a Karen. Talvez ela me deixe entrar e conversar com ela. Ou melhor, pago-lhe a passagem de avião até cá, se ela estiver de acordo. E se o Christoph quiser falar comigo, o melhor é que o faça. – E após uma pausa algo enervante: – E o Gustav também, claro. Já foi marcada a data para o julgamento, diz você? Eu presto um depoimento. Fá-lo-ei sob juramento. Oferecer-me-ei como testemunha da verdade. No tribunal que eles escolherem.
«Eu não sabia nada disto – continuou, no mesmo tom furioso. – Nada. Ninguém me procurou, ninguém me informou. Tenho estado eminentemente contactável, mesmo em retiro – insistiu, sem explicar do que se estava a retirar. – Os Estábulos? – continuou sem parar, indignado. – Julgava que já estavam fechados há muito. Quando eu saí do Circus devolvi a minha procuração aos advogados. O que aconteceu depois disso, nem imagino. Nada, aparentemente. De inquéritos parlamentares? Processos judiciais? Nem uma palavra, nem um sussurro. Porquê? Eu lhe digo porquê. Porque eles não queriam que eu soubesse. Eu estava demasiado acima na hierarquia para o gosto deles. Já estou a ver tudo. Um antigo Chefe das Encobertas no banco dos réus? A admitir que sacrificou um ótimo agente e uma mulher inocente numa causa de que o mundo quase não se lembra? E tudo isso planeado e perdoado pessoalmente pelo Chefe do Serviço? Isso não cairia nada bem aos nossos modernos patrões. Nada deve manchar a respeitada imagem do Serviço. Valha-me Deus. Escusado será dizer que vou dar instruções imediatas à Millie McCraig para divulgar todos os papéis e tudo o mais que confiei à sua guarda – continua, com voz mais calma. – Bambúrrio persegue-me até hoje. Há de perseguir-me sempre. Responsabilizo-me inteiramente a mim próprio. Contava com a desumanidade do Mundt, mas subestimei-a. A tentação de matar as testemunhas era simplesmente grande de mais para ele.
– Mas, George – protesto eu –, Bambúrrio era uma operação do Controlo. Você limitou-se a concordar com ela.
– O que é de longe o maior pecado, receio bem. Posso oferecer-lhe o sofá, Peter?
– Por acaso reservei um quarto em Basileia. É um pulo. Apanho o comboio para Paris de manhã.
Era mentira, e acho que ele adivinhou que o era.
– Então o seu último comboio é às onze e dez. Posso convidá-lo para jantar antes de seguir viagem?
Por razões demasiado profundas em mim para discutir, não achara por bem falar-lhe da abortada tentativa de Christoph para me matar, e muito menos da tirada do pai, Alec, contra o Serviço ao qual apesar disso tinha amor. Contudo, as palavras seguintes de George podiam muito bem ser encaradas como uma resposta à peroração de Christoph:
– Nós não éramos desapiedados, Peter. Nunca fomos desapiedados. Éramos os que tinham maior piedade. Possivelmente era mal aplicada. E era sem dúvida inútil. Agora sabemo-lo. Na altura não sabíamos.
Pela primeira vez que eu me lembre, aventurou-se a poisar-me uma mão no ombro, para logo a retirar como se eu o tivesse queimado.
– Mas você sabia, Peter! Claro que sabia. Você e o seu bom coração. Se assim não fosse, por que razão havia de procurar o pobre Gustav? Eu admirei-o por isso. Fiel ao Gustav, fiel à sua pobre mãe. Ela foi uma grande perda para si, tenho a certeza.
Eu não fazia ideia de que ele tinha conhecimento do meu mal alinhavado esforço no sentido de dar uma ajuda a Gustav, mas não fiquei indevidamente surpreendido. Este era o George que eu recordava: omnisciente em relação à fragilidade dos outros, ao mesmo tempo que se recusava estoicamente a reconhecer a sua.
– E a sua Catherine, está bem?
– Está, sim, está muito bem, obrigado.
– E o filho? É um filho, não é?
– Filha, aliás. Está ótima.
Ter-se-ia ele esquecido de que Isabelle era uma rapariga? Ou estaria ainda a pensar em Gustav?
*
Uma velha estalagem perto da catedral. Troféus de caça sobre lambrins pretos. A casa está aqui desde sempre, ou foi arrasada pelos bombardeamentos e reconstruída com a ajuda de estampas antigas. Hoje a especialidade da casa é veado guisado. George recomenda-o, e um vinho de Baden para acompanhar. Sim, ainda vivo em França, George. Ele está satisfeito comigo. Passou a morar em Friburgo?, pergunto-lhe eu. Ele hesita. Temporariamente, sim, Peter, passou. Até quando, logo se veria. Depois, como se o pensamento só agora lhe viesse à mente, embora eu suspeite que esteve durante todo o tempo a pairar entre nós:
– Creio que veio acusar-me de qualquer coisa, Peter. Acertei? – E, quando é a minha vez de hesitar: – Foi pelas coisas que fizemos, diga lá? Ou por que razão as fizemos sequer? – inquire, num tom extremamente amável. – Por que razão eu as fiz, o que é mais pertinente. Você era um leal soldado raso. Não lhe cabia a si perguntar por que razão o Sol nascia todas as manhãs.
Eu podia ter questionado isto, mas receava cortar o fio à meada.
– Pela paz mundial, seja isso o que for? Sim, sim, claro. Não haverá guerra, mas na luta pela paz não ficará pedra sobre pedra, como costumavam dizer os nossos amigos russos. – Cala-se, apenas para voltar mais vigorosamente à carga: – Ou foi tudo no grande nome de capitalismo? Livre-nos Deus. Da cristandade? Livre-nos Deus também.
Um gole de vinho, um sorriso de perplexidade, dirigido, não a mim, mas a si próprio.
– Então terá sido tudo pela Inglaterra? – prosseguiu. – Houve tempos, claro que houve. Mas a Inglaterra de quem? Qual Inglaterra? A Inglaterra sozinha, um cidadão de nenhures? Eu sou europeu, Peter. Se eu tinha uma missão, se alguma vez tive consciência de alguma para além da nossa questão com o inimigo, era para com a Europa. Se eu era desumano, era desumano pela Europa. Se tinha um ideal inatingível, era o de conduzir a Europa das suas trevas a uma nova era da razão. Ainda a tenho.
Um silêncio, mais profundo do que qualquer outro de que me lembrasse, mesmo nos piores tempos. Os contornos fluidos do rosto imobilizados, a testa inclinada para diante, as pálpebras sombrias descaídas. Um indicador sobe distraidamente até à ponte dos óculos, para verificar se eles ainda estão no sítio. Até que, com uma abanadela da cabeça como que para se libertar de um sonho mau, sorriu.
– Desculpe, Peter. Estou a pontificar. Temos dez minutos de caminho até à estação. Permite que lhe faça companhia?
25 Em francês no original: Deixa-me em paz. (N. do T.)