9.9. Imunidades parlamentares

9.9.1. Aspectos introdutórios

Imunidades parlamentares são prerrogativas inerentes à função parlamentar, garantidoras do exercício do mandato parlamentar, com plena liberdade.

Segundo Michel Temer, “garante-se a atividade do parlamentar para garantir a instituição. Conferem-se a deputados e senadores prerrogativas com o objetivo de lhes permitir desempenho livre, de molde a assegurar a independência do Poder que integram”.27

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Referidas prerrogativas, como veremos, dividem-se em dois tipos: a) imunidade material, real ou substantiva (também denominada inviolabilidade), implicando a exclusão da prática de crime, bem como a inviolabilidade civil, pelas opiniões, palavras e votos dos parlamentares (art. 53, caput); b) imunidade processual, formal ou adjetiva, trazendo regras sobre prisão e processo criminal dos parlamentares (art. 53, §§ 2.º a 5.º, da CF/88).

Assim, importante notar que, em sua essência, as aludidas prerrogativas atribuí­das aos parlamentares, em virtude da função que exercem, tradicionalmente previstas em nossas Constituições, com algumas exceções nos movimentos autoritários, reforçam a democracia, uma vez que os parlamentares podem livremente expressar suas opiniões, palavras e votos, bem como estar garantidos contra prisões arbitrárias, ou mesmo rivalidades políticas.

As regras sobre imunidades parlamentares sofreram importantes alterações com o advento da EC n. 35, de 20.12.2001 (SF, PEC n. 2-A/1995 e CD PEC n. 610/98, com parecer favorável da CCJ n. 1.461, de 12.12.2001, Rel. Sen. José Fogaça), e passam a ser analisadas notadamente em relação ao processo criminal.28

9.9.2. Imunidade parlamentar federal

Nesse tópico, após a introdução e pequena sistematização do assunto, concentraremos a apresentação em relação às imunidades dos parlamentares federais, quais sejam, dos Deputados Federais e dos Senadores da República, de acordo com as regras fixadas na EC n. 35/2001, que alterou a redação do art. 53 da CF/88.

9.9.2.1. Imunidade material ou inviolabilidade parlamentar (art. 53, "caput")

Prevista no art. 53, caput, a imunidade material garante que os parlamentares federais são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, desde que proferidos em razão de suas funções parlamentares, no exercício e relacionados ao mandato (trata-se de manifestações que possuem nexo de casualidade com a atividade parlamentar), não se restringindo ao âmbito do Congresso Nacional. Assim, mesmo que um parlamentar esteja fora do Congresso Nacional, mas exercendo sua função parlamentar federal, em qualquer lugar do território nacional estará resguardado, não praticando qualquer crime por sua opinião, palavra ou voto.29

Segundo o STF, “... a inviolabilidade alcança toda manifestação do congressista onde se possa identificar um laço de implicação recíproca entre o ato praticado, ainda que fora do estrito exercício do mandato, e a qualidade de mandatário político do agente” (RE 210.917, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.08.1998, DJ de 18.06.2001; AI 493.632-AgR, Rel. Min. Carlos Britto, j. 13.11.2007, DJE de 14.03.2008).

Aqui, pedimos vênia para reproduzir interessante compilação doutrinária no que tange à natureza jurídica da inviolabilidade parlamentar. Diz Alexandre de Moraes: “dessa forma Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967), Nélson Hungria (Comentários ao Código Penal) e José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo) entendem-na como uma causa excludente de crime; Basileu Garcia (Instituições de direito penal), como causa que se opõe à formação do crime; Damásio de Jesus (Questões criminais), causa funcional de isenção de pena;30 Aníbal Bruno (Direito penal), causa pessoal e funcional de isenção de pena; Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal), causa de irresponsabilidade; José Frederico Marques (Tratado de direito penal), causa de incapacidade penal por razões políticas”.31

Não importa, pois, qual a denominação que se dê; o importante é saber que a imunidade material (inviolabilidade) impede que o parlamentar seja condenado, já que há ampla descaracterização do tipo penal, irresponsabilizando-o penal, civil, política e administrativamente (disciplinarmente). Trata-se de irresponsabilidade geral, desde que, é claro, tenha ocorrido o fato em razão do exercício do mandato e da função parlamentar.32

A imunidade material, mantida pela EC n. 35/2001, é sinônimo de democracia, representando a garantia de o parlamentar não ser perseguido ou prejudicado em razão de sua atividade na tribuna, na medida em que assegura a independência nas manifestações de pensamento e no voto.

E que fique claro: sustentamos que a imunidade parlamentar não é absoluta, assim como nenhum direito fundamental é absoluto. Em nosso entender, portanto, em situações excepcionalíssimas, determinadas opiniões, palavras e votos proferidos podem até caracterizar a prática de crime, já que o direito brasileiro não tolera o denominado hate speech (cf. item 14.10.5.1).

Mas cuidado: essa nossa opinião ainda não foi enfrentada pelo STF, e, assim, atenção para as provas de concursos. Os precedentes do STF no sentido de não se reconhecer a imunidade material são em situações desvinculadas da atividade parlamentar.

Conforme anotou o Min. Celso de Mello, “a cláusula de inviolabilidade constitucional, que impede a responsabilização penal e/ou civil do membro do Congresso Nacional, por suas palavras, opiniões e votos, também abrange, sob seu manto protetor, (1) as entrevistas jornalísticas, (2) a transmissão, para a imprensa, do conteúdo de pronunciamentos ou de relatórios produzidos nas Casas Legislativas e (3) as declarações feitas aos meios de comunicação social, eis que tais manifestações — desde que vinculadas ao desempenho do mandato — qualificam-se como natural projeção do exercício das atividades parlamentares. Doutrina. Precedentes” (Inq 2.874 — trecho da ementa).

E um outro ponto: é possível que determinado comportamento esteja acobertado pela imunidade material (criminal) mas que, por outro lado, caracterize-se como abuso de prerrogativa e, assim, venha a ensejar, no âmbito da Casa Legislativa, a perda do mandato por quebra de decoro parlamentar (art. 55, II).

Para exemplificar, podemos citar alguns comportamentos de determinados deputados federais durante a votação da autorização para instauração do processo de impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff (17.04.2016).

Nesse sentido, bem disse o Min. Barroso: “a imunidade cível e penal do parlamentar federal tem por objetivo viabilizar o pleno exercício do mandato. O excesso de linguagem pode configurar, em tese, quebra de decoro, a ensejar o controle político” (Pet 5.647, j. 22.09.2015, DJE de 26.11.2015).

9.9.2.2. Imunidade formal ou processual

A imunidade formal ou processual está relacionada à prisão dos parlamentares, bem como ao processo a ser instaurado contra eles. Devemos, então, saber quando os parlamentares poderão ser presos, bem como se será possível instaurar processo contra eles.

9.9.2.2.1. Imunidade formal ou processual para a prisão (art. 53, § 2.º). Perspectivas em razão do julgamento da AP 470 — “mensalão”

Os parlamentares passam a ter imunidade formal para a prisão a partir do momento que são diplomados pela Justiça Eleitoral, portanto, antes de tomarem posse (que seria o ato público e oficial mediante o qual o Senador ou Deputado se investiria no mandato parlamentar). A diplomação nada mais é que um atestado garantindo a regular eleição do candidato. Ocorre antes da posse, configurando o termo inicial para a atribuição da imunidade formal para a prisão.33

Nesse sentido, expresso é o art. 53, § 2.º, da CF/88, na redação determinada pela EC n. 35/2001: “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.

Isso posto, passamos a esquematizar melhor as regras sobre a prisão dos parlamentares federais, que poderá ser processual (art. 53, § 2.º), também chamada de cautelar, ou somente em razão de sentença judicial definitiva transitada em julgado

Deixando claro, não se caracterizando a hipótese de prisão processual ou cautelar, a única forma de prisão do parlamentar será em razão de sentença penal transitada em julgado e contra a qual não caibam mais recursos; nesse caso, sob pena de se violar o princípio da presunção de inocência (art. 5.º, LVII, da CF/88), segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Em relação à primeira, uma dúvida surge: a prisão processual, por sua vez, vio­laria o princípio da presunção de inocência?

Também não. Muito embora se reconheça o caráter excepcional da prisão processual, a Constituição, em seu art. 5.º, LXI, expressamente a admite, ao estabelecer que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”, bem como, ao prescrever, na vigência do estado de defesa, a possibilidade de decretação da prisão por crime contra o Estado pelo executor da medida, que deverá comunicá-la imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial (art. 136, § 3.º, I).

A) PRISÃO PROCESSUAL DOS PARLAMENTARES FEDERAIS

De acordo com a doutrina, a prisão processual divide-se em três: a) prisão em flagrante; b) prisão preventiva; c) prisão temporária.

Os parlamentares federais só poderão ser cautelarmente presos e colocados no cárcere na hipótese de flagrante de crime inafiançável.

Estamos diante daquilo que o Min. Celso de Mello denominou “estado de relativa incoercibilidade pessoal dos congressistas (freedom from arrest), que só poderão sofrer prisão provisória ou cautelar numa única e singular hipótese: situação de flagrância em crime inafiançável” (Inq. 510/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 1.º.02.1991, Plenário).

Nessa hipótese, de acordo com o art. 53, § 2.º, os autos deverão ser remetidos à Casa Parlamentar respectiva no prazo de 24 horas, para que, pelo voto da maioria absoluta de seus membros (quorum qualificado, cf. Inf. STF 28/96), resolva sobre a prisão.

Convém destacar que a votação dos congressistas não mais será secreta, conforme regra anterior à EC n. 35/2001, e sim pelo voto aberto, implementando-se, por meio dessa nova sistemática, a transparência que deve sempre imperar nesse tipo de votação.

A aprovação pela Casa, dessa forma, é condição necessária para a manutenção da prisão em flagrante delito de crime inafiançável (prisão processual ou cautelar) já realizada.

Portanto, se a Casa parlamentar decidir pela não manutenção do cárcere, a prisão deverá ser imediatamente “relaxada” (trata-se de decisão política e discricionária do Parlamento, que poderá assim resolver mesmo na hipótese de não se verificar qualquer ilegalidade, o que nos permite afirmar que a regra do art. 53, § 2.º, deve ser tida como especial em relação à regra geral do art. 5.º, LXV, da CF/88, que exige o requisito da ilegalidade para o relaxamento da prisão).34

Por outro lado, se a Casa mantiver a prisão em flagrante, entendemos que os autos deverão ser encaminhados, também no prazo de 24 horas (art. 306, § 1.º, do CPP), ao STF (no caso de parlamentares federais — art. 53, § 1.º, c/c o art. 102, I, “b”, da CF/88), para que, então, sejam cumpridas as regras do art. 310 do CPP35 (na redação dada pela nova lei de prisões — Lei n. 12.403/2011), relaxando a prisão ilegal ou convertendo a prisão em flagrante em prisão preventiva ou, ainda, concedendo, sempre de modo fundamentado, a liberdade provisória, com ou sem fiança.

B) PRISÃO DE PARLAMENTAR EM RAZÃO DE SENTENÇA JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO

Finalmente, temos de tratar da prisão em caso de sentença judicial transitada em julgado,36 tema que ganhou repercussão com o julgamento do “mensalão” (AP 470) e que deve ser analisado juntamente com a regra contida no art. 55, § 2.º, da CF/88, que cuida da perda do mandato.

Em um primeiro momento, em relação à perda do mandato,37 por 5 x 4, no julgamento da AP 470 (mensalão), em 17.12.2012, o STF entendeu ser automática em razão da condenação criminal transitada em julgado (“... todos os condenados por mais de 4 anos de reclusão ou cuja condenação diga respeito a ato de improbidade administrativa — o que ocorre nos crimes contra a administração pública, tais como peculato e corrupção passiva, deve implicar automaticamente a perda dos mandatos eletivos” — Notícias STF, 17.12.2012), aplicando-se a regra do art. 15, III, e afastando-se a incidência do art. 55, § 2.º.38

CUIDADO: em 08.08.2013, mudando esse entendimento, agora por 6 x 4, no julgamento da AP 565 (não votou o Min. Fux, impedido, em razão de ter apreciado o caso concreto quando era Min. do STJ), com a participação no julgamento de 2 novos Ministros que não haviam votado no caso do “mensalão” (Min. Barroso e Min. Teori Zavascki), o STF passou a estabelecer que a perda do mandato de parlamentar­ condenado não é automática, devendo ser observada a regra do art. 55, § 2.º, CF/88.

Por sua vez, no tocante à prisão em razão da sentença judicial transitada em julgado (ou seja, quando não mais couberem recursos), o Tribunal entendeu que as penas impostas poderão ser executadas imediatamente.

Em 13.11.2013, também analisando a AP 470, o STF admitiu a decretação parcial de trânsito em julgado, nas partes do acórdão que não mais admitissem recurso, considerando os seus capítulos autonomamente. Dessa forma, resolvendo questão de ordem, a Corte:

decretou, por unanimidade, “o trânsito em julgado e determinar a executo­rie­­dade imediata dos capítulos autônomos do acórdão condenatório, não impugnados por embargos infringentes, considerados os estritos limites do recurso”;

por maioria, excluiu “da execução imediata do acórdão as condenações já impugnadas por meio de embargos infringentes, considerados os estritos limites de cada recurso, por ainda pender o respectivo exame de admissibilidade”;

por maioria, admitiu “o trânsito em julgado e a execução imediata da pena em relação aos réus cujos segundos embargos declaratórios já teriam sido julgados nesta sessão. No tocante ao trânsito em julgado parcial do acórdão, à luz dos capítulos autônomos nele existentes, prevaleceu o voto do Ministro Joaquim Barbosa”;

por consequência, certificou o trânsito em julgado, conforme o caso, independentemente de publicação do acórdão;

determinou fossem lançados os nomes dos réus no rol dos culpados, bem como “expedidos mandados de prisão, para fins de cumprimento da pena privativa de liberdade, no regime inicial legalmente correspondente ao quantum da pena transitada em julgado, nos termos do art. 33, § 2.º, do CP” (Inf. n. 728/STF).

Por todo o exposto, as regras sobre a prisão dos parlamentares federais podem ser assim resumidas:

regra geral antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória: os parlamentares federais não poderão ser presos, seja a prisão penal processual (também denominada prisão provisória ou cautelar, englobando aí a prisão temporária, em flagrante delito de crime afiançável e a preventiva),39 seja a prisão civil (art. 5.º, LXVII);40

única exceção à regra geral: a única hipótese em que será permitida a prisão do parlamentar federal, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória e desde a expedição do diploma, será em caso de flagrante de crime inafiançável;41

flagrante de crime inafiançável: mesmo nessa hipótese, de acordo com o art. 53, § 2.º, os autos deverão ser remetidos à Casa Parlamentar respectiva (por exemplo, sendo Deputado Federal, para a Câmara dos Deputados), no prazo de 24 horas, para que, pela maioria absoluta de seus membros (quorum qualificado, cf. Inf. STF 28/96) e pelo voto aberto, decida sobre a prisão;

prisão em caso de sentença judicial transitada em julgado (STF): evoluindo a decisão proferida no julgamento do “mensalão”, AP 470 (decisões em 17 e 21.12.2012), pela qual se reconhecia a perda automática do mandato (art. 15, III), o STF, em momento seguinte (08.08.2013), no julgamento da AP 565, passou a estabelecer que a perda do mandato de parlamentar condenado não é automática, devendo ser observada a regra do art. 55, § 2.º, CF/88 (cf. item 9.11.4).

9.9.2.2.2. Prisão preventiva de parlamentar?

A 2.ª Turma do STF, ao referendar decisão proferida pelo Min. Teori Zavascki na AC 4.039, admitiu a prisão cautelar do Senador da República D. do A. G.,42 tendo em vista a presença dos requisitos de prisão preventiva (j. 25.11.2015, DJE de 13.05.2016. Essa interessante decisão de 39 laudas pode ser encontrada em Notícias STF, 25.11.2015. O acórdão, já publicado, não estava disponível porque a ação corre em segredo de justiça — acesso em 16.07.2016).

Conforme noticiado, os autos relatam esquema que supostamente envolveria um Senador da República, o seu assessor parlamentar, um advogado e um banqueiro, “com o objetivo de tentar dissuadir o ex-diretor Internacional da Petrobras N. C. de firmar acordo de colaboração premiada junto ao Ministério Público Federal nas investigações decorrentes da operação Lava-Jato. Tal esquema, segundo relata o MPF, envolveria desde o pagamento de ajuda financeira no valor de R$ 50 mil mensais à família de N. C. e o pagamento de R$ 4 milhões em honorários ao advogado (...) por parte do banqueiro (...), até a promessa de suposta influência junto ao Poder Judiciário para a concessão de liberdade a N. C., de forma a facilitar eventual fuga do ex-diretor da Petrobras para a Espanha, país do qual também tem cidadania. Ainda segundo os autos, as reuniões dos investigados para tratar da questão da colaboração premiada de N. C. foram gravadas pelo filho do ex-diretor da Petrobras, e os vídeos, bem como conversas trocadas por e-mail e por aplicativo de celular, foram encaminhados ao MPF” (Notícias STF, 25.11.2015).

A situação concreta não se enquadra nas hipóteses de crime definido pela Constituição como inafiançável, mas em situação de inafiançabilidade decorrente de previsão legal.

A regra já vista está no art. 53, § 2.º, da CF/88, que admite a prisão de parlamentar federal na hipótese de flagrante de crime inafiançável. Ou seja, não é qualquer tipo de prisão, mas apenas a prisão em flagrante. E não é qualquer crime, mas apenas os crimes inafiançáveis.

A situação concreta não envolvia crime inafiançável, já que a imputação era relacionada à organização criminosa, que, todos sabem, não está enquadrada pela Constituição ou pela lei como inafiançável.

Na prática, contudo, o STF entendeu que a inafiançabilidade decorreria da situa­ção concreta e nos termos da lei. Vejamos.

De acordo com o art. 324, IV, do CPP, não será, igualmente, concedida fiança quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312), no caso concreto, a sua decretação como garantia da instrução criminal e das investigações.

Assim, se “não será concedida a fiança”, entendeu o STF, estaria configurada a situação de inafiançabilidade (lembrando que o art. 53, § 2.º, da CF/88 fala em flagrante de crime inafiançável). Não se trata, na hipótese, de crime inafiançável, mas de situação de inafiançabilidade decorrente da lei.

Dessa forma, tendo a Turma identificado o estado de flagrância na prática do crime de organização criminosa, por se tratar de crime permanente (art. 2.º, caput e § 1.º, da Lei n. 12.850/2013), e a situação de inafiançabilidade decorrente de hipóteses de decretação da prisão preventiva (art. 324, IV, c/c o art. 312 do CPP), a Corte entendeu como configurada a situação de “flagrante de crime inafiançável” (art. 53, § 2.º, da CF/88).

Seja por essa perspectiva, seja por uma outra no sentido de se sustentar a “derrotabilidade da regra” contida no art. 53, § 2.º, da CF/88, diante da situação de excepcionalidade e anormalidade, bem como de outros princípios constitucionais, autorizada estaria a prisão preventiva do parlamentar (art. 312 do CPP).

Em seu voto, o Min. Zavascki cita o precedente firmado no HC 89.417 (j. 22.08.2006), impetrado em razão da denominada Operação Dominó e tendo em vista a prisão preventiva do então Presidente da Assembleia Legislativa de Rondônia (deputado estadual que goza das mesmas prerrogativas de imunidade dos parlamentares federais — art. 27, § 1.º, da CF/88), em face de reconhecido “estado de flagrância” e “inafiançabilidade” decorrente da excepcionalidade do caso concreto que investigava esquema envolvendo 23 dos 24 parlamentares estaduais da Assembleia Legislativa do Estado.

Diante dessa situação excepcionalíssima e pouco comum, indagou a Min. Cármen Lúcia: “como se cogitar, então, numa situação de absoluta anomalia institucional, jurídica e ética que os membros daquela Casa poderiam decidir livremente sobre a prisão de um de seus membros, aplicando a norma constitucional, máximo quando ele é tido como ‘o chefe indiscutível da organização criminosa que coordena as ações do grupo e cobra dos demais integrantes o cumprimento das tarefas que lhes são repassadas?’”.

Na ementa desse precedente, certamente paradigma para decisão proferida no caso específico da AC 4.039, estabelece-se: “os elementos contidos nos autos impõem interpretação que considere mais que a regra proibitiva da prisão de parlamentar, isoladamente, como previsto no art. 53, § 2.º, da Constituição da República. Há de se buscar interpretação que conduza à aplicação efetiva e eficaz do sistema constitucional como um todo. A norma constitucional que cuida da imunidade parlamentar e da proibição de prisão do membro de órgão legislativo não pode ser tomada em sua literalidade, menos ainda como regra isolada do sistema constitucional. Os princípios determinam a interpretação e aplicação corretas da norma, sempre se considerando os fins a que ela se destina. A Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, composta de 24 deputados, dos quais, 23 estão indiciados em diversos inquéritos, afirma situação excepcional e, por isso, não se há de aplicar a regra constitucional do art. 53, § 2º, da Constituição da República, de forma isolada e insujeita aos princípios fundamentais do sistema jurídico vigente” (HC 89.417).

A Min. Cármen Lúcia, agora nesse outro caso, afirmando que a necessidade de prisão se imporia para resguardar o estado de direito, alertou: o “crime não vencerá a Justiça”. “Um aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade e impunidade e corrupção. Em nenhuma passagem, a Constituição Federal permite a impunidade de quem quer que seja”, apontou (Notícias STF, de 25.11.2016).

9.9.2.2.3. Imunidade formal ou processual para o processo (art. 53, §§ 3.º a 5.º)

As regras sobre a imunidade formal para o processo criminal dos parlamentares sofreram profundas alterações pela EC n. 35/2001, mitigando a amplitude dessa “garantia”.

Antes da aludida reforma, os parlamentares não podiam ser processados sem a prévia licença da Casa, que, em muitos casos, não era deferida, ocasionando situações de verdadeira impunidade.

Conforme ponderou o Senador José Fogaça, relator do Parecer n. 1.461/2001, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do SF, “a alteração do instituto da imunidade parlamentar é passo imprescindível para a recuperação do prestígio do Poder Legislativo” (DSF de 13.12.2001, p. 30789-30790).

De acordo com a nova regra, então, oferecida a denúncia, o Ministro do STF poderá recebê-la sem a prévia licença da Casa Parlamentar. Assim, como já era permitido, poderão ser instaurados inquéritos policiais e processos de natureza civil, disciplinar ou administrativa, além do oferecimento da denúncia criminal. A novidade, como visto, reside no fato de que, oferecida a denúncia, poderá ela ser recebida no STF sem a prévia licença da Casa respectiva.

Pois bem, após o recebimento da denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o STF dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria absoluta (quorum qualificado) de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.

O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de 45 dias do seu recebimento pela Mesa Diretora, sendo que a sustação do processo suspende a prescrição enquanto durar o mandato (cf. art. 53, §§ 3.º e 5.º).

Afinal de contas, o pedido de sustação poderá implementar-se até a decisão final da ação penal movida contra o parlamentar (art. 53, § 3.º), ou no prazo improrrogável de 45 dias contados do seu recebimento pela Mesa Diretora (art. 53, § 4.º)? As duas disposições devem ser harmonizadas, ou seja, a Casa respectiva tem até o final da ação penal para decidir, pelo quorum da maioria absoluta de seus membros, se suspende ou não a aludida ação penal. O pedido de sustação, pelo partido político, na respectiva Casa representado, poderá implementar-se logo após a ciência dada pelo STF ou em período subsequente, não havendo prazo certo para tanto, já que, como visto, a Casa terá até o trânsito em julgado da sentença final proferida na ação penal para sustá-la. Apesar de não haver prazo certo, contudo, o perío­do durante o qual a ação tramita (até o seu trânsito em julgado) deverá ser respeitado. O único prazo fixado é o de 45 dias contado do recebimento, pela Mesa Diretora, do pedido de sustação efetuado pelo partido político. Esse prazo, sim, de 45 dias, éimprorrogável.43

Assim, de acordo com a nova regra trazida pela EC n. 35/2001:

não há mais necessidade de prévio pedido de licença para se processar parlamentar federal no STF, podendo, no máximo, a Casa legislativa, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, sustar o andamento da ação penal de crime ocorrido após a diplomação. Isso significa dizer que ainda há imunidade para o processo criminal contra o parlamentar, só que de maneira mitigada, já que, para o seu implemento, ela dependerá de ação da Casa, e não de sua inação, como se verificava antes. Conforme argumentou José Fogaça, “... não se elimina a possibilidade de o parlamento sustar um processo criminal contra um de seus membros quando verificar que esse está carregado de um viés exclusivamente político, mas não se permite a impunidade pelo simples fato de não haver decisão” (DSF de 13.12.2001, p. 30789-30790);

não há mais imunidade processual em relação a crimes praticados antes da diplomação. Diferentemente das regras fixadas para crimes praticados após a diplomação, pela nova sistemática não haverá necessidade de o STF dar ciência à respectiva Casa de ação penal de crime praticado antes da diplomação. Nessas hipóteses, por conseguinte, não poderá, também, a respectiva Casa, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, sustar o andamento da aludida ação.44

Por fim, imagine-se a situação de ter havido sustação do processo em crime praticado após a diplomação, em concurso de agentes por parlamentar e outro indivíduo que não goze da referida imunidade. Nesses casos, o STF, por motivo de conveniência, decidiu pelo desmembramento do processo (art. 80 do CPP), em razão da diferença do regime de prescrição, visto estar suspenso somente o prazo prescricio­nal em relação ao parlamentar (cf. STF, Inq. 1.107/MA, Rel. Min. Octavio Gallotti).

9.9.2.3. Prerrogativa de foro (“foro privilegiado”) (art. 53, § 1.º)

9.9.2.3.1. Regra geral para os parlamentares federais — STF. Cessado o mandato parlamentar, por regra (salvo exceção comentada nos itens seguintes), deixa de existir competência originária da Corte para o julgamento de ação penal contra membro do Congresso Nacional

De acordo com o art. 53, § 1.º, os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o STF, pela prática de qualquer tipo de crime, seja de natureza penal comum stricto sensu, seja crimes contra a vida, eleitorais, contravenções penais (art. 53, § 1.º, c./c. art. 102, I, “b” — infrações penais comuns).

Estamos diante do tópico sobre a competência por prerrogativa de função, que será mais bem desenvolvido em processo penal. Não podemos deixar de sistematizar, contudo, alguns aspectos que podem ser perguntados nas provas de Direito Constitucional, apesar de envolverem o art. 84 do CPP. Vamos a algumas situações:

infração cometida durante o exercício da função parlamentar: a competência, como visto, será do STF, não havendo necessidade de pedir autorização à Casa respectiva para a instauração do processo (recebimento da denúncia); basta ser dada ciência ao Legislativo, que poderá sustar o andamento da ação. Mas pensemos em outra situação: praticado o crime durante o exercício do mandato, instaurado o processo mas não findo ou, ainda, tendo sido sustado o andamento da ação. Encerrado o mandato, continuará o julgamento no STF? Ocorrerá o fenômeno da perpetuatio jurisdictionis? Até 25.08.1999 prevalecia o entendimento no STF exposto na orientação dada pela Súmula 394, ou seja, mesmo que cessasse o mandato, a competência especial por prerrogativa de função permanecia com o STF. No julgamento da questão de ordem no Inq. 687-SP, o STF cancelou a Súmula 394, entendendo que a competência deixa de ser do STF, pois não existe mais o exercício da função.45

Às pressas, inusitadamente, foi publicada a Lei n. 10.628, de 24.12.2002, que, ao dar nova redação ao art. 84 do CPP, “ressuscitou” a já banida e execrada regra da perpetuatio jurisdictionis após o término do mandato das autoridades. Em nosso entender, a nova regra, retrógrada, ao manter o foro privilegiado para os crimes praticados durante o mandato, é flagrantemente inconstitucional, já que veiculada por lei ordinária e não por emenda constitucional, ferindo, desta feita, o princípio da separação de Poderes.

Em razão da aludida lei, foram propostas a ADI 2.797, ajuizada em 27.12.2002 pela Associação Nacional dos Membros do MP (CONAMP), e que teve seu pedido de liminar negado pelo STF (07.01.2003), e a ADI 2.860, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), distribuída por prevenção, em 25.03.2003, àquela primeira ajuizada pela CONAMP.

Por maioria de votos (7 x 3), em 15.09.2005, o Plenário do Supremo declarou a inconstitucionalidade do foro especial para ex-ocupantes de cargos públicos e/ou mandatos eletivos (Inf. 401/STF).

Posteriormente, em 17.05.2012, os embargos declaratórios opostos pelo Procurador-Geral da República na ADI 2.797 foram acolhidos, por maioria, pelo Plenário, para assentar que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos §§ 1.º e 2.º do art. 84 do CPP, inseridos pelo art. 1.º da Lei n. 10.628/2002, terão eficácia a partir de 15.09.2005. “Na espécie, alegava-se que a norma declarada inconstitucional teria vigido por 3 anos — com alterações nas regras de competência especial por prerrogativa de função quanto às ações de improbidade,46 inquéritos e ações penais — a exigir fossem modulados os efeitos do julgado. Destacou-se a necessidade de se preservar a validade dos atos processuais praticados no curso das mencionadas ações e inquéritos contra ex-ocupantes de cargos públicos e de mandatos eletivos julgados no período de 24.12.2002, data de vigência da Lei n. 10.628/2002, até a data da declaração de sua inconstitucionalidade, 15.09.2005 (vide quadro abaixo). Pontuou-se que inúmeras ações foram julgadas com fundamento na Lei n. 10.628/2002 e, por segurança jurídica, necessário adotar-se a modulação, assegurada a eficácia ex nunc, nos termos do art. 27 da Lei n. 9.868/99. Asseverou-se que os processos ainda em tramitação não teriam sua competência deslocada para esta Corte” (Inf. 666/STF — grifamos).

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Convém anotar, contudo, que, mesmo se introduzido por emenda constitucional, em nosso entender, o pretendido “privilégio” violaria o princípio da isonomia, na medida em que se estariam tratando desigualmente pessoas iguais, quais sejam, ex-ocu-pantes de cargo ou função pública e cidadãos comuns.

delito cometido antes do exercício parlamentar: nessa hipótese, diplomando-se o réu (em caso de ser eleito, por exemplo, Deputado Federal), o processo deve ser remetido imediatamente ao STF, que, entendendo preenchidos os requisitos, dará prosseguimento à ação penal. Nesse caso, como se trata de crime praticado antes da diplomação, pela nova regra não há mais imunidade processual. Assim, a ação criminal deverá ser processada no próprio STF (tendo em vista a regra de competência prevista de forma genérica no art. 53, § 1.º), sem qualquer interferência do Legislativo, não havendo, sequer, necessidade de ser dada ciência à Casa respectiva. Findo o mandato, caso o processo não tenha terminado, encerrar-se-á a competência do STF, devendo o processo retornar para o juiz natural (por exemplo, dependendo da competência, o Juízo do Foro Criminal Mário Guimarães, na Capital de São Paulo);

delito cometido após o encerramento do mandato: mesmo que o réu já tenha sido um dia parlamentar, não poderá alegar tal fato, não havendo, portanto, nessa situação, competência por prerrogativa de função, conforme a S. 451/STF: “a competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional” — Sessão Plenária de 1.º.10.1964, DJ de 08.10.1964.

9.9.2.3.2. Renúncia ao mandato. Caso “Gulliver”. “Ciranda dos processos”. “Valsa processual”. Perspectivas de resgate da S. 394/STF (AP 333)

Neste item, propomos a análise da seguinte questão: o ato de renúncia de parlamentar constitui gesto legítimo para afastar a prerrogativa de foro?

Para tanto, lembramos o polêmico caso decorrente da renúncia do ex-Deputado Federal R. C. L. (PSDB-PB), que, nos autos da AP 333, estava sendo acusado do crime de homicídio qualificado, na modalidade tentada, contra o ex-Governador da Paraíba, Tarcísio Burity, por ter, consoante narra a denúncia, efetuado disparos de arma de fogo em um restaurante de João Pessoa (de nome “Gulliver” e, por isso, ter ficado conhecido o caso por este nome).

De acordo com o relatório da referida ação penal, ao tempo dos fatos, o denunciado (R. C. L.) era Governador do Estado da Paraíba. Por esse motivo, a denúncia foi oferecida perante o STJ (art. 105, I, “a”).

R. C. L., nas eleições de 1994, elege-se Senador da República, e nas duas eleições que se seguiram, Deputado Federal, sendo que o seu último mandato terminaria em 31.12.2010.

Assim, sendo ele parlamentar federal, nos termos do art. 53, § 1.º, já estudado, expedido o diploma, a competência para julgar R. C. L. passou a ser do STF (muito embora ao tempo dos fatos — 05.11.1993 — fosse Governador da Paraíba).

Durante a ação penal (tendo sido a denúncia recebida em 2002), houve amplo direito de defesa, e se tentou ouvir uma testemunha por mais de 1 ano.

Em 31.10.2007, faltando 5 dias para o início do julgamento, já marcado pelo STF, R. C. L. renunciou ao mandato de Deputado Federal (legislatura 2007-2010).

A polêmica se instaurara. Não sendo mais Deputado Federal, ou seja, passando a ser uma pessoa comum, o STF deixava de ser competente, segundo a orientação firmada a partir do cancelamento da S. 394 e, também, ao se declarar inconstitucional a Lei n. 10.628/2002?

O tema se mostrou bastante complicado, tanto é que a votação estava empatada em 4 x 4. Parte dos ministros entendia que a renúncia caracterizava “evidente propósito de frustrar o julgamento pelo STF”, verdadeiro “abuso de direito”, e outros 4 achavam que a renúncia tinha sido legítima.

Ao final, em 05.12.2007, por 7 x 4, os Ministros entenderam que a competência do Supremo cessava ao ter R. C. L. deixado de ser Deputado Federal, mesmo na hipótese de renúncia. Como afirmou Celso de Mello, invocando o princípio do juiz natural, a renúncia é inquestionável. “Foi recebida e gerou efeitos, antes do julgamento final do processo em curso, sendo um desses efeitos a cessação da competência do STF para julgá-lo” (Notícias STF, 05.12.2007).

Por esse motivo, passando a ser pessoa comum, sem prerrogativa de foro, os autos foram remetidos para o Juízo Criminal da Comarca de João Pessoa.

Dada a importância do tema, pedimos vênia para transcrever a ementa do referido acórdão, que deixa claro, também, o afastamento da competência do júri quando o acusado tem prerrogativa de foro:

“EMENTA: Ação penal. Questões de ordem. Crime doloso contra a vida imputado a parlamentar federal. Competência do STF versus competência do tribunal do júri. Norma constitucional especial. Prevalência. Renúncia ao mandato. Abuso de direito. Não reconhecimento. Extinção da competência do STF para julgamento. Remessa dos autos ao juízo de primeiro grau. 1. O réu, na qualidade de detentor do mandato de parlamentar federal, detém prerrogativa de foro perante o STF, onde deve ser julgado pela imputação da prática de crime doloso contra a vida. 2. A norma contida no art. 5.º, XXXVIII, da CR, que garante a instituição do júri, cede diante do disposto no art. 102, I, ‘b’, da Lei Maior, definidor da competência do STF, dada a especialidade deste último. Os crimes dolosos contra a vida estão abarcados pelo conceito de crimes comuns. Precedentes da Corte. 3. A renúncia do réu produz plenos efeitos no plano processual, o que implica a declinação da competência do STF para o juízo criminal de primeiro grau. Ausente o abuso de direito que os votos vencidos vislumbraram no ato. 4. Autos encaminhados ao juízo atualmente competente” (AP 333, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 05.12.2007, DJE de 11.04.2008).

Como se verifica, os autos iniciaram a sua tramitação no STJ (Governador de Estado), tendo sido remetidos para o STF (SF e CD) e, agora, para a Justiça Comum. Essa situação, bastante criticada, foi denominada pelo Ministro Gilmar Mendes “ciranda dos processos”, levando-o inclusive a repensar um eventual e futuro resgate da atualmente cancelada S. 394 do STF (cf. Notícias STF, 1.º.07.2008 — íntegra da entrevista coletiva). Em outra oportunidade, o Min. Joaquim Barbosa denominou esse “vai e volta” de valsa processual.

9.9.2.3.3. Renúncia ao mandato. Manutenção da competência do STF. Abuso de direito. Fraude processual inaceitável (AP 396)

O tema da prerrogativa de foro veio a ser reanalisado pelo STF em outro caso polêmico: a AP 396, julgada em 28.10.2010.

De acordo com as informações públicas contidas no site do STF, apurava-se suposto esquema a caracterizar os crimes de formação de quadrilha e peculato, envolvendo, dentre outros, o ex-Deputado Federal N. D. (PMDB-RO) (Inf. 606/STF e Notícias STF, 28.10.2010).

No caso em análise, o MP do Estado de Rondônia instaurou “... procedimento investigatório a partir de representações em que se questionava a licitude de contrato publicitário firmado entre a Assembleia Legislativa local e determinada empresa. No decorrer das apurações, o parquet constatara a existência de suposto esquema criminoso — engendrado para desviar dinheiro daquela Casa Legislativa — no qual o réu, na qualidade de diretor financeiro da Assembleia Legislativa, teria assinado vários cheques e os repassado, por mais de 2 anos, à mencionada empresa de publicidade a pretexto de pagamento pelos serviços, sequer prestados. Em razão disso, o Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público daquela unidade federativa oferecera denúncia contra o parlamentar e outros 7 corréus por formação de quadrilha e peculato, em concurso material e de pessoas. Após o recebimento da inicial acusatória pela Corte de origem, o réu fora empossado Deputado Federal e o processo, des­membrado, remetido ao STF, que assim o mantivera e afirmara a validade dos atos judiciais praticados anteriormente à diplomação e à posse do parlamentar federal” (Inf. 606/STF).

Muito embora a decisão proferida no caso do “mensalão” no sentido de julgamento­ de todos os corréus em um mesmo processo (Inq. 2.245), a regra que o STF vem adotando é, havendo prerrogativa de foro de um dos envolvidos, o desmembramento do processo, com base na conveniência da instrução e na racionalização dos trabalhos.

No caso em referência, a denúncia foi oferecida em 24.06.1999 pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado de Rondônia, porque ainda não havia a prerrogativa de foro. Contudo, em 03.01.2005, N. D. tomou posse como Deputado Federal, para exercício do mandato na Legislatura 2003-2007, quando, então, por esse motivo, o juiz da 3.ª Vara Criminal da Comarca de Porto Velho (RO) determinou o desmembramento dos autos, com a remessa do processo para o STF, em razão da prerrogativa de foro.

A ação foi distribuída, no STF, em 16.08.2005 e, às vésperas do julgamento — 27.10.2010 —, o Deputado Federal renunciou ao mandato, sendo que o crime prescreveria no dia 04.11.2010.

Eis o cronograma dos fatos:

24.06.1999 — oferecimento de denúncia na comarca de Porto Velho;

03.01.2005 — posse como Deputado Federal;

16.08.2005 — a ação é distribuída no STF;

22.10.2010 — inclusão do feito em pauta é publicada no DJE;

27.10.2010 — o Deputado Federal renuncia ao mandato;

28.10.2010 — o STF resolve questão de ordem e reconhece a subsistência da competência da Corte mesmo diante da hipótese de renúncia ao mandato;

04.11.2010 — haveria a prescrição do crime.

Revendo o julgamento proferido no caso do ex-Deputado Federal R. C. L. (AP 333), no qual o STF, por 7 x 4, entendia que a renúncia (no caso, faltando 5 dias para o julgamento) era válida e, assim, cessaria a competência do STF, por 8 x 1, modificando o seu entendimento, decidiu, em 28.10.2010, julgar a ação (AP 396), mantendo a sua competência, mesmo não sendo mais o réu parlamentar, e condenando-o à pena de reclusão de 13 anos, 4 meses e 10 dias, em regime inicialmente fechado, além de 66 dias-multa, pelos crimes de formação de quadrilha (art. 288, CP) e peculato (art. 312, CP).

Temos, assim, um novo entendimento do STF, que, a nosso ver, mostra-se muito acertado.

Dentre os vários argumentos expendidos pelos Ministros para se manter a competência do STF, a renúncia, às vésperas do julgamento, caracterizou-se como “fraude processual inaceitável”, frustrando a atuação jurisdicional do Estado e tornando, assim, o STF refém da opção do réu. Sustentou-se, ainda, tratar-se a atitude de verdadeiro abuso de direito. “A Constituição garante a imunidade, mas não a impunidade.” A fraude à lei mostra-se, ainda, “eticamente pouco sustentável”, não podendo o STF aceitar a “... manipulação de instâncias para efeito de prescrição”, citando-se, por fim, a afirmação de Ulpiano, segundo a qual “não se pode tirar proveito da própria torpeza”.47

9.9.2.3.4. Necessidade de definição de critério objetivo para a caracterização da hipótese de fraude processual e abuso de direito a manter a competência do STF em caso de renúncia ao mandato. Renúncia abusiva. Renúncia manipulativa. Debate (AP 536)

O tema sobre a manutenção da competência do STF em caso de renúncia ao mandato de parlamentar federal foi retomado no julgamento da AP 536 (27.03.2014, DJE de 12.08.2014).

De acordo com os autos, “o ex-parlamentar e outros réus foram denunciados pelo Procurador-Geral da República pela suposta prática dos crimes de peculato e lavagem de dinheiro, em concurso material e em concurso de pessoas. Houve o desmembramento do processo no Supremo e a AP 536 passou a tramitar apenas contra E. A., por ele ser deputado federal à época. A denúncia foi recebida pelo Supremo no dia 3 de dezembro de 2009. Posteriormente, o réu foi interrogado e as testemunhas de acusação e defesa foram ouvidas. Em 7 de fevereiro em 2014, o Procurador-Geral da República apresentou alegações finais e, reiterando os termos da denúncia, pediu a aplicação de uma pena de 22 anos de prisão. No dia 19 de fevereiro de 2014, o réu comunicou ao Supremo que havia renunciado ao mandato de deputado” (Notícias do STF de 27.03.2014).

Nesse caso concreto, o STF entendeu não ter havido fraude processual e abuso de direito e, assim, determinou, depois de mais de 9 anos de tramitação do feito, a sua remessa para o juízo de primeiro grau.

Diferentemente do entendimento firmado na AP 396, houve o afastamento do risco de prescrição da pena em abstrato e não se reconheceu, como dissemos, a caracterização de abuso de direito.

Propôs, então, o Min. Roberto Barroso, Relator, a definição de um critério geral mais objetivo para o reconhecimento da fraude em casos futuros. Infelizmente, no referido julgado, não houve maioria absoluta para a definição do marco temporal, deixando a Corte essa fixação para um outro momento.

Diante da importância do tema, gostaríamos de esquematizar, para reflexão, as propostas lançadas pelos Ministros para o reconhecimento da manutenção da competência do Tribunal, mesmo no caso de renúncia parlamentar. Vejamos as sugestões de marcos temporais a manter a competência do STF, definição essa, aliás, que entendemos fundamental para que não se tenha incerteza de como deve ser a regra processual, especialmente em matéria penal. Assim, se a renúncia se der em momento posterior aos indicados abaixo, o STF continuaria competente para julgar a ex-autoridade:

Ministro Roberto Barroso: recebimento da denúncia, aplicando-se, analogicamente, o art. 55, § 4.º, CF/88;

Ministro Teori Zavascki: endossou a proposta de Barroso;

Ministro Luiz Fux: endossou a proposta de Barroso;

Ministro Joaquim Barbosa: endossou a proposta de Barroso;

Ministra Rosa Weber: encerramento da instrução processual (art. 11 da Lei n. 8.038/90);

Ministro Dias Toffoli: lançamento, pelo relator da ação penal, do visto com a liberação do processo ao revisor;

Ministro Celso de Mello: não entendeu conveniente a definição de marco temporal, devendo a análise se dar caso a caso;

Ministro Gilmar Mendes: não entendeu conveniente a definição de marco temporal, devendo a análise se dar caso a caso;

Ministro Marco Aurélio: não entendeu conveniente a definição de marco temporal, devendo a análise se dar caso a caso;

Ministro Ricardo Lewandowski: ausente justificadamente;

Ministra Cármen Lúcia: ausente justificadamente.

9.9.2.4. Foro por prerrogativa de função e jurisdições de categorias diversas — a discussão sobre o desmembramento

As prerrogativas de foro são definidas pela Constituição em relação às autoridades no exercício efetivo da função. Assim, de acordo com o entendimento fixado pela Corte, por exemplo e conforme visto, um ex-parlamentar não teria mais a referida prerrogativa com o término do seu mandato ou nas citadas hipóteses de fraude.

Contudo, em razão de circunstâncias especiais a serem apreciadas, demonstradas e justificadas em cada caso concreto, lembrando que, nos termos do art. 78, III, do CPP, no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação, poder-se-á deliberar no sentido do julgamento conjunto de todos os corréus (cf. Inf. 673/STF).

Esse entendimento, negando o desmembramento, foi o que se verificou no julgamento do “mensalão” (Inq. 2.245 e correspondente AP 470), no qual, dos 38 réus, apenas 3 eram parlamentares, e, diante dessa circunstância, decidiu a Corte, em razão da prerrogativa, no sentido da competência do STF para o julgamento de todos48 os réus. Vejamos:

“Questão de ordem. Inquérito. Desmembramento. Art. 80 do CPP. Critério subjetivo afastado. Critério objetivo. Inadequação ao caso concreto. Manutenção integral do inquérito sob julgamento da Corte. Rejeitada a proposta de adoção do critério subjetivo para o desmembramento do inquérito, nos termos do art. 80 do CPP, resta o critério objetivo, que, por sua vez, é desprovido de utilidade no caso concreto, em face da complexidade do feito. Inquérito não desmembrado. Questão de ordem resolvida no sentido da permanência, sob a jurisdição do STF, de todas as pessoas denunciadas” (Inq 2.245-QO-QO, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 06.12.2006, Plenário, DJ de 09.11.2007, e entendimento mantido na solução de questão de ordem que se colocou na correspondente AP 470, em 02.08.2012 — cf. outros detalhes do tema no item 10.4.15.4).

Devemos deixar claro, contudo, que o desmembramento é a regra. Somente em situações excepcionalíssimas é que deve haver o julgamento conjunto no Tribunal com jurisdição de maior graduação. (Remetemos o nosso ilustre leitor para o item 10.4.15.4, no qual desenvolvemos a matéria e trazemos importante tentativa de roteirização proposta pelo Min. Roberto Barroso no julgamento do Inq 3.515 AgR/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 13.02.2014, Plenário, DJE de 25.02.2014.)

9.9.2.5. Outras garantias

sigilo de fonte: de acordo com o art. 53, § 6.º, e conforme já estabelecido antes do advento da EC n. 35/2001, “os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações”;

incorporação às forças armadas de Deputados e Senadores: “a incorporação às Forças Armadas de Deputados e Senadores, embora militares e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença da Casa respectiva” (art. 53, § 7.º, mantida a referida garantia na EC n. 35/2001);

imunidades durante a vigência de estado de sítio e de defesa: como regra geral, durante a vigência desses estados de anormalidade, os parlamentares não perdem as imunidades. Apenas durante o estado de sítio as imunidades poderão ser suspensas, mediante o voto de 2/3 dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso, que sejam incompatíveis com a execução da medida (art. 53, § 8.º, regra essa mantida pela EC n. 35/2001).

9.9.2.6. As imunidades parlamentares podem ser renunciadas?

Imaginem vocês, candidatos que se preparam para concursos públicos, que, em determinado momento, o examinador formule as seguintes questões:

José da Silva, deputado federal, no exercício do mandato, portanto, após a diplomação, comete um crime. Recebida a denúncia no STF, após ser dada ciência ao Parlamento há sustação do andamento da ação. O deputado, inconformado com a acusação, faz questão de ser processado, para provar a sua inocência. Que deverá fazer? Como as imunidades parlamentares dizem respeito ao cargo que ocupa e não à pessoa, a única maneira que o parlamentar encontrará para provar a sua inocência será esperar o término do mandato, ou renunciar de imediato, para que perca, então, a imunidade;

José da Silva, deputado federal, na tribuna, em empolgante discurso, declara que o governo federal desviou verba do erário público, de forma irregular. Em meio à empolgação, diz ter dados seguros e, inclusive, diz renunciar às suas imunidades para provar que fala a verdade. Isso é possível? Não, na medida em que as imunidades são irrenunciáveis. Caso fale isso, podemos encarar como mera demagogia política!

Portanto, devemos observar, mais uma vez, que as imunidades parlamentares são irrenunciáveis por decorrerem da função exercida, e não da figura do parlamentar.­

Assinalou Celso de Mello que “o instituto da imunidade parlamentar atua, no contexto normativo delineado por nossa Constituição, como condição e garantia de independência do Poder Legislativo, seu real destinatário, em face dos outros poderes do Estado. Estende-se ao congressista, embora não constitua uma prerrogativa de ordem subjetiva deste. Trata-se de prerrogativa de caráter institucional, inerente ao Poder Legislativo, que só é conferida ao parlamentar ‘ratione muneris’, em função do cargo e do mandato que exerce. É por essa razão que não se reconhece ao congressista, em tema de imunidade parlamentar, a faculdade de a ela renunciar. Trata-se de garantia institucional deferida ao Congresso Nacional. O congressista, isoladamente considerado, não tem, sobre ela, qualquer poder de disposição (Inq. 510/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 1.º.02.1991, Plenário, RTJ 135/509).

9.9.2.7. As imunidades parlamentares estendem-se aos suplentes?

As imunidades parlamentares são prerrogativas que decorrem do efetivo exercício da função parlamentar. Não são garantias da pessoa, mas prerrogativas do cargo. Assim, as imunidades, inclusive o foro privilegiado, não se estendem aos suplentes, a não ser que assumam o cargo ou estejam em seu efetivo exercício:

“Suplente de Senador. Interinidade. Competência do STF para o julgamento de ações penais. Inaplicabilidade dos arts. 53, § 1.º, e 102, I, ‘b’, da Constituição Federal. Retorno do titular ao exercício do cargo. Baixa dos autos. Possibilidade. (...) Os membros do Congresso Nacional, pela condição peculiar de representantes do povo ou dos Estados que ostentam, atraem a competência jurisdicional do STF. O foro especial possui natureza intuitu funcionae, ligando-se ao cargo de Senador ou Deputado e não à pessoa do parlamentar. Não se cuida de prerrogativa intuitu personae, vinculando-se ao cargo, ainda que ocupado interinamente, razão pela qual se admite a sua perda ante o retorno do titular ao exercício daquele. A diplomação do suplente não lhe estende automaticamente o regime político-jurídico dos congressistas, por constituir mera formalidade anterior e essencial a possibilitar a posse interina ou definitiva no cargo na hipótese de licença do titular ou vacância permanente” (Inq. 2.453-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 17.05.2007, DJ de 29.06.2007). Nesse sentido, cf., ainda, Inq. 2.421-AgR, Rel. Min. Menezes Direito, j. 14.02.2008, DJE de 04.04.2008. No mesmo sentido: Inq. 2.800, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, j. 23.06.2010, DJE de 19.08.2010 (Inf. 595/STF — transcrição).

9.9.3. Parlamentares estaduais

Aos Deputados Estaduais (cf. art. 27, § 1.º) serão aplicadas as mesmas regras previstas na Constituição Federal sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.

Quando dizemos “mesmas regras”, observar a correspondência, ou seja, ao falar em prisão, somente no caso de flagrante delito de crime inafiançável, devendo os autos ser remetidos à Assembleia Legislativa dentro de 24 horas para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. Ao falar em competência por prerrogativa de função, de acordo com a Constituição do Estado de São Paulo, por exemplo, entenda-se a do Tribunal de Justiça. Ao falar em prática de crime comum após a diplomação, o TJ poderá instaurar o processo sem a prévia licença da Assembleia Legislativa, mas deverá a ela dar ciência, sendo que, pelo voto da maioria de seus membros, o Poder Legislativo Estadual poderá sustar o andamento da ação. Por fim, entenda-se plenamente assegurada a imunidade material dos Deputados Estaduais, que são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Da mesma forma como ocorre com os parlamentares federais, não há mais (após a EC n. 35/2001) imunidade formal para crimes praticados antes da diplomação.

9.9.4. Parlamentares municipais

De acordo com o art. 29, VIII, como já visto, os Municípios reger-se-ão por lei orgânica, que deverá obedecer, dentre outras regras, à da inviolabilidade dos Verea­dores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município.

Ou seja, o Vereador Municipal somente terá imunidade material (excluindo-se a responsabilidade penal e a civil), desde que o ato tenha sido praticado in officio ou propter officium (devendo haver, assim, pertinência com o exercício do mandato) e na circunscrição municipal, não lhe tendo sido atribuída a imunidade formal ou processual. Nesse sentido, precisas são as palavras do Min. Celso de Mello:

“EMENTA: 1. A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. 29, VIII, c/c o art. 53, caput) exclui a responsabilidade penal (e também civil) do membro do Poder Legislativo (Vereadores, Deputados e Senadores), por manifestações, orais ou escritas, desde que motivadas pelo desempenho do mandato (prática in officio) ou externadas em razão deste (prática propter officium). Tratando-se de Vereador, a inviolabilidade constitucional que o ampara no exercício da atividade legislativa estende-se às opiniões, palavras e votos por ele proferidos, mesmo fora do recinto da própria Câmara Municipal, desde que nos estritos limites territoriais do Município a que se acha funcionalmente vinculado. Precedentes. AI 631.276/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). 3. Essa prerrogativa político-jurídica — que protege o parlamentar (como os Vereadores, p. ex.) em tema de responsabilidade penal — incide, de maneira ampla, nos casos em que as declarações contumeliosas tenham sido proferidas no recinto da Casa legislativa, notadamente da tribuna parlamentar, hipótese em que será absoluta a inviolabilidade constitucional. Doutrina. Precedentes” (AI 818.693, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, j. 1.º.08.2011, DJE de 03.08.2011. No mesmo sentido, cf. HC 74.201, j. 12.11.1996).

Reafirmando o entendimento, o STF estabeleceu que a locução no exercício do mandato “deve prestigiar as diferentes vertentes da atuação parlamentar, dentre as quais se destaca a fiscalização dos outros Poderes e o debate político. Embora indesejáveis, as ofensas pessoais proferidas no âmbito da discussão política, respeitados os limites trazidos pela própria Constituição, não são passíveis de reprimenda judicial. Imunidade que se caracteriza como proteção adicional à liberdade de expressão, visando a assegurar a fluência do debate público e, em última análise, a própria democracia. A ausência de controle judicial não imuniza completamente as manifestações dos parlamentares, que podem ser repreendidas pelo Legislativo” (RE 600.063, j. 25.02.2015, DJE de 15.05.2015).

Além disso, nos termos do art. 29, IX, a lei orgânica também deverá observar as proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber, ao disposto na CF para os membros do Congresso Nacional e na Constituição do respectivo Estado, para os membros da Assembleia Legislativa.

9.10. Incompatibilidades e impedimentos dos parlamentares federais

Em decorrência de sua nobre função, aos parlamentares é vedado o exercício de algumas atividades, bem como determinados comportamentos, desde a expedição do diploma e, posteriormente, após tomarem posse. Os Deputados e Senadores não poderão, enuncia o art. 54, I e II, da CF/88:

I — DESDE A EXPEDIÇÃO DO DIPLOMA

firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;

aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis ad nutum, nas entidades constantes da alínea anterior.

II — DESDE A POSSE

ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada;

ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis ad nutum, nas entidades referidas no inciso I, “a”;

patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I, “a”;

ser titulares de mais de um cargo ou mandato público eletivo.

9.11. Perda do mandato do Deputado ou Senador

9.11.1. Hipóteses de perda do mandato e suas peculiaridades

O art. 55 da CF/88 estabelece que perderá o mandato o parlamentar federal:

HIPÓTESES DE PERDA DO MANDATO (ART. 55)

PECULIARIDADES

I — quando o parlamentar infringir qualquer das proibições estabelecidas no art. 54 (quadro anterior);

§ 2.º a perda do mandato será decidida pela Câmara­ dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

II — cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

§ 1.º É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Con­gresso­ Nacional ou a percepção de vantagens indevidas. Nesta hipótese, de acordo com o § 2.º do art. 55, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

III — que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;

§ 3.º a perda do mandato será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

IV — que perder ou tiver suspensos os direitos políticos (Obs.: sabemos ser, na vigência da CF/88, vedada a cassação de direitos políticos. Porém, o art. 15 da CF/88 estabelece hipóteses de perda e suspensão);

§ 3.º a perda do mandato será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

V — quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;

§ 3.º a perda do mandato será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

VI — que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

§ 2.º a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

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9.11.2. Cassação49 x extinção do mandato

Pela regra fixada no art. 55, § 2.º, da CF/88, na hipótese de cassação do mandato, a sua perda será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido políti­co representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. Em se tratando de extinção, por outro lado (art. 55, § 3.º), a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

Dessa forma, na primeira situação (cassação — decisão — pela Casa), o provimento político terá natureza constitutiva. Na segunda (extinção — declaração — pela Mesa), a natureza será declaratória.

Cassação do mandato, ensina José Afonso da Silva,50 “é a decretação da perda do mandato por ter seu titular incorrido em falta funcional definida em lei e punida com esta sanção”. Extinção do mandato, por seu turno, define-se como “o perecimento do mandato pela ocorrência de fato ou ato que torna automaticamente inexistente a investidura eletiva, tal como a morte, a renúncia, o não comparecimento a certo número de sessões expressamente fixado (desinteresse, que a Constituição eleva à condição de renúncia), perda ou suspensão dos direitos políticos”. Nesse caso, trata-se de provimento meramente declaratório, pois a Mesa apenas reconhece (por declaração) a ocorrência do fato ou ato do perecimento do mandato.51

9.11.3. Votação aberta na hipótese de cassação do mandato: aprovação da “PEC do voto aberto” (EC n. 76/2013). Avanço democrático

Conforme visto, nas hipóteses de cassação do mandato (art. 55, I, II e VI), de acordo com a Constituição, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, nos termos do art. 55, § 2.º.

Aperfeiçoando a regra estabelecida pelo constituinte originário, a EC n. 76/2013 aboliu a votação secreta nos casos de perda de mandato de Deputado ou de Senador. Dessa forma, a votação deverá ser ostensiva, ou seja, aberta, para que o povo saiba como os seus representantes votaram em relação a situações extremamente graves como a condenação criminal de parlamentar.

9.11.4. A perda do mandato parlamentar em razão de sentença penal condenatória transitada em julgado e a interpretação fixada pelo STF no julgamento da AP 470 (“mensalão”), bem como da AP 565 (art. 15, III, x art. 55, §§ 2.º e 3.º). O caso concreto da AP 39652

Conforme já anunciamos anteriormente, em um primeiro momento o STF entendeu que, na hipótese de condenação de réus parlamentares pela prática, entre outros, de crimes contra a Administração Pública, tendo em vista tratar-se de conduta juridicamente incompatível com os deveres inerentes ao cargo, impunha-se “a perda do mandato como medida adequada, necessária e proporcional” (AP 470, j. 17.12.2013).53

Evoluindo, contudo, a Corte mudou o entendimento e passou a reconhecer a especialidade do art. 55, § 2.º, no sentido de a perda do cargo depender de decisão da Casa (AP 565, j. 08.08.2013).

A) AP 470 — “mensalão” — 17.12.2012

O tema precisava ser esclarecido pela Suprema Corte, que o fez, em um primeiro­ momento, em julgamento apertado, por 5 x 4, ao decidir que os três Deputados Federais condenados na AP 470 (“mensalão”) e que ainda exerciam o mandato, quais sejam, João Paulo Cunha (PT/SP), Pedro Henry (PP/MT) e Valdemar Costa Neto (PR/SP), perderiam, automaticamente, os seus mandatos com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A decisão, muito embora tenha sido proferida pela maioria exigida, deu-se sem estar completo o Plenário da Corte.

O Min. Teori Albino Zavascki, apesar de já ter tomado posse em 29.11.2012, em razão da vaga deixada pelo Ministro Cezar Peluso, aposentado em setembro ao completar 70 anos, não participou do referido julgamento.

Ainda, no momento da decisão (17.12.2012), encontrava-se também em aberto a vaga do Min. Ayres Britto, aposentado compulsoriamente desde 17.11.2012, nos termos do Decreto Presidencial de 14.11.2012, e que veio a ser preenchida somente com a indicação e posse do Min. Luís Roberto Barroso em 26.06.2013.

Portanto, 9 Ministros, naquele momento, resolveram a questão. Estando empatado em 4 x 4 (no sentido ou não da perda automática do mandato, em razão da sentença penal condenatória transitada em julgado), o Min. Celso de Mello, em 17.12.2012, proferiu o voto de desempate, determinando a aplicação do art. 55, § 3.º, da CF/88, que apenas atribui ao Parlamento o poder de declarar a perda do mandato, e não o de decidir sobre a sua concretização, afastando-se, assim, a regra contida no art. 55, § 2.º.

De acordo com a sua decisão, “... todos os condenados por mais de 4 anos de reclusão ou cuja condenação diga respeito a ato de improbidade administrativa — o que ocorre nos crimes contra a administração pública, tais como peculato e corrupção passiva, deve implicar automaticamente a perda dos mandatos eletivos. E, neste caso, a perda deve ocorrer, no entender do ministro Celso de Mello, mesmo que a pena seja inferior a quatro anos, como no crime de peculato, punido com penas que vão de 2 a 12 anos de reclusão. Já quanto aos demais casos, isto é, em condenações por tempo inferior e por delitos de menor potencial ofensivo, caberá à Câmara, no entendimento do ministro Celso de Mello, deliberar sobre a perda ou não do mandato, conforme previsto no parágrafo 2.º do artigo 55 da Constituição Federal” (Notícias STF, 17.12.2012).

Cabe observar que, além desses argumentos trazidos pelo Min. Celso de Mello, o STF estabeleceu que, uma vez transitado em julgado o processo (Inf. 693/STF):

por unanimidade, ficam suspensos os direitos políticos de todos os réus condenados, com base no art. 15, III, da CF;

por maioria, fica decretada a perda de mandato eletivo dos Deputados Federais acusados na ação penal;

as hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos previstas no art. 15 da CF são taxativas;

o Poder Legislativo pode decretar a perda de mandato de Deputado Federal ou Senador, com fundamento em perda ou suspensão de direitos políticos, bem assim em condenação criminal transitada em julgado (CF, art. 55, IV e VI). Essa previsão constitucional, contudo, vincula-se aos casos em que a sentença condenatória não decretar a perda de mandato, em razão de não estarem presentes os requisitos legais (CP, art. 92, I, “a” e “b”, e parágrafo único),54 ou por ter sido proferida anteriormente à expedição do diploma, com o trânsito em julgado ocorrente em momento posterior;

não se aplica o art. 55 da CF (juízo político), uma vez que a perda de mandato eletivo caracteriza-se como efeito irreversível da sentença condenatória;

de acordo com o art. 55, § 3.º, introduzido pela EC n. 35/2001, estabeleceu-se a possibilidade de suspensão do processo, com o objetivo de se evitar que o parlamentar seja submetido a perseguição política. Na medida em que essa situa­ção não se verificou, o feito poderia seguir o seu trâmite regular;

os réus cometeram crimes contra a Administração Pública quando no exercício do cargo, a revelar conduta incompatível com o exercício de mandato eletivo.

Ressalte-se que esse primeiro entendimento sobre a perda automática do mandato não refletia a jurisprudência do STF que, de modo instável (lembrando que o placar foi fixado por 5 x 4), modificou-se sem a composição completa da Corte.

Isso porque, conforme se observa pelos precedentes indicados abaixo, o STF entendia ser a regra do art. 55, § 2.º, da CF/88 especial sobre a regra geral do art. 15, III (nesse sentido, preciso o voto do Min. Dias Toffoli, apesar de vencido, nesse primeiro momento, proferido no julgamento do “mensalão”):

MS 21.443/DF (j. 22.04.1992): não obstante a decisão tenha analisado uma situação concreta de falta de decoro parlamentar (art. 55, II), assim definiu o Min. Paulo Brossard: “observadas as formalidades constitucionalmente enunciadas, a decisão, da Câmara ou do Senado, poderá ser discutível, poderá ser injusta, poderá ser desacertada, mas será definitiva e irrecorrível; será insuscetível de revisão judicial. Porque a Constituição deu à Câmara e só à Câmara, ao Senado e só ao Senado, a competência para decidir algo que à Câmara e ao Senado diz respeito”.

RE 179.502 (j. 31.05.1995): apesar de ser a questão diferente, na linha do voto do Min. Relator Moreira Alves, pelo princípio da especialidade, a regra do art. 55, VI e § 2.º, deveria prevalecer sobre a regra geral do art. 15, III (lex speciali derrogat lex generali). Nesse sentido, bastante elucidativo o voto do Min. Celso de Mello.

Esse entendimento, que então prevalecia no STF, superado naquele primeiro momento da análise da AP 470, parecia seguir a ratio da regra prevista pela Assembleia Nacional Constituinte que acolheu, por 407 votos (16 contrários e 6 abstenções, de um total de 429), a Emenda n. 1.895 — Modificativa do texto do “Centrão” (de autoria do Constituinte Antero de Barros, destacada pelo Constituinte Fernando Lyra), para fixar, com precisão, a regra especial do art. 55, §§ 2.º e 3.º, sendo que, no caso, como explicou o Constituinte Nelson Jobim, teria o objetivo de, em relação à condenação criminal (embora estivessem preocupados, na discussão, com os crimes de menor potencial ofensivo, reconheça-se), entregar a decisão, que seria política, ao Plenário das Casas respectivas, não sendo a perda do mandato automática.55

O STF, contudo, de modo explícito, definiu posicionamento, estabelecendo interpretação harmonizadora dos dispositivos em antinomia (arts. 15, III, e 55, VI, § 2.º) a partir do substrato axiológico de normas constitucionais (ética e moralidade na administração pública, isonomia e princípio republicano).

B) AP 565 — mudança de entendimento — aplicação da regra do art. 55, § 2.º — a perda do mandato depende de deliberação da Casa — 08.08.2013

CUIDADO: em momento seguinte, como se apontou, no julgamento da AP 565, em 08.08.2013, agora com os votos do Min. Teori Zavascki e do Min. Luís Roberto Barroso, por 6 x 4 (o Min. Fux não votou porque se declarou impedido, pois já havia julgado o caso concreto quando era Ministro do STJ), o STF decidiu que a perda do mandato parlamentar não é automática e depende de manifestação da Casa, declarando a regra do art. 55, § 2.º, especial em relação à geral contida no art. 15, III.

Ainda, ficou estabelecido que a perda do mandato a ser decidida pela Casa não impediria o réu parlamentar de cumprir a pena imposta. Assim, a Corte, reconhecendo o não cabimento de qualquer outro recurso, certificou o trânsito em julgado, determinou fosse lançado o nome dos réus no rol dos culpados e expediu os competentes mandados de prisão.

C) AP 396 e a “PEC do voto aberto”

Pois bem, diante desse novo posicionamento, qual seja, o de que a perda do mandato não é automática, em outro caso, envolvendo a condenação de Deputado Federal à pena de mais de 13 anos de reclusão, em regime fechado, por formação de quadrilha e peculato (AP 396, N. D.), diante da Representação n. 20/2013, levou-se à Câmara dos Deputados a discussão sobre a perda do mandato parlamentar.

Em 28.08.2013, a Casa manteve o mandato do deputado federal que cumpria pena. Isso mesmo, estávamos diante da estranha situação de se ter um deputado federal mantido no cargo e cumprindo pena em regime fechado.56

Essa situação gerou a revolta da sociedade e, sem dúvida, serviu para a mobilização do Congresso Nacional.

Procurando “escutar a voz das ruas”, o Parlamento passou a analisar duas propostas de emenda: a) “PEC do voto aberto” (pois, naquele momento, a votação ainda era secreta); b) PEC que estabelece a perda imediata do mandato de parlamentar condenado por crimes contra a Administração Pública.

A primeira foi aprovada e promulgada como EC n. 76/2013. A segunda, até o fechamento desta edição, ainda estava sendo discutida no Parlamento (matéria pendente).

Em 12.02.2014, em nova votação e à luz da regra introduzida pela EC n. 76/2013, a Câmara dos Deputados cassou, por 467 votos favoráveis e 1 abstenção, o mandato do Deputado Federal N. D., assumindo, assim, de modo definitivo o seu suplente.

A sociedade presenciou a histórica primeira votação aberta na Câmara dos Deputados, “corrigindo” o dito “erro político” cometido na primeira votação (pelo voto fechado) que o manteve no cargo (Agência Câmara Notícias).

Esse novo julgamento teve por objeto a Rep. 22/2013, apresentada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e que apontou dois motivos para a quebra do decoro (art. 55, II — portanto, outro fundamento): a) ter o deputado votado no processo de perda do seu próprio mandato, violando o regimento interno (art. 180, § 6.º); b) ter saído, nas dependências externas da Câmara, “algemado e transportado de camburão do serviço penitenciário para o Presídio da Papuda, em Brasília”, o que afetaria a imagem da Casa.

9.11.5. É possível a renúncia do cargo por parlamentar submetido a processo que vise ou possa levá-lo à perda do mandato?

Sim, é possível a renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levá-lo à perda do mandato. Todavia, nessa hipótese, a EC de Revisão n. 6/94, constitucionalizando o previsto no art. 1.º e seu parágrafo único do Decreto Legislativo n. 16, de 24.03.1994 (art. 55, § 4.º, da CF/88), veio disciplinar que a aludida renúncia terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais descritas nos §§ 2.º e 3.º do art. 55. Assim, nos termos do decreto, a renúncia “... fica sujeita à condição suspensiva, só produzindo efeitos se a decisão final não concluir pela perda do mandato”. No caso de ter sido a decisão final pela perda do mandato, o parágrafo único do aludido decreto legislativo dispõe que a declaração de renúncia será arquivada, não produzindo efeitos no sentido de que já terá sido declarada a perda do mandato.

9.11.6. Suspensão do exercício do mandato de parlamentar eleito (AC 4.070)

Em 05.05.2016, o Pleno do STF, por unanimidade, referendou decisão do Min. Teori Zavascki que determinou a suspensão do então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do exercício do mandato de deputado federal e, por consequência, da função de Presidente da Câmara dos Deputados.

Trata-se de situação extraordinária e sem previsão expressa na Constituição, que prevê, apenas, a perda do mandato nas hipóteses já estudadas do art. 55.

Estamos diante de provimento cautelar, diverso da prisão, determinando a suspensão do exercício do mandato, com o objetivo de se garantir a aplicação da lei penal, a investigação ou a instrução criminal e evitar a prática de infrações penais (art. 282, c/c o art. 319, VI, do CPP).

Conforme se observa, não se trata de hipótese de vacância do cargo na Mesa Diretora, e, por isso, o exercício da função de Presidente da Câmara dos Deputados passou a ser exercido, nos termos regimentais, pelo Primeiro Vice-Presidente, o Deputado Federal Waldir Maranhão, que, em 09.05.2016, protagonizou medida extremamente criticada de, por ato próprio e unilateral, anular a sessão plenária realizada nos dias 15, 16 e 17 de abril de 2016 da Câmara, que autorizou a instauração do processo de impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff, solicitando a devolução dos autos do processo, que já se encontravam no Senado Federal.

A medida se mostrou tão teratológica que o próprio deputado, no mesmo dia, voltou atrás e revogou a própria decisão, que, como se disse, contrariou a maioria dos 367 votos a favor (contra 137) que já haviam se manifestado no procedimento de impedimento.

Entendemos que, estando o Presidente da Câmara suspenso de suas funções por decisão do STF, em caso de necessidade de substituição na forma do art. 80, não poderia o Primeiro Vice-Presidente da Câmara (Dep. Waldir Maranhão) em exercício assumir, mas, sim, sucessivamente, o Presidente do Senado Federal e o do STF, como manda a Constituição.

Diante dessa situação, em 07.07.2016, o então Presidente da Câmara, que estava afastado de suas funções em razão da decisão do STF, renunciou à função de Presidente da Casa (não ao cargo de deputado federal), e, por isso, em 14.07.2016 veio a ser eleito, em segundo turno, o novo Presidente, Deputado Rodrigo Maia, com 285 votos a seu favor, contra 170 do segundo colocado, para terminar o mandato desse primeiro biênio (mandato tampão — art. 57, § 4.º).

A eventual perda do mandato de Eduardo Cunha depende, necessariamente, de decisão política da Casa, pendente processo por quebra de decoro, ainda não decidido até o fechamento desta edição.

9.12. Hipóteses em que não haverá a perda do mandato do Deputado OU SENADOR E OUTRAS REGRAS

O art. 56 da CF/88 enumera as hipóteses em que o Deputado ou Senador não perderá o mandato, quais sejam:

quando investido nos cargos de: Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Distrito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária (art. 56, I);

quando licenciado pela respectiva casa por: motivo de doença (art. 56, II, 1.ª parte);

quando licenciado pela respectiva casa para: tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que, neste caso, o afastamento não ultrapasse 120 dias por sessão legislativa (art. 56, II, 2.ª parte).

Algumas outras regras também foram estabelecidas, concernentes a temas correlatos às regras acima expostas. Vejamo-las:

nos casos de vaga, investidura em funções previstas no art. 56, I, ou licença superior a 120 dias: haverá convocação do suplente para assumir o mandato (art. 56, § 1.º);

ocorrendo vaga, não havendo suplente e faltando mais de 15 meses para o término do mandato: será feita nova eleição para preencher a vaga (art. 56, § 2.º);

nas hipóteses de investidura nos cargos de Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Distrito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária (art. 56, I): o Deputado ou Senador poderá optar pela remuneração do mandato;

haverá perda das imunidades parlamentares no caso de investidura nos cargos acima apontados? Sabemos que, por força do art. 56, I, o parlamentar federal não perderá o mandato. No entanto, perderá (ou melhor, ficarão suspensas) as imunidades parlamentares, de acordo, inclusive, com o art. 102, § 1.º, do RISTF, que cancelou a Súmula 4, a qual dizia o contrário. Assim, apesar de não perder o mandato, as imunidades parlamentares ficarão suspensas;57

e a prerrogativa de foro em matéria penal subsiste se o parlamentar estiver afastado nas hipóteses do art. 56, por exemplo, no caso de estar investido no cargo de Ministro de Estado? Conforme visto, os parlamentares não perdem o mandato (art. 56, I), mas ficam com as imunidades suspensas. Contudo, em situação particular, ao menos em sede de cautelar, o STF entendeu estar preservada a garantia constitucional da prerrogativa de foro em matéria penal.

Essa questão foi analisada pela Corte no julgamento da medida cautelar no MS 25.579,58 e o Min. Joaquim Barbosa, com precisão, confirmou a manutenção da prerrogativa de foro.

Tratava-se de mandado de segurança buscando trancar a tramitação e processamento de representação por quebra de decoro parlamentar de Deputado Federal licenciado e investido no cargo de Ministro de Estado.

De acordo com o voto divergente e vencedor (no julgamento do pedido de liminar), embora tenha praticado atos na condição de Ministro de Estado, não se caracteri­zavam como inerentes à função executiva, mas, sim, condutas que violavam o Código de Ética parlamentar, preservando-se, portanto, a prerrogativa de foro no to­cante à matéria penal.

9.13. Processo legislativo

9.13.1. Considerações introdutórias

O processo legislativo consiste nas regras procedimentais, constitucionalmente previstas, para a elaboração das espécies normativas, regras estas a serem criteriosamente observadas pelos “atores” envolvidos no processo.59

Nesse sentido é que o art. 59 da CF/88 estabelece que o processo legislativo envolverá a elaboração das seguintes espécies normativas:

emendas à Constituição;

leis complementares;

leis ordinárias;

leis delegadas;

medidas provisórias;

decretos legislativos;

resoluções.

Regulamentando o parágrafo único do art. 59 da CF/88, a LC n. 95/98, alterada pela LC n. 107/2001, dispôs sobre as técnicas de elaboração, redação, alteração das leis, bem como sua consolidação, e de outros atos normativos.

A importância fundamental de estudarmos o processo legislativo de formação das espécies normativas é sabermos o correto trâmite a ser observado, sob pena de ser inconstitucional a futura espécie normativa.

Quando estudamos as regras sobre controle de constitucionalidade, apontamos que uma espécie normativa poderia apresentar um vício formal (subjetivo ou objetivo) ou um vício material; vícios esses caracterizadores da inconstitucionalidade. O vício formal, como apontado, diz respeito ao processo de formação da lei (processo legislativo), cuja mácula pode estar tanto na fase de iniciativa (vício formal subjetivo) como nas demais fases do processo de formação da lei (vício formal objetivo, por exemplo, desrespeito ao quorum de votação). Já o vício material refere-se ao conteúdo da espécie normativa, à matéria por ela tratada.

Em decorrência de todos esses detalhes é que se estabelece um controle prévio ou preventivo, realizado não só pelo Legislativo (Comissões de Constituição e Justiça) como, também, pelo Executivo (por meio do veto), sem falar, é claro, do controle repressivo, ou posterior, cujo objeto é a lei ou ato normativo (já constituídos), sendo realizado pelo sistema difuso ou concentrado (lembrar que o controle de constitucionalidade no Brasil é jurisdicional misto).

Para descrever o processo legislativo e suas diversas etapas, didaticamente, começaremos pelo processo de elaboração das leis ordinárias, por ser o mais complexo de todos, juntamente com o processo de elaboração das leis complementares, cujas diferenças, como veremos, são poucas. Posteriormente, quando estivermos tratan­do das demais espécies normativas, apontaremos as peculiaridades que as individualizam.

9.13.2. Esquema do processo legislativo das leis ordinárias e complementares

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9.13.3. Fase de iniciativa

A primeira fase do processo legislativo é a fase de iniciativa, deflagradora, iniciadora, instauradora de um procedimento que deverá culminar, desde que preenchidos todos os requisitos e seguidos todos os trâmites, com a formação da espécie normativa.

Buscando critérios classificatórios, dividimos as hipóteses de iniciativa em: geral, concorrente, privativa, popular, conjunta, do art. 67 e a parlamentar ou extraparlamentar.

9.13.3.1. Regra geral para a iniciativa

De maneira ampla, a CF atribui competência às seguintes pessoas e aos órgãos, conforme prevê o art. 61, caput (iniciativa geral):

qualquer Deputado Federal ou Senador da República;

Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso nacional;

Presidente da República;

Supremo Tribunal Federal;

Tribunais Superiores;

Procurador-Geral da República;

cidadãos.

9.13.3.2. Iniciativa concorrente

A iniciativa concorrente refere-se à competência atribuída pela Constituição a mais de uma pessoa ou órgão para deflagrar o processo legislativo. Como exemplo podemos lembrar a iniciativa para elaborar leis complementares e ordinárias, concedida a qualquer membro ou Comissão da Câmara, Senado ou Congresso, ao Presidente da República e aos cidadãos.

Outro exemplo de iniciativa concorrente a ser lembrado, e que será estudado oportunamente, diz respeito à alteração da Constituição por meio de emendas constitucionais (cf. art. 60, I, II e III).

9.13.3.3. Iniciativa “privativa” (reservada ou exclusiva)

Algumas leis são de iniciativa privativa de determinadas pessoas ou órgãos, só podendo o processo legislativo ser deflagrado por eles, sob pena de se configurar vício formal de iniciativa, caracterizador da inconstitucionalidade do referido ato normativo.

Muito embora a Constituição fale em competência privativa, melhor seria dizer, em muitas das hipóteses, competência exclusiva (ou reservada), em razão da marca de sua indelegabilidade, como se percebe a seguir.

9.13.3.3.1. Iniciativa reservada ao Presidente da República

Como exemplo, temos o art. 61, § 1.º, que estabelece como leis de iniciativa privativa do Presidente da República as que:

fixem ou modifiquem: os efetivos das Forças Armadas;60

disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;61 d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;62 e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública, observado o disposto no art. 84, VI (nova redação determinada pela EC n. 32, de 11.09.2001); f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.63

9.13.3.3.2. Iniciativa reservada aos Governadores dos Estados e do DF e aos Prefeitos — simetria com o modelo federal

As hipóteses previstas na Constituição Federal de iniciativa reservada do Presidente da República, pelos princípios da simetria e da separação de Poderes, devem ser observadas em âmbito estadual, distrital e municipal, ou seja, referidas matérias terão de ser iniciadas pelos Chefes do Executivo (Governadores dos Estados e do DF e Prefeitos), sob pena de se configurar inconstitucionalidade formal subjetiva. Nesse sentido:

“Processo legislativo dos Estados-Membros: absorção compulsória das linhas básicas do modelo constitucional federal, entre elas, as decorrentes das normas de reserva de iniciativa das leis, dada a implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes: jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal” (ADI 637, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25.08.2004, DJ de 1.º.10.2004).

“À luz do princípio da simetria, é (sic) de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo estadual as leis que disciplinem o regime jurídico dos militares (art. 61, § 1.º, II, ‘f’, da CF/1988). Matéria restrita à iniciativa do Poder Executivo não pode ser regulada por emenda constitucional de origem parlamentar” (ADI 2.966, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 06.04.2005, DJ de 06.05.2005).

Assim, está errado dizer que o Presidente da República terá iniciativa privativa (mais tecnicamente reservada) para dispor sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou no aumento de sua remuneração, em todas as unidades da Federação. A sua atribuição, conforme visto, restringe-se ao âmbito federal (art. 61, § 1.º, II, “a”) sendo, em cada unidade federativa, a iniciativa do respectivo Chefe do Poder Executivo.

Essa dúvida deixa de existir em relação às outras hipóteses do art. 61, § 1.º, II, na medida em que nas alíneas “b” e “c” já há indicação expressa da União e dos Territórios (que, aliás, são uma extensão da União, não podendo ser definidos como unidade federativa).

9.13.3.3.3. Iniciativa reservada do Judiciário

A CF/88, no art. 96, II, dispõe serem de iniciativa privativa (reservada ou exclusiva) do STF, Tribunais Superiores e Tribunais de Justiça as matérias de seu interesse exclusivo.­

Além disso, há previsão no art. 93 para a elaboração de lei complementar, de iniciativa do STF, que disporá sobre o Estatuto da Magistratura.

Em relação ao tema, destacamos a EC n. 73/2013, que criou os Tribunais Regionais Federais das 6.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª Regiões, introduzindo o § 11 ao art. 27 do ADCT.

A necessidade de se aumentar por emenda decorre da regra contida no art. 27, § 6.º, do ADCT, que criou, em 1988, os atuais 5 TRFs.

Contra referida emenda, foi ajuizada a ADI 5.017 pela Associação Nacional dos Procuradores Federais (ANPAF) e, em 18.07.2013, o Min. Joaquim Barbosa concedeu liminar, suspendendo os seus efeitos (pendente de apreciação pelo Pleno).

Dentre os argumentos expostos, está o suposto vício formal por violação ao art. 96, II, “c” e “d”, reconhecido em sede de liminar e com fundamento em alguns prece­dentes, como ADI 3.930, ADI 2.966 etc. (esses precedentes tratam de matérias de iniciativa de lei reservada ao Governador do Estado e que foram objeto de PEC estadual).

Contudo, com o máximo respeito, não nos parece haver relação entre a jurisprudência pacífica do STF em aplicar a simetria aos projetos de lei de iniciativa do Chefe do Poder Executivo (art. 61, §§ 1.º e 2.º), com o tema objeto da ADI 5.017, qual seja, a alteração da Constituição por emenda para criação de tribunais inferiores.

Nesse sentido, destacamos a EC 45/2004, que criou o CNJ (apesar de não ser tribunal inferior é órgão do Poder Judiciário — art. 92, I-A), bem como extinguiu os tribunais de alçada. Ainda, a EC 24/99 pôs fim aos juízes classistas. Todas, nesses pontos, foram declaradas constitucionais pelo STF.

O constituinte originário fixou os legitimados para reforma da Constituição, indicados no art. 60, I, II e III, e os limites materiais nas cláusulas pétreas, não se podendo criar mais um limite a partir do art. 96, II. Resta aguardar a decisão da Corte, lembrando a importância da criação desses novos TRFs para eficiência da Justiça Federal no Brasil.

9.13.3.3.4. Iniciativa reservada aos Tribunais de Contas

O art. 73 da CF/88 estabelece que o TCU exerce, no que couber, as atribuições previstas no art. 96.

Nos termos do art. 96, portanto, compete ao TCU propor ao Poder Legislativo (iniciativa reservada) projetos de lei referentes às matérias ali indicadas, por exemplo, a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares, bem como a fixação do subsídio de seus membros.

Esse entendimento deve ser estendido, também, às demais Cortes de Contas, e, nesse caso, o projeto de lei tem de ser encaminhado pelo respectivo Tribunal, sob pena de vício formal (art. 75, caput, da CF/88).

“EMENTA: Inconstitucionalidade formal da lei estadual, de origem parlamentar, que altera e revoga diversos dispositivos da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins. A Lei estadual 2.351/2010 dispôs sobre forma de atuação, competências, garantias, deveres e organização do Tribunal de Contas estadual. Conforme reconhecido pela Constituição de 1988 e por esta Suprema Corte, gozam as Cortes de Contas do país das prerrogativas da autonomia e do autogoverno, o que inclui, essencialmente, a iniciativa reservada para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e seu funcionamento, como resulta da interpretação sistemática dos arts. 73, 75 e 96, II, ‘d’, da CF...” (ADI 4.418-MC, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06.10.2010, Plenário, DJE de 22.02.2011 e, no mesmo sentido ADI 1.994, j. 24.05.2006).

9.13.3.3.5. Assuntos exclusivos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal

O art. 51, IV, estatui ser competência privativa (exclusiva) da Câmara dos Deputados dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para a fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros previstos na lei de diretrizes orçamentárias.

Idêntica é a previsão constante do art. 52, XIII, em relação ao Senado Federal.

9.13.3.3.6. Podemos falar em iniciativa reservada de matéria tributária?

Não.

O art. 61, § 1.º, II, “b”, da CF/88 determina serem de iniciativa reservada do Presidente da República as leis que disponham sobre “organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios”.

Assim, o STF já entendeu que a exclusividade para iniciar o processo legislativo sobre matéria tributária refere-se às leis dos Territórios Federais.

No âmbito da União, Estados-Membros, DF e Municípios, a iniciativa de leis so­bre matéria tributária é concorrente entre os Chefes do Executivo e os membros do Legislativo, podendo-se, ainda, avançar e sustentar a iniciativa popular sobre matéria tributária, desde que observadas as formalidades do art. 61, § 2.º.

Nessa linha: “a Constituição de 1988 admite a iniciativa parlamentar na instauração do processo legislativo em tema de direito tributário. A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado” (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 07.05.1992, DJ de 27.04.2001).

Ou, ainda: “(...). Processo legislativo: matéria tributária: inexistência de reserva de iniciativa do Executivo, sendo impertinente a invocação do art. 61, § 1.º, II, “b”, da Constituição, que diz respeito exclusivamente aos Territórios Federais” (grifamos — ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 19.10.2006, DJ de 17.11.2006). No mesmo sentido: ADI 2.392-MC, Rel. Min. Moreira Alves, j. 28.03.2001, DJ de 1.º.08.2003; ADI 2.474, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 19.03.2003, DJ de 25.04.2003; ADI 2.638, Rel. Min. Eros Grau, j. 15.02.2006, DJ de 09.06.2006.

9.13.3.3.7. Iniciativa do processo legislativo de matérias pertinentes ao Plano Plurianual, às Diretrizes Orçamentárias e aos Orçamentos Anuais

Nos termos do art. 165, I, II e III, da CF/88, leis de iniciativa do Poder Executi­vo estabelecerão o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais.

Decidiu o STF: “competência exclusiva do Poder Executivo iniciar o processo legislativo das matérias pertinentes ao Plano Plurianual, às Diretrizes Orçamentárias e aos Orçamentos Anuais. Precedentes: ADI n. 103 e ADI n. 550” (ADI 1.759-MC, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 12.03.1998, DJ de 06.04.2001).

9.13.3.3.8. Pode o legitimado exclusivo ser compelido a deflagrar processo legislativo?

De modo geral, o STF entendeu que não poderá o legitimado exclusivo ser “forçado” a deflagrar o processo legislativo, já que a fixação da competência reservada traz, implicitamente, a discricionariedade para decidir o momento adequado de encaminhamento do projeto de lei.64

Havendo prazo fixado na Constituição (ex.: art. 35, § 2.º, do ADCT), ou em emenda (ex.: art. 5.º da EC n. 42/2003), naturalmente o legitimado exclusivo poderá ser compelido a encaminhar o projeto de lei.

Por certo, poderá ser reconhecida a inconstitucionalidade por omissão na hipótese de não regulamentação de artigos da Constituição de eficácia limitada e desde que observado o critério da razoabilidade.

9.13.3.3.9. Cabe emenda parlamentar em projetos de iniciativa reservada?

O texto de 1988 restituiu aos parlamentares boa parte do poder de emenda que lhes havia sido retirado pelo regime (ditatorial) anterior.

Nos termos do art. 63, I e II, não será admitido aumento da despesa prevista a) nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República, ressalvado o disposto no art. 166, §§ 3.º e 4.º; b) nos projetos sobre organização dos serviços administrativos­ da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público. A contrario sensu, então, será admitido o poder de emenda parlamentar.

Dessa forma, de modo geral, entende o STF que cabe emenda parlamentar desde que respeitados os seguintes requisitos:

os dispositivos introduzidos por emenda parlamentar não podem estar destituí­dos de pertinência temática com o projeto original;

os dispositivos introduzidos por emenda parlamentar não podem acarretar aumento de despesa ao projeto original.

Assim, cabe emenda parlamentar nas hipóteses de lei de iniciativa exclusiva do Presidente da República, desde que haja pertinência temática e, por regra, não acarrete aumento de despesas.

Excepcionalmente, contudo, nos projetos orçamentários de iniciativa exclusiva do Presidente da República, admitem-se emendas parlamentares mesmo que impliquem aumento de despesas (art. 63, I, c/c o art. 166, §§ 3.º e 4.º):

ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem e desde que: a) sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias; b) indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre dotações para pessoal e seus encargos; serviço da dívida; transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal; c) sejam relacionadas com a correção de erros ou omissões ou com os dispositivos do texto do projeto de lei;

ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias, desde que as emendas parlamentares que acarretem aumento sejam compatíveis com o plano plurianual.

Avançando, nos termos do art. 63, II, também cabem emendas parlamentares, desde que haja pertinência temática e não acarretem aumento de despesas, aos projetos sobre organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados (art. 51, IV — Resolução), do Senado Federal (art. 52, XIII — Resolução), dos Tribunais Federais (arts. 61, caput, e 96, II) e do Ministério Público (arts. 61, caput; 127, § 2.º; e 128, § 5.º).

Nesse sentido, “art. 34, § 1.º, da Lei estadual do Paraná n. 12.398/98, com redação dada pela Lei estadual n. 12.607/99. (...) Inconstitucionalidade formal caracterizada. Emenda parlamentar a projeto de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo que resulta em aumento de despesa afronta os arts. 63, I, c/c 61, § 1.º, II, ‘c’, da Constituição Federal” (ADI 2.791, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 16.08.2006, DJ de 24.11.2006).65

Finalmente, cabe alertar que, se for apresentada emenda a projeto de iniciativa reservada que não tenha observado o requisito da pertinência temática com o projeto original e/ou que acarrete aumento de despesa, eventual sanção presidencial não convalidará o vício formal caracterizador da inconstitucionalidade da lei.66

9.13.3.3.10. As regras de iniciativa reservada previstas na CF/88 devem ser observadas em relação às normas fruto da manifestação do poder constituinte derivado decorrente?

O STF tem entendido que as normas originárias das Constituições dos Estados ou da Lei Orgânica do DF, mas desde que pela primeira vez, podem tratar de normas que são de iniciativa reservada, como, para se ter um exemplo, normas que seriam de iniciativa reservada ao Chefe do Executivo simétricas àquelas elencadas no art. 61, § 1.º, I e II.

Dessa forma, superando a sua jurisprudência, o STF pacificou que “as regras de iniciativa reservada previstas na Carta da República não se aplicam às normas originárias das constituições estaduais ou da Lei Orgânica do Distrito Federal” (ADI 1.167, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 19.11.2014, Plenário, DJE de 10.02.2015).

Conforme estudamos no item 4.5.3, o poder constituinte derivado decorrente dos Estados e do DF manifesta-se tanto de modo inicial, elaborando, pela primeira vez, a Constituição Estadual ou a Lei Orgânica do DF — e por isso também denominado instituidor ou institucionalizador —, como de modo revisional, modificando o texto da Constituição estadual ou da Lei Orgânica do DF — e, por isso, chamado de segundo grau.

O entendimento da Corte no sentido de não haver a exigência de se observar a regra da iniciativa reservada refere-se ao poder constituinte derivado decorrente inicial, ou seja, aquele que elabora a Constituição do Estado ou a Lei Orgânica do DF pela primeira vez (cf. ADI 2.581, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, j. 16.08.2007, Plenário, DJE de 15.08.2008). Nesse caso, enfatizamos, não estará caracterizada qualquer violação à regra da iniciativa reservada.

9.13.3.3.11. As regras de iniciativa reservada previstas na CF/88 devem ser observadas, enquanto limites, pelo poder constituinte derivado reformador (PEC)?

Não.

Entendemos que as únicas limitações que devem ser observadas em relação às emendas constitucionais são os já estudados limites ao poder de reforma.

Assim, as matérias de iniciativa reservada ao Presidente da República (art. 61, § 1.º, II) podem ser tratadas por emendas constitucionais. É o que se verificou com a EC n. 73/2013 (cf. item 9.13.3.3.3) ou, para se ter um outro importante exemplo, a EC n. 74/2013, que estabeleceu a autonomia da Defensoria Pública da União (cf. aprofundamento no item 12.6.5).

No caso específico das PECs, o constituinte permitiu a reforma da Constituição não apenas em razão de proposta encaminhada pelo Presidente da República, mas, indistintamente e de modo concorrente, por todos os indicados no art. 60, I, II e III. Assim, não encontramos fundamento na Constituição para se sustentar, em relação a determinadas matérias, a competência exclusiva do Presidente da República.

9.13.3.3.12. Sanção presidencial convalida vício de iniciativa?

Não.

Muito embora a regra contida na S. 5/STF, de 13.12.1963 (“a sanção do projeto supre a falta de iniciativa do Poder Executivo”), pode-se dizer que o seu conteúdo está superado desde o advento da EC n. 1/69 (art. 57, parágrafo único — cf. Rp 890, RTJ 69/625), bem como insubsistente em razão da CF/88 (ADI 1.381-MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 07.12.1995, Plenário, DJ de 06.06.2003.

Portanto, sanção presidencial não convalida vício de iniciativa. Trata-se de vício formal insanável, incurável.67

9.13.3.4. Iniciativa popular

9.13.3.4.1. Aspectos gerais

O art. 14, caput, da CF/88 prevê que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular.

Trata-se de novidade introduzida pela CF/88, a exemplo do art. 71 da Carta italiana de 1948, estabelecendo a possibilidade de o eleitorado nacional deflagrar processo legislativo de lei complementar ou ordinária, mediante proposta de, no mínimo, 1% de todo o eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco Estados e, em cada um deles com não menos do que 3/10% dos seus eleitores (art. 61, § 2.º, c/c o art. 14, III, da CF/88 e Lei n. 9.709/98).

Portanto, a iniciativa popular caracteriza-se como uma forma direta de exercício do poder (que emana do povo — art. 1.º, parágrafo único), sem o intermédio de representantes, através de apresentação de projeto de lei, dando-se início ao processo legislativo de formação da lei.68

O que deve ficar claro é que o aludido instituto serve apenas para dar o “start”, ou seja, tão só para deflagrar o processo legislativo, sendo que o Parlamento poderá rejeitar o projeto de lei ou, ainda, o que é pior, emendá-lo, desnaturando a essência do instituto. No mesmo sentido e pela mesma lógica, aprovado pelo parlamento o projeto de iniciativa popular, o Presidente da República poderá vetá-lo.

Poderíamos pensar que, havendo qualquer modificação, a lei aprovada tenha de passar por referendo popular, mas não é, infelizmente, a tese que vigora.

Esquematizando as regras para a iniciativa popular previstas no art. 61, § 2.º, da CF/88, temos:

iniciativa?: popular;

de que forma?: apresentação de projeto de lei ordinária ou complementar à Câmara dos Deputados;69 e 70

como deve ser apresentado o projeto de lei?: o projeto de lei deve ser subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado nacional;

como deve estar disposto esse “1% do eleitorado nacional”?: 1% do eleitorado nacional deve estar distribuído por, pelo menos, 5 Estados e, em cada Estado, não pode haver menos que 3/10% dos seus eleitores, subscrevendo o projeto de lei.

Para se ter uma noção do número necessário, em junho de 2016 o eleitorado nacional, informado pelo TSE (incluindo os cidadãos brasileiros residentes no exterior), era de 146.470.880 eleitores. Portanto, o número para a iniciativa popular seria de, pelo menos, 1.464.709, obedecendo-se, ainda, às regras expostas na Constituição de percentual mínimo por Estado.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, diante desse rigorismo procedimental e numérico, qualifica a iniciativa popular como “instituto decorativo”.71

O art. 13, § 1.º, da Lei n. 9.709/98, no mesmo sentido do que já dizia o art. 252, VIII, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, dispõe que o projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto, isso para facilitar a coleta de assinaturas e a exata compreensão do que se está assinando.

O art. 13, § 2.º, da Lei n. 9.709/98 prevê que o projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, que é a Casa iniciadora (sendo o Senado Federal a Casa revisora), por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação, sendo que o art. 14 estabelece que a Câmara dará seguimento à iniciativa popular consoante as normas do Regimento Interno.

Para aprofundar o assunto, o(a) amigo(a) concurseiro(a) poderá analisar o art. 252 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, bem como os arts. 24, II, “c”; 91, II; 105, IV, e 171, § 3.º, do Regimento Interno do Senado Federal.

9.13.3.4.2. Existe algum exemplo de lei fruto de iniciativa popular?

Surge o grande questionamento: o Brasil tem tradição em projetos de iniciativa popular? Há alguma lei que teve a iniciativa popular nos termos do art. 61, § 2.º, da CF/88?

Existem somente quatro projetos de lei de iniciativa popular aprovados (com algumas observações, abaixo, sobre se, de fato, foram em sua essência de iniciativa popular), apresentados a seguir em ordem cronológica de aprovação:

Lei n. 8.930/94: conhecido como o Projeto de Iniciativa Popular Glória Perez, em razão do homicídio de sua filha, o documento reuniu mais de 1 milhão e 300 mil assinaturas, culminando com a modificação da Lei de Crimes Hediondos. Cabe alertar, contudo, que, na prática, esse projeto foi encaminhado pelo Presidente da República, pela Mensagem n. 571, de 08.09.1993, que, autonomamente, já teria iniciativa para deflagrar o processo legislativo. No site da Câmara dos Deputados, o projeto aparece como sendo de coautoria do Executivo e da Iniciativa Popular. No site do Senado Federal, contudo, na tramitação legislativa aparece como sendo somente do Executivo;

Lei n. 9.840/99: conhecido como “captação de sufrágio”, buscou, nos termos de sua justificativa, “... dar mais condições para que a Justiça Eleitoral possa coibir com mais eficiência o crime de compra de votos de eleitores” (DCD, 15.09.1999, p. 41598). Iniciou-se com o lançamento do projeto “Combatendo a corrupção eleitoral”, em fevereiro de 1997, pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sendo apoiada a iniciativa por mais de 60 entidades.

Até 10.08.1999 tinha sido subscrito o projeto de iniciativa popular por 952.314 eleitores, sendo entregue ao Presidente da Câmara dos Deputados. O tempo era muito curto, pois se queria aprovar a nova regra para já ser aplicada nas eleições do ano 2000 e, ainda, faltavam votos para alcançar o percentual constitucional (à época, correspondente a 1 milhão e 60 mil assinaturas).

Diante dessa situação, faltando assinaturas e existindo o real risco de eventual questionamento de sua validação técnica, o projeto foi subscrito pelo Deputado Albérico Cordeiro e outros 59 parlamentares, sendo aprovado em tempo recorde e passando as suas regras a ser aplicadas já a partir das eleições de 2000 (o Presidente da República sancionou a lei em 28.09.1999, que foi publicada no DOU de 29.09.1999, portanto um dia antes do prazo fatal para a sua aplicação no pleito de 1.º de outubro de 2000 — vide art. 16 da CF/88).72

Por fim, apenas a título de esclarecimento, cabe observar que a ADI 2.942 questiona o art. 41-A da Lei n. 9.504/97 (Lei das Eleições), acrescentado pela Lei n. 9.840/99,73 sendo alegada a tese de que a matéria prevista no referido artigo deveria ser objeto de lei complementar, e não lei ordinária, já que se estaria criando mais uma hipótese de inelegibilidade (art. 14, § 9.º, da CF/88).

O tema foi resolvido em outra ADI, conforme Inf. 446/STF: “o Tribunal julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Socialista Brasileiro — PSB contra a expressão ‘cassação do registro ou do diploma’, constante do art. 41-A da Lei 9.504/97, pena cominada ao crime de captação de sufrágio nele definido. Na linha do que decidido no julgamento da ADI n. 3.305/DF (j. 13.9.2006), entendeu-se que a cominação da referida sanção não implica nova hipótese de inelegibilidade, não havendo, portanto, ofensa ao § 9.º do art. 14 da CF. De igual modo, afastou-se a alegação de afronta ao disposto nos §§ 10 e 11 do citado art. 14 da CF. Ressaltou-se, no ponto, que o procedimento da representação para a apuração da conduta descrita no art. 41-A da Lei 9.504/97 é o previsto nos incisos I a XIII do art. 22 da Lei Complementar 64/90, já que ela não implica declaração de inelegibilidade, mas apenas cassação do registro ou do diploma, diferentemente do que ocorre na ação de investigação judicial eleitoral, em relação à qual aplicam-se os incisos I e XV do art. 22 da aludida LC. Por isso, a decisão fundada no art. 41-A da Lei 9.504/97 tem eficácia imediata, não incidindo o que previsto no art. 15 da LC 64/90, que exige o trânsito em julgado da decisão para a declaração de inelegibilidade do candidato. Afirmou-se, por fim, que o art. 41-A foi introduzido na Lei 9.504/97, pela Lei 9.840/99, com o objetivo de combater as condutas ofensivas ao direito fundamental ao voto, isto é, proteger a vontade do eleitor” (ADI 3.592/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 26.10.2006).

Lei n. 11.124/2005: conhecida como “fundo nacional para moradia popular”, a lei dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e institui o Conselho Gestor do FNHIS.

Trata-se do primeiro projeto de iniciativa popular da história brasileira apresentado à Câmara dos Deputados (lembrar que o instituto da iniciativa popular foi introduzido pela CF/88) — PL n. 2.710/92-CD, que tramitou por mais de 13 anos. “O principal objetivo do Fundo é somar e articular todos os recursos para ações em habitação nos três níveis de governo — federal, estaduais e municipais —, e direcioná-los para atender as famílias de baixa renda.”74

A Comissão de Constituição e Justiça, durante a tramitação do referido projeto de lei, que culminou na aprovação da Lei n. 11.124/2005, chegou a discutir eventual vício formal de iniciativa na medida em que, em tese, o dispositivo legal contém normas sobre Administração Pública, criação de órgãos, atribuição de competências, gestão de recursos etc., o que poderia levar ao entendimento de que só ao Presidente da República caberia iniciar o aludido processo legislativo, nos termos do art. 61, § 1.º, II, “a” e “e”.

Esse entendimento literal não nos parece o mais correto, como veremos a seguir, especialmente diante do sentido maior de titularidade do poder pelo povo, que elege o Presidente da República, à luz da interpretação sistemática do texto.

No entanto, esse tema ainda não foi enfrentado pelo STF e, de modo geral, para as provas preambulares, não vem sendo aceito o instituto da iniciativa popular em matérias de iniciativa reservada ou exclusiva.

LC n. 135/2010 (“Ficha Limpa”): muito embora tenha sido iniciada a discussão a partir de projeto originário do Executivo (PLP 168/93), o Projeto de Lei Complementar n. 518/2009 (Câmara dos Deputados) foi encaminhado por diversos Deputados Federais, apoiado por 1 milhão e 700 mil assinaturas, com o objetivo de tramitar como projeto de iniciativa popular. Assim, puramente, não foi um projeto exclusivamente de iniciativa popular, mas, sim, teve ampla aceitação da sociedade.

9.13.3.4.3. Conclusões iniciais

Por todo o exposto, percebe-se que a experiência brasileira é muito tímida. Reconhecemos que os requisitos rígidos contribuem para essa situação (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, como vimos, fala em “instituto decorativo”). Contudo, na prática, temos certeza de que o instituto consagra a soberania popular e serve, ao menos, de pressão para que o Congresso Nacional priorize as matérias, mesmo quando o projeto é encampado por algum Parlamentar ou outro órgão que tenha a possibilidade da iniciativa legislativa.

Essa realidade, que demonstra a pouca participação popular nos projetos de lei, vem sendo, entretanto, discutida no Congresso Nacional, e há vários projetos no sentido de facilitar e viabilizar a democracia participativa, como a PEC n. 2/99, que diminui o percentual das assinaturas para 0,5% do eleitorado nacional, o PL 4.764/2009, que admite a assinatura digital (eletrônica) para o envio das propostas, o PL 7.003/2010, que possibilita o uso de urnas eletrônicas para a coleta das assinaturas, entre tantos outros.

Buscando minimizar essa realidade, tanto na Câmara como no Senado, já existem Comissões Participativas, destacando-se:

Comissão de Legislação Participativa (art. 32, XII, do RICD): possui, como campo temático ou área de atividade: a) sugestões de iniciativa legislativa apresentadas por associações e órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil, exceto partidos políticos; b) pareceres técnicos, exposições e propostas oriundas de entidades científicas e culturais e de qualquer das entidades mencionadas na alínea “a” desse inciso;

Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (art. 102-E do RISF): compete opinar sobre: I — sugestões legislativas apresentadas por associações e órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil, exceto partidos políticos com representação política no Congresso Nacional; II — pareceres técnicos, exposições e propostas oriundas de entidades científicas e culturais e de qualquer das entidades mencionadas no inciso I.

9.13.3.4.4. Iniciativa popular de “PEC”?

Conquanto desejável, o sistema brasileiro não admitiu expressamente a iniciativa popular para propostas de emendas à Constituição (PEC), apesar de entendermos perfeitamente cabível, como se verá abaixo.

Ao contrário, de modo expresso, o exercício do poder constituinte derivado reformador foi direcionado para o rol de legitimados previsto no art. 60, I, II e III, da CF/88, consagrando a denominada iniciativa concorrente.

Diante disso, Mônica de Melo sustenta que “... projeto de lei de iniciativa popular não pode alterar normas constitucionais, uma vez que o instrumento próprio é a emenda constitucional, que possui iniciativa própria e diferenciada das outras espécies”.75

No entanto, com o máximo respeito, ousamos discordar, apontando para uma linha mais ampla da regra prevista no art. 61, § 2.º.

Valemo-nos, para tanto, da interpretação sistemática, destacando o art. 1.º, parágrafo único, que permite o exercício do poder de forma direta pelo próprio povo, e o art. 14, III, ao estabelecer que a soberania popular será exercida mediante a iniciativa popular.

Nesse sentido, José Afonso da Silva pondera que a iniciativa popular para PEC pode vir a ser reconhecida “... com base em normas gerais e princípios fundamentais da Constituição”, apesar de não estar esse tipo de iniciativa popular “... especificamente estabelecido para emendas constitucionais como o está para as leis (art. 61, § 2.º)”.76

E complementa afirmando que o instituto da iniciativa popular para PEC “... vai depender do desenvolvimento e da prática da democracia participativa que a Constituição alberga como um de seus princípios fundamentais”.77

Como responder nas provas de concursos públicos? Tratando-se de prova escrita, tranquilo: cada um vai desenvolver a linha de raciocínio pela admissibilidade (interpretação sistemática) ou não (interpretação literal). E na prova preambular? Com todo o respeito, esperamos que esse tipo de pergunta não apareça em nenhum concurso em prova preambular de múltipla escolha.

O que se pode perguntar é se a iniciativa popular de PEC foi prevista expressamente no texto da CF/88. A resposta é não. O que temos é a sua admissibilidade em razão de interpretação sistemática.

Cabe alertar, para termos exemplos, que, dos 26 Estados + o DF, 18, portanto mais da metade, admitem, de forma declarada e expressa (vide quadro a seguir), a iniciativa popular para encaminhamento de PEC.

Alguns Municípios também admitem o encaminhamento de emendas por iniciativa popular (apenas para ilustrar, confira o art. 5.º, § 1.º, II, da Lei Orgânica do Município de São Paulo).

Como exemplo de proposta de emenda popular podemos citar a PEC n. 3/98 (aprovada como EC n. 31/2005) à Constituição do Estado do Pará, que, de maneira inédita, suspendeu a restrição do passe livre às pessoas portadoras de deficiência nos transportes públicos rodoviários e aquaviários, intermunicipais e municipais, no Pará, modificando o art. 249, VI, “a”, da Constituição do Estado.78

Quadro Comparativo das Constituições Estaduais

ESTADOS DA FEDERAÇÃO

PREVISÃO EXPRESSA DE INICIATIVA POPULAR DE “PEC” NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL? SIM

PREVISÃO EXPRESSA DE INICIATIVA POPULAR DE “PEC” NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL? NÃO

Acre

art. 53, III, da Constituição Estadual

 

Alagoas

art. 85, IV, da Constituição Estadual

 

Amapá

arts. 103, IV, e 110 da Constituição Estadual

 

Amazonas

art. 32, IV, da Constituição Estadual

 

Bahia

art. 31 da Constituição Estadual

 

Ceará

 

não há previsão expressa na Constituição

DF

art. 70, III, da Lei Orgânica do DF

 

Espírito Santo

art. 62, III, da Constituição Estadual

 

Goiás

art. 19, IV, da Constituição Estadual

 

Maranhão

 

não há previsão expressa na Constituição

Mato Grosso

 

não há previsão expressa na Constituição

Mato Grosso do Sul

 

não há previsão expressa na Constituição

Minas Gerais

 

não há previsão expressa na Constituição

Pará

art. 8.º, parágrafo único, da Constituição Estadual

 

Paraíba

art. 62, IV — acrescentado pela EC n. 2/93 (Constituição Estadual)

 

Paraná

 

não há previsão expressa na Constituição

Pernambuco

art. 17, III, da Constituição Estadual

 

Piauí

 

não há previsão expressa na Constituição

Rio de Janeiro

art. 111, IV — acrescentado pela EC n. 56/2013 (Constituição Estadual)

 

Rio Grande do Norte

art. 45, III — acrescentado pela EC n. 13/2014 (Constituição Estadual)

 

Rio Grande do Sul

art. 58, IV, da Constituição Estadual

 

Rondônia

 

não há previsão expressa na Constituição

Roraima

art. 39, IV, da Constituição Estadual

 

Santa Catarina

art. 49, IV, da Constituição Estadual

 

São Paulo

art. 22, IV, da Constituição Estadual

 

Sergipe

art. 56, IV, da Constituição Estadual

 

Tocantins

 

não há previsão expressa na Constituição

Canotilho, analisando a Constituição de Portugal, observa que “a iniciativa popular é um procedimento democrático que consiste em facultar ao povo (a uma percentagem de eleitores ou a um certo número de eleitores) a iniciativa de uma proposta tendente à adoção de uma norma constitucional ou legislativa”.79

Parece uma linha bastante interessante de se pensar, especialmente se se fizer uma interpretação sistemática da Constituição, lembrando que a titularidade do po­der pertence ao povo, nos termos do art. 1.º, parágrafo único, da CF/88, e que a so­berania popular é exercida pelo plebiscito, pelo referendo e pela iniciativa popular.

Realizando pesquisa na jurisprudência do STF, encontramos apenas um único caso em que se analisava a possibilidade de PEC de iniciativa popular em âmbito estadual, qual seja, o questionamento da constitucionalidade dos arts. 103, IV, e 110 da Constituição do Amapá, na ADI 825-1. No julgamento da liminar, o STF suspendeu a eficácia de outros dispositivos que também eram objeto de impugnação e não esses que tratavam da iniciativa popular (matéria pendente de julgamento de mérito).

Esperamos que o STF não julgue inconstitucional esse importante instrumento de democracia direta, de exercício do poder pelo próprio povo e de consolidação da soberania popular e implemento da cidadania.

9.13.3.4.5. Cabe iniciativa popular de matérias reservadas à iniciativa exclusiva de outros titulares?

De modo geral, não se admite a iniciativa popular para matérias em relação às quais a Constituição fixou determinado titular para deflagrar o processo legislativo (iniciativa exclusiva ou reservada).

Como todos sabem, existe previsão de iniciativa reservada (exclusiva) para o Presidente da República (art. 61, § 1.º); o Poder Judiciário (ex., art. 93); as Mesas da Câmara e do Senado (arts. 51, IV, e 52, XIII) etc.

O único questionamento que vem surgindo é quanto à possibilidade ou não de iniciativa popular em matérias de iniciativa reservada do Presidente da República (em relação aos outros titulares, a dúvida estaria afastada).

Temos um exemplo concreto: conforme vimos, a Comissão de Constituição e Justiça, durante a tramitação do projeto de lei que culminou na aprovação da Lei n. 11.124/2005 (de iniciativa popular), chegou a discutir eventual vício formal de iniciativa tendo em vista que a matéria tratada, nos termos do art. 61, § 1.º, II, “a” e “e”, seria de competência exclusiva, portanto, indelegável, do Presidente da República.

O entendimento da CCJ, tanto da CD como do SF, foi o de que não haveria vício de iniciativa. Isso porque o processo legislativo teria sido instaurado por iniciativa popular, lembrando que todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes.

Parece-nos bastante sedutora essa tese. Vamos aguardar, contudo, eventual manifestação do STF sobre o assunto.

Para as provas, especialmente as preambulares, temos visto o entendimento de que, genericamente, não caberia iniciativa popular em matérias de iniciativa reservada. Não encontramos nenhuma prova que tenha feito pergunta no sentido de iniciativa popular em caso de iniciativa reservada do Presidente da República.

José Afonso da Silva, expressamente, ao falar sobre a iniciativa popular, observa que se trata de “... iniciativa legislativa que ingressa no campo das iniciativas concorrentes. Não se admite iniciativa legislativa popular em matéria reservada à iniciativa exclusiva de outros titulares...”.80

Fica o tema para ser discutido...

9.13.3.4.6. Iniciativa popular e as espécies normativas: esquematização

Nesse tópico, procuramos sistematizar o cabimento de iniciativa popular em relação às espécies normativas do art. 59. Então vejamos:

ESPÉCIE NORMATIVA

CABE INICIATIVA POPULAR?

emendas à Constituição

apesar de não haver previsão expressa na CF/88, admite-se, desde que se faça a já comentada e discutida interpretação sistemática do texto

Leis complementares

a CF expressamente admite nos termos do art. 61, § 2.º

Leis ordinárias

a CF expressamente admite nos termos do art. 61, § 2.º

Leis delegadas

não se admite, já que a delegação, nos termos do art. 68, deve ser solicitada pelo Presidente da República e concedida, por meio de resolução, pelo Congresso Nacional ao Presidente da República e somente a ele

Medidas provisórias

não se admite, já que a titularidade para a edição de MP é exclusiva do Chefe do Executivo nos casos de relevância e urgência e nos termos do art. 62 da CF/88

Decretos legislativos

não se admite, já que o decreto legislativo é o instrumento pelo qual o Congresso Nacional materializa as suas competências exclusivas previstas no art. 49 da CF/88

Resoluções

não se admite, já que a resolução é o instrumento pelo qual se instrumentalizam as atribuições da CD, do SF ou algumas comuns fixadas no regimento interno do Congresso Nacional

9.13.3.4.7. Iniciativa popular em âmbito estadual e municipal

A iniciativa popular em âmbito estadual está prevista no art. 27, § 4.º, que transfere a sua regulamentação para lei. Apenas a título de ilustração, a Constituição do Estado de São Paulo regulamenta a matéria em seu art. 24, § 3.º, trazendo diversas regras.

O art. 29, XIII, da CF/88 fixa as regras para a iniciativa popular em âmbito municipal, dispondo de modo diferente da iniciativa popular em âmbito federal. Vejamos: “iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, 5% do eleitorado”.

9.13.3.5. Iniciativa conjunta: ainda persiste, tendo em vista a Reforma da Previdência (EC n. 41/2003)?

Na hipótese de iniciativa conjunta, existe uma presunção de consenso de vontades, estabelecendo a CF competência para que diversas pessoas, juntas, deflagrem o processo legislativo.

Como exemplo, lembramos a inovação introduzida pela EC n. 19/98, que determinou a iniciativa conjunta para a elaboração de lei que fixasse o subsídio dos Ministros do STF, teto máximo previsto no art. 37, XI.

Referido teto máximo, correspondente ao subsídio dos Ministros do STF, deveria, de acordo com a regra anterior, ser fixado por lei federal, ordinária (art. 47 da CF/88), a ser editada pelo Congresso Nacional, de iniciativa conjunta do Presidente da República, do Presidente da Câmara dos Deputados, do Presidente do Senado Federal e do Presidente do STF (art. 48, XV).

A EC n. 41/2003, em contrapartida, afastou a regra da iniciativa conjunta, como se verá no próximo item, prevendo o novo procedimento de iniciativa exclusiva do Presidente do STF para se deflagrar o processo legislativo que fixa o subsídio dos Ministros do STF — teto do funcionalismo (art. 48, XV, c/c o art. 96, II, “b”).

9.13.3.6. Iniciativa para fixação do subsídio dos Ministros do STF — teto do funcionalismo — art. 48, XV, c/c o art. 96, II, “b”

Conforme visto no item anterior, a Reforma da Previdência (EC n. 41/2003) trouxe nova regra no tocante à iniciativa do projeto de lei para a fixação do subsídio dos Ministros do STF.

De acordo com o art. 96, II, “b”, a iniciativa de projeto de lei fixando a remuneração dos serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver, cabe aos Tribunais.

Assim, a iniciativa do projeto de lei, que deverá ser analisado pelo Congresso Nacional (art. 48, XV), para a fixação do teto do funcionalismo (subsídio mensal dos Ministros do STF) cabe ao STF (cf. item 22.3.2).

9.13.3.7. Algumas peculiaridades a serem observadas

9.13.3.7.1. Organização do Ministério Público

Quando descrevemos as hipóteses de iniciativa privativa, lembramos o art. 61, § 1.º, que trata das matérias de competência privativa do Presidente da República.

Apesar dessa previsão expressa, no tocante à iniciativa para apresentação de projeto de lei complementar de organização do Ministério Público da União (art. 61, § 1.º, II, “d”), a CF/88 estabeleceu competência “concorrente” entre o Presidente da República e o Procurador-Geral da República, conforme pode ser observado pela leitura do art. 128, § 5.º. Assim, a matéria sobre a organização do Ministério Público da União terá iniciativa legislativa concorrente do Presidente da República com o Procurador-Geral da República. Nesse caso José Afonso da Silva chega a falar de uma espécie de “iniciativa compartilhada”.81

Tendo em conta a necessária observância compulsória pelos Estados-Membros e pelo DF das regras básicas de processo legislativo federal, também em âmbito estadual e distrital dever-se-á observar a regra da iniciativa compartilhada.

Assim, no âmbito estadual, concorrem para legislar, mediante lei complementar, sobre normas específicas de organização, atribuições e estatuto do respectivo Ministério Público local, o Governador do Estado e o Procurador-Geral de Justiça, lembrando serem de iniciativa reservada do Presidente da República as leis que disponham sobre normas gerais (no caso, a Lei n. 8.625/93 — Lei Orgânica Nacional do Ministério Público — LONMP — cf. art. 61, § 1.º, II, “d” — parte final).82

Em igual medida, em âmbito distrital, em face da regra do art. 21, XIII (que confere competência à União para organizar e manter o MP do DF e dos Territórios), e a do art. 128, I (que aloca o MP do DF e dos Territórios como ramo do MP da União), a iniciativa da lei complementar será compartilhada entre o Presidente da República e o Procurador-Geral da República, perante o Congresso Nacional (e não entre o Governador do DF e o Procurador-Geral de Justiça, conforme se observa em âmbito esta­dual). Nesse sentido, o art. 2.º, parágrafo único, da Lei n. 8.625/93 estabelece que a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios serão objeto da Lei Orgânica do Ministério Público da União (no caso, a LC n. 75/93. Nesse sentido, RE 262.178, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, voto, DJ de 24.11.2000).

Finalmente, no tocante ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, por entender o STF que se trata de Ministério Público especial (art. 130), não integrante do MP comum, a iniciativa de lei sobre a sua organização será privativa da respectiva Corte de Contas.

9.13.3.7.2. Proposta pela maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional (art. 67 — princípio da irrepetibilidade)

O art. 67 da CF/88 dispõe que a matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.

Trata-se do chamado princípio da irrepetibilidade dos projetos rejeitados na mesma sessão legislativa, cuja origem remonta ao art. 40 da Constituição de 1891.

Como veremos, deflagrado o processo legislativo, se na fase de discussão e votação o projeto de lei não for aprovado, ou mesmo se vetado e mantido o veto pelo Parlamento (o que corresponderia a uma não aprovação), como regra geral só poderá ser reapresentado na sessão legislativa seguinte (lembrar que a sessão legislativa é o período anual em que os parlamentares se reúnem em Brasília, cf. o art. 57, caput).

No entanto, através da proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional, o projeto de lei poderá ser reapresentado na mesma sessão legislativa, surgindo, assim, uma nova hipótese de iniciativa para o processo legislativo.

Algumas questões podem ser levantadas:

e se o novo projeto de lei, cuja iniciativa seguiu o procedimento do art. 67, for novamente rejeitado? Poderá a matéria ser reapresentada, na forma do art. 67, na mesma sessão legislativa, por uma segunda vez?

Parece-nos que sim. Não há, pelo menos do ponto de vista da regra do art. 67, uma limitação de quantidade de vezes para a reapresentação do projeto. O único requisito que se fixa é o quorum qualificado da maioria absoluta, surgindo, pois, uma exceção ao princípio da irrepetibilidade dos projetos rejeitados.

e em relação às matérias de iniciativa reservada ou exclusiva?

Conforme vimos, algumas matérias são de iniciativa privativa (ou melhor, exclusiva ou reservada) de determinadas pessoas ou órgãos, só podendo o processo legislativo ser deflagrado por elas, sob pena de se configurar vício formal de iniciativa, caracterizador da inconstitucionalidade do referido ato normativo.

Dessa maneira, como a matéria só poderá ser encaminhada pelo titular da iniciativa reservada, entendemos que a regra do art. 67 não poderá ser aplicada.

Em matérias de iniciativa reservada, portanto, o projeto de lei rejeitado só poderá ser reapresentado na sessão legislativa seguinte, pois não se conseguiria o quorum qualificado da maioria absoluta, sob pena de se caracterizar vício formal de inconstitucionalidade por violação ao princípio da irrepetibilidade.

Nesse caso, então, pode-se afirmar que o princípio da irrepetibilidade é absoluto.

e em relação às matérias constantes de projeto de lei rejeitado pelo CN, poderá o Presidente da República veicular a mesma matéria por MP?

Entendemos que não, pois estaria sendo violada a regra do art. 67 e o princípio da separação de Poderes e integridade da ordem democrática. A única forma de reapresentar matéria constante de projeto de lei rejeitado seria somente mediante propos­ta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.

e em relação à MP que veicule matéria constante de outra MP anteriormente rejeitada pelo CN?

Também entendemos que não poderá o Presidente apresentar nova MP constante de outra MP anteriormente rejeitada, sob pena de se violar a regra do art. 67.83

9.13.3.7.3. Iniciativa parlamentar ou extraparlamentar

Essa classificação é pouco cobrada nos concursos, mas convém explicá-la, a fim de evitar surpresas no dia das provas. Segundo Alexandre de Moraes, “diz-se parlamentar a prerrogativa que a Constituição confere a todos os membros do Congresso Nacional (Deputados Federais/Senadores da República) de apresentação de projetos de lei. Diz-se, por outro lado, iniciativa extraparlamentar àquela conferida ao Chefe do Poder Executivo, aos Tribunais Superiores, ao Ministério Público e aos cidadãos (iniciativa popular de lei)”.84

9.13.4. Fase constitutiva

Nessa segunda fase do processo legislativo, teremos a conjugação de vontades, tanto do legislativo (deliberação parlamentar — discussão e votação) como do executivo (deliberação executiva — sanção ou veto).

9.13.4.1. Deliberação parlamentar — discussão e votação

Como regra geral, em decorrência do bicameralismo federativo, tratando-se de processo legislativo de lei federal, sempre haverá a apreciação de duas casas: a casa iniciadora e a casa revisora. Assim, para que o projeto de lei seja apreciado pelo Chefe do Executivo, necessariamente, deverá ter sido, previamente, apreciado e aprovado pelas duas Casas — a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

9.13.4.1.1. O projeto começa na Câmara ou no Senado?

Para solucionar essa questão, o art. 64, caput, é expresso ao delimitar que a discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. A esse rol acrescentaríamos os projetos de iniciativa concorrente dos Deputados ou de Comissões da Câmara, os de iniciativa do Procurador-Geral da República e, naturalmente, os de iniciativa popular (art. 61, § 2.º), que, como já visto, também terão início na Câmara dos Deputados, sendo esta, portanto, a casa iniciadora e o Senado Federal, em todas essas hipóteses lembradas, a casa revisora.

Perante o Senado Federal são propostos somente os projetos de lei de iniciativa dos Senadores ou de Comissões do Senado, funcionando, nesses casos, a Câmara dos Deputados como Casa revisora.

9.13.4.1.2. Apreciação pelas Comissões

Iniciado o processo legislativo, o projeto de lei passa à apreciação pelas Comissões.

Basicamente, o projeto deverá ser visto, em primeiro lugar, por uma comissão temática, que analisará a matéria da proposição, e, em seguida, pela Comissão de Constituição e Justiça, que examinará, dentre outros aspectos, a sua constitucionalidade (cf., por exemplo, a previsão dessa ordem nos termos do art. 53 do RICD).

Quando envolver aspectos financeiros ou orçamentário público, depois da comissão temática e antes da CCJ, o projeto será apreciado pela Comissão de Finanças e Tributação, para o exame da compatibilidade ou adequação orçamentária (art. 53 do RICD).

É de observar que essa nova regra, qual seja, a CCJ apreciar o projeto depois da Comissão temática (matéria), foi introduzida pela Resolução n. 10/91 ao RICD.

Conforme anotou Casseb, “é importante notar que a ordem atual da participação das comissões que comporta, em primeiro lugar, o exame dos projetos pelas comissões temáticas e depois pela Comissão de Constituição e Justiça decorreu da necessidade de se eliminar uma considerável falha do procedimento antigo. No período em que a CCJC atuava antes das comissões temáticas, verificou-se que a análise da constitucionalidade das proposições restava prejudicada, pois os projetos sofriam grandes modificações promovidas pelas comissões técnicas. Esse fato provocou a reformulação e o aperfeiçoamento da ordem de tramitação, haja vista que a avaliação realizada pela CCJC acontece após a atuação das comissões que examinam o mérito dos projetos”.85

Além disso, sob o aspecto da operacionalidade, muitas matérias que eram apreciadas pela CCJ, quando pela regra anterior ela se manifestava antes da Comissão temática, não vinham a ser aprovadas, levando a um desperdício de tempo e acúmulo de atividades daquela Comissão.

Portanto, em nosso entender, muito bem-vinda a modificação regimental.

Lembramos que as comissões, em razão da matéria de sua competência, poderão, além de discutir e emitir pareceres sobre o projeto de lei, aprová-los, desde que, na forma do regimento interno da Casa, haja dispensa da competência do plenário (delegação interna corporis) e inexista, também, interposição de recurso de 1/10 dos membros da Casa, hipótese em que será inviável a votação do projeto de lei pela comissão temática (art. 58, § 2.º, I), sendo esta, necessariamente, transferida para o plenário da Casa.

Para se ter um exemplo, o art. 24, II, do RICD deixa claro que não poderão ser objeto de aprovação nas comissões temáticas (em razão da matéria), afetando-os ao Plenário, ou seja, não poderão ser objeto de delegação interna corporis, os projetos:

de lei complementar;

de código;

de iniciativa popular;

de Comissão;

relativos a matéria que não possa ser objeto de delegação, consoante o § 1.º do art. 68 da Constituição Federal;

oriundos do Senado, ou por ele emendados, que tenham sido aprovados pelo Plenário de qualquer das Casas;

que tenham recebido pareceres divergentes;

em regime de urgência;

e poderíamos acrescentar, por exemplo, as propostas de emenda à Constituição (PEC), que exigem quorum de 3/5 dos membros, em cada Casa e em 2 turnos (art. 60, § 2.º, da CF/88).

Na hipótese de apreciação pelo Plenário, o parecer das Comissões Temáticas é opinativo, já que a matéria será ainda discutida e votada. Contudo, o parecer da CCJ quanto à constitucionalidade ou juridicidade da matéria será terminativo, assim como o da Comissão de Finanças e Tributação, quando de sua manifestação sobre a adequação financeira ou orçamentária da proposição, salvo provimento de recurso a ser apreciado preliminarmente pelo Plenário, nos termos regimentais.

9.13.4.1.3. Processos de votação

Cap09_Figura09

A votação poderá ser ostensiva, adotando-se o processo simbólico ou o nominal, e secreta, por meio do sistema eletrônico ou de cédulas.

No processo simbólico, que será utilizado na votação das proposições em geral, os parlamentares das respectivas Casas, para aprovar a matéria, permanecerão sentados, levantando-se apenas os que votarem pela rejeição.

Regimentalmente, se for requerida verificação da votação, será ela repetida pelo processo nominal.

Segundo o art. 186 do RICD, o processo nominal (pelo sistema eletrônico de votos) será utilizado:

nos casos em que seja exigido quorum especial de votação;

por deliberação do Plenário, a requerimento de qualquer Deputado;

quando houver pedido de verificação de votação, respeitado o que prescreve o § 4.º do artigo anterior;

nos demais casos expressos neste Regimento.

Por sua vez, o art. 188 do RICD estabelece que a votação por escrutínio secreto far-se-á pelo sistema eletrônico, nos seguintes casos:

deliberação, durante o estado de sítio, sobre a suspensão de imunidades de Deputado, nas condições previstas no § 8.º do art. 53 da Constituição Federal;

por decisão do Plenário, a requerimento de um décimo dos membros da Casa ou de Líderes que representem este número, formulado antes de iniciada a Ordem do Dia;

para eleição do Presidente e demais membros da Mesa Diretora, do Presidente e Vice-Presidentes de Comissões Permanentes e Temporárias, dos membros da Câmara que irão compor a Comissão Representativa do Congresso Nacional e dos 2 (dois) cidadãos que irão integrar o Conselho da República e nas demais eleições;

no caso de pronunciamento sobre a perda de mandato de Deputado ou suspensão das imunidades constitucionais dos membros da Casa durante o estado de sítio. CUIDADO: muito embora o RICD tenha sofrido modificação pela Res. n. 47/2013 para se ajustar à EC n. 76/2013, que aboliu a votação secreta nos casos de perda do mandato de Deputado ou Senador, entendemos que esse dispositivo regimental, mantido na referida atualização, não mais encontra fundamento na Constituição.86

A votação secreta realizar-se-á pelo sistema eletrônico, salvo nas eleições em que se implementará por meio de cédulas.

9.13.4.1.4. A Casa revisora

Rejeitado o projeto na Casa Iniciadora, será arquivado. Contudo, se aprovado (seja pelas Comissões Temáticas, nas hipóteses permitidas, seja pelo plenário da Casa), ele seguirá para a Casa revisora, passando, também, pelas Comissões, e, ao final, a Casa revisora poderá aprová-lo, rejeitá-lo ou emendá-lo:

aprovado o projeto de lei pela Casa revisora, em um só turno de discussão e votação (regra geral para leis ordinárias e complementares), será ele enviado para sanção ou veto do Chefe do Executivo;

rejeitado o projeto de lei, ou seja, caso a Casa revisora não o aprove, será ele arquivado, só podendo ser reapresentado na mesma sessão legislativa (anual), mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional (art. 67), ou, sem essa formalidade, se a reapresentação for na sessão legislativa seguinte;

emendado, vale dizer, na hipótese de ter sido alterado o projeto inicial, a emenda, e somente o que foi modificado, deverá ser apreciada pela Casa iniciadora (art. 65, parágrafo único, da CF/88), sendo vedada a apresentação de emenda à emenda (subemenda).

Nessa hipótese, se a Casa iniciadora aceitar a emenda introduzida pela Casa revisora, assim seguirá o projeto para a deliberação executiva.

Contudo, se a Casa iniciadora rejeitar a emenda, o projeto, em sua redação original, que havia sido estabelecida pela Casa iniciadora, assim seguirá para a apreciação executiva.

Daí poder-se afirmar que no processo legislativo de elaboração de leis no sistema brasileiro haverá predominância da Casa iniciadora sobre a revisora.

Posteriormente, havendo aprovação do projeto de lei, este será encaminhado para o autógrafo, ou seja, a reprodução de todo trâmite legislativo e o conteúdo final do projeto aprovado e/ou emendado, para posterior sanção ou veto presidencial, promulgação (no caso de emendas à Constituição) ou à outra Casa.

9.13.4.1.5. Espécies de emendas

De acordo com o art. 118 do RICD, as emendas serão supressivas, aglutinativas, substitutivas, modificativas ou aditivas:

supressiva: é a que manda erradicar qualquer parte de outra proposição;

aglutinativa: é a que resulta da fusão de outras emendas, ou destas com o texto, por transação tendente à aproximação dos respectivos objetos;

substitutiva: é a apresentada como sucedânea a parte de outra proposição, denominando-se “substitutiva” quando a alterar, substancial ou formalmente, em seu conjunto; considera-se formal a alteração que vise exclusivamente ao aperfeiçoamento da técnica legislativa;

modificativa: é a que altera a proposição sem a modificar substancialmente;

aditiva: é a que se acrescenta a outra proposição;

de redação: a modificativa que visa sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto.

9.13.4.1.6. Algumas outras regras fundamentais

emendas a projeto de lei: regra geral, conforme visto, é perfeitamente possível a inclusão de emendas ao projeto de lei. No entanto, distanciando-se dessa regra, não será admitida emenda a projeto de lei que aumente a despesa prevista nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República (ressalvado o disposto no art. 166, §§ 3.º e 4.º) (cf. item 9.13.3.3.9), bem como nos projetos sobre a organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público (art. 63, I e II);

processo legislativo sumário ou regime de urgência constitucional: o Presidente da República, nos projetos de sua iniciativa, poderá solicitar urgência na apreciação a ser realizada pelos congressistas. Como visto, a discussão iniciar-se-á na Câmara dos Deputados (art. 64, caput), devendo ser apreciada em 45 dias. Seguirá, então, para o Senado Federal, que também terá o prazo de 45 dias para apreciar a matéria. Em caso de emenda pelo Senado, sua apreciação será feita no prazo de 10 dias pela Câmara dos Deputados (art. 64, §§ 1.º a 3.º), vedando-se, é claro, como já visto, qualquer subemenda. Percebe-se, então, que o procedimento sumário tem prazo de, no máximo, 100 dias (45 dias em cada casa + 10 dias em caso de emenda do Senado Federal a ser apreciada pela Câmara dos Deputados).

Lembramos que os referidos prazos não correm durante o período de recesso do Congresso Nacional (recesso, recorde-se, é o período fora da sessão legislativa ordinária e que vai, consoante a nova regra trazida pela EC n. 50/2006 — que modificou o art. 57, caput — de 18 a 31 de julho e de 23 de dezembro até 1.º de fevereiro do ano seguinte) nem se aplicam aos projetos de código (art. 64, § 4.º).

Outra regra importante é a prevista no art. 64, § 2.º, na redação determinada pela EC n. 32/2001, segundo a qual, tramitando um processo sob o regime de urgência, se a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se manifestarem sobre a proposição, cada qual sucessivamente, em até 45 dias, sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado (como exemplo, o prazo fixado para a apreciação das medidas provisórias, determinado na CF/88, em 60 dias, prorrogáveis por mais 60 dias, nos termos do art. 62, § 3.º), até que se ultime a votação.

Além dos projetos de iniciativa do Presidente da República, quando há solicitação de tramitação urgente, há, ainda, previstos na Constituição Federal, os casos de apreciação de atos de outorga ou renovação de concessão, permissão ou autorização para serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, que também são projetos que tramitam sob o regime de urgência (cf. art. 223, § 1.º), seguindo os prazos do art. 64, §§ 2.º e 4.º.

Por fim, apenas esclarecemos que, além dos casos dos projetos que tramitam sob o regime de urgência, constitucionalmente previstos e acima comentados, há hipóteses às quais, regimentalmente, se estabelece a possibilidade de requerer urgência na votação de determinadas matérias. No entanto, nessas situações, a previsão é regimental e não constitucional (cf. arts. 336 do RISF e 152 do RICD), seguindo-se as peculiaridades de cada regimento interno.

Lembramos, ainda, a previsão de regime de urgência também em legislação infraconstitucional, como, para se ter um exemplo, é o caso da tramitação de decreto legislativo (art. 49, II, CF/88) para o Congresso Nacional autorizar o trânsito ou permanência de forças estrangeiras no território nacional (art. 3.º, II, da LC n. 90/97).

9.13.4.2. Deliberação executiva — sanção e veto

Terminada a fase de discussão e votação, aprovado o projeto de lei, deverá ele ser encaminhado para a apreciação do Chefe do Executivo. Recebendo o projeto de lei, o Presidente da República o sancionará ou o vetará.

9.13.4.2.1. Sanção

Em caso de concordância, de aquiescência, o Presidente da República sancionará o projeto de lei. Sanção é o mesmo que anuência, aceitação, sendo esse o momento em que o projeto de lei se transforma em lei, já que, como se verá, o que se promulga é a lei.

A sanção poderá ser expressa ou tácita.

Sanção expressa é quando o Chefe do Executivo deliberadamente manifesta a sua concordância. Contudo, na sanção tácita, recebido o projeto, se ele não se manifestar no prazo de 15 dias úteis, o seu silêncio importará sanção. É o famoso “quem cala, consente”, ou seja, ficando silente, é como se o Chefe do Executivo não discordasse do projeto encaminhado pelo Legislativo.

Conforme vimos, sanção presidencial não convalida vício formal subjetivo de iniciativa, ou seja, em se tratando, por exemplo, de projeto cuja iniciativa seja reservada ao Presidente da República e encaminhada por um Deputado, a sanção não corrige o vício, que é insanável (cf. item 9.13.3.3.12).

E qual o prazo para o Presidente sancionar o projeto de lei?

Apesar de não haver previsão expressa, sabendo que o Chefe do Executivo tem 15 dias úteis para vetar o projeto de lei e que o seu silêncio importará sanção, temos de afirmar que o prazo para sancioná-lo será, também, de 15 dias úteis.

Convém alertar que nem todos os projetos são sancionáveis.

Nos termos do art. 48, dispensa-se a sanção e, portanto, não há que se falar em veto, nos projetos que versam sobre as matérias estabelecidas nos arts. 49 (competência exclusiva do Congresso Nacional), 51 (competência privativa da CD), 52 (competência privativa do SF) e, ainda, nas propostas de emenda à Constituição (PEC).

O instituto da sanção e, portanto, o momento de deliberação executiva deverão implementar-se mesmo em caso de projeto de iniciativa do Presidente que não tenha sido alterado pelo Parlamento.

Parece razoável imaginar que também nos projetos de lei de sua iniciativa o Presidente possa, agora, em fase mais madura do procedimento, vetá-lo, devendo, assim, ser, necessariamente, aberta a fase de deliberação executiva, até porque o art. 66, caput, é categórico ao afirmar que a Casa na qual tenha sido concluída a votação (e não distingue o tipo de iniciativa) enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.

9.13.4.2.2. Regras gerais sobre o veto

Em caso de discordância, poderá o Presidente da República vetar o projeto de lei, total ou parcialmente, observadas as seguintes regras:

prazo para vetar: 15 dias úteis, contados da data do recebimento;

tipos de veto: total ou parcial. Ou se veta todo o projeto de lei (veto total), ou somente parte dele. O veto parcial só abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea. Assim, pode-se afirmar que não existe veto de palavras, o que poderia alterar, profundamente, o sentido do texto. Na hipótese de veto parcial, haverá análise pelo Congresso Nacional apenas da parte vetada, o que significa que a parte não vetada, que será promulgada e publicada, poderá entrar em vigor em momento anterior à referida parte vetada (veto parcial), se este vier a ser derrubado;

motivos do veto: vetando o projeto de lei, total ou parcialmente, o Presidente da República deverá comunicar ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto no prazo de 48 horas. Poderá o Presidente da República vetar o projeto de lei se entendê-lo inconstitucional (veto jurídico), ou contrário ao interesse público (veto político);

características do veto: o veto é sempre expresso, conforme visto. Assim, não existe veto tácito, devendo ser motivado e por escrito. O veto é sempre supressivo, não podendo adicionar. Além disso, o veto é superável ou relativo, pois poderá ser “derrubado” pelo Parlamento. Podemos afirmar, também, que o veto é irretratável, pois, vetando e encaminhando os motivos para o Senado Federal, o Presidente da República não poderá retratar-se;

veto sem motivação: se o Presidente da República simplesmente vetar, sem explicar os motivos de seu ato, estaremos diante da inexistência do veto, portanto, o veto sem motivação expressa produzirá os mesmos efeitos da sanção (no caso, tácita);

silêncio do Presidente da República: conforme vimos, recebido o projeto de lei e quedando-se inerte, o silêncio do Presidente importará sanção, ou seja, estaremos diante da chamada sanção tácita.

Sancionado o projeto de lei, passará ele para a próxima fase, da promulgação e publicação.

Existindo veto, este será, necessariamente, apreciado em sessão conjunta da Câmara e do Senado, dentro de 30 dias a contar de seu recebimento.87 Pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em votação ostensiva (votação pública, ou seja, voto “aberto”), o veto poderá ser rejeitado (afastado), produzindo os mesmos efeitos que a sanção (art. 66, § 4.º, da CF/88). (Lembramos que a EC n. 76/2013 aboliu a votação secreta para essa hipótese).

Sendo derrubado o veto, a lei deverá ser enviada ao Presidente da República para promulgação dentro do prazo de 48 horas. Se este não o fizer, caberá ao Presidente do Senado a promulgação, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente do Senado fazê-lo (art. 66, §§ 5.º e 7.º, da CF/88). Aqui, o texto não prevê alternativa. Reforçando o comando, a regra diz que caberá ao Vice-Presidente do Senado fazê-lo.

Na hipótese de o veto ser mantido, o projeto será arquivado, aplicando-se a regra contida no art. 67, que consagra o princípio da irrepetibilidade (cf. item 9.13.3.7.2).

9.13.4.2.3. Os vetos devem ser apreciados na ordem cronológica de sua comunicação ao Congresso Nacional? (MS 31.816 — "royalties" do pré-sal)

Questão interessante diz respeito à obrigatoriedade de análise dos vetos em sua ordem cronológica de comunicação ao Congresso Nacional.

Não há dúvida, e já sinalizamos, de que a análise do veto é obrigatória pelo Congresso Nacional, de acordo com a literalidade do art. 66, § 4.º, da CF/88.

A dúvida surge quanto ao Parlamento ter discricionariedade para “escolher” a matéria que lhe seja mais conveniente, lembrando que o art. 66, § 6.º, estabelece que, esgotado o prazo de 30 dias para análise do veto sem deliberação, será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final.

Para responder a essa questão, vamos analisar o caso concreto envolvendo o julgamento dos MS 31.816 e 31.814, impetrados no STF em 13.12.2012 por parlamentares federais contra o ato da Mesa Diretora do Congresso Nacional, que, acolhendo requerimento conjunto de urgência n. 12/2012, tornou iminente a possibilidade de apreciação do veto parcial n. 38/2012, que foi aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei n. 2.565/2011 e que veio a ser convertido na Lei n. 12.734/2012.

Referido ato normativo determina novas regras de distribuição entre os entes da Federação dos royalties e da participação especial devidos em função da exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, buscando, ainda, aprimorar o marco regulatório sobre a exploração desses recursos no regime de partilha.

Alegava-se violação à regra da Constituição que fixa o prazo de 30 dias para a apreciação, bem como, em sugerido “estelionato regimental”, afronta aos arts. 10488 e 10589 do Regimento Interno do Congresso Nacional (Regimento Comum: Resolução n. 1/70-CN).

No primeiro caso, como existiam mais de 3.000 vetos para serem apreciados, concordamos com a tese, entendendo haver afronta à ordem de apresentação, pois a Constituição estabeleceu que o primeiro veto desse volume acumulado, ainda pendente, deveria ser apreciado em 30 dias, sob pena de ser colocado na ordem do dia, sobrestadas as demais proposições.

No segundo argumento, a análise do veto em relação à nova forma de distribuição dos royalties violaria a regra regimental por não ter sido constituída comissão mista de Deputados e Senadores para elaborar relatório sobre o veto presidencial.

Em 17.12.2012, o Min. Luiz Fux concedeu, monocraticamente, liminar, determinando à Mesa Diretora do Congresso Nacional que se abstivesse de deliberar acerca do veto parcial n. 38/2012 antes que se procedesse à análise de todos os vetos pendentes (mais de 3.000, alguns sem apreciação há mais de 10 anos!), com prazo expirado até a data daquela decisão, em ordem cronológica de recebimento da respectiva comunicação, observadas as regras regimentais pertinentes.

Referida decisão, “ante a manifesta contrariedade ao Estado de Direito (art. 1.º, caput, da CF/88) e à proteção das minorias parlamentares”, flexibilizava a jurisprudência do STF, que não admite o controle judicial de questões interna corporis.

Contra a liminar concedida pelo Min. Fux, foi interposto agravo regimental (o CPC/2015 fala em agravo interno), julgado em 27.02.2013 pelo Plenário, que, por 6 x 4, cassou-a nos termos da divergência aberta pelo Min. Teori Zavascki. Assim, permitiu-se ao Congresso Nacional, pelo menos por enquanto, analisar os vetos de acordo com a sua liberdade política e conveniência. O Min. Lewandowski destacou o denominado “poder de agenda”, no sentido de se assegurar ao Congresso Nacional a autonomia para escolher as matérias que considere relevantes do ponto de vista político, social, cultural, econômico e jurídico para o País.

Tendo em vista a apreciação pelo Congresso Nacional do veto, rejeitando-o, referido mandado de segurança, que buscava impedir a violação da ordem de apreciação, perdeu o seu objeto e, assim, nos termos do art. 21, IX, do RISTF, foi julgado prejudicado.

Deixamos consignado que, em nosso entender, a regra da Constituição é firme e determina a apreciação do veto em 30 dias, sob pena de sobrestamento das demais proposições (art. 66, §§ 4.º e 6.º). Não se pode esvaziar essa regra clara e extremamente importante. O Congresso, mais uma vez, criou nefasto e inconcebível “costume inconstitucional” de não apreciar os vetos, alguns, conforme visto, há mais de 10 anos aguardando análise.

Ao julgar prejudicado o mandado de segurança, perdeu o STF a oportunidade de adotar o mesmo entendimento firmado na ADI 4.029 (cf. item 9.14.4.3), qual seja, modulando os efeitos da decisão, a partir de sua decisão de mérito, de modo enérgico, determinar a obrigatoriedade de apreciação dos vetos no prazo improrrogável de 30 dias, sob pena de sobrestamento das demais proposições.

9.13.4.2.4. Procedimento de apreciação dos vetos presidenciais (Res. n. 1/2015-CN)

O contexto da aprovação da Res. n. 1/2015 (DOU, de 12.03.2015), que altera o procedimento de apreciação dos vetos presidenciais ao modificar o Regimento Comum do Congresso Nacional (Res. n. 1/70), foi marcado pela necessidade de regras mais efetivas e céleres.

Conforme observou o então presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, “a modernidade, a racionalidade e a própria sociedade não aceitam mais métodos jurássicos de votação de vetos, com sessões que duram até 19 horas, como já aconteceu. O tumulto passa a ser uma opção política e o Congresso não pode ficar exposto a isso” (Notícias CD, 10.02.2015 — 21h29).

Além da modernização e celeridade do procedimento, a alteração buscou adequar o processo de análise às regras introduzidas pela EC n. 76/2013, que definiu a votação aberta (ostensiva), nos termos do art. 66, § 4.º, CF/88.

Entre as regras contidas no regramento, destacamos:

votação nominal e apuração eletrônica: a votação do veto será nominal e ocorrerá por meio de cédula com identificação do parlamentar e que permita a apuração eletrônica, da qual constarão todos os vetos incluídos na Ordem do Dia, agrupados por projeto. Inegavelmente, o modelo eletrônico é muito mais eficiente do que as cédulas de papel;

destaques individuais ou conexos e apreciação eletrônica: até o início da Ordem do Dia, poderá ser apresentado destaque de dispositivos individuais ou conexos para apreciação no painel eletrônico, a requerimento de líderes, que independerá de aprovação pelo Plenário, observados rígida proporcionalidade e importantes limites fixados na referida Resolução. Intimidam-se, assim, as combatidas manobras de obstrução;

discussão em globo: além de agilizar a votação, a nova regra limita o tempo de discussão das matérias, o que, também, busca eliminar as manobras políticas no sentido de se adiar o enfrentamento de temas polêmicos.

9.13.4.2.5. Regras específicas sobre o veto

Riders: a figura dos riders surgiu quando não havia o instituto do veto parcial. Notadamente nas leis orçamentárias, os parlamentares faziam inserir matérias impertinentes, muitas de interesses particulares e sem qualquer relação com as finanças. Assim, como se tinha que aprovar as leis orçamentárias, os riders, ou seja, essas “caudas orçamentárias” ou “pingentes” eram aprovados, sem a possibilidade de excluí-los, já que não havia o veto parcial.

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a grande virtude do veto parcial é “... permitir separar o joio do trigo, ou seja, excluir da lei o inconveniente sem fulminar todo o texto”.

Contudo, continua, quando não havia veto parcial nos regimes, especialmente os presidencialistas, “... surgiu a prática condenável de os parlamentares inserirem nos projetos de orçamento disposições parasitárias, muitas vezes sem nenhuma relação com as finanças públicas, disposições que seriam vetadas se objeto de proposições isoladas”.90

Portanto, o veto parcial surge como indispensável técnica para a superação dos inconvenientes riders.

No Brasil, durante o Império, prevaleceu o entendimento de aceitação apenas do veto total e, assim, situações impertinentes de riders nas leis orçamentárias. Em âmbito federal, o veto parcial veio a ser introduzido apenas pela EC n. 1/26, lembrando que alguns Estados, como o da Bahia, já o previam um pouco antes em suas Constituições estaduais.

pocket veto: estamos diante daquilo que a doutrina denominou veto absoluto. Segundo José Afonso da Silva, “sua utilização impede que se alcance a conclusão da medida proposta, como aquele dos tribunos da plebe da Roma antiga. Hoje, está em desuso, mas existe no Conselho de Segurança da ONU — trata-se do já referido pocket veto nos EUA. Vetada absolutamente a matéria, não comporta mais discussão, valendo como rejeição definitiva pelo tempo constitucionalmente estipulado. A matéria só poderá ser objeto de deliberação através de nova iniciativa, verificados os requisitos para que essa possa ocorrer”.91

O veto absoluto caracterizava-se como um fortalecimento demasiado do Executivo e, assim, verdadeiro instrumento de defesa, já que, ao vetar o projeto, estando o Parlamento em recesso, o projeto não seria devolvido e, então, terminaria no “bolso” do Executivo.

Pocket, do inglês, significa “bolso”. Assim, é o “veto de bolso”, no sentido de não se conseguir analisá-lo (já que ele ficaria “embolsado”, por impossibilidade de análise pelo Parlamento).

O direito brasileiro não adotou o pocket veto. Conforme visto, todo veto deverá, necessariamente, ser analisado pelo Parlamento, inclusive com previsão do prazo de 30 dias e, esgotado sem apreciação esse prazo, a sua colocação na ordem do dia da sessão imediata, sobrestando-se as demais proposições, até sua votação final (art. 66, §§ 4.º e 6.º).

Ainda, a ausência de sanção também não significará o “engavetamento” do projeto, visto que o silêncio do Presidente não caducará o projeto, mas, de maneira bastante adequada, importará sanção.

9.13.5. Fase complementar — promulgação e publicação

A fase final ou complementar do processo legislativo pode ser bipartida na promulgação e na publicação da lei. Vejamo-las:

9.13.5.1. Promulgação

A promulgação nada mais é que um atestado da existência válida da lei e de sua executoriedade. Apesar de ainda não estar em vigor e não ser eficaz, pelo ato da promulgação certifica-se o nascimento da lei. José Afonso da Silva aponta que “o ato de promulgação tem, assim, como conteúdo a presunção de que a lei promulgada é válida, executória e potencialmente obrigatória”.92

Indagamos: o que se promulga, a lei ou o projeto de lei? Seguindo os ensinamentos­ de José Afonso da Silva, o que se promulga e publica é a lei, ou seja, no momento da promulgação o projeto de lei já se transformou em lei. Apesar de alguns entendimentos­ em contrário, para as provas objetivas dos concursos, adotar o posicionamento de que o projeto de lei vira lei com a sanção presidencial ou com a derrubada do veto pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, nos termos do art. 66, § 4.º.

Tanto é que o art. 66, § 7.º, fala, expressamente, em promulgação da lei, e não do projeto de lei.

Em regra, então, a lei deverá ser promulgada pelo Presidente da República. Se no prazo de 48 horas não houver promulgação, nas hipóteses do art. 66, §§ 3.º (sanção tácita) e 5.º (derrubada do veto pelo Congresso), a lei será promulgada pelo Presidente­ do Senado Federal e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente do Senado Federal fazê-lo, obrigatoriamente, sob pena de responsabilidade (art. 66, § 7.º).

9.13.5.2. Publicação

Promulgada a lei, deverá ser publicada, ato pelo qual se levará ao conhecimento de todos o conteúdo da inovação legislativa. A publicação implementa-se pela inserção do texto da lei no Diário Oficial, devendo ser determinada por quem a promulgou.­

Com a publicação, tem-se o estabelecimento do momento em que o cumprimento da lei deverá ser exigido.

Como regra geral, a lei começa a vigorar em todo o País 45 dias depois de oficialmente publicada (art. 1.º, caput, da LINDB — Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).93 Havendo disposição expressa em contrário, prevalecerá sobre a regra geral (ex.: “Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”).

Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, inicia-se 3 meses depois de oficialmente publicada.

Algumas exceções à regra geral também foram previstas na Constituição nos arts. 150, III, “b”, e 195, § 6.º.

O período que vai da publicação da lei à sua vigência chama-se vacatio legis.

Finalmente, grande importância deve ser atribuída ao ato da publicação, no sentido de que ninguém poderá escusar-se de cumprir a lei alegando o seu desconhecimento. A publicação enseja, portanto, a presunção de conhecimento da lei por todos (art. 3.º da LINDB).

9.14. Espécies normativas

Como pudemos perceber no início deste capítulo, o processo legislativo compreenderá a elaboração das seguintes espécies normativas: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

Importante notar a inexistência de hierarquia entre as espécies normativas, com exceção das emendas constitucionais, que têm a capacidade de produzir normas de caráter constitucional, como veremos.

Nesse sentido é que cada espécie normativa atuará dentro de sua parcela de competência. Por exemplo, se houver atuação de lei ordinária em campo reservado à lei complementar, estaremos diante de invasão de competência, surgindo, então, um vício formal, caracterizador da inconstitucionalidade.

Apesar disso, o professor Michel Temer adverte que existe, de fato, um escalonamento de normas, chegando a surgir, em determinadas situações, uma verdadeira relação hierárquica. Isso não se observa em relação às espécies normativas apontadas, mas pode ser verificado nos exemplos pelo autor lembrados: “A lei se submete à Constituição, o regulamento se submete à lei, a instrução do Ministro se submete ao decreto, a resolução do Secretário de Estado se submete ao decreto do Governador, a portaria do chefe de seção se submete à resolução secretarial”.94

Vejamos cada uma das espécies normativas apontadas no art. 59 da CF/88.

9.14.1. Emenda constitucional

Quando estudamos a teoria do poder constituinte, verificamos que as emendas constitucionais são fruto do trabalho do poder constituinte derivado reformador, por meio do qual se altera o trabalho do poder constituinte originário, pelo acréscimo, modificação ou supressão de normas.

Ao contrário do constituinte originário, que é juridicamente ilimitado, o poder constituinte derivado é condicionado, submetendo-se a algumas limitações, expressa­mente previstas, ou decorrentes do sistema. Trata-se das limitações expressas ou explícitas (formais ou procedimentais, circunstanciais e materiais) e das implícitas

Assim, o “produto” da PEC, isto é, a matéria introduzida, se houver perfeita adequação aos limites indicados, incorporar-se-á ao texto originário, tendo, portanto, força normativa de Constituição.

O veículo, contudo, a PEC aprovada, o instrumento para essa modificação, que se concretiza em uma emenda à Constituição, analisada sob o aspecto formal, poderá ser confrontada perante a CF/88.

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9.14.1.1. Limitações formais ou procedimentais (art. 60, I, II, III, e §§ 2.º, 3.º e 5.º)

Iniciativa (art. 60, I, II e III): trata-se de iniciativa privativa e concorrente para alteração da Constituição. Havendo proposta de emenda por qualquer pessoa diversa daquelas taxativamente enumeradas, estaremos diante de vício formal subjetivo, caracterizador da inconstitucionalidade. Nesse sentido é que a CF só poderá ser emendada mediante proposta:

 de 1/3, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

do Presidente da República;

de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação (no caso, as Assembleias Legislativas dos 26 Estados-Membros, mas incluindo-se, também, a Câmara Legislativa do Distrito Federal), manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

Quorum de aprovação (art. 60, § 2.º): a proposta de emenda será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em 2 turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, 3/5 dos votos dos respectivos membros. Diferente é o processo legislativo de formação da lei complementar e da lei ordinária, que deverá ser discutido e votado em um único turno de votação (art. 65, caput), tendo por quorum a maioria absoluta (art. 69) e a maioria relativa (art. 47), respectivamente.95

No tocante ao processo legislativo, interessante notar que o texto aprovado por uma Casa não pode ser modificado pela outra sem que a matéria volte para a apreciação da Casa iniciadora. O Congresso Nacional tem utilizado a técnica da PEC Paralela, ou seja, a parte da PEC que não foi modificada é promulgada e a parte modificada volta para reanálise, e como se fosse uma nova EC, para a Casa iniciadora. A não observância desse requisito formal caracterizará o vício de inconstitucionalidade. Para se ter um importante exemplo, destacamos o art. 39, caput, declarado inconstitucional (com efeito ex nunc) em sede de liminar pelo STF:

“Em conclusão de julgamento, o Tribunal deferiu parcialmente medida liminar em ação direta ajuizada (...) para suspender a vigência do art. 39, caput, da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 19/98 (...), mantida sua redação original, que dispõe sobre a instituição do regime jurídico único dos servidores públicos — v. Informativos 243, 249, 274 e 420. Entendeu-se caracterizada a aparente violação ao § 2.º do art. 60 da CF (...), uma vez que o Plenário da Câmara dos Deputados mantivera, em primeiro turno, a redação original do caput do art. 39, e a comissão especial, incumbida de dar nova redação à proposta de emenda constitucional, suprimira o dispositivo, colocando, em seu lugar, a norma relativa ao § 2.º, que havia sido aprovada em primeiro turno. Esclareceu-se que a decisão terá efeitos ex nunc, subsistindo a legislação editada nos termos da emenda declarada suspensa. Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Nelson Jobim, que indeferiam a liminar...” (ADI 2.135-MC, Rel. p/ o acórdão Min. Ellen Gracie, j. 02.08.2007, Inf. 474/STFMatéria pendente de apreciação).

Promulgação (art. 60, § 3.º): outra imposição formal é que a promulgação da emenda seja realizada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o seu respectivo número de ordem. O número de ordem nada mais é do que o numeral indicativo da quantidade de vezes que a Constituição foi alterada (pelo poder constituinte derivado) desde a sua promulgação. Lembramos que, iniciado o processo de alteração do texto constitucional através de emenda, discutido, votado e aprovado, em cada casa, em 2 turnos de votação, o projeto será encaminhado diretamente para promulgação, inexistindo sanção ou veto presidencial. Após promulgada, o Congresso Nacional publica a emenda constitucional.

Proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada (art. 60, § 5.º): a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova apresentação na mesma sessão legislativa. Trata-se de regra diferente da prevista para as leis complementares e ordinárias, em relação às quais é permitido o oferecimento de novo projeto de lei (quando rejeitado) na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso (art. 67).

9.14.1.2. Limitações circunstanciais (art. 60, § 1.º)

Em determinadas circunstâncias, o constituinte originário vedou a alteração do texto original, em decorrência da gravidade e anormalidade institucionais. Nesses termos, a CF não poderá ser emendada na vigência de:

intervenção federal;

estado de defesa;

estado de sítio.

9.14.1.3. Limitações materiais (art. 60, § 4.º)

O poder constituinte originário também estabeleceu algumas vedações materiais, ou seja, definiu um núcleo intangível, comumente chamado pela doutrina de cláusulas pétreas. Nesse sentido (e inovando o disposto no art. 50, § 1.º, da Constituição de 1967, que previa como “cláusulas pétreas” apenas a Federação e a República), não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

a forma federativa de Estado;

o voto direto, secreto, universal e periódico;

a separação dos Poderes;

os direitos e garantias individuais.

A) Reforma da Previdência

Nesse sentido, a Reforma da Previdência (EC n. 41/2003) foi amplamente discutida, em especial, dentre vários pontos, a mudança nas regras de transição para a aposentadoria (discutida na ADI 3.104, proposta pela CONAMP) e a taxação dos inativos e pensionistas (discutida na ADI 3.105, proposta pela CONAMP, e na ADI 3.099, proposta pelo PDT).

Segundo o STF, não há direito adquirido a regime jurídico, assim como, em tese, seria possível tratar de matéria definida pela Constituição como cláusula pétrea desde que não a tenda a abolir, dentro de critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

B) Atribuição de competência estadual para legislar sobre direito penal

De acordo com o art. 22, I, compete privativamente à União legislar sobre direito penal. Portanto, eventual lei estadual, distrital ou municipal nesse sentido seria inconstitucional (vício formal).

A única exceção que existe atualmente, nos termos da Constituição, dá-se no caso de a União, por meio de lei complementar, autorizar os Estados a legislarem sobre direito penal. Contudo, na hipótese, a autorização deverá restringir-se a questões específicas (art. 22, parágrafo único).

Como bem anotaram Estefam e Gonçalves,96 valendo-se das lições de Luiz Vicente Cernicchiaro e Paulo José da Costa, diante de autorização expressa da União por lei complementar, os Estados e o Distrito Federal, ao exercerem a atribuição normativa, estão proibidos de “... disciplinar temas fundamentais de Direito Penal, notadamente aqueles ligados à Parte Geral. A lei local, ainda, deverá manter-se em harmonia com a federal, estabelecendo-se entre ambas uma relação de regra e exceção, cumprindo que esta seja plenamente justificada diante de peculiaridades regionais. Os Estados e o Distrito Federal poderão apenas, a pretexto de regular temas específicos, definir condutas como infrações penais e impor-lhes a respectiva pena, sem jamais afrontar a lei federal, inovando apenas no que se refere às suas particularidades”.

Lembrando que ainda não se fez uso dessa prerrogativa, os autores destacam interessante exemplo trazido por Cernicchiaro: “na década de 1980, ocorreu, em Goiás, a contaminação de pessoas com material radioativo (o Césio-137), resultando na necessidade de armazenamento e enterramento do ‘lixo atômico’ encontrado. Esse fato, de efeito local, poderia ser objeto da legislação estadual de cunho penal, visando a eliminar novos riscos de contato humano”.

Finalmente, surge a pergunta: EC que transfira a competência da União para os Estados para legislar sobre direito penal viola cláusula pétrea? O tema ainda não foi discutido pelo STF, mas entendemos que seria perfeitamente possível. Em relação à forma federativa, a nosso ver, não tenderia a aboli-la, mas a fortalecê-la, já que aumentaria a competência estadual. A questão, agora de natureza política e social — e não mais técnica —, seria a análise da conveniência social, especialmente pela dificuldade de se ter a informação sobre os diversos tipos penais que poderiam surgir (estamos amadurecendo esse assunto e aguardarmos críticas e sugestões).

C) Redução da maioridade penal de 18 para 16 anos (art. 228 da CF/88)

Esse tema foi enfrentado neste estudo no item 19.9.15 e concluímos ser possível, sim, a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, uma vez que o texto apenas não admite a proposta de emenda (PEC) que tenda a abolir o direito e garantia individual. Isso não significa, como já interpretou o STF, que a matéria não possa ser modificada. O que não se admite é reforma que tenda a abolir, repita-se, tais direitos, dentro de um parâmetro de razoabilidade.

Reduzindo de 18 para 16 anos o direito à inimputabilidade, tido como garantia fundamental, ele não deixará de existir, e eventual modificação encontrará, inclusive, coerência com a responsabilidade política de poder exercer a capacidade eleitoral ativa (direito de eleger) a partir dos 16 anos.

9.14.1.4. Limitações temporais?

As limitações temporais, na história constitucional brasileira, foram previstas apenas na Constituição do Império, de 1824, não se verificando nas que se seguiram. Trata-se de previsão de prazo durante o qual fica vedada qualquer alteração da Constituição. O exemplo único é o art. 174 da citada Constituição Política do Império, que permitia a reforma da Constituição somente após 4 anos de sua vigência.

Assim, nãolimitação expressa temporal prevista na CF/88. Convém lembrar que a regra do art. 3.º do ADCT (poder constituinte derivado revisor), que determinou a revisão constitucional após 5 anos contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral, não configurou nenhuma limitação temporal ao poder de reforma, mas apenas a previsão de prazo para a malfeita revisão constitucional já esgotada. Durante esse período de pelo menos 5 anos, como se sabe, a Constituição, observados os limites já expostos, poderia, como foi (vide ECs ns. 1 a 4), ser reformada por emendas constitucionais, através da manifestação do poder constituinte derivado reformador.

9.14.1.5. Limitações implícitas

Até agora, estudamos as limitações expressas, explicitamente estabelecidas pelo constituinte originário de 1988.

Indagamos, aprofundando a discussão: seria possível, por exemplo, através de emenda constitucional, revogar expressamente o art. 60, § 4.º, I, e, em um segundo momento, dizer que a forma de Estado não é mais a Federação, passando o Brasil a se constituir em um Estado unitário? Trata-se da teoria da dupla revisão, defendida por Jorge Miranda, segundo a qual em um primeiro momento se revoga uma cláusula pétrea, para, em seguida, modificar aquilo que a cláusula pétrea protegia.97

Apesar de o entendimento exposto ser defendido por renomados juristas estrangeiros e pátrios, como o Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho,98 orientamos para as provas de concursos públicos o posicionamento adotado pela grande maioria dos doutrinadores nacionais, estabelecendo a total impossibilidade da teoria da dupla revisão, na medida em que existem limitações implícitas, decorrentes do sistema, conforme expõe Michel Temer: “as implícitas são as que dizem respeito à forma de criação de norma constitucional bem como as que impedem a pura e simples supressão dos dispositivos atinentes à intocabilidade dos temas já elencados (art. 60, § 4.º, da CF)”.99

Portanto, as limitações expressas já apontadas caracterizam-se como a primeira limitação implícita ou inerente.

Outras duas limitações implícitas apontadas pela doutrina são a impossibilidade de se alterar tanto o titular do poder constituinte originário como o titular do poder constituinte derivado reformador.

9.14.1.6. Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e a sua equivalência com as emendas constitucionais — EC n. 45/2004

Nos termos do § 3.º do art. 5.º, introduzido pela EC n. 45/2004, e esse tema será aprofundado no item 9.14.5.2.2, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Como exemplo, destacamos o Decreto Legislativo n. 186, de 09.07.2008, que aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, promulgada pelo Decreto n. 6.949, de 25.08.2009, tendo sido, assim, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com o status de norma constitucional.

9.14.2. Lei complementar e lei ordinária

9.14.2.1. Semelhanças

O processo legislativo de constituição das leis complementares e ordinárias foi exaustivamente analisado quando expusemos a teoria do processo legislativo, constituindo-se, basicamente, em três fases distintas, a saber: fase de iniciativa (defla­gra--se o processo legislativo); fase constitutiva (em que ocorre a deliberação parlamentar, pela discussão e votação, bem como a deliberação executiva, mani­fes­tando-se o Chefe do Executivo pela sanção ou veto) e a fase complementar (promulgação e publicação). Como regra geral, por meio das leis editar-se-ão normas gerais e abstratas, regulamentando as normas constitucionais.

9.14.2.2. Diferenças

Existem duas grandes diferenças entre a lei complementar e a ordinária, uma do ponto de vista material e outra do ponto de vista formal.

9.14.2.2.1. Aspecto material

As hipóteses de regulamentação da Constituição por meio de lei complementar estão taxativamente previstas no texto Maior. Sempre que o constituinte originário (ou até mesmo o derivado reformador, conforme previsto, por exemplo, nos arts. 146-A e 202, assim como poderia ter sido trazido pelo derivado revisor) quiser que determina­da matéria seja regulamentada por lei complementar, expressamente, assim o requererá.­

As hipóteses que serão regulamentadas por lei complementar foram predeterminadas, conforme se observa pelo quadro comparativo no final deste capítulo, onde reunimos todas as hipóteses previstas na CF/88. Desde já, como exemplos, citamos os arts. 7.º, I; 14, § 9.º; 18, §§ 2.º, 3.º e 4.º; 21, IV; 22, parágrafo único; 23, parágrafo único; 25, § 3.º...

Em relação às leis ordinárias, o campo material por elas ocupado é residual, ou seja, tudo o que não for regulamentado por lei complementar, decreto legislativo (art. 49 — matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional) e resoluções (arts. 51 e 52 — matérias de competência privativa, respectivamente, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal).

9.14.2.2.2. Aspecto formal

No tocante ao aspecto formal, a grande diferença entre lei complementar e lei ordinária está no quorum de aprovação do respectivo projeto de lei. Enquanto a lei complementar é aprovada pelo quorum de maioria absoluta, as leis ordinárias o serão pelo quorum de maioria simples ou relativa.100 Então vejamos:

LEI COMPLEMENTAR

MAIORIA ABSOLUTA (art. 69)

LEI ORDINÁRIA

MAIORIA SIMPLES ou RELATIVA (art. 47)

Resta saber qual a diferença entre maioria absoluta e maioria simples. Nos dois casos, busca-se a maioria, só que, para o quorum de maioria absoluta, a maioria será dos componentes, do total de membros integrantes da Casa (sempre um número fixo), enquanto para a maioria simples a maioria será dos presentes à reunião ou sessão que, naquele dia de votação, compareceram.

Valendo-nos do direito tributário para melhor explicar, fazemos uma analogia: a “alíquota” (maioria) será sempre a mesma. O que muda é a “base de cálculo”, ou seja: a) maioria absoluta: busca-se saber a maioria (alíquota) dos componentes (base de cálculo); b) maioria simples: busca-se saber a maioria (alíquota) dos presentes (base de cálculo).

E como achar a maioria, a “alíquota”? A maioria será sempre metade mais um para números pares e o primeiro número inteiro superior à metade para números ímpares.101 Vejamos alguns exemplos: 

100  51 (100 ÷ 2 = 50  50 + 1 = 51);

51  26 (51 ÷ 2 = 25, 5  o primeiro número inteiro superior à metade = 26);

50  26 (também 26, pois: 50 ÷ 2 = 25  25 + 1 = 26);

81  41 (81 ÷ 2 = 40, 5  o primeiro número inteiro superior à metade = 41  obs.: 81 é o número de Senadores da República);102

513  257 (513 ÷ 2 = 256, 5  o primeiro número inteiro superior à metade = 257  obs.: 513 é o número de Deputados Federais, de acordo com o art. 1.º da Lei Complementar n. 78, de 30.12.1993).

Para finalizar devemos lembrar uma pequena regra prevista no art. 47, que diz: “salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros”. Trata-se do quorum para a aprovação da lei ordinária, qual seja, o da maioria simples. No entanto, deverá estar presente na sessão de votação, pelo menos, a maioria absoluta dos membros. Trata-se do quorum de instalação da sessão de votação. Presente o quorum de instalação da sessão (que é de maioria absoluta), aí sim poder-se-á realizar a votação, que se dará pelo quorum da maioria simples, vale dizer, dos presentes àquela sessão.

Exemplificando: imaginem que em determinada Casa existam 100 Deputados (número dos componentes). Deve-se votar um projeto de lei ordinária, cujo quorum é o da maioria simples. Assim, para iniciar a votação, de acordo com o art. 47, deve estar presente, pelo menos, a maioria absoluta dos membros (quorum de instalação da sessão). A votação só começa se estiverem presentes, no exemplo criado, 51 Deputados. Imaginem que naquele dia compareceram 60. Podemos iniciar a votação? Sim, já que presente a maioria absoluta dos membros (pelo menos 51). Qual será o quorum de aprovação se comparecerem 60 àquela sessão? Ter-se-á aprovação se pelo menos 31 disserem sim!

Então, podemos afirmar que o quorum de votação (ou, melhor dizendo, de instalação da sessão de votação) é o mesmo tanto para a lei ordinária como para a lei complementar. A grande diferença (além do aspecto material já estudado), analisando o aspecto formal, reside no quorum de aprovação: a) lei ordinária — maioria simples (no exemplo 31); b) lei complementar — maioria absoluta (no exemplo 51). Vejamos o quadro analisando um parlamento hipotético com 100 componentes, para aprovação de lei ordinária e complementar, sendo que naquele dia compareceram 60 pessoas:

PARLAMENTO HIPOTÉTICO

(100 componentes. Naquele dia compareceram 60 dos 100)

LEI ORDINÁRIA

LEI COMPLEMENTAR

Quorum de instalação da sessão de votação — pelo menos 51 (maioria absoluta). Como vieram, na hipótese, 60, podemos começar a votar

Quorum de instalação da sessão de votação — pelo menos 51 (maioria absoluta). Como vieram, na hipótese, 60, podemos começar a votar

Quorum de aprovação — 31 (maioria simples). Maioria dos presentes (60)

Quorum de aprovação — 51 (maioria absoluta). Maioria dos componentes (100)

Conforme observou José Afonso da Silva, “a maioria simples pressupõe deliberação única, a prática de um ato simples de homologação, de aprovação, de referendo, de escolha, de sorte que valem os votos positivos ou negativos, não se levando em consideração os votos brancos e as abstenções, nem os votos nulos”.103

9.14.2.3. Existe hierarquia entre lei complementar e lei ordinária?

NÃO.

Essa matéria é muito discutida na doutrina, e há opiniões contrárias e fortes argumentos nos dois sentidos.104 Valendo-nos de interessante compilação realizada por Alexandre de Moraes105 concernente aos juristas que entendem haver hierarquia da lei complementar sobre a lei ordinária (e o próprio autor se enquadra nesse grupo), podemos citar Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Haroldo Valadão, Pontes de Miranda, Wilson Accioli, Nelson Sampaio, Geraldo Ataliba, dentre outros. A lei complementar apresenta-se como um tertium genus, localizada entre a Constituição e a lei ordinária. A hierarquia se dá em decorrência do quorum mais qualificado e das hipóteses taxativas de previsão da lei complementar.

Por outro lado, o autor lembra nomes como os de Celso Bastos, Michel Temer, aos quais acrescentamos Luiz Alberto David Araujo, Vidal Serrano Nunes Júnior, Leda Pereira Mota, Celso Spitzcovsky, dentre outros, no sentido de inexistir hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, na medida em que ambas encontram o seu fundamento de validade na Constituição, existindo, como observou Temer, “âmbitos materiais diversos atribuídos pela Constituição a cada qual destas espécies normativas”.106

Posicionamo-nos também pela inexistência de hierarquia entre as duas espécies normativas, pois admitir isso seria o mesmo que entender que uma lei municipal é hierarquicamente inferior a uma lei federal. Têm-se, na verdade, âmbitos diferenciados de atuação, atribuições diversas, de acordo com as regras definidas na Constituição.

Nessa linha da inexistência de hierarquia entre LC e LO, a EC n. 45/2004, modificando a competência do STF e do STJ, estabeleceu, como nova hipótese de cabimento de recurso extraordinário, quando a decisão recorrida “julgar válida lei local contestada em face de lei federal”. No fundo, percebe-se, também aqui, que o problema é de competência constitucional, e não de hierarquia de normas.

A tendência da jurisprudência do STF era nesse sentido (inexistência de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária), destacando-se vários precedentes: RE 457.884-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 21.02.2006, DJ de 17.03.2006; RE 419.629, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 23.05.2006, DJ de 30.06.2006; AI 637.299-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 18.09.2007, DJ de 05.10.2007. Cf., também, Inf. 459/STF.

Finalmente, o STF se posicionou no sentido da inexistência de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, o que estudaremos no item 19.2.5.1, remetendo o nosso ilustre leitor para o aprofundamento (cf. RE 419.629, 377.457 e 381.964).

9.14.3. Lei delegada

A lei delegada caracteriza-se como exceção ao princípio da indelegabilidade de atribuições, na medida em que a sua elaboração é antecedida de delegação de atribuição do Poder Legislativo ao Executivo, através da chamada delegação externa corporis.

Vimos que o Legislativo pode delegar o poder de elaborar as regras tanto internamente, ou seja, para as Comissões temáticas, nos termos regimentais e se não houver recurso para o Plenário (art. 58, § 2.º, I), e essa é a denominada delegação interna corporis, como também externamente, para outro Poder, e essa será a delegação externa corporis, tendo-se como bom exemplo a lei delegada.

A espécie normativa em análise será elaborada pelo Presidente da República, após prévia solicitação ao Congresso Nacional, delimitando o assunto sobre o qual pretende legislar. Trata-se da primeira fase do processo legislativo de elaboração da lei delegada, denominada iniciativa solicitadora.

A solicitação será submetida à apreciação do Congresso Nacional, que, no caso de aprovação, tomará a forma de resolução (art. 68, § 2.º), especificando o conteúdo da delegação e os termos de seu exercício.

Lembramos que determinadas matérias não poderão ser delegadas (princípio da in­delegabilidade de atribuições). A Constituição, em seu art. 68, § 1.º, veda a delegação:

de atos da competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49);

dos de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal (arts. 51 e 52);

das matérias reservadas à lei complementar (ver quadro comparativo no final deste capítulo);

de legislação sobre: I — organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, carreira e garantia de seus membros; II — nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III — planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.

Havendo exorbitância nos limites da delegação legislativa (ou seja, caso o Presidente da República elabore a lei delegada além do limite fixado na resolução congressual), caberá ao Congresso Nacional sustar o aludido ato normativo, por meio de decreto legislativo, realizando, desta feita, controle repressivo de constitucionalidade (art. 49, V). Em nosso entender, essa sustação opera efeito ex nunc, ou seja, a partir de então, especialmente em razão da natureza jurídica normativa do decreto legislativo a ser editado pelo CN.107

Por meio da resolução, que especificará o conteúdo e os termos de seu exercício, o Congresso Nacional determinará se haverá ou não a apreciação do projeto de lei delegada (elaborada pelo presidente da República) pelo Congresso Nacional. Havendo apreciação, o Congresso Nacional a fará em votação única, sendo vedada qualquer emenda (art. 68, § 3.º).

Podemos, então, reconhecer tanto a delegação típica como a delegação atípica:

delegação típica: não haverá apreciação pelo Congresso Nacional. Este autoriza a delegação ao Presidente da República, que irá elaborar, promulgar e fazer publicar a lei delegada;

delegação atípica: nessa hipótese, haverá apreciação pelo Congresso Nacional, em votação única e vedada qualquer emenda. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, nesse caso, temos uma “inversão do processo de elaboração de leis ordinárias”, chegando a afirmar que o Congresso Nacional “sancionará” o projeto elaborado pelo Chefe do Executivo.108

Concordamos com esta observação já que, na delegação atípica, o Presidente é quem elaborará o ato normativo, cabendo ao Congresso Nacional, em análise posterior, aceitá-lo (e, nesse caso, seria a aquiescência política, aproximando-se da ideia de “sanção”) ou rejeitá-lo (o que corresponderia ao “veto”), mas, claro, com todas as particularidades da tramitação do projeto de lei delegada.

Nos dois casos (havendo ou não apreciação do projeto pelo Congresso), entendemos dispensáveis a sanção e o veto presidenciais, pois seria ilógico o veto de projeto elaborado pelo próprio Presidente se não vai haver eventual alteração na redação original, já que é “vedada qualquer emenda”.

Elaborada a lei delegada (aprovada, quando solicitada na resolução a apreciação parlamentar — art. 68, § 3.º), o Presidente da República a promulgará, determinando a sua publicação no órgão oficial.

Importante ressaltar que, mediante resolução, transfere-se apenas, e temporariamente, competência para legislar sobre determinadas matérias, permanecendo a titularidade da aludida competência com o Legislativo, que poderá, mesmo tendo havido delegação ao Presidente, legislar sobre a mesma matéria.

Entendemos, também, que, muito embora tenha havido delegação legislativa pelo CN ao Presidente da República, este não estará obrigado a efetivar a elaboração do referido ato normativo, tendo total discricionariedade.

Por fim, constata-se a pouca utilização do instituto da lei delegada pelo Presidente da República,109 tendo em vista tanto o seu poder de iniciativa como, principalmente em termos de “agilidade” e efetividade normativa, a previsão da medida provisória. É o nosso próximo item de estudo.

9.14.4. Medida provisória

9.14.4.1. Aspectos iniciais

A medida provisória, prevista no art. 62 da atual Constituição, substituiu o antigo decreto-lei110 (art. 74, “b”, c/c os arts. 12 e 13 da Constituição de 1937; arts. 49, V, e 58 da Constituição de 1967 e arts. 46, V, e 55 da Constituição de 1967, na redação dada pela EC n. 1/69), recebendo forte influência dos decreti-legge da Constituição italiana, de 27 de dezembro de 1947, cujo art. 77 permite a sua adoção in casi straordinari di necessità e d’urgenza.

No entanto, o modelo italiano é bem diverso do brasileiro, já que na Itália o sistema de governo é o parlamentar, e o art. 77 da citada Constituição estabelece que o “Governo” (Gabinete, por intermédio do Primeiro-Ministro) adotará o “provimento provisório com força de lei” sob sua responsabilidade política.

Eis a grande peculiaridade do sistema italiano, muito bem percebida por Michel Temer, que indaga: o que acontece se a medida provisória não for aprovada pelo Parlamento italiano? “O Gabinete (Governo) cai”, explica o ilustre professor, diferente da nossa Constituição, que “... não prevê a responsabilidade política do Presidente da República no caso de não aprovação da medida provisória”.111 Nesse sentido, inquestionável a sua melhor adequação ao sistema de governo parlamentar.112

A medida provisória é adotada pelo Presidente da República, por ato monocrático, unipessoal, sem a participação do Legislativo, chamado a discuti-la somente em momento posterior, quando já adotada pelo Executivo, com força de lei e produzindo os seus efeitos jurídicos.113

Observa-se, nessa primeira abordagem, que a medida provisória foi estabelecida pela CF/88 com a esperança de corrigir as distorções verificadas no regime militar, que abusava de sua função atípica legiferante por intermédio do decreto-lei.

A experiência brasileira mostrou, porém, a triste alteração do verdadeiro sentido de utilização das medidas provisórias, trazendo insegurança jurídica, verdadeira “ditadura do executivo”, governando por inescrupulosas “penadas”, em situações muitas das vezes pouco urgentes e nada relevantes.114

Nesse sentido, cabe referir que, quando da aprovação da EC n. 32/2001, que será comentada a seguir, no período entre 05.10.1988 e 20.09.2001, já havia sido editado e reeditado o assustador número de 6.130 medidas provisórias, chegando algumas delas a levar quase sete anos sem aprovação (por exemplo, a MP n. 2.096/89, dispondo sobre os títulos da dívida pública, de responsabilidade do Tesouro Nacional, convertida na Lei n. 10.179, de 06.02.2001, tendo por MP originária a de n. 470, de 11.04.1994, que tramitou por longos 2.493 dias).

Interessante levantamento realizado pelo Senador Romero Jucá relata que, “na questão do rito e na questão da média de dias para a aprovação das medidas provisórias, verificamos que, em 1988, gastavam-se, em média, 38,9 dias para aprovar uma medida provisória. Esse número foi crescendo ao longo dos anos, chegando, em 1998, a 507 dias de tramitação; em 1999, a 438; e, em 2000, a 472 dias”.115

Assim, até o advento da EC n. 32/2001, constatava-se a total desvirtuação do instituto da medida provisória, admitindo-se, com o consentimento do STF e do próprio Congresso Nacional, a reedição das medidas provisórias, mantendo-se os efeitos de lei a partir da primeira edição, desde que não houvesse expressa rejeição pelo Congresso Nacional e fosse dentro do seu antigo prazo de eficácia de 30 dias (SV 54/STF).116 Tratava-se de entendimento totalmente contrário ao preceituado no art. 62 da CF/88, por nós refutado na 2.ª edição deste trabalho, acompanhando diversos doutrinadores de renome, porém indicado a ser observado nos concursos públicos em razão do posicionamento do STF.117

Nesse contexto é que, após a sua tramitação por mais de seis longos anos, em 05.09.2001, foi votada e aprovada, em segundo turno, a PEC n. 1-B, de 1995 (n. 472/97, na Câmara dos Deputados), com parecer favorável, sob n. 729/01, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (DSF de 09.08.2001, fls. 15939-40), tendo sido promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em 11.09.2001, a EC n. 32/2001, trazendo limites à edição das medidas provisórias e entrando em vigor na data de sua publicação — 12.09.2001.

9.14.4.2. O processo de criação das medidas provisórias de acordo com a EC n. 32/2001

Nos termos do art. 62, caput, da CF/88, em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Assim, a MP individualiza-se por nascer apenas pela manifestação exclusiva do Chefe do Executivo, que a publi­ca no DOU. Vejamos, pois, com atenção, o processo de criação da MP, esquematizando a matéria de acordo com as novas regras fixadas na EC n. 32/2001:

legitimado para a edição da MP: o Presidente da República (competência exclusiva, marcada por sua indelegabilidade, art. 84, XXVI, da CF);118

pressupostos constitucionais: relevância e urgência. Os requisitos conjugam-se;119

prazo de duração da MP: pela nova regra, uma vez adotada a MP pelo Presidente da República, ela vigorará pelo prazo de 60 dias, prorrogável, de acordo com o art. 62, § 7.º, uma vez por igual período (novos 60 dias), contados de sua publicação no Diário Oficial. Nos termos do art. 62, § 4.º, contudo, referido prazo será suspenso durante os períodos de recesso parlamentar. Para exemplificar, imagine-se que determinada MP tenha sido publicada em 5 de julho de determinado ano. Nessa hipótese, ela produzirá efeitos até 17 de julho, já que, pela nova regra fixada pela EC n. 50/2006 — que modificou a redação do art. 57, caput — em 18 de julho, inaugura-se o primeiro recesso parlamentar (art. 57, caput). Suspenso o prazo durante o aludido período de recesso (de 18 a 31 de julho), voltará ele a fluir após o término do recesso parlamentar, qual seja, no exemplo dado, em 1.º de agosto, pelo prazo restante (já que se trata de suspensão e não de interrupção de prazo).

Significa um retrocesso, pois, de acordo com a regra anterior, antes do advento da EC n. 32/2001, adotada a MP pelo Presidente da República e estando o Congresso Nacional em recesso, proceder-se-ia à sua convocação extraordinária no prazo de 5 dias. Segundo a nova regra, ao que se percebe, na redação dada ao art. 62, § 4.º, acrescentado, o referido prazo fica suspenso durante o período de recesso do Congresso Nacional. Em contrapartida, amenizando a falta de previsão expressa de convocação extraordinária para o caso de adoção de MP, a EC n. 32/2001 estabeleceu que, em eventual convocação extraordinária, havendo medidas provisórias em vigor na data de sua convocação, serão elas automaticamente incluídas na pauta de convocação (art. 57, § 8.º);

prorrogação do prazo da MP por novos 60 dias: como visto, adotada a MP pelo Presidente da República, ela produzirá efeitos por 60 dias, devendo ser submetida de imediato ao Congresso Nacional. No entanto, findo esse prazo inicial, contado da data de sua publicação, e não tendo sido encerrada a votação nas duas Casas do Congresso Nacional, o prazo inicial de 60 dias será prorroga­do por novos 60 dias, uma única vez, totalizando o prazo de 120 dias, quando então, se não for convertida em lei, a MP perderá a eficácia desde a sua edição;

eficácia da MP: o art. 62, § 3.º, da CF/88 estabelece que as medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12, perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de 60 dias, prorrogável, nos termos do § 7.º, uma vez por igual período (novos 60 dias), devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes; ou seja, não sendo a MP apreciada no referido prazo de 60 dias prorrogáveis por novos 60 dias, ela perderá a sua eficácia desde a sua edição, operando efeitos ex tunc, confirmando a sua efemeridade e precariedade;

tramitação: adotada a MP pelo Presidente da República ela será submetida, de imediato, ao Congresso Nacional, cabendo, de acordo com o art. 62, §§ 5.º e 9.º, da CF/88, a uma comissão mista de Deputados e Senadores examiná-la e sobre ela emitir parecer, apreciando os seus aspectos constitucionais (inclusive os pressupostos de relevância e urgência) e de mérito, bem como a sua adequação financeira e orçamentária e o cumprimento, pelo Presidente da República, da exigência contida no art. 2.º, § 1.º, da Res. n. 1/2002-CN, qual seja, no dia da publicação da MP no DOU ter enviado o seu texto ao Congresso Nacional, acompanhado da respectiva mensagem e de documento expondo a motivação do ato. Posteriormente, a MP, com o parecer da comissão mista, passará à apreciação pelo plenário de cada uma das Casas. O processo de votação, como visto e inovando, será em sessão separada, e não mais conjunta, tendo início na Câmara dos Deputados, sendo o Senado Federal a Casa revisora. O art. 8.º da Resolução n. 1/2002-CN, substituindo as regras contidas na Resolução n. 1/89-CN,120 estabeleceu que o plenário de cada uma das Casas decidirá, em apreciação preliminar, o atendimento ou não dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência, bem como a sua adequação financeira e orçamentária, antes do exame de mérito, sem a necessidade de interposição de recurso, para, ato contínuo, se for o caso, deliberar sobre o mérito. Isso porque, se o plenário da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal decidir no sentido do não atendimento dos pressupostos constitucionais ou pela inadequação financeira ou orçamentária da medida provisória, esta será arquivada;

regime de urgência constitucional: o art. 62, § 6.º, da CF/88 dispõe que, se a medida provisória não for apreciada em até 45 dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. É de observar que o então Presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, anunciou uma nova interpretação a respeito do regime de urgência, orientando que a pauta não fica travada em relação a matérias que não podem, em tese, ser objeto de MP, como PEC, projeto de LC, resoluções, decretos legislativos etc. Contra esse entendimento, em 18.03.2009, foi impetrado o MS 27.931, tendo sido negada a liminar (matéria pendente de julgamento pelo STF, havendo forte perspectiva de ser mantida a interpretação dada pela Casa Legislativa. Em 18.03.2015, pediu vista dos autos o Ministro Roberto Barroso, já havendo 2 votos no sentido da denegação da ordem);

reedição de medida provisória: inovando, o § 10 do art. 62 da CF/88, acrescentado pela EC n. 32/2001, estabelece ser vedada a reedição de medida provisória, na mesma sessão legislativa, expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional, ou que tenha perdido a sua eficácia por decurso de prazo, ou seja, não tenha sido apreciada pelo Congresso Nacional no prazo de 60 dias, prorrogável por novos 60 dias, contados de sua publicação. Pela redação dada ao referido dispositivo legal, contudo, na sessão legislativa seguinte, permitir-se-á a reedição da aludida medida provisória, subsistindo a criticada técnica de reedição das medidas provisórias, que, infelizmente, agora conta até com permissivo constitucional expresso no sentido de corroborar a sua reedição na sessão legislativa seguinte, sistemática essa, em nosso entender, inconstitucional.

9.14.4.3. Parecer prévio pela comissão mista e a inconstitucionalidade dos arts. 5.º, "caput", e 6.º, "caput", e §§ 1.º e 2.º, da Res. n. 1/2002-CN

Conforme já estudamos nos itens 6.6.5.3 e 6.7.1.6.2, a Res. n. 1/2002-CN, integrante do Regimento Comum, dispôs sobre a apreciação, pelo Congresso Nacional, de medidas provisórias adotadas pelo Presidente da República, com força de lei, nos termos do art. 62 da Constituição Federal. Os seus arts. 5.º, caput, e 6.º, caput, e §§ 1.º e 2.º, permitiam que o parecer da comissão mista fosse emitido por relator ou relator revisor designado. Esse procedimento vinha sendo adotado na apreciação de várias medidas provisórias, até como um mecanismo de funcionalidade do procedimento. O STF, contudo, declarou-o inconstitucional, nulificando referidos arts. 5.º, caput, e 6.º, caput, e §§ 1.º e 2.º, da Res. n. 1/2002-CN.

Isso porque o art. 62, § 9.º, da CF/88, que deve ser interpretado restritivamente, prescreve ser atribuição da comissão mista de Deputados e Senadores (e não de relator designado) examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, de caráter opinativo, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional.

Dessa forma, o procedimento estabelecido na Res. n. 1/2002-CN, que permite a emissão de parecer por meio de relator nomeado, e não pela comissão mista, éinconstitucional.

Apesar de referido parecer ser opinativo, isso não quer dizer que possa o Parlamento violar a regra contida no art. 62, § 9.º, da CF/88. Se eventualmente não houver apreciação pela comissão mista, significa que a MP foi rejeitada por não apreciação, perdendo a sua eficácia desde a sua edição (art. 62, § 3.º, da CF/88).

Consoante ficou assentado na ementa do acórdão, “as comissões mistas e a magnitude das funções das mesmas no processo de conversão de medidas provisórias decorrem da necessidade, imposta pela Constituição, de assegurar uma reflexão mais detida sobre o ato normativo primário emanado pelo Executivo, evitando que a apreciação pelo Plenário seja feita de maneira inopinada, percebendo-se, assim, que o parecer desse colegiado representa, em vez de formalidade desimportante, uma garantia de que o Legislativo fiscalize o exercício atípico da função legiferante pelo Executivo. O art. 6.º da Resolução 1 de 2002 do Congresso Nacional, que permite a emissão do parecer por meio de relator nomeado pela Comissão Mista, diretamente ao Plenário da Câmara dos Deputados, é inconstitucional” (ADI 4.029, Rel. Min. Luiz Fux, j. 08.03.2012, Plenário, DJE de 27.06.2012).

Surgia, então, a dúvida. Se o procedimento contido na Res. 1/2002-CN, que permitia a emissão de parecer por relator designado, foi declarado inconstitucional, que fazer em relação a todas as medidas provisórias que foram convertidas em lei sem a emissão de parecer pela comissão mista, nos termos do art. 62, § 9.º, da CF/88?

Em tese, seriam todas inconstitucionais. Para evitar essa situação de insegurança jurídica e diante do excepcional interesse social, a Corte determinou a aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99 (modulação dos efeitos da decisão), declarando a inconstitucionalidade do procedimento fixado na Res. n. 1/2002-CN, a partir da decisão proferida na ADI 4.029 — efeito ex nunc (j. 08.03.2012).

Dessa forma, o modelo de apreciação da medida provisória fixado na resolução do Congresso Nacional foi declarado “ainda constitucional” até o julgamento da referida ADI 4.029 e, a partir de então, o STF declarou inconstitucional qualquer inobservância ao art. 62, § 9.º, da CF/88, ficando, por consequência, preservadas a validade e a eficácia de todas as medidas provisórias convertidas em lei até aquela data, bem como daquelas que estavam tramitando no Legislativo nos termos do procedimento fixado nos arts. 5.º, caput, e 6.º, caput, e §§ 1.º e 2.º, da Res. n. 1/2002-CN.

9.14.4.4. Medidas a serem adotadas pelo Congresso Nacional

Tentando aclarar ainda mais a sistemática trazida pela EC n. 32/2001, podemos fixar que, adotada a MP pelo Presidente da República, o Congresso Nacional poderá tomar as seguintes medidas:

aprovação sem alteração;

aprovação com alteração;

não apreciação (rejeição tácita);

rejeição expressa.

9.14.4.4.1. Aprovação sem alteração

De acordo com o art. 12 da Res. n. 1/2002-CN, diferentemente do que dispunha a regra anterior, “aprovada a medida provisória, sem alteração de mérito, será o seu texto promulgado pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional para publicação, no Diário Oficial da União”. Cabe lembrar que, nos termos do art. 57, § 5.º, da CF/88, a Mesa do Congresso Nacional será presidida pelo Presidente do Senado Federal. Assim, conclui-se que o Presidente do Senado Federal é quem exerce a função de Presidente da Mesa do CN.

9.14.4.4.2. Aprovação com alteração

Disciplinando a regra anterior, a Resolução n. 1/89 do Congresso Nacional, alterada pela de n. 2/89, regulamentando a matéria, previu a possibilidade de apresentação de emendas ao texto da medida provisória, originalmente expedida pelo Presidente da República.

Essa regra foi mantida na Res. n. 1/2002-CN. Dentro da nova sistemática, havendo emendas (matérias correlatas ao conteúdo da medida provisória), o projeto de lei de conversão apreciado por uma das casas deverá ser apreciado pela outra (tendo em vista a votação agora em sessão separada pelo plenário de cada uma das Casas), devendo ser, posteriormente, nos termos das regras para o processo legislativo comum, levado à apreciação do Presidente da República para sancionar ou vetar o projeto de lei de conversão, e, em caso de sanção ou derrubada do veto, promulgação e publicação pelo próprio Presidente da República.

No tocante à matéria alterada (diferente do texto original da medida provisória), os efeitos decorrentes desse ponto específico deverão ser regulamentados por decreto legislativo, perdendo a medida provisória, no ponto em que foi alterada, a eficácia desde a sua edição, como previsto no art. 62, § 3.º, da CF/88.

O art. 62, § 12, acrescentado pela EC n. 32/2001, estabelece que, aprovado o projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta continuará integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto. Trata-se de verdadeira aberração jurídica, já que, se houve projeto de lei de conversão alterando o texto original da emenda, a manutenção desse texto até que o projeto seja sancionado ou vetado (pelo Chefe do Executivo) conserva em vigor dispositivo com força de lei (a medida provisória) contrário à manifestação do Parlamento, que, expressamente, o refutou. Assim, entre o período que medeia o projeto de lei de conversão e a sua sanção ou veto pelo Presidente da República, estaremos diante de ato com força normativa já execrado pelo Legislativo. Sobre a não edição do decreto legislativo vide item seguinte.

Essa possibilidade de aprovar a medida provisória com alteração, apesar da proibição contida no art. 4.º, § 4.º, da Res. n. 1/2002, não impediu uma prática que se tornou, infelizmente, corriqueira, qual seja, a impertinente inserção de conteúdo estranho ao texto original no projeto de lei de conversão.

Essas emendas parlamentares sem pertinência temática e estranhas à medida provisória foram chamadas de “jabuti” ou “contrabando legislativo”.121

No julgamento da ADI 5.127, a Suprema Corte entendeu violar “a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1.º, caput, parágrafo único, 2.º, caput, 5.º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória”.

Contudo, em atenção ao princípio da segurança jurídica (arts. 1.º e 5.º, XXXVI, da CF), foram mantidas hígidas todas as leis de conversão fruto dessa prática e promulgadas até a data do referido julgamento (Rel. Min. Rosa Weber, Rel. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, j. 15.10.2015, DJE de 11.05.2016).

9.14.4.4.3. Não apreciação (rejeição tácita)

A não apreciação da medida provisória no prazo de 60 dias contados de sua publicação implicará a sua prorrogação por mais 60 dias, como visto. Desse modo, após o período de 120 dias, não havendo apreciação pelo Congresso Nacional, a medida provisória perderá a eficácia desde a sua edição (rejeição tácita), operando efeitos retroativos, ex tunc, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes por decreto legislativo (art. 62, §§ 3.º, 4.º e 7.º).

Conforme já se observava na redação anterior, ao contrário do que acontecia com o extinto decreto-lei, a EC n. 32/2001 não mais permite a aprovação por decurso de prazo. De fato é o que se percebe pela nova redação dada ao citado art. 62, § 3.º, ou seja, a não deliberação no prazo legal acarreta a rejeição da medida provisória, que perde a eficácia desde a sua edição.

No entanto, de maneira totalmente contrária aos interesses da sociedade, resgatando as mazelas do extinto decreto-lei, o § 11 do art. 62, na nova redação, estabelece que se não for editado o decreto legislativo para regulamentar as relações jurídicas decorrentes da medida provisória que perdeu a sua eficácia por ausência de apreciação, até 60 dias após a sua perda de eficácia,122 “as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”; ou seja, não sendo editado o decreto legislativo pelo Congresso Nacional, valerão as regras da medida provisória para regulamentar as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante o período em que a MP produzia efeitos. Ora, se a perda dos efeitos é ex tunc, como afirmar que as relações jurídicas conservar-se-ão regidas pela extinta MP? Data maxima venia, trata-se de verdadeiro resgate do autoritário decreto-lei, que permitia a sua aprovação por decurso de prazo. Aqui se diz que a não apreciação (decurso de prazo) implica a perda da eficácia ex tunc. Mas, inexistindo o decreto legislativo, as relações serão regidas pela extinta medida provisória! Com o devido respeito, muito embora tenhamos a missão de dizer o que o examinador dos concursos possa perguntar em uma primeira fase, não deixamos de declarar a nossa repulsa por essa nova sistemática, totalmente inconstitucional e arbitrária. De acordo com a justificação do Projeto de Resolução n. 5 — CN (DCN, 03.10.2001, p. 19989), por outro lado, o objeto dessa regra é “evitar vácuo jurídico (...) evidenciado na prática recente”.

Apenas para sistematizar algo que já foi dito, indaga-se: é permitida a reedição de medida provisória que tenha perdido a sua eficácia por decurso de prazo, ou seja, não tenha sido apreciada pelo Congresso Nacional no prazo de 60 dias prorrogáveis por outros 60 dias?

O art. 62, § 10, da CF/88 estabelece ser vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. Então, pela nova regra, a reedição da aludida MP não será permitida na mesma sessão legislativa, isto é, de acordo com o art. 57, caput, na redação dada pela EC n. 50/2006, no período durante o qual o Congresso Nacional, anualmente, reúne-se em Brasília e que vai de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1.º de agosto a 22 de dezembro. Na sessão legislativa seguinte, abre-se a possibilidade de reedição da MP.

9.14.4.4.4. Rejeição expressa

O Congresso Nacional também poderá expressamente deixar de converter a medida provisória em lei, devendo disciplinar os efeitos dela decorrentes por meio de decreto legislativo.

Reforçando a crítica por nós já manifestada, o novo art. 62, § 11, diz que se não for editado o decreto legislativo até 60 dias da rejeição da medida provisória, a qual, como referido, perde a eficácia desde a sua edição, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a sua vigência conservar-se-ão por ela (pela medida provisória rejeitada) regidas.

Retomando os argumentos expendidos no item anterior, trata-se de regra até mais abrangente que o execrado e ditatorial decreto-lei da Constituição anterior, que permitia a aprovação por decurso de prazo. Se o Congresso Nacional rejeitou a MP, expressamente, como admitir que, inexistindo o decreto legislativo, as regras fixadas pela MP continuem a disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes? Não se pode aceitar essa situação.

Outra pergunta que se faz: a reedição de MP expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional é permitida?

Como visto no item anterior, o art. 62, § 10, estabelece ser vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.

Logo, a contrario sensu, pela literalidade da EC n. 32/2001, na sessão legislativa seguinte seria permitida a reedição da MP, mesmo se expressamente rejeitada. Essa atrocidade acobertada por todos não pode iludir a população. Todos vêm dizendo ser “vedada a reedição de MP” — o grande avanço trazido pela novel emenda constitucional! No entanto, a literalidade do aludido parágrafo esconde artifícios para que o governo reedite medidas provisórias, inclusive se expressamente rejeitadas. Restará ao STF declarar inconstitucional esse “Frankenstein jurídico”, já que, na sistemática anterior, o Pretório Excelso vedava a reedição de MP quando houvesse expressa rejeição pelo Congresso Nacional (cf. ADI 1.250-9/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1, de 06.09.1995, p. 28252; ADI 293-7/600/DF, Pleno, medida liminar, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; e ADI 295-3, Rel. Min. Carlos Velloso).

9.14.4.5. Impacto da medida provisória sobre o ordenamento jurídico

Publicada a medida provisória e tendo ela força de lei, as demais normas do ordenamento, que com ela sejam incompatíveis, terão a sua eficácia suspensa. Rejeitada a medida provisória, a lei que teve a sua eficácia suspensa volta a produzir efeitos (lembrando que não foi revogada pela medida provisória). Aprovada e convertida em lei, a nova lei (fruto da conversão) revogará a lei anterior, se com ela incompatível, ou se tratar inteiramente de matéria de que tratava a lei anterior.123

Novamente, em razão do objetivo deste trabalho, que é ajudar os ilustres candidatos a vencer as dificuldades dos concursos públicos, lembramos a criticada redação dada ao art. 62, § 11, da CF/88, que traz uma exceção aos casos que tenham sido atingidos pela medida provisória. Embora a rejeição da MP, como visto, implique o restabelecimento da norma anterior, tendo em conta a sua desconstituição com efeitos retroativos, desde que não tenha sido “... editado o decreto legislativo a que se refere o § 3.º até 60 dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”. Mais uma vez expressamos o nosso repúdio a essa regra, alertando os candidatos a concursos públicos da sua existência!

9.14.4.6. Pode o Presidente da República retirar da apreciação do Congresso Nacional medida provisória já editada?

A partir do momento que o Presidente da República edita a MP, ele não mais tem controle sobre ela, já que, de imediato, deverá submetê-la à análise do Congresso Nacional, não podendo retirá-la de sua apreciação.

Por outro lado, conquanto contrariando a nossa posição, devemos alertar para a “... orientação assentada no STF no sentido de que, não sendo dado ao Presidente da República retirar da apreciação do Congresso Nacional medida provisória que tiver editado, é-lhe, no entanto, possível ab-rogá-la por meio de nova medida provisória, valendo tal ato pela simples suspensão dos efeitos da primeira, efeitos esses que, todavia, o Congresso poderá ver restabelecidos, mediante a rejeição da medida ab-rogatória...” (ADI 1.315-MC/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 25.08.1995, p. 26022, Ement. v. 01797-02, p. 293, Pleno).

9.14.4.7. Limitação material à edição de medidas provisórias, de acordo com a EC n. 32/2001

A EC n. 32/2001 trouxe algumas novidades em relação aos limites materiais de edição das medidas provisórias, notadamente na redação dada aos §§ 1.º e 2.º do art. 62.

Assim, é expressamente vedada a edição de medidas provisórias sobre matérias relativas:

à nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;

a direito penal, processual penal e processual civil;

à organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, à carreira e à garantia de seus membros;

a planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3.º.124

A) MP pode ser editada para a abertura de crédito extraordinário?

A regra é que a MP não pode tratar de matéria orçamentária. Contudo, como se verifica na parte final do art. 62, § 1.º, I, “d”, ressalva-se a utilização de MP para a abertura de crédito extraordinário, mas desde que se observe o art. 167, § 3.º.

Trata-se daquilo que vem sendo chamado pela jurisprudência do STF de limites constitucionais à atividade legislativa excepcional do Poder Executivo na edição de MP para a abertura de crédito extraordinário.

Portanto, de acordo com o art. 167, § 3.º, a abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.

Assim, a utilização da MP fica restrita a essas situações extraordinárias, destacando-se o importante papel de controle da atividade do Executivo pelo Judiciá­rio. É o que estudamos no próximo item.

B) É possível o controle jurisdicional de medida provisória que abre crédito extraordinário?

Conforme já estudado,125 revisando o conceito de lei de efeito concreto (ADI 4.048 e 4.049), o STF tem admitido o controle dos requisitos de imprevisibilidade e urgência para a edição de MP que abre crédito extraordinário.

Isso porque o art. 167, § 3.º, ao dispor que a abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, não obstante estabeleça um rol exemplificativo do que venha a ser “despesas imprevisíveis e urgentes”, há uma indiscutível densificação normativa dos referidos requisitos, podendo, então, o STF realizar o controle:

“Ementa: Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3.º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões ‘guerra’, ‘comoção interna’ e ‘calamidade pública’ constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3.º, c/c o art. 62, § 1.º, inciso I, alínea d, da Constituição...” (ADI 4.048-MC, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.05.2008, DJE de 22.08.2008. No mesmo sentido: ADI 4.049-MC, Rel. Min. Carlos Britto, j. 05.11.2008, Inf. 527/STF) (matéria pendente de julgamento no STF).126

C) Outras vedações

A regra trazida na EC n. 32/2001 veda ainda, expressamente, a edição de medida provisória:

que vise à detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;127

reservada à lei complementar (lembrem que o aspecto material da lei complementar foi taxativo e expressamente previsto na Constituição Federal e, no tocante ao aspecto formal, o quorum de maioria absoluta);

já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.

No tocante à matéria tributária, a EC n. 32/2001 estabelece a seguinte regra (art. 62, § 2.º):

medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada.

Essa nova redação, apesar de contrariar renomada parte da doutrina,128 não altera o posicionamento do STF, que entende ser perfeitamente possível a regulamentação de matéria tributária através de medida provisória, exceto nas hipóteses em que a Constituição exige lei complementar, por exemplo, o art. 146, devendo, contudo, ser observado o princípio da anterioridade tributária129 (art. 150, III, “b”) e, nas hipóteses cabíveis, o princípio da carência, fixado no art. 150, III, “c” (EC n. 42/2003).

Em relação a este princípio, todavia, a EC n. 32/2001 trouxe uma novidade. O STF posicionava-se no sentido de tomar por base a data da primeira edição da medida provisória, a fim de ver preenchido o requisito do art. 150, III, “b”, ou do art. 195, § 6.º, tendo em vista que havia entendimento no sentido de que a medida provisória não apreciada pelo Congresso Nacional podia (até o advento da referida EC n. 32/2001) ser reeditada dentro do seu prazo de eficácia de 30 dias, mantidos os efeitos de lei desde a primeira edição (cf. SV 54/2016 e entendimento firmado: ADI 1.617-MS, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 15.08.1997, e ADI 1.610-DF, Rel. Min. Sydney Sanches; RE 221.856-PE, Rel. Min. Carlos Velloso, 2.ª Turma, j. 25.05.1998).

Com a redação dada ao art. 62, § 2.º, excepcionando a regra geral exposta pelos julgados do STF, em se tratando da espécie tributária denominada imposto, com exceção daqueles que dispensam respeito ao princípio da anterioridade tributária (art. 150, § 1.º, c/c os arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II), a sua instituição ou majoração, por medida provisória, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte (art. 150, III, “b”) se a aludida MP tiver sido convertida em lei até o último dia do exercício financeiro em que foi editada.

Outro limite previsto pela EC n. 32/2001 vem disciplinado na redação dada ao art. 246 da CF/88, agora redigido nos seguintes termos:

“Art. 246. É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1.º de janeiro de 1995 até a promulgação desta emenda, inclusive”.

Trata-se de mais um retrocesso trazido pela nova sistemática das medidas provisórias, beneficiando, claramente, o governo e mostrando que o Congresso Nacional cedeu e muito nesse mau acordo político.

Isso porque a vedação de regulamentação de artigo da Constituição alterado por emenda, de acordo com a redação dada ao art. 246 da CF/88, não abrange as que forem promulgadas após o dia 11.09.2001. Pela nova regra, retrógrada, enfatize-se, as MPs não poderão regulamentar artigos da Constituição que tenham sido alterados por emenda constitucional no período de 1.º.01.1995 a 11.09.2001. Todo artigo da Constituição que for alterado antes ou depois desse período poderá ser regulamentado por MP. Naturalmente, interpretando a literalidade do dispositivo, mesmo durante referido período, antes ou depois, os artigos da Constituição que não forem alterados por emenda (e, claro, desde que não haja qualquer vedação constitucional — limites materiais) poderão ser regulamentados por MP.

Além desses limites, podemos destacar, muito embora não estejam previstos expressamente na EC n. 32/2001, os seguintes, impossibilitando a regulamentação por medida provisória das:

matérias que não podem ser objeto de delegação legislativa (art. 68, § 1.º, pela própria natureza do ato que reforça o princípio da indelegabilidade de atribuições);

matérias reservadas às resoluções e aos decretos legislativos, por serem de competência das Casas ou do próprio Congresso Nacional.

Por fim, em relação aos limites materiais, selecionamos, ainda, algumas situações nas quais já havia expressa vedação de regulamentação por medida provisória:

art. 25, § 2.º, da CF/88: “cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação”;

art. 73 do ADCT: acrescentado pela ECR n. 1/94, que já teve a sua eficácia exaurida, vedando a regulação do Fundo Social de Emergência, criado inicialmente para os exercícios financeiros de 1994 e 1995, por medida provisória;

art. 2.º da EC n. 8/95: veda a adoção de medida provisória para regulamentar o disposto no inciso XI do art. 21 da CF/88;130

art. 3.º da EC n. 9/95: veda a adoção de medida provisória na regulamentação da matéria prevista nos incisos I a IV e nos §§ 1.º e 2.º do art. 177 da CF/88.