Regra geral, os efeitos de qualquer sentença valem somente para as partes que litigaram em juízo, não extrapolando os limites estabelecidos na lide.
No momento que a sentença declara ser a lei inconstitucional (controle difuso realizado incidentalmente), produz efeitos pretéritos, atingindo a lei desde a sua edição, tornando-a nula de pleno direito. Produz, portanto, efeitos retroativos.
Assim, no controle difuso, para as partes os efeitos serão: a) inter partes e b) ex tunc.
Cabe alertar que o STF já entendeu que, mesmo no controle difuso, poder-se-á dar efeito ex nunc ou pro futuro.
O leading case foi o julgamento do RE 197.917, pelo qual o STF reduziu o número de vereadores do Município de Mira Estrela de 11 para 9 e determinou que a aludida decisão só atingisse a próxima legislatura (cf. íntegra do voto em Inf. 341/STF, Rel. Min. Maurício Corrêa).
O Ministro Gilmar Mendes, em outra oportunidade, desenvolveu com maestria o entendimento fixado no caso de Mira Estrela, ao julgar a Ação Cautelar n. 189: “segundo o ministro, trata-se de questão idêntica à discutida no Recurso Extraordinário 197.917, da relatoria do Ministro Maurício Corrêa, em que o Plenário decidiu pela inconstitucionalidade de Lei Orgânica municipal, que estabelecia o número de vereadores, determinando, porém, a eficácia dos efeitos para momento futuro. ‘Como se pode ver, se se entende inconstitucional a lei municipal em apreço, impõe-se que se limitem os efeitos dessa declaração (pro futuro)’, afirmou Mendes. O ministro ressaltou que o sistema difuso ou incidental de controle de constitucionalidade admite a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro. Para Gilmar Mendes, no caso em tela, observa-se que eventual declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc (retroativo) ocasionaria repercussões em todo o sistema atual, atingindo decisões tomadas em momento anterior à eleição, que resultou na atual composição da Câmara Municipal: fixação do número de vereadores, fixação do número de candidatos, definição do quociente eleitoral. Igualmente, as decisões tomadas posteriormente ao pleito eleitoral também seriam atingidas, tal como a validade da deliberação da Câmara municipal nos diversos projetos e leis aprovados. O ministro ressaltou que a doutrina e jurisprudência entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões arbitrárias, estando condicionada pelo princípio de proporcionalidade” (cf. Notícias STF, 06.04.2004 — 20h17).
Por fim, em relação ao efeito inter partes, será que não haveria algum instrumento por meio do qual seria possível estender os efeitos de uma única decisão para todas as pessoas que estiverem em igual situação, evitando, assim, a necessidade de cada uma provocar o Judiciário individualmente? Isso é esperado em ações cujo objeto seja comum a um número muito grande de pessoas, como os cruzados bloqueados, a cobrança de um tributo que entendam inconstitucional, por exemplo, a extinta CPMF etc. Existiria, então, algum meio de se produzirem efeitos para todos, ou, necessariamente, cada indivíduo, isoladamente, deverá “bater às portas” do judiciário para obter a tutela jurisdicional pretendida? Sim, existe um mecanismo. Passemos a estudá-lo (art. 52, X). Em seguida, destacaremos uma nova tendência em razão daquilo que vem sendo chamado de transcendência dos motivos determinantes da sentença em controle difuso (perspectiva nova e já enfrentada pelo STF — Rcl 4.335, j. 20.03.2014, DJE de 21.10.2014), ou de abstrativização do controle difuso, ou de objetivação do controle difuso.
Vimos anteriormente que, através da interposição de recurso extraordinário, nas hipóteses constitucionalmente previstas, a questão poderá ser levada à apreciação do STF, que, também, realizará o controle difuso de constitucionalidade, de forma incidental.
Declarada inconstitucional a lei pelo STF, no controle difuso, desde que tal decisão seja definitiva e deliberada pela maioria absoluta do pleno do tribunal (art. 97 da CF/88),79 o art. 178 do Regimento Interno do STF (RISTF) estabelece que será feita a comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 52, X, da CF/88.
O art. 52, X, da CF/88, por sua vez, estabelece ser competência privativa do Senado Federal, mediante o instrumento da resolução, suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF.
Regulamentando o assunto, o art. 386 do Regimento Interno do Senado Federal estabelece que o Senado conhecerá da declaração, proferida em decisão definitiva pelo STF, de inconstitucionalidade, total ou parcial, de lei mediante: a) comunicação do Presidente do Tribunal; b) representação do Procurador-Geral da República; c) projeto de resolução de iniciativa da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
A comunicação, a representação e o projeto a que se refere o artigo anterior deverão ser instruídos com o texto da lei cuja execução se deva suspender, do acórdão do Supremo Tribunal Federal, do parecer do Procurador-Geral da República e da versão do registro taquigráfico do julgamento, isso tudo conforme o art. 387 do Regimento Interno do Senado.
E o art. 388 conclui o procedimento determinando que, após a leitura em plenário, a comunicação ou representação será encaminhada à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que formulará projeto de resolução suspendendo a execução da lei, no todo ou em parte (CF, art. 52, X).
A suspensão pelo Senado Federal poderá dar-se em relação a leis federais, estaduais, distritais ou mesmo municipais que forem declaradas inconstitucionais pelo STF, de modo incidental, no controle difuso de constitucionalidade.80
Em se tratando de lei municipal ou lei estadual confrontadas perante a Constituição Estadual, Michel Temer entende que, em face do princípio federativo, “pode e deve o Tribunal de Justiça ou Tribunal de Alçada,81 após declarar a inconstitucionalidade, remeter essa declaração à Assembleia Legislativa para que esta suspenda a execução da lei (evidentemente, nos Estados em que as Constituições confiram essa competência à Assembleia)”.82
Como visto, nos termos do art. 52, X, compete ao Senado Federal, por meio de resolução, suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
A expressão “no todo ou em parte” deve ser interpretada como sendo impossível o Senado Federal ampliar, interpretar ou restringir a extensão da decisão do STF.
Se toda a lei foi declarada inconstitucional pelo STF, em controle difuso, de modo incidental, se entender o Senado Federal pela conveniência da suspensão da lei, deverá fazê-lo “no todo”, vale dizer, em relação a toda a lei que já havia sido declarada inconstitucional, não podendo suspender menos do que o decidido pela Excelsa Corte.
Em igual sentido, se, por outro lado, o Supremo, no controle difuso, declarou inconstitucional apenas parte da lei, entendendo o SF pela conveniência para a suspensão, deverá fazê-lo exatamente em relação à “parte” que foi declarada inválida, não podendo suspender além da decisão do STF.
Desde que o Senado Federal suspenda a execução, no todo ou em parte, da lei levada a controle de constitucionalidade de maneira incidental e não principal, a referida suspensão atingirá a todos, porém valerá a partir do momento que a resolução do Senado for publicada na Imprensa Oficial.
O nome ajuda a entender: suspender a execução de algo que vinha produzindo efeitos significa dizer que se suspende a partir de um momento, não fazendo retroagir para atingir efeitos passados. Por exemplo, quem tiver interesse em “pedir de volta” um tributo declarado inconstitucional deverá mover a sua ação individualmente para reaver tudo antes da Resolução do Senado, na medida em que ela não retroage.
Assim, os efeitos serão erga omnes, porém ex nunc, não retroagindo.83
Destaca-se o art. 1.º, § 2.º, do Decreto n. 2.346/97, que, expressamente, fixa a produção de efeitos ex tunc, exclusivamente em relação à Administração Pública Federal direta e indireta, na hipótese de haver a edição de resolução do Senado Federal, suspendendo a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF em controle difuso.
Referido decreto, em seu art. 1.º, § 3.º, ainda estabelece que o Presidente da República, mediante proposta de Ministro de Estado, dirigente de órgão integrante da Presidência da República ou do Advogado-Geral da União, poderá autorizar a extensão dos efeitos jurídicos de decisão proferida em caso concreto.
Essa questão é muito debatida na doutrina. Tanto que nos limitaremos a apontar nosso posicionamento, que coincide com o do STF, Senado Federal e grande parte da doutrina, devendo, pois, ser o observado nas provas preambulares.
Deve-se, pois, entender que o Senado Federal não está obrigado a suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de discricionariedade política, tendo o Senado Federal total liberdade para cumprir o art. 52, X, da CF/88. Caso contrário, estaríamos diante de afronta ao princípio da separação de Poderes.
Uma vez editada a resolução, não nos parece possível a sua posterior revogação pelo próprio Senado Federal com o objetivo de se restabelecer a eficácia da norma declarada inconstitucional no controle difuso. No caso, o restabelecimento da norma dependeria de nova atuação pelo Poder Legislativo editando um novo ato. A resolução que suspende o ato declarado inconstitucional é irrevogável.84
ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO? |
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■ Gilmar Mendes ■ Eros Grau |
■ Teori Zavascki ■ Luís Roberto Barroso ■ Rosa Weber ■ Celso de Mello |
■ Sepúlveda Pertence ■ Joaquim Barbosa ■ Ricardo Lewandowski ■ Marco Aurélio |
Entendimento |
Entendimento |
Entendimento |
■ SIM ■ art. 52, X — reconhecimento de mutação constitucional ■ o Senado Federal daria simplesmente publicidade à decisão de inconstitucionalidade declarada de modo incidental no controle difuso pelo STF ■ esses 2 Ministros conheceram e julgaram procedente a reclamação |
■ NÃO ■ preservação da regra estabelecida no art. 52, X — não acolhimento da tese da mutação constitucional ■ reconhecimento de fato superveniente, qual seja, a SV 26/2009 — aplicação do art. 462, CPC/73 (art. 493, CPC/2015) ■ esses 4 Ministros conheceram e julgaram procedente a reclamação |
■ NÃO ■ preservação da regra estabelecida no art. 52, X — não acolhimento da tese da mutação constitucional ■ utilização da súmula vinculante para se dar efeitos erga omnes ■ esses 4 Ministros concederam HC de ofício e não conheceram da reclamação |
8 Ministros contra 2 entendem que não houve mutação constitucional do art. 52, X |
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Rcl 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20.03.2014, DJE de 22.10.2014 |
Como sabemos, o sistema de controle de constitucionalidade no Brasil é jurisdicional misto, tanto difuso como concentrado.
No controle difuso, a arguição de inconstitucionalidade se dá de modo incidental, constituindo questão prejudicial. No controle concentrado (ADI genérica), por sua vez, a declaração se implementa de modo principal, constituindo o objeto do julgamento.
A doutrina clássica sempre sustentou, com Buzaid86 e Grinover, que, “se a declaração de inconstitucionalidade ocorre incidentalmente, pela acolhida da questão prejudicial que é fundamento do pedido ou da defesa, a decisão não tem autoridade de coisa julgada, nem se projeta, mesmo inter partes — fora do processo no qual foi proferida”.87
Contudo, respeitável parte da doutrina e alguns julgados do STF (“Mira Estrela”88 e “progressividade do regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos”89) e do STJ90 propunham uma nova interpretação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso pelo STF.
Na doutrina, em importante estudo, Gilmar Mendes afirma ser “... possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica ‘reforma da Constituição sem expressa modificação do texto’ (Ferraz, 1986, p. 64 et seq., 102 et seq.; Jellinek, 1991, p. 15-35; Hsü, 1998, p. 68 et seq.)”.91
Nessa mesma linha, Teori Albino Zavascki, também em sede doutrinária, sustenta a transcendência, com caráter vinculante, de decisão sobre a constitucionalidade da lei, mesmo em sede de controle difuso.92
Lúcio Bittencourt, em tese arrojada, muito embora demonstrasse conhecimento da doutrina de Liebman e da distinção entre autoridade da coisa julgada e eficácia natural da sentença, chegou a afirmar, inspirado pela regra do stare decisis norte-americano, que a declaração de inconstitucionalidade no caso concreto e no controle difuso brasileiro (já que inexistente à época de seu estudo o controle concentrado por meio de ADI, enfatize-se), reconhecendo a invalidade da lei, teria eficácia para todos.93
Os principais argumentos a justificar esse novo posicionamento podem ser assim resumidos:
■ força normativa da Constituição;
■ princípio da supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários;
■ o STF enquanto guardião da Constituição e seu intérprete máximo;
■ dimensão política das decisões do STF.
A esses fundamentos, poderíamos acrescentar os princípios da integridade e da coerência da jurisprudência dos Tribunais e, no caso, da jurisprudência da Suprema Corte, introduzidos no art. 926, caput, do Novo CPC/2015, por sugestão de Lenio Streck e que fazem parte dos, denominados pelo autor, “princípios-padrões” que devem ser obedecidos nas decisões judiciais.94
Os tribunais também têm discutido o tema. No julgamento do RE 197.917 (redução do número de vereadores — “Mira Estrela”), nos termos do voto do Ministro Celso de Mello,95 o Ministro Gilmar Mendes “... ressaltou a aplicabilidade, ao E. Tribunal Superior Eleitoral, do efeito vinculante emergente da própria ratio decidendi que motivou o julgamento do precedente mencionado”.96
Nessa linha, em seu voto, vencido, no julgamento da Rcl 4.335 (cf. item 14.10.28.1), o Ministro Gilmar Mendes “sepultou”, de vez, a regra do art. 52, X, aproximando o controle difuso do controle concentrado, traduzindo importante perspectiva em termos de “abstrativização” do controle difuso e de consagração da tese da transcendência da ratio decidendi.
Conforme afirma, “... parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. (...) Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (...) Portanto, a não publicação, pelo Senado Federal, de Resolução que, nos termos do art. 52, X, da Constituição, suspenderia a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia jurídica” (fls. 55-56 do acórdão).
Essa perspectiva, contudo, sempre foi veementemente criticada por vários autores, entre eles Alfredo Buzaid, que não admitia a qualidade da imutabilidade para as questões prejudiciais decididas incidentalmente no processo (art. 469, III, do CPC/73 — entendimento esse mantido no CPC/2015 na medida em que a regra do art. 503, § 1.º, não se aplica, já que o juízo no controle difuso não teria competência em razão da matéria para apreciar referida questão incidental como principal).97
Embora a tese da transcendência decorrente do controle difuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processo, de celeridade processual (art. 5.º, LXXVIII — Reforma do Judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da Constituição (Konrad Hesse), afigura-se faltar, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras constitucionais, para a sua implementação.
O efeito erga omnes da decisão foi previsto somente para o controle concentrado e para a súmula vinculante (EC n. 45/2004) e, em se tratando de controle difuso, nos termos da regra do art. 52, X, da CF/88, somente após atuação discricionária e política do Senado Federal.
No controle difuso, portanto, não havendo suspensão da lei pelo Senado Federal, a lei continua válida e eficaz, só se tornando nula no caso concreto, em razão de sua não aplicação.
Assim, na medida em que a análise da constitucionalidade da lei no controle difuso pelo STF não produz efeito vinculante, parece que somente mediante necessária reforma constitucional (modificando o art. 52, X, e a regra do art. 97) é que seria possível assegurar a constitucionalidade dessa nova tendência — repita-se, bastante “atraente” — da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso, com caráter vinculante.
Admitir que o STF interprete no sentido de ter havido mutação do art. 52, X, e, assim, transformar o Senado Federal em órgão para simples publicidade da decisão concreta é sustentar inadmitida mutação inconstitucional. Ao STF, não foi dado o poder de reforma.
A possibilidade de se atribuir o efeito erga omnes dependeria ou de resolução do Senado Federal ou, ainda, de súmula vinculante a ser editada pelo STF o que, em nosso entender, seria muito mais legítimo e eficaz, além de respeitar a segurança jurídica, evitando-se o casuísmo.
Nessa linha, cumpre observar que o STF, consolidando o entendimento fixado no HC 82.959, no sentido de observância ao princípio da individualização da pena (art. 5.º, XLVI), editou, em 16.12.2009, com efeito erga omnes e vinculante, a SV 26/2009 (DJE de 23.12.2009), que tem o seguinte teor: “para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2.º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.98
Nesse tema, 2 Ministros, Gilmar Mendes e Eros Grau, sustentavam, no caso concreto da Rcl 4.335, a partir do julgamento do referido HC, mesmo sem a edição da súmula vinculante, o efeito transcendente e erga omnes da decisão (tese da mutação constitucional do art. 52, X). Por sua vez, Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio não admitiam a mutação constitucional e, assim, para o efeito erga omnes, a necessidade de resolução do Senado Federal ou a edição de súmula vinculante. Como esses 4 concordavam com a tese da inconstitucionalidade do regime fechado, não conheceram da reclamação, mas concederam habeas corpus de ofício.
Com o voto-vista do Min. Teori Zavascki, devolvido em 20.03.2014, acompanhado pelos Mins. Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello, no julgamento da referida Rcl 4.335-AC, esses outros 4 Ministros julgaram procedente a Rcl não em razão da tese da abstrativização, mas diante da existência de fato superveniente (art. 462 do CPC/73, correspondente ao art. 493 do CPC/2015), qual seja, a SV 26.
Deve-se deixar bem claro que o Min. Teori Zavascki, muito embora admitisse — o que concordamos — uma inegável expansividade das decisões do STF, mesmo quando tomadas em controvérsias de índole individual, esse reconhecimento não seria suficiente para fundamentar o cabimento da reclamação com base no art. 102, I, “l”, sob pena de transformar a Corte em órgão recursal. Assim, sustentou uma necessária interpretação estrita dessa competência, sob pena de se caracterizar acesso per saltum à Suprema Corte e combatida supressão de instância. Vejamos:
“O mesmo sentido restritivo há de ser conferido à norma de competência sobre cabimento de reclamação. É que, considerando o vastíssimo elenco de decisões da Corte Suprema com eficácia expansiva, e a tendência de universalização dessa eficácia, a admissão incondicional de reclamação em caso de descumprimento de qualquer delas, transformará o Supremo Tribunal Federal em verdadeira Corte executiva, suprimindo instâncias locais e atraindo competências próprias das instâncias ordinárias. Em outras palavras, não se pode estabelecer sinonímia entre força expansiva e eficácia vinculante erga omnes a ponto de criar uma necessária relação de mútua dependência entre decisão com força expansiva e cabimento de reclamação. Por outro lado, conforme ficou decidido na Reclamação (AgRg) 16.038 (Min. Celso de Mello, 2.ª T., j. 22.10.2013) ‘o remédio constitucional da reclamação não pode ser utilizado como um (inadmissível) atalho processual destinado a permitir, por razões de caráter meramente pragmático, a submissão imediata do litígio ao exame direto do Supremo Tribunal Federal’” (fls. 168 do acórdão — original sem grifos).
Assim, muito embora o STF tenha, por maioria de 6 x 4, conhecido e julgado procedente a reclamação, entre esses 6 Ministros (no sentido de procedência da reclamação), apenas os Mins. Gilmar Mendes e Eros Grau fundamentaram com base na tese da mutação.
Deve-se deixar claro, então, que 8 Ministros (os outros 4 dos 6 que conheciam da reclamação, bem como os 4 que não conheciam da reclamação) pronunciaram, acertadamente, no sentido de não se admitir a mutação do art. 52, X. Em outras palavras, o efeito erga omnes no controle difuso ainda depende de resolução do Senado Federal (ou de súmula vinculante do STF), que, por sua vez, não se transformou, deixe-se claro, em mero “menino de recado”.
Nesse sentido, ao discutir a suposta vinculação da polêmica decisão da Corte que admitiu a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário (HC 126.292), disse o Min. Celso de Mello: “tal decisão, é necessário enfatizar, pelo fato de haver sido proferida em processo de perfil eminentemente subjetivo, não se reveste de eficácia vinculante, considerado o que prescrevem o art. 102, § 2.º, e o art. 103-A, caput, da Constituição da República, a significar, portanto, que aquele aresto, embora respeitabilíssimo, não se impõe à compulsória observância dos juízes e Tribunais em geral” (HC 135.100, j. 01.07.2016, pendente de apreciação pelo Pleno).
Na mesma linha, o Min. Fachin, ao julgar reclamação, instituto definido por sua Excelência como de natureza constitucional, formulada contra decisão proferida no âmbito do STJ, que deferiu a liminar para o fim de obstar a execução provisória da pena privativa de liberdade decorrente de condenação criminal confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Em suas palavras: “a função precípua da reclamação constitucional reside na proteção da autoridade das decisões de efeito vinculante proferidas pela Corte Constitucional e no impedimento de usurpação da competência que lhe foi atribuída constitucionalmente. A reclamação não se destina, destarte, a funcionar como sucedâneo recursal ou incidente dirigido à observância de entendimento jurisprudencial sem força vinculante” (Rcl 23.535, j. 11.05.2016).
Em igual sentido, também afirmando não ser vinculante a decisão proferida no referido precedente (HC 126.292), confira a parte final da decisão do Min. Dias Toffoli, proferida no HC 135.041 (j. 28.06.2016).
Reconhecemos e admitimos, retomando esse ponto, uma inegável expansividade das decisões mesmo quando tomadas em controvérsias individuais, bem como uma dita objetivação do processo subjetivo (nesse sentido, o voto do Min. Teori na Rcl 4.335 é bastante profundo). Contudo, a mudança pretendida em relação ao art. 52, X, que, aliás, parece ser uma tendência, necessariamente, depende de formal reforma constitucional.
Não que seja ruim. Muito pelo contrário, em nosso entender, o modelo de precedentes do direito norte-americano apresenta-se como uma possível solução para a chamada crise de funcionalidade que vive o STF. Contudo, para caracterização dessa esperada e efetiva vinculação, haveria a necessidade de alteração por emenda constitucional.
Em relação ao tema exposto (eficácia expansiva das decisões e objetivação do recurso extraordinário), gostaríamos de destacar alguns exemplos dessa perspectiva para, ao final, concluir, reforçando o item anterior, que, para o uso específico da reclamação constitucional, devemos adotar uma postura mais restritiva, sob pena de tornar o STF uma Corte de revisão, um órgão recursal, tendo em vista a criação de um inadmissível (porque inconstitucional) atalho processual. Vejamos os exemplos a demonstrar a inegável e muito bem-vinda valorização dos precedentes:
CPC/73 |
REGRA CPC/73 |
CPC/2015 |
REGRA/CORRESPONDÊNCIA/NOVIDADE CPC/2015 |
■ art. 120, parágrafo único |
■ possibilidade de o relator decidir de plano o conflito de competência havendo jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada |
■ art. 955 |
■ deixa claro que a jurisprudência dominante é do STF, STJ ou do próprio Tribunal ■ aumenta o poder decisório do relator quando a tese tiver sido firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência |
■ art. 285-A |
■ improcedência de plano — julgamento de mérito sem a citação do réu se já houver demandas idênticas no juízo |
■ art. 332 |
■ houve ampliação dos poderes do juiz de primeira instância, permitindo o julgamento de mérito não somente em razão de decisões do juízo, mas também nas hipóteses de: I — enunciado de súmula do STF ou do STJ; II — acórdão proferido pelo STF ou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos; III — entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) ou de assunção de competência; IV — enunciado de súmula de TJ sobre direito local. |
■ art. 475, § 3.º |
■ inexistência de reexame necessário quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente |
■ art. 496, §§ 3.º e 4.º |
■ dispensa da remessa necessária de acordo com os valores da condenação (novidade) ■ mantém a ideia de dispensa em razão de decisões do STF e do STJ e inova em relação a entendimento firmado em IRDR ou em assunção de competência ■ inova, também, de maneira muito interessante, ao dispensar o reexame quando a sentença estiver fundada em entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa |
■ art. 475-L, § 1.º |
■ impugnação à fase executiva no cumprimento de sentença para declarar a inexigibilidade do título quando houver declaração de inconstitucionalidade da lei que funda o título |
■ art. 525, §§ 12 a 15 |
■ mantém a ideia com as observações e críticas que fizemos no item 6.7.1.17.4.3 deste estudo |
■ art. 741, parágrafo único |
■ impugnação na execução contra a Fazenda Pública para declarar a inexigibilidade do título quando houver declaração de inconstitucionalidade da lei que funda o título |
■ art. 535, §§ 5.º a 8.º |
■ mantém a ideia com as observações e críticas que fizemos no item 6.7.1.17.4.3 deste estudo |
■ art. 479 |
■ recomendação para a uniformização da jurisprudência |
■ art. 926 |
■ os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente |
■ art. 481, § 1.º |
■ dispensa da cláusula de reserva de plenário no controle difuso |
■ art. 949, parágrafo único |
■ regra prevista de modo idêntico |
■ art. 518, § 1.º |
■ espécie de súmula impeditiva de recurso, caracterizada como um pressuposto de admissibilidade negativo do recurso, já que o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do STJ ou do STF |
■ art. 1.011, I, c/c art. 932, IV |
■ a admissibilidade negativa é transferida para o Relator no Tribunal, e não mais para o juízo a quo que proferiu a sentença, podendo decidir monocraticamente (no Novo Código, não há mais juízo de admissibilidade pelo juiz que proferiu a sentença — art. 1.010, § 3.º) ■ na linha das novidades do CPC/2015, o Relator poderá negar provimento ao recurso que for contrário a: súmula do STF ou do STJ; acórdão proferido pelo STF ou STJ em julgamento de recursos repetidos; incidente firmado em IRDR ou assunção de competência |
■ arts. 543-A, 543-B e 543-C |
■ análise da repercussão geral no recurso extraordinário. Julgamento por amostragem — processos-modelos tanto no recurso extraordinário como no especial |
■ arts. 1.035 e 1.036 e segs. |
■ a regra da repercussão geral foi mantida e mais bem disciplinada a técnica do julgamento de recursos extraordinário e especial repetidos |
■ arts. 544, § 4.º, I e II, e 557, caput e § 1.º-A |
■ atribuição dada ao relator do agravo em recurso especial ou extraordinário para, monocraticamente, com base em jurisprudência do STJ ou do STF, conhecer do agravo e provê-lo ou negar-lhe seguimento. Essa previsão está explícita, também, para os recursos em geral (art. 557) |
■ art. 932, IV e V |
■ poderes dados ao relator para negar provimento a recurso ou dar provimento em razão de súmula do STF ou do STJ, acórdão em julgamento de recursos repetidos, entendimento firmado em IRDR ou assunção de competência |
■ art. 555, § 1.º |
■ ocorrendo relevante questão de direito, que faça conveniente prevenir ou compor divergência entre câmaras ou turmas do tribunal, poderá o relator propor seja o recurso julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar; reconhecendo o interesse público na assunção de competência, esse órgão colegiado julgará o recurso |
■ art. 947 |
■ o novo Código criou um capítulo próprio para o que chamou de incidente de assunção de competência — IAC ■ o art. 947, § 3.º, prevê que o acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese, fazendo a previsão de cabimento de reclamação para garantir a observância do referido precedente (art. 988, IV) |
■ não há correspondência |
■ não há correspondência |
■ art. 927, III, IV e V |
■ Os juízes e os tribunais observarão: III — os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV — os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V — a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados |
Analisados os dispositivos normativos acima listados, não temos dúvidas em reconhecer, tanto no CPC/73 como no de 2015, o inegável processo de expansividade das decisões proferidas em casos concretos, bem como a força dada à jurisprudência dos tribunais.
Todos os exemplos indicam uma inegável tendência de valorização dos precedentes, na linha do que o CPC/2015 denominou jurisprudência dos tribunais estável, íntegra e coerente (art. 926, caput).
Aliás, devemos destacar que o texto original do Senado Federal estabelecia apenas uma valorização da estabilidade da jurisprudência. A previsão da integridade e da coerência se verificou em razão de sugestão feita por Lenio Streck à comissão de especialistas na Câmara dos Deputados (por todos, Fredie Didier), bem como ao Relator, Deputado Paulo Teixeira, e que veio a ser acatada pelo Senado Federal, na votação final do substitutivo.
Devemos, então, analisar a amplitude dessa dita “emenda streckiana-dworkiniana” ao projeto de lei (assim chamada por Streck),99 especialmente no sentido de se verificar a amplitude da vinculação da jurisprudência dos tribunais em relação aos juízes do Brasil e a potencialização supostamente dada para o cabimento da reclamação constitucional.
Em primeiro lugar, temos que aplaudir essa importante potencialização dada à jurisprudência no CPC/2015, ao prever um sentido bastante técnico desses vetores principiológicos a partir de uma concepção de dignidade da pessoa humana, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia (art. 927, § 4.º, CPC/2015).
Para Streck, “a estabilidade é diferente da integridade e da coerência do Direito, pois a ‘estabilidade’ é um conceito autorreferente, isto é, numa relação direta com os julgados anteriores. Já a integridade e a coerência guardam um substrato ético-político em sua concretização, isto é, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso”.100 Nesse sentido, o autor define com precisão os necessários “atributos” das decisões judiciais:
■ coerência: “... em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Haverá coerência se os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte dos juízes. Isso somente pode ser alcançado através de um holismo interpretativo, constituído a partir do círculo hermenêutico”;101
■ integridade: segundo o autor, valendo-se das lições de Dworkin (O império do direito, Quartier Latim, 2008, p. 213), é duplamente composta: a) princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente; b) princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto o possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito. Trata-se de uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. A integridade limita a ação dos juízes; mais do que isso, coloca efetivos freios, através dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é uma forma de virtude política. A integridade significa rechaçar a tentação da arbitrariedade”.102 E, no citado texto de 18.12.2014, Streck chegou a afirmar ser a integridade antitética ao voluntarismo, ao ativismo e à discricionariedade.
Pois bem, definido esse novo sentido da jurisprudência, resta analisar a amplitude da vinculação dos juízes e tribunais e, no caso, o cabimento ou não desse inegável direito fundamental (verdadeiro direito de petição — art. 5.º, XXXIV, “a”), denominado reclamação constitucional.
Pelos dispositivos normativos citados no quadro acima, o CPC/2015 seguiu a tendência que já se verificava em relação às últimas minirreformas do Código Buzaidiano de 1973, aumentando o poder decisório dos relatores e a “vinculação” sugestiva decorrente de posicionamentos já sumulados e pacificados nos tribunais superiores.
O CPC/2015, contudo, avançou e supervalorizou o cabimento da reclamação e, assim, o efeito vinculante das decisões. A sua modificação pela Lei n. 13.256/2016, apesar de minimizar essa vinculação, continuou prevendo situações que, em nosso entender, afrontam a Constituição.
Na nova redação conferida ao art. 988, III, o legislador de 2016 foi bem sensato ao prescrever, em um mesmo inciso, as situações de verdadeiro efeito vinculante previstas na Constituição para o cabimento da reclamação constitucional, quais sejam, enunciado de súmula vinculante e decisão do STF em controle concentrado.
No inciso IV do art. 988 houve a indicação de situações que se aproximam e foram criadas pelo CPC/2015, quais sejam, o cabimento de reclamação constitucional para garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR — nesse sentido, cf. também art. 985, § 1.º) ou de incidente de assunção de competência (IAC). Mesmo com as particularidades desses institutos, entendemos que a fixação de efeito vinculante sem a previsão na Constituição (que só estabelece em razão de edição de SV ou decorrente de decisão proferida em controle concentrado) apresenta-se com duvidosa constitucionalidade.
A última hipótese de cabimento da reclamação constitucional foi estabelecida para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, desde que esgotadas as instâncias ordinárias (art. 988, § 5.º, CPC, introduzido pela Lei n. 13.256/2016).
O fato de criar uma condição, qual seja, o esgotamento das instâncias ordinárias, em nosso entender, não afasta a inconstitucionalidade do dispositivo (pendente de apreciação específica pelo Pleno do STF).
Em nosso entender, essas regras de vinculação e o consequente cabimento da reclamação constitucional não poderiam ter sido introduzidos por legislação infraconstitucional, porque dependeriam, necessariamente, de emenda constitucional a prever outras hipóteses de decisões com efeito vinculante, além daquelas já previstas na Constituição.
Como se sabe e já afirmamos anteriormente, na CF/88, o efeito vinculante (no caso, premissa para se falar nessa hipótese de cabimento da reclamação), somente se observa em razão das decisões em controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, § 2.º),103 ou em razão de edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante (art. 103-A),104 regra essa, aliás, na linha do que sustentamos, introduzida pela EC n. 45/2004.
Não podemos confundir efeitos processuais dos instrumentos elencados acima com ampliação das hipóteses de cabimento da reclamação constitucional (art. 102, I, “l”) para a garantia da autoridade das decisões dos tribunais.
Até podemos admitir, aplicando-se os instrumentos de coerência e integridade, o que, de modo muito interessante, Streck denominou “vinculação orgânica-material”105 dos julgadores.
Entretanto, essa dita “vinculação”, no controle da decisão judicial, não poderá ensejar o cabimento da reclamação constitucional. Trata-se de norma de caráter programático, e não de imposição. Busca-se criar uma cultura de observância dos precedentes, mas não a hipótese de reclamação constitucional que não encontra fundamento na Constituição.
Como se disse, sem dúvida, ferramentas processuais serão importantes para abreviar a entrega da prestação jurisdicional (aliás, como sabemos, a razoável duração do processo é direito fundamental — art. 5.º, LXXIII, CF/88). Exemplificando, é perfeitamente admissível a introdução por lei de julgamento monocrático pelo relator no tribunal em observância à jurisprudência dominante do STF ou do STJ, ou a restrição das hipóteses de remessa necessária.
Contudo, isso não pode significar o cabimento da reclamação constitucional. Assim, entendemos, flagrantemente inconstitucional essa pretensão trazida no CPC/2015.
Estamos nos referindo aos arts. 988, IV e § 5.º, 985, § 1.º, e 947, § 3.º, e, também, ao art. 927, III, IV e V (CPC/2015), ao se estabelecer que os juízes e tribunais observarão:
■ os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
■ os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
■ a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Dizer que “devem” observar significa vincular. Não poderia ser outra a interpretação, pois, do contrário, não faria sentido explicitar o dever de “observar” ao lado de outros incisos que, por sua essência, já trazem, ínsitos, a vinculação, como são os incisos I (decisões do STF em controle concentrado) e II (enunciados de súmula vinculante), em relação aos quais inquestionável o cabimento da reclamação constitucional.
Não estamos a condenar os efeitos processuais, aliás, muito bem-vindos e uma realidade já no CPC/73 em razão de suas minirreformas. Estamos, por outro lado, unicamente a não reconhecer o efeito vinculante para o cabimento da reclamação constitucional.
Entendemos que essa é a linha da interpretação do STF, conforme se verificou no julgamento da Rcl 4.335 (cf. item 6.6.5.1).
No voto do Min. Teori Zavascki, ficou clara a necessidade, muito embora reconhecida a eficácia expansiva das decisões mesmo quando tomadas em controvérsias concretas e individuais, de se dar uma interpretação estrita à reclamação constitucional, sob pena de transformar o STF em Corte de revisão, em órgão recursal, tendo em vista a criação de um inadmissível (porque inconstitucional) atalho processual ou, ainda, um acesso per saltum à Suprema Corte em combatida supressão de instância. Nessa linha de interpretação, confira decisões monocráticas proferidas na Rcl 23.535 (Min. Edson Fachin, j. 11.05.2016) e no HC 135.100 (Min. Celso de Mello, j. 01.07.2016) (pendentes de análise pelo STF).
Como se sabe, no controle difuso a declaração de inconstitucionalidade se dá de modo incidental e se caracteriza como questão prejudicial incidental. Ou seja, julga-se procedente ou improcedente o pedido formulado tendo em vista a inconstitucionalidade ou constitucionalidade de uma lei ou ato normativo. A inconstitucionalidade, nesse caso, não é o pedido, mas a causa de pedir. Dessa forma, na sentença a ser proferida, o dispositivo contém a “resposta” (julgamento) ao pedido e a análise da constitucionalidade dar-se-á na fundamentação.
Por outro lado, no controle concentrado a declaração de inconstitucionalidade se dá de modo principal e é o próprio pedido formulado na ação (ADI) que se fundamenta em violação formal ou material à Constituição. Por exemplo, uma lei que cria cargo sem a observância do princípio do concurso público é inconstitucional por violar o art. 37, II, da CF/88.
Agora, imaginemos que em determinado controle concentrado e em abstrato, ao se verificar os fundamentos para nulificar ou não uma lei, entenda o STF que outro ato normativo, que não fazia parte do pedido, é inconstitucional.
É como se estivéssemos diante do procedimento de cisão previsto para o controle difuso, no qual, diante de questão de ordem suscitada, paralisa-se o julgamento, cinde-se o processo e encaminha-se a análise da inconstitucionalidade para o Pleno do Tribunal (art. 97 — cláusula de reserva de plenário).
Avançando, vamos supor que essa questão de ordem a ser resolvida seja suscitada não no controle difuso, mas em determinada ADI (controle concentrado).
Estamos diante da problemática que surgiu no julgamento da ADI 4.029, que tinha por objeto a Lei n. 11.516/2007, fruto de conversão da MP n. 366/2007 e que dispôs sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente.
Dentre os vários argumentos discutidos na referida ADI, estava a tese do vício formal, por violação ao art. 62, § 9.º, da CF/88, que estabelece ser atribuição de comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, de caráter opinativo, acrescente-se, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional.
No caso concreto, referida MP foi convertida na lei objeto da ADI sem a apreciação pela comissão mista de Deputados e Senadores, havendo apenas a emissão de parecer individual de seu relator, nos termos do art. 6.º, § 2.º,106 da Res. n. 1/2002-CN.
Segundo ficou estabelecido na ementa do acórdão, “as comissões mistas e a magnitude das funções das mesmas no processo de conversão de medidas provisórias decorrem da necessidade, imposta pela Constituição, de assegurar uma reflexão mais detida sobre o ato normativo primário emanado pelo Executivo, evitando que a apreciação pelo Plenário seja feita de maneira inopinada, percebendo-se, assim, que o parecer desse colegiado representa, em vez de formalidade desimportante, uma garantia de que o Legislativo fiscalize o exercício atípico da função legiferante pelo Executivo. O art. 6.º da Resolução 1 de 2002 do Congresso Nacional, que permite a emissão do parecer por meio de relator nomeado pela Comissão Mista, diretamente ao Plenário da Câmara dos Deputados, é inconstitucional” (ADI 4.029, Rel. Min. Luiz Fux, j. 08.03.2012, Plenário, DJE de 27.06.2012).
Dessa forma, embora a lei objeto da ADI tivesse seguido o procedimento de tramitação das medidas provisórias previsto na Res. n. 1/2002-CN, entendeu o Tribunal que referido procedimento não se conforma ao art. 62, § 9.º, da CF/88.
Decidiu então a Corte declarar incidentalmente a inconstitucionalidade dos arts. 5.º, caput, e 6.º, caput, e §§ 1.º e 2.º, da Res. n. 1/2002-CN.
Por consequência, todas as medidas provisórias já convertidas em lei ou mesmo em tramitação que não tivessem observado o procedimento do art. 62, § 9.º (necessidade de apreciação pela comissão mista, não bastando manifestação unipessoal de relator), seriam inconstitucionais.
O interessante é que a declaração incidental de inconstitucionalidade (muito embora em controle concentrado e em ADI genérica), produziria efeitos erga omnes, ex tunc e vinculante, acarretando a inconstitucionalidade de centenas de medidas provisórias que não observaram o citado procedimento constitucional, apesar de não serem objeto na ação direta de inconstitucionalidade em julgamento.
É como se houvesse a ampliação de efeitos da decisão, a partir de declaração incidental, atingindo vários atos normativos que não eram objeto da ADI, em nítido privilégio da eficácia da decisão da Corte. Ou seja, o efeito erga omnes, ex tunc e vinculante decorria da declaração incidental (e, repita-se, apenas para deixar bem claro, em CONTROLE CONCENTRADO E EM ABSTRATO, e não em controle difuso — apesar de estarmos tratando desse assunto em seção do livro que cuida do controle difuso).
O que estamos procurando mostrar é essa tendência de ampliação dos efeitos da decisão. Seria como se a decisão que estabeleceu a imprescindível necessidade de análise pela comissão mista estivesse sendo veiculada em súmula vinculante e acarretando a nulificação de diversos atos normativos que não eram o objeto da ADI genérica.
Diante dessa consequência do resultado da declaração incidental, que repercutiria sobre os mais diversos setores da vida do País, decidiu o Tribunal, aplicando o art. 27 da Lei n. 9.868/99,107 modular os efeitos da decisão, dando eficácia ex nunc em relação à pronúncia de nulidade dos dispositivos da resolução do Congresso Nacional, passando a exigir o respeito ao art. 62, § 9.º, somente a partir daquela decisão. Assim, todas as leis aprovadas de acordo com o procedimento da Res. n. 1/2002 que dispensaram a emissão de parecer pela comissão mista foram declaradas, por esse aspecto, constitucionais.
Podemos afirmar, dessa forma, que o modelo de apreciação da medida provisória fixado na resolução do Congresso Nacional foi declarado “ainda constitucional” até o julgamento da referida ADI 4.029 e, a partir de então, o STF declarou inconstitucional qualquer inobservância ao art. 62, § 9.º, da CF/88, ficando, por consequência, preservadas a validade e a eficácia de todas as medidas provisórias convertidas em lei até aquela data, bem como daquelas que estavam tramitando no Legislativo nos termos do procedimento fixado nos arts. 5.º, caput, e 6.º, caput, e §§ 1.º e 2.º, da Res. n. 1/2002-CN, que permitiam a continuidade do iter procedimental de apreciação da medida provisória mesmo na hipótese de não haver parecer emitido pela comissão mista no prazo rígido de 14 dias contados da sua publicação.
Como vimos, o controle difuso de constitucionalidade é realizado no caso concreto, por qualquer juiz ou tribunal do Poder Judiciário, produzindo, em regra, efeitos somente para as partes (salvo a hipótese de resolução do Senado Federal — art. 52, X), sendo a declaração de inconstitucionalidade proferida de modo incidental.
Portanto, só será cabível o controle difuso, em sede de ação civil pública “... como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal” (Min. Celso de Mello, Rcl 1.733-SP, DJ de 1.º.12.2000 — Inf. 212/STF).
Por conseguinte, a jurisprudência do STF “... exclui a possibilidade do exercício da ação civil pública, quando, nela, o autor deduzir pretensão efetivamente destinada a viabilizar o controle abstrato de constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo (RDA 206/267, Rel. Min. Carlos Velloso — Ag. 189.601-GO (AgRg), Rel. Min. Moreira Alves). Se, contudo, o ajuizamento da ação civil pública visar, não à apreciação da validade constitucional de lei em tese, mas objetivar o julgamento de uma específica e concreta relação jurídica, aí, então, tornar-se-á lícito promover, incidenter tantum, o controle difuso de constitucionalidade de qualquer ato emanado do Poder Público. Incensurável, sob tal perspectiva, a lição de Hugo Nigro Mazzilli (‘O Inquérito Civil’, p. 134, item n. 7, 2. ed., 2000, Saraiva): ‘Entretanto, nada impede que, por meio de ação civil pública da Lei n. 7.347/85, se faça, não o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade das leis, mas, sim, seu controle difuso ou incidental. (...) assim como ocorre nas ações populares e mandados de segurança, nada impede que a inconstitucionalidade de um ato normativo seja objetada em ações individuais ou coletivas (não em ações diretas de inconstitucionalidade, apenas), como causa de pedir (não o próprio pedido) dessas ações individuais ou dessas ações civis públicas ou coletivas’” (Min. Celso de Mello, Rcl 1.733-SP, DJ de 1.º.12.2000 — Inf. 212/STF).
Mas atente à regra geral: a ação civil pública não pode ser ajuizada como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade, pois, em caso de produção de efeitos erga omnes, estaria provocando verdadeiro controle concentrado de constitucionalidade, usurpando competência do STF (cf. STF, Rcl 633-6/SP, Min. Francisco Rezek, DJ de 23.09.1996, p. 34945).
No entanto, sendo os efeitos da declaração reduzidos somente às partes (sem amplitude erga omnes), ou seja, tratando-se de “... ação ajuizada, entre partes contratantes, na persecução de bem jurídico concreto, individual e perfeitamente definido, de ordem patrimonial, objetivo que jamais poderia ser alcançado pelo reclamado em sede de controle in abstracto de ato normativo” (STF, Rcl 602-6/SP), aí sim seria possível o controle difuso em sede de ação civil pública, verificando-se a declaração de inconstitucionalidade de modo incidental e restringindo-se os efeitos inter partes. O pedido de declaração de inconstitucionalidade incidental terá, enfatize-se, de constituir verdadeira causa de pedir (cf. RE 424.993, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 12.09.2007, DJ de 19.10.2007).
Como exemplo, de maneira precisa, Alexandre de Moraes cita determinada ação civil pública ajuizada pelo MP, em defesa do patrimônio público, para anulação de licitação baseada em lei municipal incompatível com o art. 37 da CF, declarando o juiz ou tribunal, no caso concreto, a inconstitucionalidade da referida lei, reduzidos os seus efeitos somente às partes.108
O controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo recebe tal denominação pelo fato de “concentrar-se” em um único tribunal. Pode ser verificado em cinco situações:
AÇÃO |
FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL |
REGULAMENTAÇÃO |
■ ADI — Ação Direta de Inconstitucionalidade Genérica |
■ art. 102, I, “a” |
■ Lei n. 9.868/99 |
■ ADC — Ação Declaratória de Constitucionalidade |
■ art. 102, I, “a” |
■ Lei n. 9.868/99 |
■ ADPF — Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental |
■ art. 102, § 1.º |
■ Lei n. 9.882/99 |
■ ADO — Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão |
■ art. 103, § 2.º |
■ Lei n. 12.063/2009 |
■ IF109 — Representação Interventiva (ADI Interventiva) |
■ art. 36, III, c/c art. 34, VII |
■ Lei n. 12.562/2011 |
O que se busca com a ADI genérica é o controle de constitucionalidade de ato normativo em tese, abstrato, marcado pela generalidade, impessoalidade e abstração.
Ao contrário da via de exceção ou defesa, pela qual o controle (difuso) se verificava em casos concretos e incidentalmente ao objeto principal da lide, no controle concentrado a representação de inconstitucionalidade, em virtude de ser em relação a um ato normativo em tese, tem por objeto principal a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado. O que se busca saber, portanto, é se a lei (lato sensu) é inconstitucional ou não, manifestando-se o Judiciário de forma específica sobre o aludido objeto. A ação direta, portanto, nos dizeres da Professora Ada Pellegrini Grinover, “tem por objeto a própria questão da inconstitucionalidade, decidida principaliter”.110
Em regra, através do controle concentrado, almeja-se expurgar do sistema lei ou ato normativo viciado (material ou formalmente), buscando, por conseguinte, a sua invalidação.
O objeto do comentado instrumento processual é a lei ou ato normativo que se mostrarem incompatíveis com o sistema.
Entendam-se por leis todas as espécies normativas do art. 59 da CF/88, quais sejam: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.111
Atos normativos, segundo Alexandre de Moraes,112 podem ser: a) resoluções administrativas dos tribunais; b) atos estatais de conteúdo meramente derrogatório, como as resoluções administrativas, desde que incidam sobre atos de caráter normativo.
O autor, valendo-se das palavras de Castanheira A. Neves, observa que poderá ser objeto de controle qualquer “ato revestido de indiscutível caráter normativo”,113 motivo pelo qual incluímos aí os regimentos internos dos tribunais.
Podem, também, ser objeto de controle de constitucionalidade:
■ as deliberações administrativas dos órgãos judiciários (precedente: STF, ADI 728, Rel. Min. Marco Aurélio). Nesse sentido:
“EMENTA: Resolução administrativa do TRT da 3.ª Região. Natureza normativa da resolução. Atribuição do Congresso Nacional para ato normativo que aumenta vencimentos de servidor. Inconstitucionalidade da resolução configurada. Precedentes do STF” (ADI 1.614, Rel. p/ ac. Min. Nelson Jobim, j. 18.12.98, Plenário, DJ de 06.08.99). “É cabível o controle concentrado de resoluções de tribunais que deferem reajuste de vencimentos. Precedentes” (ADI 2.104, Rel. Min. Eros Grau, j. 21.11.2007, Plenário, DJE de 22.02.2008).
■ as deliberações dos Tribunais Regionais do Trabalho judiciários que determinam o pagamento a magistrados e servidores das diferenças de plano econômico (precedente: STF, ADI 681/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, reconhecendo o seu caráter normativo), salvo as convenções coletivas de trabalho;114
■ resolução do Conselho Interministerial de Preços — CIP (STF, Pleno, ADI 8-0/DF, Rel. Min. Carlos Velloso), que concedeu aumento de preço aos produtos farmacêuticos, permitindo, portanto, a verificação de sua compatibilidade com a Constituição Federal.
De acordo com a ADI 594-DF, só podem ser objeto de controle perante o STF leis e atos normativos federais ou estaduais. Súmula de jurisprudência não possui o grau de normatividade qualificada, não podendo, portanto, ser questionada perante o STF através do controle concentrado.
E a súmula vinculante pode ser objeto de ADI?
Como se sabe, a EC n. 45/2004 fixou a possibilidade de o STF (e exclusivamente o STF), de ofício ou por provocação, mediante decisão de 2/3 dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 103-A).
O seu § 2.º, por seu turno, fixa a possibilidade de, sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, proceder-se a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula, mediante provocação daqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
Assim, tendo em vista o fato de a súmula não ser marcada pela generalidade e abstração, diferentemente do que acontece com as leis, não se pode aceitar a técnica do “controle de constitucionalidade” de súmula, mesmo no caso da súmula vinculante.
O que existe é um procedimento de revisão pelo qual se poderá cancelar a súmula. O cancelamento desta significará a não mais aplicação do entendimento que vigorava. Nesse caso, naturalmente, a nova posição produzirá as suas consequências a partir do novo entendimento, vinculando os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Cabe alertar que o procedimento de aprovação, revisão ou cancelamento de súmula vinculante foi disciplinado pela Lei n. 11.417/2006.
Todavia, em algumas decisões, a Ministra Ellen Gracie entendeu que o mecanismo para se rever a súmula vinculante seria a própria ADI (com o que não concordamos, pelos motivos acima expostos). Tratava-se de hipótese na qual se discutia a impetração de habeas corpus tendo em vista a edição da SV 11115 sobre o uso de algemas (HC 96.301, 06.10.2008, Min. Ellen Gracie).
Em 05.12.2008, o Presidente do STF, no uso de suas atribuições, editou a Res. n. 388, disciplinando o processamento de proposta de edição, revisão e cancelamento de súmulas. Estabelece-se a tramitação em forma eletrônica da proposta, que, em nosso entender, difere, em substância, do processo de ADI, o que corrobora a nossa posição acima exposta de se tratar de um procedimento próprio e distinto da ADI.
Como dissemos, as emendas constitucionais podem ser objeto de controle, embora introduzam no ordenamento normas de caráter constitucional. O que temos com o processo de emendas é a manifestação do poder constituinte derivado reformador, e, como vimos ao estudar a teoria do poder constituinte, a derivação dá-se em relação ao poder constituinte originário. Este último é ilimitado e autônomo. O derivado reformador, por seu turno, deve observar os limites impostos e estabelecidos pelo originário, como decorre da observância às regras do art. 60 da CF/88. Assim, desobedecendo aos referidos limites, inevitável declarar inconstitucional a emenda que introduziu uma alteração no texto constitucional.116
Conforme alertamos, o poder constituinte derivado revisor (art. 3.º do ADCT), assim como o reformador (art. 60 da CF/88) e o decorrente (art. 25 da CF/88 — Constituições estaduais), é fruto do trabalho de criação do originário, estando, portanto, a ele vinculado. É, ainda, um “poder” condicionado e limitado às regras instituídas pelo originário, sendo, assim, um poder jurídico.
Dessa maneira, as emendas de revisão também poderão ser “controladas”, tanto em seu aspecto formal (procedimento previsto no art. 3.º do ADCT) como material (cláusulas pétreas — art. 60, § 4.º, I a IV) (cf. item 4.4.4).
Somente o ato estatal de conteúdo normativo, em plena vigência, pode ser objeto do controle concentrado de constitucionalidade. Como a medida provisória tem força de lei, poderá ser objeto de controle, já que ato estatal, em plena vigência. No entanto, sendo ela convertida em lei, ou tendo perdido a sua eficácia por decurso de prazo, nos termos do art. 62, § 3.º, da CF/88 (confira as profundas alterações trazidas pela EC n. 32/2001 em relação à tramitação das medidas provisórias e por nós comentadas no item 9.14.4), considerar-se-á prejudicada a ADI (que questionava a constitucionalidade da MP) pela perda do objeto da ação.117 O autor da ADI, na primeira hipótese, deverá aditar o seu pedido à nova lei de conversão.
E os requisitos constitucionais de relevância e urgência (art. 62) podem ser objeto de controle jurisdicional?
Excepcionalmente, o STF decidiu serem passíveis de controle desde que o exame seja feito cum grano salis, ou seja, com muita parcimônia. Assim, “conforme entendimento consolidado da Corte, os requisitos constitucionais legitimadores da edição de medidas provisórias, vertidos nos conceitos jurídicos indeterminados de ‘relevância’ e ‘urgência’ (art. 62 da CF), apenas em caráter excepcional se submetem ao crivo do Poder Judiciário, por força da regra da separação de poderes (art. 2.º da CF) (ADI n. 2.213, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.04.2004; ADI n. 1.647, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 26.03.1999; ADI n. 1.753-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 12.06.1998; ADI n. 162-MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19.09.1997)” (ADC 11-MC, voto do Min. Cezar Peluso, j. 28.03.2007, DJ de 29.06.2007).
Esse entendimento foi confirmado pela Corte no julgamento da ADI 4.029 (j. 08.03.2012), ficando assim estabelecido:
“EMENTA: (...). A atuação do Judiciário no controle da existência dos requisitos constitucionais de edição de Medidas Provisórias em hipóteses excepcionais, ao contrário de denotar ingerência contramajoritária nos mecanismos políticos de diálogo dos outros Poderes, serve à manutenção da Democracia e do equilíbrio entre os três baluartes da República. Precedentes (ADI 1.910 MC, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, j. em 22.04.2004; ADI 1.647, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, j. em 02.12.98; ADI 2.736/DF, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, j. em 08.09.2010; ADI 1.753 MC, Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, j. em 16.04.98)”.
E os requisitos constitucionais de imprevisibilidade e urgência (art. 62 c/c o art. 167, § 3.º) da MP que abre crédito extraordinário118 podem ser objeto de controle jurisdicional?
Dada a magnitude do julgamento, pedimos vênia para transcrever a ementa que resume a nova posição do STF, revendo, inclusive, a jurisprudência que não admitia o controle para os denominados atos de efeito concreto (cf. item 6.7.1.2.10):
“EMENTA: Limites constitucionais à atividade legislativa excepcional do Poder Executivo na edição de medidas provisórias para abertura de crédito extraordinário. Inter-pretação do art. 167, § 3.º c/c o art. 62, § 1.º, inciso I, alínea d, da Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3.º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões ‘guerra’, ‘comoção interna’ e ‘calamidade pública’ constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3.º c/c o art. 62, § 1.º, inciso I, alínea d, da Constituição. ‘Guerra’, ‘comoção interna’ e ‘calamidade pública’ são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de consequências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n. 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n. 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. Medida cautelar deferida. Suspensão da vigência da Lei n. 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008” (ADI 4.048-MC, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.05.2008, DJE de 22.08.2008). No mesmo sentido: ADI 4.049-MC, Rel. Min. Carlos Britto, j. 05.11.2008 (Inf. 527/STF).
Essa nova posição mostra-se bastante relevante, freando o desvirtuamento dado pelo Executivo às medidas provisórias e, assim, “chamando” o Legislativo para que exerça, de maneira muito mais democrática, a análise da questão orçamentária. Ou seja, a abertura de crédito tem de ser vista com muito critério.
Os regulamentos ou decretos regulamentares expedidos pelo Executivo (art. 84, IV, da CF) e demais atos normativos secundários poderiam ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade?
Como regra geral, não! Tais atos não estão revestidos de autonomia jurídica a fim de qualificá-los como atos normativos suscetíveis de controle,119 não devendo, assim, sequer ser conhecida a ação. Trata-se de questão de legalidade, e referidos atos, portanto, serão ilegais e não inconstitucionais.
Estamos diante daquilo que o STF chamou de crise de legalidade, caracterizada pela inobservância do dever jurídico de subordinação normativa à lei, escapando das balizas previstas na Constituição Federal (STF, Pleno, ADI 264/DF, Rel. Min. Celso de Mello, RTJ 152/352; STF, ADI 1.253-3, medida liminar, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 1, de 25.08.1995, p. 26022).
Nessas hipóteses, o objeto não seria ato normativo primário, com fundamento de validade diretamente na Constituição, mas ato secundário, com base na lei, não se admitindo, portanto, controle de inconstitucionalidade indireta, reflexa ou oblíqua.
“EMENTA: Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em consequência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada” (ADI 996-MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 11.03.1994, Plenário, DJ de 06.05.1994). No mesmo sentido: ADI 3.805-AgR, Rel. Min. Eros Grau, j. 22.04.2009; ADI 2.999, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13.03.2008; ADI 365-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 07.11.1990.
O STF, excepcionalmente, conforme noticia Alexandre de Moraes, “tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta a lei, apresentando-se, assim, como decreto autônomo. Nessa hipótese, haverá possibilidade de análise de compatibilidade diretamente com a Constituição Federal para verificar-se a observância do princípio da reserva legal”.120
Em interessante precedente, estabelece a Suprema Corte: “Estão sujeitos ao controle de constitucionalidade concentrado os atos normativos, expressões da função normativa, cujas espécies compreendem a função regulamentar (do Executivo), a função regimental (do Judiciário) e a função legislativa (do Legislativo). Os decretos que veiculam ato normativo também devem sujeitar-se ao controle de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal. O Poder Legislativo não detém o monopólio da função normativa, mas apenas de uma parcela dela, a função legislativa” (ADI 2.950-AgR, Rel. p/ o acórdão Min. Eros Grau, j. 06.10.2004, DJ de 09.02.2007). Confira, entre outros julgados:
“EMENTA: Impugnação de resolução do Poder Executivo estadual. Disciplina do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, consumo e assuntos análogos. Ato normativo autônomo. Conteúdo de lei ordinária em sentido material. Admissibilidade do pedido de controle abstrato. Precedentes. Pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade o ato normativo subalterno cujo conteúdo seja de lei ordinária em sentido material e, como tal, goze de autonomia nomológica” (ADI 3.731-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 29.08.2007, DJ de 11.10.2007).
“EMENTA: 1. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Objeto. Admissibilidade. Impugnação de decreto autônomo, que institui benefícios fiscais. Caráter não meramente regulamentar. Introdução de novidade normativa. Preliminar repelida. Precedentes. Decreto que, não se limitando a regulamentar lei, institua benefício fiscal ou introduza outra novidade normativa, reputa-se autônomo e, como tal, é suscetível de controle concentrado de constitucionalidade...” (ADI 3.664, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 1.º.06.2011, DJE de 20.09.2011).
Estudaremos no item 9.14.5.2 (“Breves notas sobre o processo de formação dos tratados internacionais”) que o processo de incorporação no ordenamento jurídico interno dos tratados internacionais passa por quatro fases distintas, a saber: a) celebração do tratado internacional (negociação, conclusão e assinatura) pelo Órgão do Poder Executivo (ou posterior adesão [terceira etapa], art. 84, VIII — Presidente da República); b) aprovação (referendo ou “ratificação” lato sensu), pelo Parlamento, do tratado, acordo ou ato internacional, por intermédio de decreto legislativo, resolvendo-o definitivamente (Congresso Nacional, art. 49, I); c) troca ou depósito dos instrumentos de ratificação (ou adesão, caso não tenha tido prévia celebração) pelo Órgão do Poder Executivo em âmbito internacional; d) promulgação por decreto presidencial, seguida da publicação do texto em português no diário oficial. Nesse momento o tratado, acordo ou ato internacional adquire executoriedade no plano do direito positivo interno, guardando estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias.
Apesar de nossa opinião pessoal diferente,121 a maior parte da doutrina e pacificamente os tribunais (salvo alguns juízes do 1.º TACSP), inclusive, de forma majoritária, o STF, entendiam (sem qualquer distinção) que os tratados internacionais de qualquer natureza, mesmo sobre direitos humanos (esse entendimento vai ser superado), ingressam no ordenamento interno com o caráter de norma infraconstitucional, guardando estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado brasileiro (RTJ 83/809 e Inf. 73/STF — DJ de 30.05.1997), podendo, por conseguinte, ser revogados (ab-rogação ou derrogação) por norma posterior e ser questionada a sua constitucionalidade perante os tribunais, de forma concentrada ou difusa.122
A Reforma do Judiciário (EC n. 45/2004) acrescentou um § 3.º ao art. 5.º, nos seguintes termos: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
A novidade trazida pela Reforma (e esse tema é ampliado no item 9.14.5.2.2, remetendo o leitor para a sua análise) consiste em diferenciar os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos dos tratados e convenções internacionais de outra natureza. Aqueles (sobre direitos humanos), desde que aprovados por 3/5 dos votos de seus membros, em cada Casa do Congresso Nacional e em 2 turnos de votação (cf. art. 60, § 2.º), passam a ter a mesma natureza jurídica das emendas constitucionais. Isso significa que, inexistindo afronta aos “limites do poder de reforma”, o tratado internacional sobre direitos humanos, desde que observado o quorum diferenciado de aprovação pelo Congresso Nacional (igual ao das ECs), passa a ter paridade normativa com as normas constitucionais.
Finalmente, remetemos o leitor para o item 9.14.5.2.3, no qual discutimos a tese de supralegalidade dos tratados sobre direitos humanos defendida, inicialmente, pelo Ministro Gilmar Mendes (RE 466.343, Inf. 449/STF), sustentando serem mais que a lei, porém estando abaixo da Constituição.
Então, esquematizando, podemos afirmar:
■ tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e desde que aprovados por 3/5 dos votos de seus membros, em cada Casa do Congresso Nacional e em 2 turnos de votação (cf. art. 60, § 2.º, e art. 5.º, § 3.º): equivalem a emendas constitucionais e, como visto, podem ser objeto de controle de constitucionalidade;
■ tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pela regra anterior à Reforma: malgrado posicionamento pessoal deste autor já exposto, de acordo com a jurisprudência do STF, guardam estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias e, portanto, podem ser objeto de controle de constitucionalidade;
■ tese da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos (Gilmar Mendes): embora tenham o condão de “paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante” (voto no RE 466.343), podem sofrer controle de constitucionalidade, já que devem respeito ao princípio da supremacia da Constituição;
■ tratados e convenções internacionais de outra natureza: podem ser objeto de controle e têm força de lei ordinária.
O STF, por 5 x 4, em 03.12.2008, no julgamento do RE 466.343, decidiu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, se não incorporados na forma do art. 5.º, § 3.º (quando teriam natureza de norma constitucional), têm natureza de normas supralegais, paralisando, assim, a eficácia de todo o ordenamento infraconstitucional em sentido contrário.123
Dessa forma, como diversos documentos internacionais de que o Brasil é signatário não mais admitem a prisão do depositário infiel (por exemplo, o art. 7.º, § 7.º, do Pacto de São José da Costa Rica, o art. 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana), a única modalidade de prisão civil a prevalecer na realidade brasileira é a do devedor de alimentos.
Com o máximo respeito, acompanhamos a divergência na linha do bem fundamentado voto do Min. Celso de Mello (natureza constitucional em razão da matéria, ampliando o conceito de “bloco de constitucionalidade” — cf. item 6.7.1.3).
Ademais, não conseguimos sustentar a manutenção de um documento que o STF declara acima da lei, mas abaixo da Constituição, contrariando o texto expresso que ainda persiste, no caso, o art. 5.º, LXVII.
Finalmente, entendemos prevalecer a afirmação exarada por Araujo e Nunes Júnior em relação à regra anterior, qual seja, a de que “o reconhecimento da inconstitucionalidade do decreto legislativo que ratifica um tratado internacional não torna o ajuste internacional nulo, mas apenas exclui o Brasil de seu cumprimento, sujeitando-o, no entanto, a sanções internacionais decorrentes do descumprimento”.124
De qualquer maneira, apesar dessas considerações doutrinárias, o STF, na prática, não vem aceitando mais a prisão civil do depositário infiel, entendimento este, agora, materializado na SV 25/2009 (DJE de 23.12.2009): “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.
Já observamos, ao tratar do poder constituinte, que as normas constitucionais fruto do trabalho do poder constituinte originário serão sempre constitucionais, não se podendo falar em controle de sua constitucionalidade. Os aparentes conflitos devem ser harmonizados por meio da atividade interpretativa, de forma sistêmica.
Quanto ao trabalho dos poderes derivados, como visto, pode ser declarado inconstitucional, uma vez que referido poder é condicionado aos limites e parâmetros impostos pelo originário.
Nesse sentido, a jurisprudência do STF: “Ação direta de inconstitucionalidade. ADI. Inadmissibilidade. Art. 14, § 4.º, da CF. Norma constitucional originária. Objeto nomológico insuscetível de controle de constitucionalidade. Princípio da unidade hierárquico-normativa e caráter rígido da Constituição brasileira. Doutrina. Precedentes. Carência da ação. Inépcia reconhecida. Indeferimento da petição inicial. Agravo improvido. Não se admite controle concentrado ou difuso de constitucionalidade de normas produzidas pelo poder constituinte originário” (ADI 4.097-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 08.10.2008, DJE de 07.11.2008).
Apesar dessa posição firme do STF (a ser adotada em fases preambulares), em eventual discussão em banca de concurso,125 é interessante que o ilustre candidato proponha uma releitura desse entendimento, especialmente diante dos grandes princípios do bem comum, do direito natural, da moral e da razão, afastando-se a perspectiva rígida de uma “onipotência do poder constituinte” e na linha de consagração do princípio da proibição do retrocesso em relação aos direitos fundamentais.126
Em anotação ao regimento interno do STF (fonte Internet), lembrou-se o entendimento de que não cabe ADI para questionar validade de lei revogada na vigência de regime constitucional anterior.127 Então, como deverá ser a verificação da constitucionalidade de lei ou ato normativo anterior à Constituição?
Como dissemos, todo ato normativo anterior à Constituição (“AC”) não pode ser objeto de controle. O que se verifica é se foi ou não recepcionado pelo novo ordenamento jurídico. Quando for compatível, será recebido, recepcionado. Quando não, não será recepcionado e, portanto, será revogado pela nova ordem, não se podendo falar em inconstitucionalidade superveniente.128 Assim, somente os atos editados depois da constituição (“DC”) é que poderão ser questionados perante o STF, através do controle de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade). Vejamos o esquema:
Para maior entendimento do tema, confrontar o por nós exposto (item 6.7.3) sobre o fenômeno da recepção com a arguição de descumprimento de preceito fundamental, estabelecida no art. 102, § 1.º, da CF/88, regulamentada pela Lei n. 9.882/99, que permitiu o controle de atos normativos anteriores à Constituição (AC).
Resta saber se o STF entende ser possível a modulação dos efeitos da decisão em sede de declaração de não recepção da lei pré-constitucional pela norma constitucional superveniente, aplicando-se, por analogia, o art. 27 da Lei n. 9.868/99.
Em alguns julgados que encontramos, na relatoria do Min. Celso de Mello, não foi admitida a modulação dos efeitos (cf. RE-AgR 353.508, j. 15.07.2007). Contudo, em divergência, o Min. Gilmar Mendes consignou a sua posição como sendo perfeitamente possível. Nesse caso, cf. AI 582.280 AgR, voto do Min. Celso de Mello, j. 12.09.2006, DJ de 06.11.2006 — íntegra do voto no Inf. 442/STF.
Parece-nos com razão o Min. Gilmar Mendes, até porque a Corte já admitiu a teoria da lei ainda constitucional no caso da ação civil ex delicto, que será analisada no item 6.7.1.6.1.2.
Em momento seguinte, devemos registrar, superando o entendimento anterior (vamos acompanhar se esse novo posicionamento vai se firmar na nova composição do STF — matéria pendente), a Corte reconheceu, expressamente, a possibilidade de modulação dos efeitos de não recepção de ato normativo editado antes de 1988 (cf. RE 600.885, j. 09.02.2011 — cf. item 13.6.3).
De modo geral, o STF afirma que, em razão da inexistência de densidade jurídico-material (densidade normativa), os atos estatais de efeitos concretos não estão sujeitos ao controle abstrato de constitucionalidade (STF, RTJ 154/432), na medida em que a ação direta de inconstitucionalidade não constitui sucedâneo da ação popular constitucional.
Assim, em um momento inicial, o STF passou a decidir no sentido de não se conhecer “... de ação direta de inconstitucionalidade contra atos normativos de efeitos concretos”. No caso, tratava-se da Lei n. 11.744/2002, do Estado do Rio Grande do Sul, que declarava como bens integrantes do patrimônio cultural e histórico estadual o prédio e a destinação do Quartel General da Brigada Militar em Porto Alegre (ADI 2.686-RS, Rel. Min. Celso de Mello, 03.10.2002, Inf. 284/STF).
A Corte mantinha o entendimento de que, “... só constitui ato normativo idôneo a submeter-se ao controle abstrato da ação direta aquele dotado de um coeficiente mínimo de abstração ou, pelo menos, de generalidade. Precedentes (v.g. ADI 767, Rezek, de 26.08.92, RTJ 146/483; ADI 842, Celso, DJ 14.05.93)” (ADI 1.937-MC/QO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20.06.2007, DJ de 31.08.2007).
CUIDADO: o STF, contudo, modificou o seu posicionamento. Trata-se de votação bastante apertada e em sede de medida cautelar (e por isso temos de acompanhar mais essa evolução da jurisprudência) que distingue o ato de efeito concreto editado pelo Poder Público sob a forma de lei do ato de efeito concreto não editado sob a forma de lei.
Portanto, mesmo que de efeito concreto, se o ato do Poder Público for materializado por lei (ou medida provisória, no caso a que abre créditos extraordinários, cf. item 9.14.4.7), poderá ser objeto do controle abstrato.
O STF, modificando o seu entendimento, destacou que “essas leis formais decorreriam ou da vontade do legislador ou do próprio constituinte, que exigiria que certos atos, mesmo que de efeito concreto, fossem editados sob a forma de lei. Assim, se a Constituição submeteu a lei ao processo de controle abstrato, meio próprio de inovação na ordem jurídica e instrumento adequado de concretização da ordem constitucional, não seria admissível que o intérprete debilitasse essa garantia constitucional, isentando um grande número de atos aprovados sob a forma de lei do controle abstrato de normas e, talvez, de qualquer forma de controle. Aduziu-se, ademais, não haver razões de índole lógica ou jurídica contra a aferição da legitimidade das leis formais no controle abstrato de normas, e que estudos e análises no plano da teoria do direito apontariam a possibilidade tanto de se formular uma lei de efeito concreto de forma genérica e abstrata quanto de se apresentar como lei de efeito concreto regulação abrangente de um complexo mais ou menos amplo de situações. Concluiu-se que, em razão disso, o Supremo não teria andado bem ao reputar as leis de efeito concreto como inidôneas para o controle abstrato de normas” (ADI 4.048-MC/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, 17.04.2008).
Tendo em vista que a decisão foi tomada em medida cautelar, repetimos, resta aguardar como se dará a evolução da jurisprudência do STF. Para se ter uma ideia, o PGR, em seu parecer encaminhado à ADI 4.047, cujo objeto é a MP n. 409/2007, que abriu crédito extraordinário de R$ 750 milhões em favor de diversos órgãos do Poder Executivo, entendeu que o STF não pode analisar ato de efeito concreto, pedindo, em razão de a votação ter sido bastante apertada (ADIs 4.048 e 4.049, vide também Inf. 527/STF), uma revisão da matéria, retomando o entendimento anterior que não admitia ADI tendo por objeto ato de efeito concreto (cf. Notícias STF, 06.01.2009) (matéria pendente de julgamento pelo STF).
Em dois julgamentos já realizados (ADI 4.048 e ADI 4.046), houve entendimento no sentido da prejudicialidade das ações por perda superveniente do objeto, uma vez que, nos termos do art. 167, § 2.º, os créditos extraordinários abertos ou já tinham sido utilizados ou perderam a sua vigência. De todo modo, podemos afirmar essa tendência de mudança da orientação da Corte de acordo com os julgamentos proferidos nas cautelares.
O STF não admite a interposição de ADI para atacar lei ou ato normativo revogado ou de eficácia exaurida, na medida em que “não deve considerar, para efeito do contraste que lhe é inerente, a existência de paradigma revestido de valor meramente histórico”.129
Em razão de não caber a ADI e nem mesmo a ADC (pelos motivos expostos e em razão da ambivalência dessas ações), tendo em vista o princípio da subsidiariedade (art. 4.º, § 1.º, da Lei n. 9.882/99 — cf. item 6.7.3.6), a Corte tem admitido o cabimento da ADPF contra ato normativo revogado ou com a sua eficácia exaurida (ADPF 77-MC, Rel. p/ o ac. Min. Teori Zavascki, j. 19.11.2014, Plenário, DJE de 11.02.2015).
Nessa hipótese, estando em curso a ação e sobrevindo a revogação (total ou parcial) da lei ou ato normativo, assim como a perda de sua vigência (o que acontece com a medida provisória), ocorrerá, por regra, a prejudicialidade da ação, por “perda do objeto”.130
Isso porque, segundo entendimento do STF, a declaração em tese de lei ou ato normativo não mais existente transformaria a ADI em instrumento de proteção de situações jurídicas pessoais e concretas (STF, Pleno, ADI 737/DF, Rel. Min. Moreira Alves). Esses questionamentos deverão ser alegados na via ordinária, ou seja, por intermédio do controle difuso de constitucionalidade.
Nesse sentido, “a superveniente revogação — total (ab-rogação) ou parcial (derrogação) — do ato estatal impugnado em sede de fiscalização normativa abstrata faz instaurar, ante a decorrente perda de objeto, situação de prejudicialidade, total ou parcial, da ação direta de inconstitucionalidade, independentemente da existência, ou não, de efeitos residuais concretos que possam ter sido gerados pela aplicação do diploma legislativo questionado” (ADI 2.010-QO/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno).131
No entanto, em sentido contrário, destacamos importante voto do Min. Gilmar Mendes, relator, no julgamento de questão de ordem na ADI 1.244, propondo a “... revisão da jurisprudência do STF (...) para o fim de admitir o prosseguimento do controle abstrato nas hipóteses em que a norma atacada tenha perdido a vigência após o ajuizamento da ação, seja pela revogação, seja em razão do seu caráter temporário, restringindo o alcance dessa revisão às ações diretas pendentes de julgamento e às que vierem a ser ajuizadas. O Min. Gilmar Mendes, considerando que a remessa de controvérsia constitucional já instaurada perante o STF para as vias ordinárias é incompatível com os princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição, salientou não estar demonstrada nenhuma razão de base constitucional a evidenciar que somente no âmbito do controle difuso seria possível a aferição da constitucionalidade dos efeitos concretos de uma lei. Após, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista da Ministra Ellen Gracie”.132
Mas cuidado, este não é, ainda, o entendimento pacificado no STF, que tem sustentado, em muitos precedentes e como regra, repita-se, a prejudicialidade da ação, conforme, por exemplo, no julgamento da ADI 514/PI, em 24.03.2008, Rel. Min. Celso de Mello (Inf. 499/STF) e em tantos outros casos.133
Destacamos, contudo, três importantes precedentes nos quais o STF superou a preliminar de prejudicialidade:
■ ADI 3.232: fraude processual;
■ ADI 3.306: fraude processual;
■ ADI 4.426: singularidades do caso.
Na ADI 3.232 (Rel. Min. Cezar Peluso, j. 14.08.2008, DJE de 03.10.2008), o STF afastou a prejudicialidade por se tratar de revogação da lei objetivo da ação apenas para frustrar o julgamento, especialmente por já estar pautada a ação. Entendeu o STF que se tratava de verdadeira fraude processual e, assim, superou a questão de ordem.
Nesse sentido, como sublinhou o Ministro Peluso, “... em conformidade com tese reafirmada em recente julgamento, de que foi Relator o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito — que o fato de a lei objeto da impugnação ter sido revogada, não diria, no curso dos processos, mas já quase ao cabo deles, não subtrai à Corte a jurisdição nem a competência para examinar a constitucionalidade da lei até então vigente e suas consequências jurídicas, que, uma vez julgadas procedentes as três ações, não seriam, no caso, de pouca monta” (ADI 3.232, cf. Inf. 515/STF).
Nessa mesma linha, o julgamento da preliminar na ADI 3.306 ao estabelecer que, “configurada a fraude processual com a revogação dos atos normativos impugnados na ação direta, o curso procedimental e o julgamento final da ação não ficam prejudicados” (ADI 3.306, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.03.2011, Plenário, DJE de 07.06.2011).
Finalmente, no outro precedente, qual seja, no julgamento da ADI 4.426, singularidades do caso justificaram o excepcional afastamento da jurisprudência atual que adota a regra da prejudicialidade da ação, na medida em que houve “impugnação em tempo adequado e a sua inclusão em pauta antes do exaurimento da eficácia da lei temporária impugnada, existindo a possibilidade de haver efeitos em curso” (ADI 4.426, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 09.02.2011, Plenário, DJE de 18.05.2011. Cf. também a ADI 4.356).
Dessa forma, como se verifica na análise do item seguinte, o STF parece estar “cedendo” à proposta do Min. Gilmar Mendes de se rever o entendimento de prejudicialidade, especialmente em razão da análise da situação concreta (vide ADI 2.158 e ADI 2.189). (Na preparação para a prova, sugerimos que o nosso ilustre leitor certifique-se de não ter havido modificação do atual posicionamento do STF no sentido da prejudicialidade.)
Prevalece o entendimento no STF de que, havendo alteração no parâmetro constitucional invocado (no caso, por emenda constitucional), e já proposta a ADI, esta deve ser julgada prejudicada em razão da perda superveniente de seu objeto (já que a emenda constitucional, segundo a Corte, revoga a lei infraconstitucional em sentido contrário e que era o objeto da ADI).
Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello aduz que “... a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desde o regime constitucional anterior, tem proclamado que tanto a superveniente revogação global da Constituição da República (RTJ 128/515, 130/68, 130/1002, 135/515 e 141/786) quanto a posterior derrogação (ou alteração substancial) da norma constitucional (RTJ 168/436, 169/834, 169/920, 171/114, 172/54-55 e 179/419; ADI 296/DF, 595/ES, 905/DF, 906/PR, 1.120/PA, 1.137/RS, 1.143/AP, 1.300/AP, 1.510/SC e 1.885-QO/DF), por afetarem o paradigma de confronto invocado no processo de controle concentrado de constitucionalidade, configuram hipóteses caracterizadoras de prejudicialidade da ação direta ou da ação declaratória, em virtude da evidente perda de seu objeto...”.
Podemos citar dois exemplos nos quais se percebia essa orientação, ou seja, que a mudança de paradigma acarretava, por regra, a prejudicialidade da ADI previamente ajuizada:
a) revogação primitiva do art. 39, § 1.º, pela EC n. 19/98 — RTJ 172/789-90, Rel. Min. Sepúlveda Pertence:
“... II. Controle direto de inconstitucionalidade: prejuízo. Julga-se prejudicada total ou parcialmente a ação direta de inconstitucionalidade no ponto em que, depois de seu ajuizamento, emenda à Constituição haja ab-rogado ou derrogado norma de Lei Fundamental que constituísse paradigma necessário à verificação da procedência ou improcedência dela ou de algum de seus fundamentos, respectivamente: orientação de aplicar-se no caso, no tocante à alegação de inconstitucionalidade material, dada a revogação primitiva do art. 39, § 1.º, CF/88, pela EC 19/98” (ADI 1.434/SP, Rel. Min. Sepúlveda, DJ de 25.02.2000).
b) alteração do art. 40, caput, pela EC n. 41/2003, agora permitindo a taxação dos inativos:
“EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Estadual 3.310/99. Cobrança de contribuição previdenciária de inativos e pensionistas. EC 41/2003. Alteração substancial do Sistema Público de Previdência. Prejudicialidade. 1. Contribuição previdenciária incidente sobre os proventos dos servidores inativos e dos pensionistas do Estado do Rio de Janeiro. Norma editada em data posterior ao advento da EC 20/98. Inconstitucionalidade da lei estadual em face da norma constitucional vigente à época da propositura da ação. 2. Superveniência da Emenda Constitucional 41/2003, que alterou o sistema previdenciário. Prejudicialidade da ação direta quando se verifica inovação substancial no parâmetro constitucional de aferição da regra legal impugnada. Precedentes. Ação direta de inconstitucionalidade julgada prejudicada” (ADI 2.197/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 02.04.2004, p. 8).
Nessas hipóteses (alteração do paradigma constitucional), na mesma linha do voto do Ministro Gilmar Mendes (questão de ordem na ADI 1.244, Inf. 305/STF), que busca rever a jurisprudência já pacificada do STF em relação à superveniente revogação de lei objeto da ADI, entendíamos ser razoável a continuidade da ação para a fixação da amplitude dos efeitos produzidos, especialmente na hipótese de inconstitucionalidade do objeto da ação.
CUIDADO — mudança de entendimento pelo STF para se evitar a inadmitida constitucionalidade superveniente da lei objeto da ADI (15.09.2010).
Entretanto, no julgamento da questão de ordem na ADI 2.158, o STF rejeitou a preliminar de prejudicialidade, mesmo tendo havido a alteração no parâmetro de confronto.
No caso concreto, discutia-se lei do Estado do Paraná que, antes da novidade introduzida pela EC n. 41/2003, estabelecia a taxação dos inativos.
Como se sabe, a possibilidade de taxação dos inativos foi introduzida somente com o advento da EC n. 41/2003 (Reforma da Previdência), e não na redação original da Constituição.
Assim, antes da modificação introduzida pela EC n. 41/2003, nenhum ato normativo, mesmo na vigência das regras trazidas pela EC n. 20/98, poderia prescrever a taxação dos inativos.
Por esse motivo, toda lei que eventualmente assim disciplinasse, como foi o caso do Paraná, conteria vício congênito de inconstitucionalidade e, portanto, teria “nascido morta”.
A partir do momento que a EC n. 41/2003 passou a admitir a taxação dos inativos (anteriormente não admitida, já que inconstitucional), foi como se a referida lei, ainda no ordenamento, pudesse ser “recebida” pela nova emenda, já que com ela (a nova regra trazida por emenda) adequada.
Como, porém, o STF não admite o fenômeno da constitucionalidade superveniente, por esse motivo a referida lei, que nasceu inconstitucional, deve ser nulificada perante a regra da Constituição que vigorava à época de sua edição (princípio da contemporaneidade).
Dessa forma, examinando a situação do caso concreto, e modificando o seu entendimento, o STF não admitiu o pedido de prejudicialidade, analisando a constitucionalidade da lei à luz da regra constitucional que à época vigorava (ADI 2.158 e ADI 2.189, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 15.09.2010, Plenário, DJE de 16.12.2010).
O STF entendeu não caracterizar situação de controle de constitucionalidade, na medida em que a simples divergência entre a ementa da lei e o seu conteúdo não seria suficiente para configurar afronta à Constituição (STF, Pleno, ADI 1.096-4, medida liminar, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 1, de 22.09.1995, p. 30589).
Julgou o STF não configurarem objeto de ADI as respostas emitidas pelo TSE às consultas que lhe forem endereçadas, na medida em que referidos atos não possuem “eficácia vinculativa aos demais órgãos do Poder Judiciário” (STF, ADI 1.805-MC/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, Inf. 104/STF), tratando-se de ato de caráter administrativo.
De modo geral, o STF entendia que as leis orçamentárias, ou a lei de diretrizes orçamentárias, não poderiam ser objeto de controle, já que se tratava de leis com efeito concreto, ato administrativo em sentido material, vale dizer, leis com objeto determinado e destinatário certo (cf. Inf. 99, ADI(QO) 1.640; Inf. 175/STF, ADI 2.100).
Em uma jurisprudência inicial, o STF decidiu que, se demonstrado “um certo grau de abstração e generalidade” da lei, seria admitido o controle em abstrato mediante a ADI. Como exemplo citamos os Informativos STF ns. 255 e 333 (ADI 2.925), este último no qual se discutia a abstração da norma que tratava da “suplementação de crédito para reforço de dotações vinculadas aos recursos da CIDE-Combustíveis”.
Evoluindo a jurisprudência (cf. itens 6.7.1.2.5 e 6.7.1.2.10), o STF passou a admitir o controle de constitucionalidade das leis orçamentárias. Confira: “Controle abstrato de constitucionalidade de normas orçamentárias. Revisão de jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. (...) Medida cautelar deferida. Suspensão da vigência da Lei n. 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008” (ADI 4.048-MC, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.05.2008, DJE de 22.08.2008). No mesmo sentido: ADI 4.049-MC, cf. Inf. 527/STF.
Isso porque a lei orçamentária é um ato de efeito concreto na aparência, já que, como decidido, para que seja executada, dependerá da edição de muitos outros atos, estes, sim, de efeito concreto.
Observamos que a abertura de crédito extraordinário pode, segundo o STF, ser comparada à lei orçamentária e, assim, mesmo que por MP, vir a ser o ato questionado por ADI (cf. ADI 4.048 e 4.049, Infs. 502, 506 e 527/STF e discussão da matéria no item 9.14.4.7).
Conforme alertado, considerando que a decisão foi tomada em medida cautelar, resta aguardar a evolução da jurisprudência do STF. Relembre-se que o PGR, em seu parecer encaminhado à ADI 4.047, entendeu que o STF não pode analisar ato de efeito concreto, pedindo, tendo em conta que a votação foi bastante apertada (ADIs 4.048 e 4.049, vide também Inf. 527/STF), uma revisão da matéria, retomando o entendimento anterior que não admitia ADI tendo por objeto ato de efeito concreto (cf. Notícias STF, 06.01.2009) (matéria pendente de julgamento pelo STF).
Cumpre repetir aqui que, em dois julgamentos já realizados (ADI 4.048 e ADI 4.046), entendeu-se pela prejudicialidade das ações por perda superveniente do objeto. Isso porque, nos termos do art. 167, § 2.º, os créditos extraordinários abertos ou já tinham sido utilizados ou perderam a sua vigência. Assim, podemos afirmar essa tendência de mudança da orientação da Corte de acordo com os julgamentos proferidos nas cautelares.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (art. 103-B, § 4.º), bem como o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) (art. 103-A, § 2.º), introduzidos pela Reforma do Poder Judiciário (EC n. 45/2004), no exercício de suas atribuições constitucionais e regimentais, podem elaborar resoluções.
Algumas dessas resoluções, segundo o STF, são dotadas da qualidade da generalidade, impessoalidade e abstração (cf., por exemplo, ambas do CNJ, a Res. n. 7/2005 — que proíbe o nepotismo — e a Res. n. 175/2013 — que veda às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo).
Nessas situações, o STF vem reconhecendo a natureza jurídica de ato normativo primário dessas resoluções, que inovam a ordem jurídica a partir de parâmetros constitucionais e, assim, permitem o controle concentrado por meio de ADI genérica.134
Veda-se, portanto, de acordo com a jurisprudência da Corte, a impetração de mandado de segurança para o questionamento desses atos normativos primários, com fundamento na S. 266/STF, por se tratar de “lei” em tese.
O tema discutido nos autos da ADI 3.202 (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 05.02.2014, Plenário, DJE de 21.05.2014) é bastante interessante. Diversos servidores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte conseguiram, quer administrativa quer judicialmente, determinada gratificação por trabalho científico, técnico ou administrativo que exija conhecimento especial.
Partindo desses precedentes paradigmáticos, com base no princípio da isonomia, dois servidores fizeram pedido administrativo perante o Tribunal de Justiça objetivando a mesma gratificação, já que estavam em situação idêntica àquela das pessoas que tiveram o seu reconhecimento.
Inicialmente, o pedido foi indeferido. Interposto agravo regimental no Processo Administrativo n. 102.138/2003, o Plenário do TJRN deu provimento para conferir aos agravantes (2 servidores) a gratificação e, extrapolando o pedido, também com base no princípio da isonomia, “determinou a extensão desse benefício aos servidores que se encontravam em níveis correspondentes àqueles que obtiveram idêntica vantagem”.
Então foi posta a questão preliminar: a decisão proferida no agravo regimental no referido processo administrativo que estendeu os efeitos para todos os servidores em situação idêntica pode ser objeto de controle abstrato de constitucionalidade por meio de ADI genérica? Estamos diante de ato administrativo normativo genérico?
A Corte, por 9 x 1, entendeu que sim e, portanto, a extensão poderia ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade por meio da ADI genérica, já que, como bem colocou o Min. Celso de Mello, trata-se de “ato impregnado de suficiente densidade normativa, considerados os aspectos de generalidade abstrata e de impessoalidade que o tipificam” (fls. 32 do acórdão).
Conforme a ementa da ADPF 45 (de indispensável leitura): “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)” (Inf. 345/STF).
Há de se verificar, portanto, no caso concreto, a “razoabilidade da pretensão” e a “disponibilidade financeira” do Estado para a implementação da política pública via controle do STF. Assim, a violação aos direitos mínimos tem de ser evidente e arbitrária, como o desvio do dinheiro destinado ao ensino e à saúde (art. 34, VII, “e”) para a construção de uma obra de embelezamento; ou, ainda, o veto do Executivo a dispositivo da lei orçamentária anual que destine dinheiro do fundo de erradicação da pobreza proveniente da extinta CPMF para finalidade distinta.
O tema proposto foi muito bem explorado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 595-ES (Inf. 258/STF) e de indispensável leitura pelo candidato vitorioso!
No referido julgamento fixa-se, com precisão, a ideia de dois elementos essenciais para se falar em controle de constitucionalidade.
O primeiro, para o ilustre Ministro, denominado elemento conceitual, “... consiste na determinação da própria ideia de Constituição e na definição das premissas jurídicas, políticas e ideológicas que lhe dão consistência”. O outro, “o elemento temporal, cuja configuração torna imprescindível constatar se o padrão de confronto, alegadamente desrespeitado, ainda vige, pois, sem a sua concomitante existência, descaracterizar-se-á o fator de contemporaneidade, necessário à verificação desse requisito”.
O elemento temporal já foi analisado tanto no tocante à revogação de lei (cuja constitucionalidade está sendo questionada, qual seja, o objeto da ação), como na hipótese de alteração do parâmetro constitucional invocado (em relação ao qual se afere a compatibilidade vertical) (cf. itens 6.7.1.2.12 e 6.7.1.2.13).
Em relação ao elemento conceitual, a ideia é identificar o que deve ser entendido como parâmetro de constitucionalidade. Trata-se de nítido processo de aferição da compatibilidade vertical das normas inferiores em relação ao que foi considerado como “modelo constitucional” (vínculo de ordem jurídica, tendo em vista o princípio da supremacia da Constituição — paradigma de confronto).
Nesse sentido, duas posições podem ser encontradas. Uma ampliativa (englobando não somente as normas formalmente constitucionais como, também, os princípios não escritos da “ordem constitucional global” e, inclusive, valores suprapositivos) e outra restritiva (o parâmetro seriam somente as normas e princípios expressos da Constituição escrita e positivada).
Quanto à perspectiva ampliativa, o Ministro Celso de Mello (Inf. 258/STF) vislumbra possam ser “... considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado”.
E completa: “não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, certa vez, e para além de uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar — distanciando-se, então, das exigências inerentes ao positivismo jurídico — que a Constituição da República, muito mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser também entendida em função do próprio espírito que a anima, afastando-se, desse modo, de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual (RTJ 71/289, 292 e 77/657)”.
Diante de todo o exposto, busca-se fixar, com clareza para o direito brasileiro, o conceito de bloco de constitucionalidade, qual seja, o que deverá servir de parâmetro para que se possa realizar a confrontação e aferir a constitucionalidade.135
A tendência ampliativa parece-nos tímida na jurisprudência brasileira, que adotou, do ponto de vista jurídico, a ideia de supremacia formal, apoiada no conceito de rigidez constitucional e na consequente obediência aos princípios e preceitos decorrentes da Constituição.
Nesse sentido, Bernardes observa que “... no direito brasileiro prevalece a restrição do parâmetro direto de controle — que aqui poderia ser chamado de bloco de constitucionalidade em sentido estrito — às normas contidas, ainda que não expressamente, em texto constitucional (normas formalmente constitucionais)”.136
Com o advento da EC n. 45/2004 pode-se asseverar ter havido ampliação do “bloco de constitucionalidade” na medida em que se passa a ter um novo parâmetro (norma formal e materialmente constitucional) — os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em 2 turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais,137 nos termos do art. 5.º, § 3.º, da CF/88.
Outro exemplo interessante é a EC n. 91/2016, que, sem introduzir qualquer artigo, seja no corpo ou mesmo no ADCT, alterou regra sobre perda do mandato eletivo por infidelidade partidária, estabelecendo a possibilidade, excepcional e em período determinado, de desfiliação, sem prejuízo do mandato (cf. item 18.5).
O STF vinha atribuindo efeito vinculante não somente ao dispositivo da sentença, mas, também, aos fundamentos determinantes da decisão.
Falava-se, então, em transcendência dos motivos determinantes, ou efeitos irradiantes ou transbordantes dos motivos determinantes.
Há de se observar, inicialmente, a distinção entre ratio decidendi e obter dictum.
Obter dictum (“coisa dita de passagem”) ou simplesmente dictum são comentários laterais, que não influem na decisão, sendo perfeitamente dispensáveis. Portanto, aceita a “teoria do transbordamento”, não se falaria em irradiação de obter dictum, com efeito vinculante, para fora do processo. Por outro lado, a ratio decidendi, sendo holding a denominação mais usual na experiência norte-americana,138 é a fundamentação essencial que ensejou aquele determinado resultado da ação. Nessa hipótese, aceita a “teoria dos efeitos irradiantes”, a “razão da decisão” passaria a vincular outros julgamentos.
Como exemplo, no julgamento da ADI 3.345/DF, que declarou constitucional a Resolução do TSE que reduziu o número de vereadores de todo o país, o STF entendeu que a Suprema Corte conferiu “... efeito transcendente aos próprios motivos determinantes que deram suporte ao julgamento plenário do RE 197.917”.
Sobre a transcendência dos motivos determinantes, cf. Rcl 2.986 MC/SE (Inf. 379/STF) e Rcl 2.475 (Inf. 335/STF), com os comentários já feitos em relação ao controle difuso (cf. item 6.6.5).
CUIDADO: no julgamento da Rcl 10.604 (08.09.2010), o STF afastou a técnica do transbordamento dos motivos determinantes.
Em referido julgado, há referência à questão de ordem na Rcl 4.219, na qual se sinaliza a manifestação de 6 Ministros contra a teoria da transcendência.
Trata-se de verdadeira jurisprudência defensiva, no sentido de se evitar o número crescente de reclamações.
Com o máximo respeito, não parece razoável desprezar a teoria da transcendência no controle concentrado, já que a tese jurídica terá sido resolvida e o dispositivo deve ser lido, em uma perspectiva moderna, à luz da fundamentação (lembrando que somos contra a teoria da transcendência no controle difuso, cf. item 6.6.5).
De qualquer forma (e teremos que acompanhar essa tendência de não aceitação da teoria do transbordamento — matéria pendente de apreciação específica pelo Plenário em sua atual composição), nas palavras do relator Min. Ayres Britto, “... no julgamento da Rcl 4.219, esta nossa Corte retomou a discussão quanto à aplicabilidade dessa mesma teoria da ‘transcendência dos motivos determinantes’, oportunidade em que deixei registrado que tal aplicabilidade implica prestígio máximo ao órgão de cúpula do Poder Judiciário e desprestígio igualmente superlativo aos órgãos da judicatura de base, o que se contrapõe à essência mesma do regime democrático, que segue lógica inversa: a lógica da desconcentração do poder decisório. Sabido que democracia é movimento ascendente do poder estatal, na medida em que opera de baixo para cima, e nunca de cima para baixo. No mesmo sentido, cinco ministros da Casa esposaram entendimento rechaçante da adoção do transbordamento operacional da reclamação, ora pretendido. Sem falar que o Plenário deste Supremo Tribunal Federal já rejeitou, em diversas oportunidades, a tese da eficácia vinculante dos motivos determinantes das suas decisões (cf. Rcl 2.475-AgR, da relatoria do ministro Carlos Velloso; Rcl 2.990-AgR, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence; Rcl 4.448-AgR, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski; Rcl 3.014, de minha própria relatoria)” (Min. Ayres Britto, 08.09.2010). (Cf., ainda, nesse mesmo sentido, decisão da 1.ª T. do STF, Rcl 11.477-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.05.2012, Inf. 668/STF.)
Esse importante tema aparece intimamente ligado aos limites objetivos da coisa julgada e à produção dos efeitos erga omnes.139
Pela referida teoria da inconstitucionalidade por “arrastamento” ou “atração”, ou “inconstitucionalidade consequente de preceitos não impugnados”, ou “inconstitucionalidade por reverberação normativa”, se em determinado processo de controle concentrado de constitucionalidade for julgada inconstitucional a norma principal, em futuro processo, outra norma dependente daquela que foi declarada inconstitucional em processo anterior — tendo em vista a relação de instrumentalidade que entre elas existe — também estará eivada pelo vício de inconstitucionalidade “consequente”, ou por “arrastamento” ou “atração”.
Poder-se-ia pensar, nesse ponto, que a consequência prática da coisa julgada material, que se projeta para fora do processo, impediria não só que a mesma pretensão fosse julgada novamente, como também, sob essa interessante perspectiva, que a norma consequente e dependente ficasse vinculada tanto ao dispositivo da sentença (principal) quanto à ratio decidendi, invocando, aqui, a “teoria dos motivos determinantes”.
Esses dois temas no âmbito do controle de constitucionalidade vislumbram uma perspectiva erga omnes para os limites objetivos da coisa julgada, em importante avanço em relação à teoria clássica.140
Naturalmente, essa técnica da declaração de inconstitucionalidade por arrastamento pode ser aplicada tanto em processos distintos como em um mesmo processo, situação que vem sendo verificada com mais frequência na jurisprudência do STF.
Ou seja, já na própria decisão, a Corte define quais normas são atingidas, e no dispositivo, por “arrastamento”, também reconhece a invalidade das normas que estão “contaminadas”, mesmo na hipótese de não haver pedido expresso na petição inicial.
Essa “contaminação”, ou, mais tecnicamente, perda de validade, pode ser reconhecida, também, em relação a decreto que se fundava em lei declarada inconstitucional. Então, o STF vem falando em inconstitucionalidade por arrastamento do decreto que se fundava na lei (cf., por exemplo, ADI 2.995/PE, Rel. Min. Celso de Mello, 13.12.2006).141 Interessante observar que o decreto regulamentar, por si, conforme visto, não pode ser isoladamente objeto de ADI, na medida em que deve ser confrontado com a lei (que regulamenta), e não diretamente perante a Constituição. A crise é de legalidade e apenas de modo indireto, reflexo ou oblíquo é que poderia haver violação da Constituição. Pela técnica do arrastamento, contudo, a declaração de sua invalidade dar-se-á no julgamento da própria ADI.
Em outro julgado, declarada a inconstitucionalidade de um dispositivo, os outros que estavam na mesma lei e que tinham relação com aquele nulificado, por perderem a sua razão de ser, foram também declarados inconstitucionais, de acordo com aquilo que o Min. Ayres Britto denominou inconstitucionalidade por reverberação normativa (cf. voto do Min. Ayres Britto proferido na ADI 1.923 — Inf. 622/STF — e na ADI 4.357 — Inf. 643/STF).
Essa reverberação, sem dúvida, deve ser reconhecida entre normas interconectadas por uma relação hierárquica, observando-se, assim, um arrastamento no plano vertical. Dessa forma, por exemplo, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma de determinada Constituição estadual implicaria o reconhecimento da perda de validade das normas hierarquicamente inferiores e que se fundavam naquele dispositivo.
O instituto do “arrastamento” é, sem dúvida, exceção à regra de que o juiz deve ater-se aos limites da lide fixados na exordial, especialmente em virtude da correlação, conexão ou interdependência dos dispositivos legais e do caráter político do controle de constitucionalidade realizado pelo STF.142 Estamos diante de inegável revisitação da regra da congruência (ou correlação) entre o pedido e a sentença (arts. 128 e 460 do CPC/73 — arts. 141 e 492, CPC/2015), decorrentes do princípio dispositivo e que devem ser analisados sob esse novo e particular aspecto do processo objetivo.
O art. 5.º, LXXIV, da CF/88 dispõe que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Esse direito e garantia fundamental instrumentaliza-se por meio da Defensoria Pública, instituída pela CF/88, amplificada pela EC n. 80/2014 (art. 134, caput) e organizada em carreira própria nos seguintes termos: instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5.º da Constituição Federal.
Pelo fato de ter sido instituída pela Constituição de 1988, a Defensoria Pública tem de ser efetivamente instalada, seja em âmbito federal, seja em âmbito estadual ou distrital, o que leva certo tempo.
Esse comando que se extrai desde a sua previsão no texto de 1988 é fortalecido pela EC n. 80/2014. Ao acrescentar o art. 98 ao ADCT e prescrever que o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população, fixa-se o prazo de 8 anos para que a União, os Estados e o Distrito Federal passem a contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais.
Durante o decurso desse prazo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.
O que fazer, então, durante esse período de transição, necessário para a efetiva instalação da Defensoria Pública?
Para analisar o tema, trouxemos duas questões práticas já enfrentadas pelo STF: a) a previsão de prazo em dobro para a Defensoria Pública no processo penal; b) a ação civil ex delicto ajuizada pelo MP depois do advento da CF/88.
Nos termos dos arts. 44, I, 89, I, e 128, I, da LC n. 80/94, é prerrogativa dos membros da Defensoria Pública receber intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição, contando-se-lhes em dobro todos os prazos.143
Em relação ao processo civil, a regra não sofreu nenhuma repreensão por parte do STF, até porque há equivalente para o MP (e a Fazenda Pública), conforme o art. 188 do CPC/73 (cf. arts. 180, 183 e 186, CPC/2015).
No tocante ao processo penal, contudo, na medida em que o MP não goza dessa prerrogativa de prazo em dobro, questionou-se se, de fato, a regra poderia ser estabelecida para a Defensoria Pública quando atua como defensora em acusação formulada pelo MP, especialmente em relação ao princípio da isonomia e ao do devido processo legal.
O STF, ao analisar o tema do prazo em dobro para o processo penal, entendeu que referida regra é constitucional até que a Defensoria Pública efetivamente se instale.
Assim, o prazo em dobro para o processo penal só valerá enquanto a Defensoria Pública ainda não estiver eficazmente organizada. Quando isso se verificar, a regra tornar-se-á inconstitucional. Trata-se, portanto, de norma em trânsito para a inconstitucionalidade.
Nesse sentido, confira o precedente HC 70.514, j. 23.03.1994: “EMENTA: Direito Constitucional e Processual Penal. Defensores Públicos: prazo em dobro para interposição de recursos (§ 5.º do art. 1.º da Lei n. 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n. 7.871, de 08.11.1989). Constitucionalidade. ‘Habeas Corpus’. Nulidades. Intimação pessoal dos Defensores Públicos e prazo em dobro para interposição de recursos. 1. Não é de ser reconhecida a inconstitucionalidade do § 5.º do art. 1.º da Lei n. 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n. 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública...” (grifamos).
Interessante, também, o voto do Ministro Moreira Alves, que pedimos vênia para transcrever: “a única justificativa que encontro para esse tratamento desigual em favor da Defensoria Pública em face do Ministério Público é a de caráter temporário: a circunstância de as Defensorias Públicas ainda não estarem, por sua recente implantação, devidamente aparelhadas como se acha o Ministério Público. Por isso, para casos como este, parece-me deva adotar-se a construção da Corte Constitucional alemã no sentido de considerar que uma lei, em virtude das circunstâncias de fato, pode vir a ser inconstitucional, não o sendo, porém, enquanto essas circunstâncias de fato não se apresentarem com a intensidade necessária para que se tornem inconstitucionais. Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a Defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar” (grifamos).
O art. 68 do CPP estabelece: “quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1.º e 2.º), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público”.
Retorna-se então à dúvida: o art. 68 do CPP previu a ação civil ex delicto, que deve ser ajuizada pelo MP. Essa atribuição, no entanto, a partir de 1988, passou a ser da Defensoria Pública, seja em razão de sua previsão constitucional (art. 134), seja em razão da regra contida no art. 129, IX, que autoriza o MP a exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com a sua finalidade, vedando, assim, a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
Então, pelo exposto, o art. 68 do CPP teria sido revogado, por não recepção, pelo texto de 1988.
A Defensoria Pública, por sua vez, não se instalou efetivamente logo após a promulgação da CF/88. Para se ter um argumento, só a partir da Reforma do Judiciário (EC n. 45/2004) é que a Defensoria Pública Estadual passou a ter autonomia funcional e administrativa, e a autonomia da Defensoria Pública do DF veio a ser reconhecida apenas na EC n. 69/2012, já que antes organizada e mantida pela União. Ainda, foi somente com a EC n. 74/2013 que a Defensoria Pública da União, por sua vez, passou a ter autonomia (art. 134, § 3.º, CF/88) e, finalmente, com a EC n. 80/2014, houve sensível potencialização da instituição, fixando-se prazo para sua efetiva instalação nos termos do art. 98 do ADCT (cf. item 12.6).
Portanto, vem o STF entendendo, de maneira acertada, que o art. 68 do CPP é uma lei ainda constitucional e que está em trânsito, progressivamente, para a “inconstitucionalidade”, à medida que as Defensorias Públicas forem sendo, efetiva e eficazmente, instaladas.
Apenas deixamos um alerta de que a terminologia utilizada pela Suprema Corte não é a mais adequada, uma vez que, por se tratar de ato editado antes de 1988 (art. 68 do CPP), referido dispositivo seria revogado por não recepção. Trata-se, assim, em razão das circunstâncias, de reconhecida modulação do momento de revogação do ato, e por isso a denominamos lei ainda constitucional e em trânsito para revogação por não recepção.
A técnica da “lei ainda constitucional”, conforme noticiado, está consagrada no STF:144 “Ministério Público: legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135.328): processo de inconstitucionalização das leis. 1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa, entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei, com fulminante eficácia ex tunc, faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada — subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a viabilizem. 2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal — constituindo modalidade de assistência judiciária — deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado — se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135328” (RE 147.776/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1.ª Turma, RTJ 175/309-310).