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O legislador constituinte originário criou mecanismos por meio dos quais se controlam os atos normativos, verificando sua adequação aos preceitos previstos na “Lei Maior”.
Como requisitos fundamentais e essenciais para o controle, lembramos a existência de uma Constituição rígida e a atribuição de competência a um órgão para resolver os problemas de constitucionalidade, órgão esse que variará de acordo com o sistema de controle adotado.
Conforme já estudado, Constituição rígida é aquela que possui um processo de alteração mais dificultoso, mais árduo, mais solene que o processo legislativo de alteração das normas não constitucionais. A CF brasileira é rígida, diante das regras procedimentais solenes de alteração previstas em seu art. 60.
A ideia de controle, então, emanada da rigidez, pressupõe a noção de um escalonamento normativo, ocupando a Constituição o grau máximo na aludida relação hierárquica, caracterizando-se como norma de validade para os demais atos normativos do sistema.
Trata-se do princípio da supremacia da Constituição, que, nos dizeres do Professor José Afonso da Silva, reputado por Pinto Ferreira como “pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”, “significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas”. Desse princípio, continua o mestre, “resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a Constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores”.2
A Constituição está, pois, no ápice da pirâmide, orientando e “iluminando” os demais atos infraconstitucionais.
Alertamos que há uma tendência a ampliar o conteúdo do parâmetro de constitucionalidade de acordo com aquilo que a doutrina vem chamando de bloco de constitucionalidade (cf. análise no item 6.7.1.3).
Pode-se afirmar que a maioria da doutrina brasileira acatou, inclusive por influência do direito norte-americano, a caracterização da teoria da nulidade ao se declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (afetando o plano da validade).
Trata-se, nesse sentido, de ato declaratório que reconhece uma situação pretérita, qual seja, o “vício congênito”, de “nascimento” do ato normativo.
A ideia de a lei ter “nascido morta” (natimorta), já que existente enquanto ato estatal, mas em desconformidade (em razão de vício formal ou material) em relação à noção de “bloco de constitucionalidade” (ou paradigma de controle), consagra a teoria da nulidade, afastando a incidência da teoria da anulabilidade.
Assim, o ato legislativo, por regra, uma vez declarado inconstitucional, deve ser considerado, nos termos da doutrina brasileira majoritária, “... nulo, írrito, e, portanto, desprovido de força vinculativa”.3
A doutrina tradicional já se manifestava nessa linha, destacando-se os ensinamentos de Rui Barbosa,4 Alfredo Buzaid,5 Castro Nunes6 e Francisco Campos.7
Cappelletti, ao descrever o sistema “norte-americano”, observa que “... a lei inconstitucional, porque contrária a uma norma superior, é considerada absolutamente nula (‘null and void’) e, por isto, ineficaz, pelo que o juiz, que exerce o poder de controle, não anula, mas, meramente, declara (preexistente) nulidade da lei inconstitucional”.8
Contra esse entendimento, destaca-se a teoria da anulabilidade da norma inconstitucional defendida por Kelsen9 e que influenciou a Corte Constitucional austríaca, caracterizando-se como constitutiva a natureza jurídica da decisão que a reconhece.10
Segundo Cappelletti, no sistema austríaco, diferentemente do sistema norte-americano da nulidade, “... a Corte Constitucional não declara uma nulidade, mas anula, cassa (‘aufhebt’) uma lei que, até o momento em que o pronunciamento da Corte não seja publicado, é válida e eficaz, posto que inconstitucional (sic). Não é só: mas — coisa ainda mais notável — a Corte Constitucional austríaca tem, de resto, o poder discricionário de dispor que a anulação da lei opere somente a partir de uma determinada data posterior (‘Kundmachung’) de seu pronunciamento, contanto que este diferimento de eficácia constitutiva do pronunciamento não seja superior a um ano...”.11
Na linha da teoria da anulabilidade da lei inconstitucional (ineficácia a partir da decisão), no Brasil, em sede doutrinária e minoritária, destacam-se Pontes de Miranda12 e Regina Nery Ferrari.13
A confrontação dos sistemas pode ser assim esquematizada:
SISTEMA AUSTRÍACO (KELSEN) |
SISTEMA NORTE-AMERICANO (MARSHALL) |
■ decisão tem eficácia constitutiva (caráter constitutivo-negativo) |
■ decisão tem eficácia declaratória de situação preexistente |
■ por regra, o vício de inconstitucionalidade é aferido no plano da eficácia |
■ por regra, o vício de inconstitucionalidade é aferido no plano da validade |
■ por regra, decisão que reconhece a inconstitucionalidade produz efeitos ex nunc (prospectivos) |
■ por regra, decisão que declara a inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc (retroativos) |
■ a lei inconstitucional é ato anulável (a anulabilidade pode aparecer em vários graus) |
■ a lei inconstitucional é ato nulo (null and void), ineficaz (nulidade ab origine), írrito e, portanto, desprovido de força vinculativa |
■ lei provisoriamente válida, produzindo efeitos até a sua anulação |
■ invalidação ab initio dos atos praticados com base na lei inconstitucional, atingindo-a no berço |
■ o reconhecimento da ineficácia da lei produz efeitos a partir da decisão ou para o futuro (ex nunc ou pro futuro), sendo erga omnes, preservando-se, assim, os efeitos produzidos até então pela lei |
■ a lei, por ter nascido morta (natimorta), nunca chegou a produzir efeitos (não chegou a viver), ou seja, apesar de existir, não entrou no plano da eficácia |
Esse quadro representa tanto a teoria da nulidade (que prevalece na realidade brasileira) como a da anulabilidade em seus extremos. Ao longo dos tempos, doutrina e jurisprudência procuraram flexibilizá-las. É o que passamos a estudar.
Cappelletti observa que tanto o rigor da regra da não retroatividade do sistema austríaco como o da técnica da nulidade absoluta do sistema norte-americano tiveram de ser reavaliados, visto que insubsistentes.14
Em relação à Áustria, em 1929, a regra que negava qualquer retroatividade às decisões e pronunciamentos da Corte Constitucional foi atenuada, fixando-se a possibilidade de atribuição de efeitos retroativos à decisão anulatória.
Regina Ferrari observa que “o efeito voltado para o futuro — ex nunc — é o normal das sentenças constitutivas, mas não pertence à sua essência: o essencial é a produção de um estado jurídico que não existia antes de tal decisão”.
Conclui em seguida que “... a norma inconstitucional é anulável e os atos praticados sob o império dessa lei devem ser considerados válidos, até e enquanto não haja decisão que a fulmine com tal vício, operando eficaz e normalmente como qualquer outra disposição válida, já que o é até a decretação de inconstitucionalidade”. Finalmente, admite que referida sentença pode ter alcance ex tunc.15
Quanto à técnica “fria” da nulidade ab origine (de origem norte-americana — “the inconstitutional statute is not law at all”16 — e adotada no Brasil), Cappelletti passa a imaginar situações práticas que apontariam a sua inadequação.
Como ficariam todos os atos praticados, durante longos anos, sob a vigência de uma lei que venha a ser declarada inconstitucional? Como resolver a questão de um contrato que tenha sido celebrado e servido de base para a prestação de um serviço público por longos anos? Como ficarão os efeitos da lei? Como sustentar o cumprimento de uma pena que tenha fundamento em lei que venha a ser declarada inconstitucional? Que fazer com os efeitos já consolidados? E a coisa julgada? E o mínimo de certeza e estabilidade que todas as relações jurídicas devem ter?
Nos Estados Unidos, o precedente lembrado é o caso Likletter v. Walker, em relação ao qual, realizando análise política, a Suprema Corte entendeu que o reconhecimento de inconstitucionalidade de lei que permitia certo sistema de colheita de provas não retroagiria para invalidar decisões já tomadas com base naquele sistema.
Conforme relatado por Gilmar Mendes,17 toda a polêmica decorreu do julgamento do caso Mapp v. Ohio 367 US 643 (1961), no qual a Suprema Corte entendeu, nos termos da 4.ª Emenda, que a prova obtida ilegalmente não poderia ser considerada no juízo penal, seja nas Cortes Federais, como também, e inovando, nas Estaduais, superando-se a doutrina fixada em Wolf v. Colorado, 338 US 25 (1949).
O objetivo era desestimular “ações ilegais da polícia, proteger a privacidade das vítimas e ensejar que os órgãos federais e estaduais operassem com base nos mesmos padrões jurídicos”. Contudo, à decisão não foi atribuído efeito retroativo, para evitar, segundo o Juiz Clark, a quebra de confiança depositada em Wolf v. Colorado e impor “desmedida carga de trabalho para a administração da Justiça”.18
Assim, o pedido de se considerar ilegal, no caso Likletter v. Walker, a obtenção da prova por arrombamento, agora com base no novo precedente fixado em Mapp v. Ohio, foi indeferido para evitar sério problema de administração de justiça (e a perspectiva de diversos pedidos no mesmo sentido de revisão), surgindo, pois, uma importante atenuação ao rígido princípio da nulidade absoluta da lei.19
Parafraseando Sérgio Resende de Barros, parecia estar sendo desatado o “nó górdio” do sistema de controle, flexibilizando o sistema da nulidade absoluta e se permitindo a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.20
Garcia de Enterría, na Espanha, destaca a hipótese de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade e pro futuro tendo como precedente a Sentença n. 45/1989.21
Em Portugal, muito embora a declaração de nulidade da lei inconstitucional seja a regra geral, há expressa autorização constitucional permitindo a modulação dos efeitos da decisão, bem como a desconstituição da coisa julgada em matérias específicas e desde que haja expressa determinação pelo Tribunal Constitucional.
Na Alemanha, o princípio da nulidade da lei inconstitucional está consagrado como regra geral, nos termos do § 78 da Lei do Bundesverfassungsgericht.
Contudo, ensina Gilmar Mendes, várias técnicas surgem no sentido de resolver alguns problemas trazidos pela rigidez do princípio da nulidade (que é reconhecido como constitucional, como visto), destacando-se o “apelo ao legislador” ou “situação ainda constitucional” (Appellentscheidung)22 e a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade (Unvereinbarkeitserklärung — omissão parcial; exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia;23 ameaça de caos jurídico, lacunas ameaçadoras etc.).24
A regra geral da nulidade absoluta da lei inconstitucional vem sendo, casuisticamente, afastada pela jurisprudência brasileira e repensada pela doutrina.
Ao lado do princípio da nulidade, que adquire, certamente, o status de valor constitucionalizado, tendo em vista o princípio da supremacia da Constituição, outros valores, de igual hierarquia, destacam-se, por exemplo, o princípio da segurança jurídica e o da boa-fé.
Nesses termos, valendo-se da evolução da jurisprudência norte-americana, Lúcio Bittencourt afirma que a “... doutrina da ineficácia ab initio da lei inconstitucional não pode ser entendida em termos absolutos, pois que os efeitos de fato que a norma produziu não podem ser suprimidos, sumariamente, por simples obra de um decreto judiciário”.25
Toda evolução e movimento verificados no direito estrangeiro também foram considerados no Brasil, que “legalizou” a tendência jurisprudencial que já vinha sendo percebida, muito embora lentamente, a flexibilizar a rigidez do princípio geral — e que ainda é regra, diga-se de passagem — da nulidade da lei declarada inconstitucional no controle concentrado.
Nesse sentido, com bastante propriedade, estabelece o art. 27 da Lei n. 9.868/99:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (no mesmo sentido, cf. art. 11 da Lei n. 9.882/99 — ADPF).
Trata-se da denominada, pela doutrina, técnica de modulação dos efeitos da decisão e que, nesse contexto, permite uma melhor adequação da declaração de inconstitucionalidade, assegurando, por consequência, outros valores também constitucionalizados, como os da segurança jurídica, do interesse social e da boa-fé.
A regra geral do art. 27 da Lei n. 9.868/99, em casos particulares, também tem sido aplicada, por analogia, ao controle difuso.
Em importante precedente, destaca-se ação civil pública ajuizada pelo MP de São Paulo objetivando reduzir o número de vereadores do Município de Mira Estrela, de 11 para 9, adequando-se ao mínimo constitucional previsto no art. 29, IV, da CF/88. Pouco razoável seria um Município com 2.651 habitantes ter 11 vereadores, 2 além do mínimo constitucional.
O MP de São Paulo pedia a devolução dos subsídios indevidamente pagos e a declaração incidental da inconstitucionalidade da lei (controle difuso), com efeitos retroativos.
Porém, conforme ponderou o Min. Maurício Corrêa na parte final de seu voto, “... a declaração de nulidade com os ordinários efeitos ex tunc da composição da Câmara representaria um verdadeiro caos quanto à validade, não apenas, em parte, das eleições já realizadas, mas dos atos legislativos praticados por esse órgão sob o manto presuntivo da legitimidade. Nessa situação específica, tenho presente excepcionalidade tal a justificar que a presente decisão prevaleça tão somente para as legislaturas futuras, assegurando-se a prevalência, no caso, do sistema até então vigente em nome da segurança jurídica...”.26
Partindo desse precedente, interessante a análise de tantos outros julgados no sentido de se modular os efeitos da decisão também no controle difuso, destacando-se os julgamentos do RE-AgR 434.222/AM e do MS 22.357/DF.
O STF, portanto, à luz do princípio da segurança jurídica, do princípio da confiança, da ética jurídica, da boa-fé, todos constitucionalizados, em verdadeira ponderação de valores, vem, casuisticamente, mitigando os efeitos da decisão que reconhece a inconstitucionalidade das leis também no controle difuso, preservando-se situações pretéritas consolidadas com base na lei objeto do controle.
Sem dúvida, de maneira coerente, imprescindível essa tendência de mitigação do princípio da nulidade, tanto em sede de controle concentrado como em sede de controle difuso.
No tocante ao sistema brasileiro de controle de constitucionalidade,28 a Constituição Imperial de 1824 não estabeleceu nenhum sistema de controle, consagrando o dogma da soberania do Parlamento, já que, sob a influência do direito francês (a lei como “expressão da vontade geral”) e do inglês (supremacia do Parlamento), somente o Órgão Legislativo poderia saber o verdadeiro sentido da norma.
No entanto, nas precisas palavras de Clèmerson Merlin Clève, “não foi apenas o dogma da soberania do Parlamento que impediu a emergência da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade no Império. O Imperador, enquanto detentor do Poder Moderador, exercia uma função de coordenação; por isso, cabia a ele (art. 98) manter a ‘independência, o equilíbrio e a harmonia entre os demais poderes’. Ora, o papel constitucional atribuído ao Poder Moderador, ‘chave de toda a organização política’ nos termos da Constituição, praticamente inviabilizou o exercício da função de fiscalização constitucional pelo Judiciário. Sim, porque, nos termos da Constituição de 1824, ao Imperador cabia solucionar os conflitos envolvendo os Poderes, e não ao Judiciário”. Portanto, completa o ilustre jurista, “o dogma da ‘soberania do Parlamento’, a previsão de um Poder Moderador e mais a influência do direito público europeu, notadamente inglês e francês, sobre os homens públicos brasileiros, inclusive os operadores jurídicos, explicam a inexistência de um modelo de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis no Brasil ao tempo do Império”.29
A partir da Constituição Republicana de 1891, sob a influência do direito norte-americano, consagra-se, no direito brasileiro, mantida até a CF/88, a técnica de controle de constitucionalidade de lei ou ato com indiscutível caráter normativo (desde que infraconstitucionais), por qualquer juiz ou tribunal, observadas as regras de competência e organização judiciária. Trata-se do denominado controle difuso de constitucionalidade, repressivo, posterior, ou aberto, pela via de exceção ou defesa, pelo qual a declaração de inconstitucionalidade se implementa de modo incidental (incidenter tantum), prejudicialmente ao mérito.30
A Constituição de 1934, mantendo o sistema de controle difuso, estabeleceu, além da ação direta de inconstitucionalidade interventiva, a denominada cláusula de reserva de plenário (a declaração de inconstitucionalidade só poderia ser pela maioria absoluta dos membros do tribunal) e a atribuição ao Senado Federal de competência para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou ato declarado inconstitucional por decisão definitiva.
Asseverou Gilmar Ferreira Mendes, ao comentar as novidades trazidas pela Constituição de 1934 em relação ao sistema de controle de constitucionalidade, que “talvez a mais fecunda e inovadora alteração (...) se refira à ‘declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal’, tal como a denominou Bandeira de Mello, isto é, a representação interventiva, confiada ao Procurador-Geral da República, nas hipóteses de ofensa aos princípios consagrados no art. 7.º, I, a a h, da Constituição. Cuidava-se de fórmula peculiar de composição judicial dos conflitos federativos, que condicionava a eficácia da lei interventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, § 3.º), à declaração de sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal (art. 12, § 2.º)”.31
A Constituição de 1937, denominada Polaca, já que elaborada sob a inspiração da Carta ditatorial polonesa de 1935, não obstante tenha mantido o sistema difuso de constitucionalidade, estabeleceu a possibilidade de o Presidente da República influenciar as decisões do Poder Judiciário que declarassem inconstitucional determinada lei, já que, de modo discricionário, poderia submetê-la ao Parlamento para o seu reexame, podendo o Legislativo, pela decisão de 2/3 de ambas as Casas, tornar sem efeito a declaração de inconstitucionalidade, desde que confirmasse a validade da lei.32 Referidas regras, inegavelmente, implicavam o desproporcional fortalecimento do Executivo.
A Constituição de 1946, fruto do movimento de redemocratização e reconstitucionalização instaurado no País, flexibilizou a hipertrofia do Executivo, restaurando a tradição do sistema de controle de constitucionalidade. Através da EC n. 16, de 26.11.1965, criou-se no Brasil uma nova modalidade de ação direta de inconstitucionalidade, de competência originária do STF, para processar e julgar originariamente a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual, a ser proposta, exclusivamente, pelo Procurador-Geral da República. Estabeleceu-se, ainda, a possibilidade de controle concentrado em âmbito estadual.
Esta última regra foi retirada pela Constituição de 1967, embora a EC n. 1/69 tenha previsto o controle de constitucionalidade de lei municipal, em face da Constituição Estadual, para fins de intervenção no Município.
A Constituição de 1988, elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte convocada pela EC n. 26, de 27.11.198533 (DOU de 28.11.1985, p. 17422, col. 1), trouxe quatro principais novidades no sistema de controle de constitucionalidade.
Em relação ao controle concentrado em âmbito federal, ampliou a legitimação para a propositura da representação de inconstitucionalidade, acabando com o monopólio do Procurador-Geral da República. Em consonância com o art. 103 da CF/88, o art. 2.º da Lei n. 9.868, de 10.11.1999, legalizando o entendimento jurisprudencial da Suprema Corte, dispõe que a ação direta de inconstitucionalidade poderá ser proposta pelos seguintes legitimados: Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara dos Deputados; Mesa de Assembleia Legislativa ou Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal; Governador de Estado ou Governador do Distrito Federal; Procurador-Geral da República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Estabeleceu-se, também, a possibilidade de controle de constitucionalidade das omissões legislativas, seja de forma concentrada (ações diretas de inconstitucionalidade por omissão — ADO, nos termos do art. 103, § 2.º), seja de modo incidental, pelo controle difuso (mandado de injunção — MI, na dicção do art. 5.º, LXXI — sobre a evolução da utilização do mandado de injunção, cf. item 14.11.5).
Nos termos do art. 125, § 2.º, os Estados poderão instituir a representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedando, contudo, a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.
Por fim, pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, facultou-se a criação da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), no parágrafo único do art. 102.
Posteriormente, a EC n. 3/93 estabeleceu a ação declaratória de constitucionalidade (ADC)34 e renumerou o parágrafo único do art. 102 da CF/88, transformando-o em § 1.º, mantendo a redação original da previsão da ADPF, nos seguintes termos: “a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.
Enfim, a EC n. 45/2004 (Reforma do Judiciário) ampliou a legitimação ativa para o ajuizamento da ADC (ação declaratória de constitucionalidade), igualando aos legitimados da ADI (ação direta de inconstitucionalidade), alinhados no art. 103, e estendeu o efeito vinculante, que era previsto de maneira expressa somente para a ADC, agora, também (apesar do que já dizia o art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/99 e da jurisprudência do STF), para a ADI. Tudo caminha para a expressa consagração da ideia de efeito dúplice ou ambivalente entre as duas ações, faltando somente a igualação dos seus objetos.
Por todo o exposto, valendo-nos das palavras de José Afonso da Silva, “o Brasil seguiu o sistema norte-americano, evoluindo para um sistema misto e peculiar que combina o critério difuso por via de defesa com o critério concentrado por via de ação direta de inconstitucionalidade, incorporando também, agora timidamente, a ação de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, a e III, e 103). A outra novidade está em ter reduzido a competência do Supremo Tribunal Federal à matéria constitucional. Isso não o converte em Corte Constitucional. Primeiro porque não é o único órgão jurisdicional competente para o exercício da jurisdição constitucional, já que o sistema perdura fundado no critério difuso, que autoriza qualquer tribunal e juiz a conhecer da prejudicial de inconstitucionalidade, por via de exceção. Segundo, porque a forma de recrutamento de seus membros denuncia que continuará a ser um Tribunal que examinará a questão constitucional com critério puramente técnico-jurídico, mormente porque, como Tribunal, que ainda será, do recurso extraordinário, o modo de levar a seu conhecimento e julgamento as questões constitucionais nos casos concretos, sua preocupação, como é regra no sistema difuso, será dar primazia à solução do caso e, se possível, sem declarar inconstitucionalidades”.35
O que se busca com esse tema é saber quando uma norma infraconstitucional padecerá do vício de inconstitucionalidade, que poderá verificar-se em razão de ato comissivo ou por omissão do Poder Público.
Fala-se, então, em inconstitucionalidade por ação (positiva ou por atuação), a ensejar a incompatibilidade vertical dos atos inferiores (leis ou atos do Poder Público) com a Constituição,36 e, em sentido diverso, em inconstitucionalidade por omissão, decorrente da inércia legislativa na regulamentação de normas constitucionais de eficácia limitada.
Para Canotilho, enquanto a inconstitucionalidade por ação pressupõe a existência de normas inconstitucionais, a inconstitucionalidade por omissão pressupõe a “violação da lei constitucional pelo silêncio legislativo (violação por omissão)”.37
Particularizando, a inconstitucionalidade por ação pode-se dar: a) do ponto de vista formal; b) do ponto de vista material; c) e estamos pensando em uma terceira forma em razão dos escândalos dos denominados “mensalão” e “mensalinho” para votar em um sentido ou em outro, “batizada” de “vício de decoro parlamentar”.38
No tocante ao vício formal e material, a doutrina também tem distinguido as expressões nomodinâmica e nomoestática, respectivamente, para a inconstitucionalidade.39 Na medida em que o vício formal decorre de afronta ao devido processo legislativo de formação do ato normativo, isso nos dá a ideia de dinamismo, de movimento. Por sua vez, o vício material, por ser um vício de matéria, de conteúdo, a ideia que passa é de vício de substância, estático.
Como o próprio nome induz, a inconstitucionalidade formal, também conhecida como nomodinâmica, verifica-se quando a lei ou ato normativo infraconstitucional contiver algum vício em sua “forma”, ou seja, em seu processo de formação, vale dizer, no processo legislativo de sua elaboração, ou, ainda, em razão de sua elaboração por autoridade incompetente.
Segundo Canotilho, os vícios formais “... incidem sobre o ato normativo enquanto tal, independentemente do seu conteúdo e tendo em conta apenas a forma da sua exteriorização; na hipótese inconstitucionalidade formal, viciado é o ato, nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final”.40
Podemos, então, falar em inconstitucionalidade formal orgânica, em inconstitucionalidade formal propriamente dita e em inconstitucionalidade formal por violação a pressupostos objetivos do ato.
A inconstitucionalidade formal orgânica decorre da inobservância da competência legislativa para a elaboração do ato.
Para se ter um exemplo, o STF entende inconstitucional lei municipal que discipline o uso do cinto de segurança, já que se trata de competência da União, nos termos do art. 22, XI, legislar sobre trânsito e transporte.
Outro exemplo, dentre tantos já apreciados pelo STF (cf. item 7.10 desta obra), foi assim ementado: “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei estadual que regula obrigações relativas a serviços de assistência médico-hospitalar regidos por contratos de natureza privada, universalizando a cobertura de doenças (Lei n. 11.446/1997, do Estado de Pernambuco). Vício formal. Competência privativa da União para legislar sobre direito civil, comercial e sobre política de seguros (CF, art. 22, I e VII). Precedente: ADI n. 1.595-MC/SP, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 19/12/02, Pleno, maioria” (ADI 1.646, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 02.08.2006, DJ de 07.12.2006). No mesmo sentido: ADI 1.595, Rel. Min. Eros Grau, j. 03.03.2005, DJ de 07.12.2006.
Por sua vez, a inconstitucionalidade formal propriamente dita decorre da inobservância do devido processo legislativo. Podemos falar, então, além de vício de competência legislativa (inconstitucionalidade orgânica), em vício no procedimento de elaboração da norma, verificado em momentos distintos: na fase de iniciativa ou nas fases posteriores.41
■ Vício formal subjetivo: o vício formal subjetivo verifica-se na fase de iniciativa. Tomemos um exemplo: algumas leis são de iniciativa exclusiva (reservada)42 do Presidente da República, como as que fixam ou modificam os efetivos das Forças Armadas, conforme o art. 61, § 1.º, I, da CF/88. Iniciativa privativa, ou melhor, exclusiva ou reservada, significa, no exemplo, ser o Presidente da República o único responsável por deflagrar, dar início ao processo legislativo da referida matéria. Em hipótese contrária (ex.: um Deputado Federal dando início), estaremos diante de um vício formal subjetivo insanável, e a lei será inconstitucional.
■ Vício formal objetivo: por seu turno, o vício formal objetivo será verificado nas demais fases do processo legislativo, posteriores à fase de iniciativa. Como exemplo citamos uma lei complementar sendo votada por um quorum de maioria relativa. Existe um vício formal objetivo, na medida em que a lei complementar, por força do art. 69 da CF/88, deveria ter sido aprovada por maioria absoluta.
Outro exemplo seria uma PEC votada com quorum diferente do previsto no art. 60, § 2.º (3/5 em cada Casa e em 2 turnos de votação). Se isso ocorrer, a emenda promulgada padecerá de vício formal objetivo de inconstitucionalidade.
Outra hipótese seria a violação ao princípio do bicameralismo federativo. Como se sabe, os projetos de lei federal devem ser aprovados nas duas Casas do Congresso Nacional — Câmara dos Deputados e Senado Federal.
Se, eventualmente, projeto de lei for modificado em sua substância pela Casa revisora, terá a emenda de voltar para a análise da Casa iniciadora, sob pena de configurar o vício formal objetivo.
Nesse ponto, a denominada “emenda de redação” pode existir na Casa revisora, mas desde que não signifique substancial modificação do texto aprovado na Casa iniciadora. Se isso ocorrer, terá de voltar para a análise da outra Casa (art. 65, parágrafo único), sob pena de se configurar o vício formal objetivo.
Segundo Canotilho, “hoje, põe-se seriamente em dúvida se certos elementos tradicionalmente não reentrantes no processo legislativo não poderão ocasionar vícios de inconstitucionalidade. Estamos a referir-nos aos chamados pressupostos, constitucionalmente considerados como elementos determinantes de competência dos órgãos legislativos em relação a certas matérias (pressupostos objectivos)”.43
Exemplificando, o autor lembra o art. 229, 2.º, da Constituição portuguesa, que determina a audiência obrigatória, pelos órgãos de soberania, dos órgãos do governo regional, quanto a questões relativas às regiões autônomas, sob pena de faltar um pressuposto para o exercício da competência e, assim, caracterizar-se irregularidade do ato.
Nesse caso, a audiência e participação obrigatórias “... são elementos externos ao procedimento de formação das leis...”, e a sua falta gera a inconstitucionalidade formal, já que os pressupostos do ato legislativo devem ser entendidos como “elementos vinculados do ato legislativo”.44
Transportando a teoria de Canotilho para o direito brasileiro, valemo-nos de exemplos trazidos por Clèmerson Merlin Clève, quais sejam, a edição de medida provisória sem a observância dos requisitos da relevância e urgência (art. 62, caput) ou a criação de Municípios por lei estadual sem a observância dos requisitos do art. 18, § 4.º.
Neste último exemplo, o ilustre professor observa que a “... lei estadual dispondo sobre a criação de novo Município, ainda que regularmente votada e sancionada, mas sem observar o pressuposto referido, estará maculada por inafastável vício de inconstitucionalidade formal. O mesmo se verifica no caso do art. 18, § 3.º, da Lei Fundamental da República”.45
Também concordamos com esse pensamento. O tema foi apreciado no julgamento da ADI 2.240, na qual se discutia a constitucionalidade da lei baiana n. 7.619/2000, que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães, sem a total observância dos pressupostos fixados no art. 18, § 4.º. O Plenário do STF declarou a inconstitucionalidade do referido dispositivo, mas não pronunciou a nulidade do ato, mantendo sua vigência por mais 24 meses (efeito prospectivo ou para o futuro), tema que será retomado no item 6.7.1.9 deste trabalho. Cabe lembrar que a EC n. 57/2008 convalidou a criação de vários Municípios, em nosso entender, de modo inconstitucional, ilegítimo e até imoral (cf. item 6.7.4.9).
Por seu turno, o vício material (de conteúdo, substancial ou doutrinário) diz respeito à “matéria”, ao conteúdo do ato normativo. Assim, aquele ato normativo que afrontar qualquer preceito ou princípio da Lei Maior deverá ser declarado inconstitucional, por possuir um vício material. Não nos interessa saber aqui o procedimento de elaboração da espécie normativa, mas, de fato, o seu conteúdo. Por exemplo, uma lei discriminatória que afronta o princípio da igualdade.
Nas palavras de Barroso, “a inconstitucionalidade material expressa uma incompatibilidade de conteúdo, substantiva entre a lei ou ato normativo e a Constituição. Pode traduzir-se no confronto com uma regra constitucional — e.g., a fixação da remuneração de uma categoria de servidores públicos acima do limite constitucional (art. 37, XI) — ou com um princípio constitucional, como no caso de lei que restrinja ilegitimamente a participação de candidatos em concurso público, em razão do sexo ou idade (arts. 5.º, caput, e 3.º, IV), em desarmonia com o mandamento da isonomia. O controle material de constitucionalidade pode ter como parâmetro todas as categorias de normas constitucionais: de organização, definidoras de direitos e programáticas”.46
A inconstitucionalidade material é também conhecida como nomoestática.47
Observamos que uma lei pode padecer somente de vício formal, somente de vício material, ou ser duplamente inconstitucional por apresentar tanto o vício formal como o material.
Como se sabe e foi publicado em jornais, revistas etc., muito se falou em um esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para votar de acordo com o governo ou em certo sentido.
As CPIs vêm investigando e a Justiça apurando, e, uma vez provados os fatos, os culpados deverão sofrer as sanções de ordem criminal, administrativa, civil etc.
O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade.
Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, § 1.º, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.
Dito isso, cabe lembrar que, no julgamento da AP 470 (conhecida como “mensalão”), ficou demonstrado o esquema de corrupção para compra de apoio político.48
Como noticiado, “‘houve, efetivamente, a distribuição de milhões de reais a parlamentares que compuseram a base aliada do governo, distribuição essa executada mais direta e pessoalmente por Delúbio Soares, Marcos Valério e Simone Vasconcelos, como nós vimos nas últimas sessões de julgamento’, disse o ministro-relator. Ele afirmou que o responsável pela articulação da base aliada era José Dirceu, que se reunia frequentemente com líderes parlamentares que receberam dinheiro em espécie do Partido dos Trabalhadores para a aprovação de determinadas emendas constitucionais. O dinheiro, afirma o ministro, foi distribuído em espécie na agência do Banco Rural, em Brasília, ‘onde Simone Vasconcelos dispunha de uma sala reservada para a entrega do numerário aos parlamentares e aos seus intermediários’” (Notícias STF de 03.10.2012).
Ainda, de acordo com as Notícias STF de 04.10.2012, para a Ministra Rosa Weber, “‘houve, sem dúvida, um conluio’ para a compra de apoio de deputados federais — não todos — para as votações a favor do governo na Câmara dos Deputados. O dinheiro, prossegue a ministra, veio de recursos, pelo menos em parte, públicos. Ela ressaltou que os parlamentares receberam dinheiro ilicitamente, ‘caso contrário o pagamento não teria ocorrido pela forma como foi feito, sempre às escondidas, mediante a utilização de terceiros e o recebimento de vultosos valores em espécie, inclusive malas em quartos de hotel’”.
E continua: “‘aos meus olhos, ficou evidente que o Partido dos Trabalhadores costumava alcançar dinheiro a outros partidos, entregando-o a parlamentares ou membros da organização partidária’, considerou a Ministra. Tal prática, conforme ela, ocorria para a obtenção de apoio político no Parlamento. ‘Disso, resulta a verossimilhança na descrição dos fatos pela denúncia. Foi criado um esquema para pagar deputados federais em troca de seus votos na Câmara Federal e os valores eram expressivos. Esses recursos tinham origem em peculato, em gestão fraudulenta do Banco Rural, em empréstimos simulados, foi o que se concluiu por este Plenário, ainda que por maioria’, completou a Min. Rosa Weber” (Notícias STF de 04.10.2012 — original sem grifos — cf. Infs. 682 e 683/STF).
Pois bem, diante do julgamento da citada AP 470, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil — ADEPOL (ADI 4.887), a Confederação dos Servidores Públicos do Brasil — CSPB (ADI 4.888) e o Partido Socialismo e Liberdade — PSOL (ADI 4.889) ajuizaram ADIs no STF objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Reforma da Previdência (ECs ns. 41/2003 e 47/2005), alegando aprovação mediante compra de votos de parlamentares, liderados por réus condenados no “mensalão”, qual seja, o por nós denominado vício de decoro parlamentar.
A “tese” que lançamos no ano de 2005, e já colocada neste nosso livro a partir de sua 9.ª edição, foi admitida pela PGR em seu parecer na ADI 4.887, tendo sido denominada “vício na formação da vontade no procedimento legislativo”, a ensejar a violação aos princípios democráticos e do devido processo legislativo, implicando, necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo (fls. 18 do parecer/PGR n. 10.323-RG, item 27).
Contudo, o posicionamento do MPF é no sentido da improcedência da ADI. Vejamos: “na ação penal 470, foram condenados 7 parlamentares em razão da sua participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político que ficou conhecido como ‘mensalão’. Não se pode presumir, sem que tenha havido a respectiva condenação judicial, que outros parlamentares foram beneficiados pelo esquema e, em troca, venderam seus votos para a aprovação das ECs 41/2003 e 47/2005. Assim, mesmo com a desconsideração dos votos dos 7 deputados condenados, os dois turnos de votação das emendas constitucionais na Câmara dos Deputados superam o quórum qualificado exigido pela Constituição para a sua aprovação” (fls. 19 do parecer/MPF).
Vamos aguardar como o STF enfrentará essa importante questão. Em nosso entender, sem dúvida, o comprovado esquema de compra e venda de votos para se conseguir apoio político enseja o por nós denominado vício de decoro parlamentar a caracterizar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, pois que maculados a essência do voto e o conceito de representatividade popular. Nesse sentido, inclusive, concordou a PGR conforme visto acima. Teremos que aguardar se o STF vai considerar isoladamente os 7 votos dos parlamentares condenados (linha do parecer da PGR) ou a premissa exposta pela Ministra Rosa Weber de que o Partido dos Trabalhadores alimentava e incentivava o esquema a contaminar, como um todo, o procedimento ou, ao menos, a contaminar os votos dos parlamentares eleitos pela legenda e sua base aliada.
Esse sentido de uma contaminação mais ampla do procedimento parece poder ser extraído do julgamento da AP 470 que, ao identificar os focos do esquema, reconheceu a capacidade de manipulação, sugerindo-se uma “contaminação” mais avassaladora. Vejamos a ementa:
“CAPÍTULO VI DA DENÚNCIA. SUBITENS VI.1, VI.2, VI.3 E VI.4. CORRUPÇÃO ATIVA E CORRUPÇÃO PASSIVA. ESQUEMA DE PAGAMENTO DE VANTAGEM INDEVIDA A PARLAMENTARES PARA FORMAÇÃO DE ‘BASE ALIADA’ AO GOVERNO FEDERAL NA CÂMARA DOS DEPUTADOS. 5. Parlamentares beneficiários das transferências ilícitas de recursos detinham poder de influenciar os votos de outros parlamentares de seus respectivos partidos, em especial por ocuparem as estratégicas funções de Presidentes de partidos políticos, de líderes parlamentares, líderes de bancadas e blocos partidários. Comprovada a participação, no recebimento da propina, de intermediários da estrita confiança dos parlamentares, beneficiários finais do esquema. Depoimentos e recibos informais apreendidos no curso das investigações compõem as provas da prática criminosa” (AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 17.12.2012, Plenário, DJE de 22.04.2013, fls. 51.626-51.629).
Sem dúvida, um grande tema, pendente de julgamento pelo STF!
A terminologia “estado de coisas inconstitucional” foi utilizada pelo Min. Marco Aurélio, no julgamento da cautelar na ADPF 347 (j. 09.09.2015), a partir de decisão proferida pela Corte Constitucional da Colômbia (mérito pendente).
Segundo esclareceu, “presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘estado de coisas inconstitucional’”.
Assim, o STF determinou: a) “ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional”; b) a obrigação de todos os “juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão”.
A classificação que passamos a analisar diz respeito ao momento em que será realizado o controle, qual seja, antes de o projeto de lei virar lei (controle prévio ou preventivo), impedindo a inserção no sistema normativo de normas que padeçam de vícios, ou já sobre a lei, geradora de efeitos potenciais ou efetivos (controle posterior ou repressivo).
Como vimos acima, o controle prévio é o realizado durante o processo legislativo de formação do ato normativo. Logo no momento da apresentação de um projeto de lei, o iniciador, a “pessoa” que deflagrar o processo legislativo, em tese, já deve verificar a regularidade material do aludido projeto de lei.
O controle prévio também é realizado pelo Legislativo, pelo Executivo e pelo Judiciário.
O legislativo verificará, através de suas comissões de constituição e justiça, se o projeto de lei, que poderá virar lei, contém algum vício a ensejar a inconstitucionalidade.
De acordo com o art. 32, IV, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, o controle será realizado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (vide Res. da CD n. 20, de 2004 — DCD, de 18.03.2004, Suplemento, p. 3), enquanto no Senado Federal o controle será exercido pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania — CCJ, de acordo com o art. 101 de seu Regimento Interno. O plenário das referidas Casas também poderá verificar a inconstitucionalidade do projeto de lei, o mesmo podendo ser feito durante as votações.
Michel Temer observa que tal controle nem sempre se verifica em relação a todos os projetos de atos normativos, citando a sua inocorrência, por exemplo, sobre projetos de medidas provisórias, resoluções dos Tribunais e decretos.49
Questão interessante pode surgir indagando se o parecer negativo das Comissões de Constituição e Justiça, declarando a inconstitucionalidade do projeto de lei, inviabilizaria o seu prosseguimento.
O § 2.º do art. 101 do Regimento Interno do Senado Federal50 dispõe que, em se tratando de inconstitucionalidade parcial, a Comissão poderá oferecer emenda corrigindo o vício. No entanto, a regra geral é a do seu § 1.º, ao estabelecer que, quando a Comissão emitir parecer pela inconstitucionalidade e injuridicidade de qualquer proposição, será esta considerada rejeitada e arquivada definitivamente, por despacho do Presidente do Senado, salvo, desde que não seja unânime o parecer, se houver recurso interposto nos termos do art. 254 do RI, ou seja, interposto por no mínimo 1/10 dos membros do Senado, manifestando opinião favorável ao seu processamento.
Da mesma forma, o art. 54, I, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados51 estabelece que será “terminativo o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, quanto à constitucionalidade ou juridicidade da matéria” (inciso com redação adaptada à Resolução n. 20/2004). No entanto, há a previsibilidade de recurso para o plenário da Casa contra referida deliberação, nos termos dos arts. 132, § 2.º; 137, § 2.º; e 164, § 2.º, do referido Regimento Interno.
Como veremos melhor ao estudar o processo legislativo, o Chefe do Executivo, aprovado o projeto de lei, poderá sancioná-lo (caso concorde) ou vetá-lo.
O veto dar-se-á quando o Chefe do Executivo considerar o projeto de lei inconstitucional ou contrário ao interesse público. O primeiro é o veto jurídico, sendo o segundo conhecido como veto político.
Assim, caso o Chefe do Executivo entenda ser inconstitucional o projeto de lei poderá vetá-lo, exercendo, desta feita, o controle de constitucionalidade prévio ou preventivo, antes de o projeto de lei transformar-se em lei.
Referido veto, necessariamente, nos termos do art. 66, § 4.º, da CF/88, será apreciado em sessão conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, dentro de 30 dias a contar de seu recebimento, podendo, pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em votação ostensiva, ou seja, por voto “aberto” (lembramos que a EC n. 76/2013 aboliu a votação secreta nessa hipótese), ser rejeitado (afastado), produzindo, nesse caso, os mesmos efeitos que a sanção.
Derrubado o veto, o projeto deverá ser enviado ao Presidente da República para promulgação da lei no prazo de 48 horas e, se este não o fizer, caberá ao Presidente do Senado Federal a promulgação, em igual prazo, e, caso este não a promulgue, caberá ao Vice-Presidente do Senado Federal fazê-lo (art. 66, § 7.º, da CF/88).
Na hipótese de o veto ser mantido, o projeto será arquivado, aplicando-se a regra contida no art. 67, que consagra o princípio da irrepetibilidade.
Imaginando a hipótese de derrubada do veto e a consequente promulgação da lei, naturalmente, a correspondente lei, ato normativo, poderá ser objeto de controle de constitucionalidade, agora, porém, o chamado controle posterior ou repressivo.
O controle prévio ou preventivo de constitucionalidade a ser realizado pelo Poder Judiciário sobre PEC ou projeto de lei em trâmite na Casa Legislativa busca garantir ao parlamentar o respeito ao devido processo legislativo, vedando a sua participação em procedimento desconforme com as regras da Constituição. Trata-se, como visto, de controle exercido, no caso concreto, pela via de exceção ou defesa, ou seja, de modo incidental.
Assim, deve-se deixar claro que a legitimação para a impetração do MS é exclusiva do parlamentar, na medida em que o direito público subjetivo de participar de um processo legislativo hígido (devido processo legislativo) pertence somente aos membros do Poder Legislativo. A jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de negar a legitimidade ativa ad causam a terceiros, que não ostentem a condição de parlamentar, ainda que invocando a sua potencial condição de destinatários da futura lei ou emenda à Constituição, sob pena de indevida transformação em controle preventivo de constitucionalidade em abstrato, inexistente em nosso sistema constitucional (vide RTJ 136/25-26, Rel. Min. Celso de Mello; RTJ 139/783, Rel. Min. Octavio Gallotti, e, ainda, MS 21.642-DF, MS 21.747-DF, MS 23.087-SP, MS 23.328-DF).
E a perda superveniente do mandato parlamentar?
Parece ter razão o Min. Celso de Mello ao afirmar que a perda superveniente de titularidade do mandato legislativo desqualifica a legitimação ativa do congressista. Isso porque “... a atualidade do exercício do mandato parlamentar configura, nesse contexto, situação legitimante e necessária, tanto para a instauração quanto para o prosseguimento da causa perante o STF. Inexistente, originariamente, essa situação, ou, como se registra no caso, configurada a ausência de tal condição, em virtude da perda superveniente do mandato parlamentar no Congresso Nacional, impõe-se a declaração de extinção do processo de mandado de segurança, porque ausente a legitimidade ativa ad causam do ora impetrante, que não mais ostenta a condição de membro de qualquer das Casas do Congresso Nacional” (MS 27.971, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, j. 1.º.07.2011, DJE de 1.º.08.2011).
Outro entendimento acarretaria a conversão do mandado de segurança, que não pode ser utilizado para a impugnação de normas em tese, em ADI, situação essa não admitida em nosso ordenamento jurídico.
E quais os limites do controle judicial?
Nos termos da jurisprudência do STF, o controle de constitucionalidade a ser exercido pelo Judiciário durante o processo legislativo abrange somente a garantia de um procedimento em total conformidade com a Constituição, não lhe cabendo, contudo, a extensão do controle sobre aspectos discricionários concernentes às questões políticas e aos atos interna corporis, vedando-se, desta feita, interpretações das normas regimentais (cf.: MS 22.503-3/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, DJ de 06.06.1997, p. 24872, Ement. v. 01872-03, p. 385; j. 08.05.1996 — Tribunal Pleno,52 descrevendo o posicionamento da Suprema Corte).
Os limites desse controle jurisdicional foram bem delimitados pela Corte no julgamento do MS 32.033 (Rel. p/ o ac. Min. Teori Zavascki, j. 20.06.2013, Plenário, DJE de 18.02.2014), impetrado, preventivamente, por parlamentar, questionando projeto de lei que criava novas regras em relação à transferência dos recursos do fundo partidário e ao horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão nas hipóteses de migração partidária (PL n. 4.470/2012 — aprovado pela Câmara e recebido no Senado Federal como PLC n. 14/2013, tendo sido transformado na Lei n. 12.875/2013).
De acordo com o voto do Min. Teori Zavascki, que abriu a divergência, contrário a uma posição mais elástica sustentada pelo Min. Gilmar Mendes (vencido), a Constituição admite o controle judicial preventivo, por meio de mandado de segurança a ser impetrado exclusivamente por parlamentar, em duas únicas hipóteses:
■ PEC manifestamente ofensiva a cláusula pétrea (MS 20.257/DF, Rel. Min. Moreira Alves — leading case — j. 08.10.1980);
■ projeto de lei ou PEC em cuja tramitação se verifique manifesta ofensa a cláusula constitucional que disciplinasse o correspondente processo legislativo.
Ou seja, em relação a projeto de lei, o STF restringiu o controle preventivo apenas para a hipótese de violação ao devido processo legislativo, não se admitindo a discussão sobre a matéria, buscando, assim, resguardar a regularidade jurídico-constitucional do procedimento, sob pena de se violar a separação de poderes.
Observem que essa delimitação de atuação do controle judicial se deu em relação ao projeto de lei, e não à PEC (proposta de emenda à Constituição). Isso porque o art. 60, § 4.º, veda a proposta de emenda tendente a abolir cláusula pétrea. Em nenhum momento a Constituição vedou a tramitação de projeto de lei que tenda a abolir cláusula pétrea. Ou seja, procurando ser mais claro: a) em relação a projeto de lei, o controle judicial não analisará a matéria, mas apenas o processo legislativo; b) em relação à PEC, o controle será mais amplo, abrangendo não apenas a regularidade de procedimento, mas, também, a matéria, permitindo o trancamento da tramitação de PEC que tenda a abolir cláusula pétrea.
Com esse entendimento, a Corte evitou a universalização do controle preventivo e a necessidade de enfrentamento judicial precoce de questões políticas, que encontram um ambiente muito mais adequado de discussão, que é a Casa Legislativa.53 Vejam que o questionamento sobre a matéria da lei (se o projeto de lei for transformado) poderá ser realizado em momento oportuno no controle concentrado a ser provocado pelos legitimados do art. 103.
Conforme estabeleceu o Min. Fux em seu voto, “essa aparente contradição entre os valores albergados pelo Estado Democrático de Direito impõe um dever de cautela redobrado no exercício da jurisdição constitucional. Com efeito, certo é que os tribunais não podem asfixiar a autonomia pública dos cidadãos, substituindo as escolhas políticas de seus representantes por preferências pessoais de magistrados não eleitos pelo povo, como, aliás, testemunhado pela história constitucional norte-americana durante a cognominada Era da Lochner (1905-1937), período em que a Suprema Corte daquele país freou a implantação do Estado social a partir de uma exegese inflacionada da cláusula aberta do devido processo legal (CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011, p. 630-645)”.
E delimitou com precisão: “no caso vertente, não se sabe se o projeto de lei será arquivado, alterado ou aprovado. A questão deve permanecer em discussão, sob pena de um paternalismo judicial ou, para utilizar uma expressão bastante em voga, uma supremocracia. Na realidade, tutelar o direito dos parlamentares de oposição, diversamente do que abreviar a discussão, como pretende o Impetrante, é permitir que os debates sejam realizados de forma republicana, transparentes e com os canais de participação abertos a todos os que queiram deles participar. Esse sim é o modelo de atuação legislativa legítima, tal qual concebido por John Hart Ely” (fls. 19 de seu voto).
O posicionamento acima exposto (MS 22.503), pela total não apreciação e interpretação de normas do Regimento Interno do Parlamento e que é a regra (INCLUSIVE PARA SER ADOTADA NOS CONCURSOS PÚBLICOS), poderia ser visto com temperamentos quando se tratar de normas constitucionais interpostas.
A tese foi discutida pelo Min. Gilmar Mendes no MS 26.915,54 no qual se questionava a amplitude do art. 43 do RI da CD, que veda Deputado Federal relator de certa proposta de presidir a Comissão na qual será apreciada a matéria (“Art. 43. Nenhum Deputado poderá presidir reunião de Comissão quando se debater ou votar matéria da qual seja Autor ou Relator. Parágrafo único. Não poderá o Autor de proposição ser dela Relator, ainda que substituto ou parcial”).
Referido mandado de segurança impugnava a nomeação do Deputado Pedro Novais (PMDB/MA) para a presidência da Comissão especial que analisou a PEC n. 558/2006, a qual trata da prorrogação da CPMF, tendo em vista que ele seria um dos autores da proposição.
Em um primeiro momento (voto monocrático e em sede de medida cautelar), o Rel. Min. Gilmar Mendes analisou o Regimento Interno à luz do devido processo legislativo e, assim, entendeu que a regra fixada no art. 43 do RI da CD não se aplica aos projetos de Emenda Constitucional (PEC), indeferindo, portanto, o pedido de medida liminar, por estarem ausentes a fumaça do bom direito (plausibilidade jurídica) e o perigo na demora da decisão.
Mendes, trazendo em pauta o estudo de Gustavo Zagrebelsky, asseverou que “... se as normas constitucionais fizerem referência expressa a outras disposições normativas, a violação constitucional pode advir da violação dessas outras normas, que, muito embora não sejam formalmente constitucionais, vinculam os atos e procedimentos legislativos, constituindo-se normas constitucionais interpostas (ZAGREBELSKY, Gustavo. La giustizia costituzionale. Bologna, Mulino, 1979, p. 40-41). Na verdade, o órgão jurisdicional competente deve examinar a regularidade do processo legislativo, sempre tendo em vista a constatação de eventual afronta à Constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, apud MENDES, Gilmar. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. Saraiva, 1990, p. 35-36), mormente, aos direitos fundamentais” (MS 26.915-MC/DF, 08.10.2007).
Assim, o tema ganha outro “colorido” à luz dessa nova perspectiva, devendo o conceito de matéria interna corporis ser temperado à luz da ideia das normas constitucionais interpostas que, segundo o Min. Gilmar Mendes, apresentariam uma força normativa diferenciada por derivar diretamente da Constituição (tema pendente de julgamento e aprofundamento pelo STF, já que o referido MS foi extinto sem a apreciação da matéria).55
O controle posterior ou repressivo será realizado sobre a lei, e não mais sobre o projeto de lei, como ocorre no controle preventivo.
Vale dizer, os órgãos de controle verificarão se a lei, ou ato normativo, ou qualquer ato com indiscutível caráter normativo, possuem um vício formal (produzido durante o processo de sua formação), ou se possuem um vício em seu conteúdo, qual seja, um vício material. Mencionados órgãos variam de acordo com o sistema de controle adotado pelo Estado, podendo ser político, jurisdicional, ou híbrido.
Verifica-se em Estados onde o controle é exercido por um órgão distinto dos três Poderes, órgão esse garantidor da supremacia da Constituição. Tal sistema é comum em países da Europa, como Portugal e Espanha, sendo o controle normalmente realizado pelas Cortes ou Tribunais Constitucionais.56
Luís Roberto Barroso, como José Afonso da Silva, destaca o modelo francês estabelecido na Constituição de 1958 e que fixou um Conselho Constitucional, composto de 9 Conselheiros escolhidos pelo Presidente da República e pelo Parlamento, tendo como membros natos os ex-Presidentes da República, como exemplo de controle político.
No Brasil, Barroso sustenta que o veto do Executivo a projeto de lei, por entendê-lo inconstitucional (veto jurídico), bem como a rejeição de projeto de lei na CCJ seriam exemplos de controle político.57
O sistema de controle jurisdicional dos atos normativos é realizado pelo Poder Judiciário, tanto por um único órgão (controle concentrado) — no caso do direito brasileiro, pelo STF e pelo TJ — como por qualquer juiz ou tribunal (controle difuso), admitindo, naturalmente, o seu exercício por juízes em estágio probatório, ou seja, sem terem sido vitaliciados, bem como por juízes dos juizados especiais.
O Brasil adotou o sistema jurisdicional misto, porque realizado pelo Poder Judiciário — daí ser jurisdicional —, tanto de forma concentrada (controle concentrado) como por qualquer juiz ou tribunal (controle difuso).58
Importante anotar que os controles difuso e concentrado são realizados com autonomia, não podendo um condicionar a sua admissibilidade à inviolabilidade do outro. Claro que se já houver decisão no controle concentrado, mesmo em sede de medida cautelar, poderá haver repercussão sobre o controle difuso.
No controle que chamamos de híbrido, temos uma mistura dos outros dois sistemas acima noticiados. Assim, algumas normas são levadas a controle perante um órgão distinto dos três Poderes (controle político), enquanto outras são apreciadas pelo poder judiciário (controle jurisdicional).
Vimos que o controle posterior ou repressivo (sucessivo) no Brasil, por regra, é exercido pelo Poder Judiciário, de forma concentrada ou difusamente. A essa regra, no entanto, surgem exceções, fixando-se hipóteses de controle posterior ou repressivo pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo.
A primeira exceção à regra geral do controle posterior jurisdicional misto (difuso e concentrado) vem prevista no art. 49, V, da CF/88, que estabelece ser competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Mencionado controle será realizado através de decreto legislativo a ser expedido pelo Congresso Nacional. Vamos às hipóteses:
a) sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar: como veremos melhor ao tratar do Poder Executivo, é de competência exclusiva do Presidente da República expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei (art. 84, IV). Portanto, ao Chefe do Executivo compete regulamentar uma lei expedida pelo Legislativo, e tal procedimento será feito por decreto presidencial. Pois bem, se no momento de regulamentar a lei o Chefe do Executivo extrapolá-la, disciplinando além do limite nela definido, este “a mais” poderá ser afastado pelo Legislativo por meio de decreto legislativo. Cabe alertar que, no fundo, esse controle é de legalidade e não de inconstitucionalidade, como apontado por parte da doutrina, pois o que se verifica é em que medida o decreto regulamentar extrapolou os limites da lei;
b) sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem dos limites de delegação legislativa: como veremos ao estudar as espécies normativas, a Constituição atribuiu competência ao Presidente da República para elaborar a lei delegada, mediante delegação do Congresso Nacional, através de resolução, especificando o conteúdo e os termos de seu exercício (art. 68). Pois bem, no caso de elaboração de lei delegada pelo Presidente da República, extrapolando os limites da aludida resolução, poderá o Congresso Nacional, utilizando-se de decreto legislativo, sustar o referido ato que exorbitou dos limites da delegação legislativa.
A segunda exceção à regra geral está prevista no art. 62 da CF/88. Conforme estudaremos adiante, em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional (Poder Legislativo). Entendendo-a inconstitucional (vejam: as medidas provisórias têm força de lei), o Congresso Nacional estará realizando controle de constitucionalidade. Trata-se de exceção à regra geral, haja vista que, nessa hipótese, o controle não é exercido pelo Judiciário (lembrem: o Brasil adotou o sistema de controle jurisdicional misto), mas sim pelo Legislativo.
Como se sabe, o princípio da supremacia da Constituição produz efeitos irradiantes em todos os Poderes da República, os quais, por sua vez, devem cumprir as leis que se coadunem com a Constituição.
O grande problema surge quando a lei é inconstitucional. Devem os Poderes necessariamente aplicá-la, ou podem, sem qualquer formalidade, deixar de cumpri-la sob o fundamento de violação da Constituição?
■ Entendimento antes do advento da CF/88: como vimos, o controle concentrado surge somente com a EC n. 16/65, que estabelece, como exclusivo legitimado, o PGR. Assim, antes do texto de 1988, que ampliou a legitimação ativa para o ajuizamento da ADI, os Chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores dos Estados e do DF e Prefeitos) não tinham competência para ajuizar ação buscando, em controle concentrado, discutir a constitucionalidade da lei.
Nesse primeiro momento, portanto, doutrina e jurisprudência consolidaram o entendimento de que o Chefe do Executivo poderia deixar de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional, cabendo-lhe, ainda, baixar determinação, na condição de superior hierárquico, para que os seus subordinados também não cumprissem a lei.
Isso porque a análise da constitucionalidade da lei não era tida como monopólio do Judiciário, embora tivesse o seu controle final (Caio Tácito, RDA 59/339 e s.).
Naturalmente a ação ou omissão do Poder Executivo poderia ser discutida no Judiciário, que daria a “palavra final” sobre a aplicação ou não da lei (como se sabe, o Judiciário é o intérprete final da lei), obrigando, após a decisão, à necessária observância do dispositivo legal.59
■ Entendimento a partir do advento da CF/88: já vimos que o argumento para justificar a possibilidade de descumprimento da lei pelo Executivo fundava-se no fato de a legitimação para o controle concentrado de constitucionalidade das leis ser exclusiva do PGR.
Assim, aparentemente, com o advento da CF/88, que ampliou a legitimação para o ajuizamento da ADI (art. 103, expandida para a ADC pela EC n. 45/2004), não mais se admitiria o descumprimento de lei inconstitucional pelo Chefe do Executivo.
A tese ganhou alguns adeptos na doutrina.60 Outros, porém, alertaram para uma realidade: de fato, pela nova regra, são legitimados o Presidente da República (art. 103, I) e os Governadores dos Estados e do DF (art. 103, V). E quanto aos Prefeitos?
Estes não estão previstos no rol de legitimados do art. 103. Então alguns sustentavam que poderiam os Prefeitos, e somente eles, descumprir a lei flagrantemente inconstitucional, determinando a sua não aplicação para os subordinados hierárquicos.
Essa tese, contudo, mostrou-se bastante complicada, pois, em certa medida, acarretava maior atribuição de poderes aos Chefes dos Executivos municipais em detrimento dos estaduais e em relação ao Presidente da República.
Em virtude dessa situação, buscou a doutrina outra justificativa, que não a meramente formal, para a configuração da tese do descumprimento da lei e, assim, manter a regra que prevalecia antes do texto de 1988: princípio da supremacia da Constituição e da regra de que a aplicação de lei inconstitucional é o mesmo que a negativa de aplicação da própria Constituição.61
Entendemos que a tese a ser adotada é a da possibilidade de descumprimento da lei inconstitucional pelo Chefe do Executivo.
Isso porque entre os efeitos do controle concentrado está a vinculação dos demais órgãos do Poder Judiciário e do Executivo (art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/99 e art. 102, § 2.º, da CF/88 — EC n. 45/2004).
Outro argumento a fortalecer a ideia da possibilidade de descumprimento da lei flagrantemente inconstitucional pelo Executivo decorre dos efeitos da súmula vinculante (Reforma do Judiciário), que, uma vez editada, vinculará a Administração Pública, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal (art. 64-B da Lei n. 9.784/99, introduzido pela Lei n. 11.417/2006).
Antes, porém, a contrario sensu e desde que não exista qualquer medida judicial em sentido contrário, tecnicamente, poderá o Chefe do Executivo determinar a não aplicação de lei flagrantemente inconstitucional.
■ E qual a posição do STF e do STJ sobre o tema?
Encontramos apenas um precedente no STF, que não aprofunda muito o assunto: “... O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua chefia — e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade —, podem tão só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais” (ADI 221-MC/DF, Rel. Min. Moreira Alves; DJ de 22.10.1993, p. 22251, Ement. v. 01722-01, p. 28 — grifamos).
A 1.ª Turma do STJ, por sua vez, já enfrentou o tema com maior veemência, consagrando a tese do controle posterior ou repressivo pelo Executivo: “Lei inconstitucional — Poder Executivo — Negativa de eficácia. O poder executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional” (REsp 23121/GO, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; 1.ª Turma, j. 06.10.1993, DJ de 08.11.1993, p. 23521, LEXSTJ 55/152).
O TCU (cf. item 9.15), dentre outras competências previstas no art. 71 da CF/88, auxilia o Congresso Nacional no controle externo.
Daí, ao exercer as suas atividades poderá, sempre no caso concreto e de modo incidental, apreciar a constitucionalidade de uma lei e, se for o caso, deixar de aplicá-la.
Nesse sentido, destacamos a S. 347/STF: “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”.62
Conforme anota Bulos, embora os Tribunais de Contas “... não detenham competência para declarar a inconstitucionalidade das leis ou dos atos normativos em abstrato, pois essa prerrogativa é do Supremo Tribunal Federal, poderão, no caso concreto, reconhecer a desconformidade formal ou material de normas jurídicas, incompatíveis com a manifestação constituinte originária. Sendo assim, os Tribunais de Contas podem deixar de aplicar ato por considerá-lo inconstitucional, bem como sustar outros atos praticados com base em leis vulneradoras da Constituição (art. 71, X). Reitere-se que essa faculdade é na via incidental, no caso concreto, portanto”.63
Devemos alertar que a subsistência da S. 347 está em discussão64 no STF e vem sendo criticada a partir de decisão proferida pelo Min. Gilmar Mendes, em 22.03.2006, ao deferir pedido de medida liminar no MS 25.888 impetrado pela PETROBRAS, atacando ato do TCU que determinou à impetrante e seus gestores que se abstenham de aplicar o Regulamento de Procedimento Licitatório Simplificado, aprovado pelo Dec. n. 2.745/98, devendo ser observadas as regras da Lei n. 8.666/93.
Segundo fundamenta o Min. Gilmar Mendes, inclusive em sede doutrinária, a S. 347 foi editada em 13.12.1963, na vigência da Constituição de 1946 e quando ainda não existia qualquer forma de controle concentrado no Brasil. Lembre-se de que, naquele momento, vigorava apenas o controle difuso, já que a introdução do controle concentrado se deu pela EC n. 16/65, que estabeleceu um exclusivo legitimado, qual seja, o PGR.
Naquele contexto, argumenta, admitia-se a não aplicação da lei considerada inconstitucional. Contudo, com o advento da CF/88 e a alteração radical na legitimação ativa para a propositura da ADI genérica (art. 103), não mais se justifica o entendimento firmado na S. 347.
Nas palavras do Min. Gilmar Mendes, “a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988” (pendente de análise pelo Pleno).
Assim, como se percebe pelo quadro acima, partindo de um critério subjetivo ou orgânico, o controle judicial de constitucionalidade poderá ser difuso ou concentrado.
O sistema difuso de controle significa a possibilidade de qualquer juiz ou tribunal, observadas as regras de competência, realizar o controle de constitucionalidade.
Por seu turno, no sistema concentrado, como o nome já diz, o controle se “concentra” em um ou mais de um (porém em número limitado) órgão. Trata-se de competência originária do referido órgão.
Sob outra perspectiva, do ponto de vista formal, o sistema poderá ser pela via incidental ou pela via principal.
No sistema de controle pela via incidental (também chamado pela via de exceção ou defesa), o controle será exercido como questão prejudicial e premissa lógica do pedido principal.
Nesse ponto, é conveniente fazer uma crítica ao uso da terminologia “pela via de exceção ou defesa”, na medida em que será possível que a via incidental (análise de questão prejudicial) se dê, também, como fundamento da pretensão do autor, o que se vê nas ações constitucionais, a exemplo do mandado de segurança.
Já no sistema de controle pela via principal (abstrata ou pela via de “ação”), a análise da constitucionalidade da lei será o objeto principal, autônomo e exclusivo da causa.
Mesclando as duas classificações, verifica-se que, regra geral, o sistema difuso é exercido pela via incidental, destacando-se, aqui, a experiência norte-americana, que, inclusive, influenciou o surgimento do controle difuso no Brasil.
Por sua vez, o sistema concentrado é exercido pela via principal, como decorre da experiência austríaca e se verifica no sistema brasileiro.
Essa regra, contudo, apresenta exceções, tanto no direito estrangeiro como no direito brasileiro.
Conforme anota Barbosa Moreira ao tratar sobre o direito estrangeiro “características ecléticas apresentam os sistemas atuais de controle na Itália e na República Federal da Alemanha, que reconhecem a um único órgão judicial competência para apreciar a questão da constitucionalidade, mas lhe deferem o exercício dessa competência quer pela via principal (mediante provocação de algum legitimado), quer por via incidental, a propósito de caso concreto, sujeito à cognição de qualquer outro órgão judicial, que submete a questão à Corte Constitucional, a fim de que esta a resolva com força vinculativa, ficando suspenso, nesse meio-tempo, o processo em que se suscitou a questão. Na mesma corrente insere-se a Constituição espanhola de 1978 (arts. 161 a 165)”.65
No direito brasileiro, como exceção à regra do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, podemos pensar em situação na qual o controle será concentrado (em órgão de cúpula, com competência originária), mas incidental, discutindo-se a questão de constitucionalidade como questão prejudicial ao objeto principal da lide.
Como exemplo de controle concentrado e incidental, então, citamos o art. 102, I, “d”, que estabelece ser competência originária do STF processar e julgar o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal.
Controle Difuso — Histórico |
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■ John Adams (Presidente EUA) ■ William Marbury — nomeado “juiz de paz” (juiz federal) — mas a “comissão” para o cargo, embora assinada, não lhe foi entregue |
■ X |
■ Thomas Jefferson (novo Presidente EUA) ■ James Madison — nomeado Secretário de Estado — não efetivou a “comissão” por ordem de Jefferson |
■ John Marshall, Chief Justice ■ A lei (seção 13 do Judiciary Act, de 1789) x a Constituição de 1787, que não fixou competência originária para apreciar a questão ■ Solução: Havendo conflito entre a aplicação de uma lei e a Constituição, aplica-se a regra constitucional, por ser hierarquicamente superior |
John Adams, presidente dos EUA, foi derrotado na eleição presidencial por Thomas Jefferson.
Adams resolveu, antes de ser sucedido por Jefferson, nomear diversas pessoas ligadas ao seu governo como juízes federais, destacando-se William Marbury, cuja “comissão” para o cargo de “juiz de paz” do condado de Washington foi assinada por Adams, sem, contudo, ter-lhe sido entregue.
Jefferson, por sua vez, ao assumir o governo, nomeou James Madison como seu Secretário de Estado e, ao mesmo tempo, por entender que a nomeação de Marbury era incompleta até o ato da “comissão”, já que esta ainda não lhe havia sido entregue, determinou que Madison não mais efetivasse a nomeação de Marbury.
Naturalmente, Marbury acionou Madison pedindo explicações. Sem resposta, Marbury resolveu impetrar writ of mandamus, buscando efetivar a sua nomeação.
Depois de dois longos anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América resolveu enfrentar a matéria. John Marshall, Chief Justice, em seu voto, analisou vários pontos, dentre os quais a questão de se a Suprema Corte teria competência para apreciar ou não aquele remédio de writ of mandamus.
Isso porque, segundo a Constituição dos EUA, “o Supremo Tribunal terá jurisdição originária em todas as causas concernentes a embaixadores, outros ministros públicos e cônsules, e nos litígios em que for parte um Estado. Em todas as outras causas, o Supremo Tribunal terá jurisdição em grau de recurso”.66
Ou seja, na prática, pela primeira vez teria a Suprema Corte de analisar se deveria prevalecer a lei (seção 13 do Judiciary Act, de 1789, que determinava a apreciação da matéria pela Suprema Corte) ou a Constituição de 1787, que não fixou tal competência originária, em verdadeiro conflito de normas.
Até então, a regra era a de que a lei posterior revogava a lei anterior. Assim, teria a lei revogado o artigo de Constituição que tratava das regras sobre competência originária?
Depois de muito meditar, inclusive sobre o papel da Constituição escrita, Marshall conclui: “assim, a ‘fraseologia’ particular da Constituição dos Estados Unidos confirma e corrobora o princípio essencial a todas as constituições escritas, segundo o qual é nula qualquer lei incompatível com a Constituição; e que os tribunais, bem como os demais departamentos, são vinculados por esse instrumento”.67
Pode-se, assim, afirmar que a noção e ideia de controle difuso de constitucionalidade, historicamente, deve-se ao famoso caso julgado pelo Juiz John Marshall da Suprema Corte norte-americana, que, apreciando o caso Marbury v. Madison, em 1803, decidiu que, havendo conflito entre a aplicação de uma lei em um caso concreto e a Constituição, deve prevalecer a Constituição, por ser hierarquicamente superior.
Como anota Oscar Vilhena, o precedente Marbury v. Madison “... é resultado, única e exclusivamente, de uma leitura expandida da Constituição americana e, posteriormente, na tradição da common law, da ação reiterada dos magistrados. Este poder de controlar a compatibilidade das leis com a Constituição decorre, assim, da jurisprudência americana, e não de uma autorização positivada de forma expressa pelo constituinte”.68
O controle difuso, repressivo, ou posterior, é também chamado de controle pela via de exceção ou defesa, ou controle aberto, sendo realizado por qualquer juízo ou tribunal do Poder Judiciário. Quando dizemos qualquer juízo ou tribunal, devem ser observadas, é claro, as regras de competência processual, a serem estudadas no processo civil.
O controle difuso verifica-se em um caso concreto, e a declaração de inconstitucionalidade dá-se de forma incidental (incidenter tantum), prejudicialmente ao exame do mérito.
Pede-se algo ao juízo, fundamentando-se na inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, ou seja, a alegação de inconstitucionalidade será a causa de pedir processual.
Exemplo: na época do Presidente Collor, os interessados pediam o desbloqueio dos cruzados fundando-se no argumento de que o ato que motivou tal bloqueio era inconstitucional. O pedido principal não era a declaração de inconstitucionalidade, mas sim o desbloqueio!
Observadas as regras do processo civil, a parte sucumbente poderá devolver a análise da matéria ao tribunal ad quem (nessa hipótese estamos imaginando um processo que começou na primeira instância — juízo monocrático, sendo interposto recurso de apelação para o tribunal competente).
No tribunal competente, distribuído o processo para uma turma, câmara ou seção (depende da organização interna do tribunal a ser estabelecida em seu regimento interno), verificando-se que existe questionamento incidental sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo, suscita-se uma questão de ordem e a análise da constitucionalidade da lei é remetida ao pleno, ou órgão especial do tribunal, para resolver aquela questão suscitada.
Nesse sentido é que o art. 97 da CF/88 estabelece que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.69 Temos aqui a chamada cláusula de reserva de plenário, também denominada regra do full bench.
Questão interessante diz respeito à interpretação do referido art. 97 da CF, no sentido de ser ou não sempre necessária a apreciação pelo órgão especial ou pleno da questão prejudicial, qual seja, a realização do controle incidenter tantum de constitucionalidade da lei ou ato normativo pelos aludidos órgãos.
Assevera Marcelo Caetano, citado pelo Ministro Celso de Mello (RE 190.725-8/PR), que “... a exigência de maioria qualificada para a declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo justifica-se pela preocupação de só permitir ao Poder Judiciário tal declaração quando o vício seja manifesto e, portanto, salte aos olhos de um grande número de julgadores experientes caso o órgão seja colegiado. Sendo atingida a majestade da lei a qual, em princípio, se beneficia da presunção de estar de acordo com a Constituição, é necessário que o julgamento resulte de um consenso apreciável e não brote de qualquer escassa maioria (...). Essa exigência, por outro lado, acautela contra uma futura variação de jurisprudência no mesmo Tribunal. Assim, a inconstitucionalidade tem de ser declarada pelos votos conformes de um número de juízes equivalente a metade e mais um dos membros do Tribunal ou do órgão competente nele formado”.70 e 71
A regra do art. 97 destaca-se como verdadeira condição de eficácia jurídica da própria declaração de inconstitucionalidade dos atos do Poder Público.72 Nesse sentido, destacamos a Súmula Vinculante 10/STF:
“Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.
No entanto, enaltecendo o princípio da economia processual, da segurança jurídica e na busca da desejada racionalização orgânica da instituição judiciária brasileira, vem-se percebendo a inclinação para a dispensa do procedimento do art. 97 toda vez que já haja decisão do órgão especial ou pleno do tribunal, ou do STF, o guardião da Constituição sobre a matéria.
Segundo o Ministro Ilmar Galvão, “declarada a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada lei, pela maioria absoluta dos membros de certo Tribunal, soaria como verdadeiro despropósito, notadamente nos tempos atuais, quando se verifica, de maneira inusitada, a repetência desmesurada de causas versantes da mesma questão jurídica, vinculadas à interpretação da mesma norma, que, se exigisse, em cada recurso apreciado, a renovação da instância incidental da arguição de inconstitucionalidade, levando as sessões da Corte a uma monótona e interminável repetição de julgados da mesma natureza” (RE 190.725-8/PR).73
Essa tendência foi confirmada pela Lei n. 9.756, de 17.12.1998, que, acrescentando um parágrafo único ao art. 481 do CPC/73 (art. 949, parágrafo único, do CPC/2015), estabeleceu: “os órgãos fracionários dos tribunais (entenda-se Câmaras, Grupos, Turmas ou Seções) não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamentos destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”, podendo, inclusive, referida ação ser, de plano, apreciada, conhecida e julgada pelo relator, na redação dada ao art. 557 e acréscimo de um § 1.º-A ao CPC/73 pelo mesmo dispositivo legal (art. 932, IV, “a”, e V, “a”, CPC/2015).74
A mitigação da cláusula de reserva de plenário vem sendo observada em outras situações. Conveniente, portanto, esquematizar a matéria. Assim, não há a necessidade de se observar a regra do art. 97, CF/88:
■ na citada hipótese do art. 481 do CPC/73, acima (art. 949, parágrafo único, CPC/2015);
■ se Tribunal mantiver a constitucionalidade do ato normativo, ou seja, não afastar a sua presunção de validade (o art. 97 determina a observância do full bench para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público);
■ nos casos de normas pré-constitucionais, porque a análise do direito editado no ordenamento jurídico anterior em relação à nova Constituição não se funda na teoria da inconstitucionalidade, mas, como já estudado, em sua recepção ou revogação;75
■ quando o Tribunal utilizar a técnica da interpretação conforme a Constituição, pois não haverá declaração de inconstitucionalidade;76
■ nas hipóteses de decisão em sede de medida cautelar, já que não se trata de decisão definitiva.77
De acordo com o art. 9.º, III, do RISTF, é competência das Turmas (1.ª ou 2.ª) o julgamento de recurso extraordinário, que será distribuído a um Ministro e ficará atrelado à Turma em relação a qual o Ministro integra, ressalvadas as hipóteses regimentais de prevenção.
Apesar dessa regra geral, consoante o art. 11, I, do RISTF, a Turma remeterá o feito ao julgamento do Plenário independente de acórdão e de nova pauta:
■ quando considerar relevante a arguição de inconstitucionalidade ainda não decidida pelo Plenário, e o Relator não lhe houver afetado o julgamento;
■ quando, não obstante decidida pelo Plenário a questão de inconstitucionalidade, algum Ministro propuser o seu reexame;
■ quando algum Ministro propuser revisão da jurisprudência compendiada na Súmula.
Ainda, o art. 22 do RISTF permite que o Relator afete a questão ao Plenário quando houver relevante arguição de inconstitucionalidade ainda não decidida, notadamente:
■ quando houver matérias em que divirjam as Turmas entre si ou alguma delas em relação ao Plenário;
■ quando em razão da relevância da questão jurídica ou da necessidade de prevenir divergência entre as Turmas convier pronunciamento do Plenário.
Portanto, tendo como premissa que o julgamento do RE é de competência da Turma no STF, o encaminhamento do RE ao Plenário depende do preenchimento das hipóteses regimentais, e não, simplesmente, de requerimento da parte.
Dessa forma, de acordo com as normas regimentais — e apresentaremos crítica em seguida —, a cláusula de reserva de plenário não se aplica às Turmas do STF no julgamento do RE, seja por não se tratar de “tribunal” no sentido fixado no art. 97 (e essa poderia ser uma justificação para não ficarmos apenas com o fundamento regimental, apesar de não concordarmos), seja, tendo em vista ser função primordial e essencial da Corte a declaração de inconstitucionalidade, a possibilidade de afetação dessa atribuição aos seus órgãos fracionários, no caso, as Turmas.
Na atualidade, inclusive, observa-se, até dentro da ideia de efetividade do processo e racionalização, cada vez mais, a ampliação da competência das Turmas (vide, por exemplo, as Emendas Regimentais ns. 45/2011 e 49/2014), tornando, assim, mais ágeis as decisões do Plenário, cujas sessões são realizadas apenas às quartas e quintas-feiras da semana.
Nesse sentido, destacamos controvertido precedente da 2.ª T. do STF que, inclusive, já foi cobrado na prova do MPF/2011. Vejamos:
“O STF exerce, por excelência, o controle difuso de constitucionalidade quando do julgamento do recurso extraordinário, tendo os seus colegiados fracionários competência regimental para fazê-lo sem ofensa ao art. 97 da CF” (RE 361.829-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 02.03.2010, 2.ª Turma, DJE de 19.03.2010).78
CRÍTICA: com o máximo respeito, entendemos esse posicionamento não adequado e violador da regra do art. 97 da CF/88, que se mostra extremamente clara e didática:
“Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.
Ou seja, a atribuição foi expressamente fixada para o Plenário ou para o órgão especial, e não para a Turma. Como o STF não tem órgão especial, a atribuição, então, seria do Pleno. Portanto, a regra regimental não se adapta à fixada no art. 97. Eventual outro entendimento dependeria de reforma constitucional, não sendo suficiente mera alteração regimental.
Propondo interpretação intermediária, o Min. Roberto Barroso apresenta a seguinte orientação: “a cláusula da reserva de plenário não é exigida quando o Supremo Tribunal Federal, na sua competência recursal, mantém acórdão recorrido que declarou a inconstitucionalidade de norma local em processo de controle por ação direta estadual. Nesses casos, assenta-se tão somente a conformidade do decisum recorrido com o entendimento desta Corte, órgão incumbido do papel de intérprete máximo da Constituição. Hipótese diversa é aquela em que, afastada a inconstitucionalidade pelo Tribunal de origem, esta Corte dá provimento ao recurso extraordinário para extinguir do ordenamento jurídico a norma impugnada. Em tais condições, em observância ao disposto no art. 97 da Constituição Federal, deve ser o julgamento do feito afetado ao Plenário desta Corte” (ARE 661.288, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06.05.2014, 1.ª T., DJE de 29.09.2014, fls. 27 do acórdão). Vamos aguardar manifestação plenária sobre o assunto (pendente).
O tema, certamente, precisará ser rediscutido pelo Plenário do STF, especialmente diante da nova composição, esperando que a Corte retome a exigibilidade de observância ao art. 97, CF/88.
Não.
Isso porque, embora órgão recursal, as Turmas de Juizados não são consideradas “tribunais”.
O art. 97 da CF/88 refere-se aos tribunais indicados no art. 92 e respectivos órgãos especiais mencionados no art. 93, XI. As Turmas dos Juizados, no âmbito recursal, não funcionam sob o regime de plenário ou de órgão especial (ARE 792.562-AgR, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 18.03.2014, 2.ª T., DJE de 02.04.2014).
Dessa forma, as Turmas Recursais, órgãos colegiados dos Juizados, poderão declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de uma lei ou afastar a sua incidência no todo ou em parte sem que isso signifique violação ao art. 97 da CF/88 e à SV 10/STF.
Isso não impede, contudo, que a parte sucumbente interponha recurso extraordinário contra a decisão da Turma Recursal, para o STF apreciar a questão constitucional (S. 640/STF).
Apenas se faz o alerta de que, conforme já decidiu o STF, embora a cláusula de reserva de plenário não se aplique às Turmas Recursais de Juizados, isso não significa que os requisitos de admissibilidade inerentes ao cabimento do RE (art. 102, III, da CF/88) poderão ser desrespeitados. Assim, indispensável a juntada do inteiro teor da decisão que tenha declarado a inconstitucionalidade e que será objeto do recurso extraordinário. Nesse sentido:
“EMENTA: A regra da chamada reserva do plenário para declaração de inconstitucionalidade (art. 97 da CF) não se aplica, deveras, às turmas recursais de Juizado Especial. Mas tal circunstância em nada atenua nem desnatura a rigorosa exigência de juntada de cópia integral do precedente que tenha, ali, pronunciado inconstitucionalidade de norma objeto de recurso extraordinário fundado no art. 102, III, ‘b’, da Constituição da República, pela mesmíssima razão por que, a igual título de admissibilidade do recurso, não se dispensa juntada de cópia de acórdão oriundo de plenário” (RE 453.744-AgR, voto do Rel. Min. Cezar Peluso, j. 13.06.2006, 1.ª Turma, DJ de 25.08.2006. No mesmo sentido: RE 529.296, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 08.05.2011. Ainda, AI 561.181-AgR, RE 369.696-AgR, AI 431.863-AgR, RE 466.834).
Não.
Como visto, a regra do art. 97 é estabelecida para “tribunal”, não estando, portanto, direcionada para o juízo monocrático, mesmo que, incidentalmente, no controle difuso, declare a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Vejamos as lições do Min. Celso de Mello:
“EMENTA: A declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos emanados do Poder Público submete-se ao princípio da reserva de Plenário consagrado no art. 97 da Constituição Federal. A vigente Carta Política, seguindo uma tradição iniciada pela Constituição de 1934, reservou ao Plenário dos Tribunais a competência funcional por objeto do juízo para proferir decisões declaratórias de inconstitucionalidade. Órgãos fracionários dos Tribunais (Câmaras, Grupos de Câmaras, Turmas ou Seções), muito embora possam confirmar a legitimidade constitucional dos atos estatais (RTJ 98/877), não dispõem do poder de declaração da inconstitucionalidade das leis e demais espécies jurídicas editadas pelo Poder Público. Essa especial competência dos Tribunais pertence, com exclusividade, ao respectivo Plenário ou, onde houver, ao correspondente órgão especial. A norma inscrita no art. 97 da Carta Federal, porque exclusivamente dirigida aos órgãos colegiados do Poder Judiciário, não se aplica aos magistrados singulares quando no exercício da jurisdição constitucional (RT 554/253)” (HC 69.921, voto do Rel. Min. Celso de Mello, j. 09.02.1993, 1.ª Turma, DJ de 26.03.1993).