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A CF/88, em seu título II, classifica o gênero direitos e garantias fundamentais em importantes grupos, a saber:
■ direitos e deveres individuais e coletivos;
■ direitos sociais;
■ direitos de nacionalidade;
■ direitos políticos;
■ partidos políticos.
Iniciamos o estudo pelos direitos e deveres individuais e coletivos, lembrando, desde já, como manifestou o STF, corroborando a doutrina mais atualizada, que os direitos e deveres individuais e coletivos não se restringem ao art. 5.º da CF/88, podendo ser encontrados ao longo do texto constitucional,1 expressos ou decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, ou, ainda, decorrentes dos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte.
Dentre vários critérios, costuma-se classificar os direitos fundamentais em gerações de direitos, ou, como prefere a doutrina mais atual, “dimensões” dos direitos fundamentais, por entender que uma nova “dimensão” não abandonaria as conquistas da “dimensão” anterior e, assim, esta expressão se mostraria mais adequada no sentido de proibição de evolução reacionária.
Em um primeiro momento, partindo dos lemas da Revolução Francesa — liberdade, igualdade e fraternidade, anunciavam-se os direitos de 1.ª, 2.ª e 3.ª dimensão e que iriam evoluir segundo a doutrina para uma 4.ª e 5.ª dimensão.
Os direitos humanos da 1.ª dimensão marcam a passagem de um Estado autoritário para um Estado de Direito e, nesse contexto, o respeito às liberdades individuais, em uma verdadeira perspectiva de absenteísmo estatal.
Seu reconhecimento surge com maior evidência nas primeiras Constituições escritas, e podem ser caracterizados como frutos do pensamento liberal-burguês do século XVIII.
Tais direitos dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos a traduzir o valor liberdade.
Conforme anota Bonavides, “os direitos de primeira geração ou direitos de liberdades têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.2
Alguns documentos históricos são marcantes para a configuração e emergência do que os autores chamam de direitos humanos de 1.ª geração (séculos XVII, XVIII e XIX), destacando-se:
■ Magna Carta de 1215, assinada pelo rei “João Sem terra”;
■ Paz de Westfália (1648);
■ Habeas Corpus Act (1679);
■ Bill of Rights (1688);
■ Declarações, seja a americana (1776), seja a francesa (1789).
Finalmente, cabe alertar o reconhecimento, por parte da doutrina, de certo conteúdo social no constitucionalismo francês, como anota Ingo Sarlet.3
Nesse sentido, Dimoulis e Martins chegam a afirmar que o termo “geração” não se mostra cronologicamente exato porque já se observavam nas primeiras Constituições e Declarações dos séculos XVIII e XIX certos direitos sociais. Ao tratar da Declaração francesa, destacam a “... garantia à assistência aos necessitados como uma ‘dívida sagrada’ da sociedade e o direito de acesso à educação (arts. 21 e 22). E a Constituição brasileira do Império de 1824 incluía entre os direitos fundamentais dois direitos sociais, os ‘socorros públicos’ e a ‘instrução primária’ gratuita (art. 179, XXXI e XXXII), ambos direitos sociais e diretamente inspirados na Declaração francesa...”.4
O fato histórico que inspira e impulsiona os direitos humanos de 2.ª dimensão é a Revolução Industrial europeia, a partir do século XIX.
Em decorrência das péssimas situações e condições de trabalho, eclodem movimentos como o cartista, na Inglaterra, e a Comuna de Paris (1848), na busca de reivindicações trabalhistas e normas de assistência social.
O início do século XX é marcado pela Primeira Grande Guerra e pela fixação de direitos sociais.
Essa perspectiva de evidenciação dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como dos direitos coletivos, ou de coletividade, correspondendo aos direitos de igualdade (substancial, real e material, e não meramente formal), mostra-se marcante em alguns documentos, destacando-se:
■ Constituição do México, de 1917;
■ Constituição de Weimar, de 1919, na Alemanha, conhecida como a Constituição da primeira república alemã;
■ Tratado de Versalhes, 1919 (OIT);
■ no Brasil, a Constituição de 1934 (lembrando que nos textos anteriores também havia alguma previsão).
Bonavides observa que essas Constituições “passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos” (aquilo que hoje se fala em “reserva do possível”, acrescente-se).
E continua o mestre: “de juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais”.5
Os direitos fundamentais da 3.ª dimensão são marcados pela alteração da sociedade por profundas mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e científico), identificando-se profundas alterações nas relações econômico-sociais.
Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como a necessária noção de preservacionismo ambiental e as dificuldades para proteção dos consumidores, só para lembrar aqui dois candentes temas. O ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade ou fraternidade.6
Os direitos da 3.ª dimensão são direitos transindividuais, isto é, direitos que vão além dos interesses do indivíduo; pois são concernentes à proteção do gênero humano, com altíssimo teor de humanismo e universalidade.
Segundo Bonavides,7 a teoria de Karel Vasak identificou, em rol exemplificativo, os seguintes direitos de 3.ª dimensão:
■ direito ao desenvolvimento;
■ direito à paz (lembrando que Bonavides classifica, atualmente, o direito à paz como da 5.ª dimensão — cf. item 14.2.5);
■ direito ao meio ambiente;
■ direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade;
■ direito de comunicação.
Na orientação de Norberto Bobbio, essa dimensão de direitos decorreria dos avanços no campo da engenharia genética, ao colocarem em risco a própria existência humana, em razão da manipulação do patrimônio genético. Para o mestre italiano: “... já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”.8
Por outro lado, Bonavides afirma que “a globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta dimensão, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social”, destacando-se os direitos a:
■ democracia (direta);
■ informação;
■ pluralismo.
Assim, para Bonavides, os direitos da 4.ª dimensão decorrem da globalização dos direitos fundamentais, o que significa universalizá-los no campo institucional.
Ingo Sarlet afirma que “a proposta do Prof. Bonavides, comparada com as posições que arrolam os direitos contra a manipulação genética, mudança de sexo etc., como integrando a quarta geração, oferece nítida vantagem de constituir, de fato, uma nova fase no reconhecimento dos direitos fundamentais, qualitativamente diversa das anteriores, já que não se cuida apenas de vestir com roupagem nova reivindicações deduzidas, em sua maior parte, dos clássicos direitos de liberdade”.9
Conforme já dissemos, o direito à paz foi classificado por Karel Vasak como de 3.ª dimensão.
Bonavides, contudo, entende que o direito à paz deva ser tratado em dimensão autônoma, chegando a afirmar que a paz é axioma da democracia participativa, ou, ainda, supremo direito da humanidade.10
O art. 5.º, como vimos, trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, espécie do gênero direitos e garantias fundamentais (Título II). Assim, apesar de referir-se, de modo expresso, apenas a direitos e deveres, também consagrou as garantias fundamentais. Resta diferenciá-los.
Um dos primeiros estudiosos a enfrentar esse tormentoso tema foi o sempre lembrado Rui Barbosa, que, analisando a Constituição de 1891, distinguiu “as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos, estas as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito”.11
Assim, os direitos são bens e vantagens prescritos na norma constitucional, enquanto as garantias são os instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados.
Já a diferença entre garantias fundamentais e remédios constitucionais é que estes últimos são espécie do gênero garantia. Isso porque, uma vez consagrado o direito, a sua garantia nem sempre estará nas regras definidas constitucionalmente como remédios constitucionais (ex.: habeas corpus, habeas data etc.). Em determinadas situações a garantia poderá estar na própria norma que assegura o direito. Vejamos dois exemplos:
■ é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos — art. 5.º, VI (direito), garantindo-se na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias (garantia);
■ direito ao juízo natural (direito) — o art. 5.º, XXXVII, veda a instituição de juízo ou tribunal de exceção (garantia).
Lembrando breve caracterização feita por David Araujo e Serrano Nunes Júnior,12 os direitos fundamentais têm as seguintes características:
■ historicidade: possuem caráter histórico, nascendo com o cristianismo, passando pelas diversas revoluções e chegando aos dias atuais;
■ universalidade: destinam-se, de modo indiscriminado, a todos os seres humanos. Como aponta Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “... a ideia de se estabelecer por escrito um rol de direitos em favor de indivíduos, de direitos que seriam superiores ao próprio poder que os concedeu ou reconheceu, não é nova. Os forais, as cartas de franquia continham enumeração de direitos com esse caráter já na Idade Média...”;13
FORAIS/CARTAS DE FRANQUIA |
DECLARAÇÕES DE DIREITOS |
■ Voltam-se para determinadas categorias ou grupos particularizados de homens. ■ Reconhecem direitos a alguns homens por serem de tal corporação ou pertencerem a tal valorosa cidade. |
■ Destinam-se ao homem, ao cidadão, em abstrato. ■ Reconhecem direitos a todos os homens por serem homens — em razão da natureza. |
■ limitabilidade: os direitos fundamentais não são absolutos (relatividade), havendo, muitas vezes, no caso concreto, confronto, conflito de interesses. A solução ou vem discriminada na própria Constituição (ex.: direito de propriedade versus desapropriação), ou caberá ao intérprete, ou magistrado, no caso concreto, decidir qual direito deverá prevalecer, levando em consideração a regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos, conjugando-a com a sua mínima restrição;
■ concorrência: podem ser exercidos cumulativamente, quando, por exemplo, o jornalista transmite uma notícia (direito de informação) e, ao mesmo tempo, emite uma opinião (direito de opinião);
■ irrenunciabilidade: o que pode ocorrer é o seu não exercício, mas nunca a sua renunciabilidade.
José Afonso da Silva ainda aponta as seguintes características:14
■ inalienabilidade: como são conferidos a todos, são indisponíveis; não se pode aliená-los por não terem conteúdo econômico-patrimonial;
■ imprescritibilidade: “... prescrição é um instituto jurídico que somente atinge, coarctando, a exigibilidade dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso. Se são sempre exercíveis e exercidos, não há intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição”.
O art. 5.º, caput, da CF/88 estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos dos seus 78 incisos e parágrafos. Trata-se de um rol meramente exemplificativo, na medida em que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (§ 2.º).
Esse tema ganha bastante relevância com o § 3.º do art. 5.º da CF/88, acrescentado pela EC n. 45/2004 e que foi muito discutido nos itens 6.7.1.2.7 e 9.14.5.2.2, aos quais remetemos o leitor (Art. 5.º, § 3.º — “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”).
O caput do art. 5.º faz referência expressa somente a brasileiros (natos ou naturalizados, já que não os diferencia) e a estrangeiros residentes no País. Contudo, a esses destinatários expressos, a doutrina e o STF vêm acrescentando, mediante interpretação sistemática, os estrangeiros não residentes (por exemplo, turistas), os apátridas e as pessoas jurídicas.
Nada impediria, portanto, que um estrangeiro, de passagem pelo território nacional, ilegalmente preso, impetrasse habeas corpus (art. 5.º, LXVIII) para proteger o seu direito de ir e vir. Deve-se observar, é claro, se o direito garantido não possui alguma especificidade, como ação popular, que só pode ser proposta pelo cidadão.
Nos termos do art. 5.º, § 1.º, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Já estudamos no item 5.8 que o termo “aplicação” não se confunde com “aplicabilidade”, na teoria de José Afonso da Silva, que classifica as normas de eficácia plena e contida como tendo “aplicabilidade” direta e imediata, e as de eficácia limitada como possuidoras de aplicabilidade mediata ou indireta.
Na lição de José Afonso da Silva, ter aplicação imediata significa que as normas constitucionais são “dotadas de todos os meios e elementos necessários à sua pronta incidência aos fatos, situações, condutas ou comportamentos que elas regulam. A regra é que as normas definidoras de direitos e garantias individuais (direitos de 1.ª dimensão, acrescente-se) sejam de aplicabilidade imediata. Mas aquelas definidoras de direitos sociais, culturais e econômicos (direitos de 2.ª dimensão, acrescente-se) nem sempre o são, porque não raro dependem de providências ulteriores que lhes completem a eficácia e possibilitem sua aplicação”.15
Assim, “por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta”.16
Como exemplo de norma definidora de direito e garantia fundamental que depende de lei, podemos citar o direito de greve dos servidores públicos, previsto no art. 37, VII, ou o da aposentadoria especial, garantido nos termos do art. 40, § 4.º.
Então, qual seria o sentido dessa regra inscrita no art. 5.º, § 1.º?
José Afonso da Silva explica: “em primeiro lugar, significa que elas são aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o Poder Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes”.17
Nesse sentido, diante de omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, a CF/88 trouxe duas importantes novidades, quais sejam, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão — ADO (regulamentada pela Lei n. 12.063/2009 e por nós comentada no item 6.7.4) e o mandado de injunção — MI (art. 5.º, LXXI, regulamentado pela Lei n. 13.300/2016 e estudado no item 14.11.5).
Em relação a esses dois remédios para combater a “síndrome de inefetividade” das normas constitucionais de eficácia limitada, o STF tende a consolidar o entendimento de que, em se tratando de “Poder” omisso na elaboração de medida para tornar efetiva a norma constitucional, a ADO restringiria-se a um mero apelo, constituindo-o em mora, enquanto o MI, por seu turno, seria o importante instrumento de concretização dos direitos fundamentais, como vem sendo percebido na jurisprudência do STF (cf. item 14.11.5.4 e a relevante perspectiva trazida pela SV 33/2014), bem como consagrado na lei que regulamentou o mandado de injunção (Lei n. 13.300/2016), dando-se, assim, exato sentido ao art. 5.º, § 1.º, que fala em aplicação imediata.
Várias teorias tentam explicar o papel desempenhado pelos direitos fundamentais. Dentre outros estudos, destacamos a teoria dos quatro status de Jellinek, que, apesar de elaborada no final do século XIX, ainda se mostra muito atual.
■ status passivo ou subjectionis: o indivíduo se encontra em posição de subordinação aos poderes públicos, vinculando-se ao Estado por mandamentos e proibições. O indivíduo aparece como detentor de deveres perante o Estado;
■ status negativo: o indivíduo, por possuir personalidade, goza de um espaço de liberdade diante das ingerências dos Poderes Públicos. Nesse sentido, podemos dizer que a autoridade do Estado se exerce sobre homens livres;
■ status positivo ou status civitatis: o indivíduo tem o direito de exigir que o Estado atue positivamente, realizando uma prestação a seu favor;
■ status ativo: o indivíduo possui competências para influenciar a formação da vontade do Estado, por exemplo, pelo exercício do direito do voto (exercício de direitos políticos).
O tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também denominado pela doutrina eficácia privada ou externa dos direitos fundamentais, surge como importante contraponto à ideia de eficácia vertical dos direitos fundamentais.18
A aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre o particular e o Poder Público não se discute. Por exemplo, certamente, em um concurso público deverá ser obedecido o princípio da isonomia.
Agora, por outro lado, será que nas relações privadas deve o princípio da isonomia ser obedecido?
Damos um exemplo. Será que, em uma entrevista de emprego (na iniciativa privada), o dono do negócio deverá contratar o melhor candidato?
Será que o dono do negócio poderá demitir alguém simplesmente porque não está gostando de sua aparência?
É aí que surge o problema.
Algumas situações são fáceis de ser resolvidas. Sem dúvida, por exemplo, se um empresário demitir um funcionário em razão de sua “cor”, o Judiciário poderá (ou até “deverá”) reintegrar o funcionário, já que o ato motivador da demissão, além do triste e inaceitável crime praticado, fere, frontalmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e princípio-matriz de todos os direitos fundamentais (art. 1.º, III, da CF/88).
Nesse sentido, cogitando da aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, duas teorias podem ser destacadas:19
■ eficácia indireta ou mediata: os direitos fundamentais são aplicados de maneira reflexa, tanto em uma dimensão proibitiva e voltada para o legislador, que não poderá editar lei que viole direitos fundamentais, como, ainda, positiva, voltada para que o legislador implemente os direitos fundamentais, ponderando quais devam aplicar-se às relações privadas;
■ eficácia direta ou imediata: alguns direitos fundamentais podem ser aplicados às relações privadas sem que haja a necessidade de “intermediação legislativa” para a sua concretização.
Podemos afirmar que importante consequência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é a sua “eficácia irradiante” (Daniel Sarmento), seja para o Legislativo ao elaborar a lei, seja para a Administração Pública ao “governar”, seja para o Judiciário ao resolver eventuais conflitos.
Abaixo, resumidamente, trazemos alguns precedentes nos quais o Judiciário entendeu razoável a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas.
■ RE 160.222-8 (1.ª Turma, j. 11.04.1995): referido recurso foi julgado prejudicado em razão do reconhecimento da extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, não se podendo analisar o suposto crime de “constrangimento ilegal” em razão de revista íntima em mulheres em fábrica de lingerie. Nas palavras do Relator, Min. Sepúlveda Pertence, “lamento que a irreversibilidade do tempo corrido faça impossível enfrentar a relevante questão de direitos fundamentais da pessoa humana, que o caso suscita, e que a radical contraposição de perspectivas entre a sentença e o recurso, de um lado, e o exacerbado privalismo do acórdão, de outro, tornaria fascinante” (fls. 11 do acórdão). Sobre o tema da “revista íntima”, cf. informações sobre a Lei n. 13.271/2016, no item 14.10.8.2 deste estudo;
■ RE 158.215-4 (2.ª Turma, j. 30.04.1996): entenderam-se violados o princípio do devido processo legal e o da ampla defesa na hipótese de exclusão de associado de cooperativa sem direito a defesa;
■ RE 161.243-6 (2.ª Turma, j. 29.10.1996): discriminação de empregado brasileiro em relação ao francês na empresa “Air France”, mesmo realizando atividades idênticas. Determinação de observância do princípio da isonomia;
■ RE 175.161-4 (2.ª Turma, j. 15.12.1998): contrato de consórcio que prevê devolução nominal de valor já pago em caso de desistência — violação ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade (devido processo legal substantivo);
■ HC 12.547/STJ (4.ª Turma, j. 01.06.2000): prisão civil em contrato de alienação fiduciária em razão de aumento absurdo do valor contratado de R$ 18.700,00 para R$ 86.858,24. Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (alertamos que o STF editou a SV 25/2009: “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”);
■ REsp 249.321/STJ (4.ª Turma, j. 14.10.2000): cláusula de indenização tarifada em caso de responsabilidade civil do transportador aéreo — violação ao princípio da dignidade da pessoa humana;
■ RE 201.819 (2.ª Turma, j. 11.10.2005): exclusão de membro de sociedade sem a possibilidade de sua defesa — violação do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (Gilmar Mendes).
Este último caso parece-nos ser o início de forte tendência que surge no âmbito do STF para a aplicação da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais às relações privadas.
Conforme voto do Ministro Gilmar Mendes, divergindo da relatora, Ministra Ellen Gracie, “esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5.º, LIV e LV, da CF) ao processo de exclusão de sócio de entidade”.20
Diante do exposto, sem dúvida, cresce a teoria da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas (“eficácia horizontal”), especialmente diante de atividades privadas que tenham certo “caráter público”, por exemplo, em escolas (matrículas), clubes associativos, relações de trabalho etc.
Nessa linha, poderá o magistrado deparar-se com inevitável colisão de direitos fundamentais: o princípio da autonomia da vontade privada e o da livre-iniciativa de um lado (arts. 1.º, IV, e 170, caput); o da dignidade da pessoa humana e o da máxima efetividade dos direitos fundamentais (art. 1.º, III) de outro.
Diante dessa “colisão”, indispensável será a “ponderação de interesses”21 à luz da razoabilidade e da concordância prática ou harmonização. Não sendo possível a harmonização, o Judiciário terá de avaliar qual dos interesses deverá prevalecer.
Além dos direitos fundamentais, desenvolvem-se estudos sobre os deveres fundamentais, chegando alguns a sustentar uma nova “Era dos Deveres Fundamentais” (no Brasil, dentre outros, Carlos Rátis).
Dessa forma, diante da vida em sociedade, devemos pensar, também, a necessidade de serem observados os deveres, pois muitas vezes o direito de um indivíduo depende do dever do outro em não violar ou impedir a concretização do referido direito.
Dimoulis e Martins tratam do assunto, e procuraremos esquematizar o pensamento dos autores, identificando os seguintes deveres fundamentais:22
■ dever de efetivação dos direitos fundamentais: sobretudo os direitos sociais e garantias das instituições públicas e privadas. Estamos diante da necessidade de atuação positiva do Estado, passando-se a falar em um Estado que tem o dever de realizar os direitos, aquela ideia de Estado prestacionista;
■ deveres específicos do Estado diante dos indivíduos: como exemplo, os autores citam o dever de indenizar o condenado por erro judiciário, o que se dará por atuação e dever das autoridades estatais;
■ deveres de criminalização do Estado: a Constituição determina que o Poder Legislativo edite atos normativos para implementar os comandos, como no caso do art. 5.º, XLIII, devendo haver a normatização do crime de tortura;
■ deveres dos cidadãos e da sociedade: como exemplos, os autores citam o dever do serviço militar obrigatório (art. 143 da CF) e a educação enquanto dever do Estado e da família (art. 205);
■ dever de exercício do direito de forma solidária e levando em consideração os interesses da sociedade: como exemplo, os autores citam o direito de propriedade que deve ser exercido conforme a sua função social (art. 5.º, XXIII, da CF);
■ deveres implícitos: segundo Dimoulis, “existem tantos deveres implícitos quantos direitos explicitamente declarados”, consistindo referidos deveres em ação ou omissão. E conclui no sentido de que “o direito de uma pessoa pressupõe o dever de todas as demais (quando se aceita a tese do efeito horizontal direto) e, sobretudo, das autoridades do Estado”.23
Dado o objetivo principal deste trabalho, qual seja, ferramenta para ajudar o candidato em concursos públicos, provas e mesmo na vida profissional, restringimo-nos a tecer breves comentários sobre os direitos individuais e coletivos, caso contrário abandonaríamos o nosso escopo.
O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5.º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, de não ser privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna.
Em decorrência do seu primeiro desdobramento (direito de não se ver privado da vida de modo artificial), encontramos a proibição da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. Assim, mesmo por emenda constitucional é vedada a instituição da pena de morte no Brasil, sob pena de se ferir a cláusula pétrea do art. 60, § 4.º, IV.
Também, entendemos que o poder constituinte originário não poderia ampliar as hipóteses de pena de morte (nem mesmo uma nova Constituição) tendo em vista o princípio da continuidade e proibição ao retrocesso. Isso quer dizer que os direitos fundamentais conquistados não podem retroceder.
Afastamo-nos, portanto, da ideia de onipotência do poder constituinte.
Canotilho observa que o poder constituinte “... é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como ‘vontade do povo’”. Fala, ainda, na necessidade de observância dos princípios de Justiça (suprapositivos e supralegais) e, também, dos princípios de direito internacional (princípio da independência, princípio da autodeterminação, princípio da observância de direitos humanos — neste último caso de vinculação jurídica, chegando a doutrina a propor uma juridicização e evolução do poder constituinte).24
Toda essa argumentação reforça-se a partir da assinatura de diversos documentos internacionais, destacando-se:
■ Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (art. III);
■ Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966): “o direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida” (parte III, art. 6.º);25
■ Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos com vistas à Abolição da Pena de Morte (1989): “nenhum indivíduo sujeito à jurisdição de um Estado-Parte no presente Protocolo será executado. Os Estados-Partes devem tomar as medidas adequadas para abolir a pena de morte no âmbito da sua jurisdição” (art. 1.º, 1 e 2).26
Quanto ao segundo desdobramento, ou seja, o direito a uma vida digna, a Constituição garante as necessidades vitais básicas do ser humano e proíbe qualquer tratamento indigno, como a tortura, penas de caráter perpétuo, trabalhos forçados, cruéis etc.
Avançando, temos de definir quando começa a “vida” segundo a interpretação do STF, sem exprimir, nesse momento, juízo de valor pessoal, ético, filosófico ou religioso, até porque, nesse último caso, o Brasil é um país laico (art. 19, I, da CF/88).
O STF definiu o conceito de vida no julgamento da ADI 3.510 que tratava da análise do art. 5.º da Lei n. 11.105/2005 (Lei de Biossegurança).
Em 20.04.2007 foi realizada a primeira audiência pública à luz da Lei n. 9.868/99, objetivando pluralizar o debate e dar maior legitimidade à decisão.27
Os argumentos do PGR eram no sentido de que a Lei de Biossegurança violava o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, sendo que a vida humana começa a partir da fecundação.
Desde o ajuizamento da ADI (03.05.2005) até a solução final (29.05.2008) foram mais de 3 anos e o STF concluiu, por votação bastante apertada, 6 x 5, que as pesquisas com célula-tronco embrionária, nos termos da lei, não violam o direito à vida.
Os Ministros vencidos propunham a observância de outras condicionantes além daquelas do art. 5.º da Lei, ingerência que chegou a ser considerada indevida, sob pena de se violar o princípio da separação de “poderes”.
O Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, entendeu tratar-se de um “bem concatenado bloco normativo” fixado pela lei, destacando-se o procedimento: a) para fins de pesquisa e terapia; b) somente em relação às células-tronco embrionárias; c) apenas aquelas fertilizadas in vitro; d) embriões inviáveis ou congelados há pelo menos 3 anos; e) consentimento dos genitores; f) controle por comitê de ética em pesquisa; g) proibição da comercialização.
Além disso, segundo interpretação do Relator, o texto, ao tratar de “dignidade da pessoa humana” (art. 1.º, III), “direitos da pessoa humana” (art. 34, VII, “b”), “livre exercício dos direitos... individuais” (art. 85, III), “direitos e garantias individuais” (art. 60, § 4.º, IV), estaria se referindo a direitos do indivíduo-pessoa, já nascido (cf. Inf. 508/STF).
Nesse ponto, deixamos, com o máximo respeito, a nossa crítica, pois não nos parece tenha o texto se omitido de destinar esses direitos e garantias ao nascituro, que, segundo o Relator, de fato, tem proteção legal, por exemplo, no art. 2.º do CC; no art. 9.º, § 7.º, da Lei de Transplantes (Lei n. 9.434/97); nos arts. 124-126 do CP (aborto).
Segundo o Relator, o zigoto seria o embrião em estágio inicial, pois ainda destituído de cérebro. A vida humana começaria com o surgimento do cérebro, que, por sua vez, só apareceria depois de introduzido o embrião no útero da mulher. Assim, antes da introdução no útero não se teria cérebro e, portanto, sem cérebro, não haveria vida.
A constatação de que a vida começa com a existência do cérebro (segundo o STF e sem apresentar qualquer análise axiológica ou filosófica) estaria estabelecida, também, no art. 3.º da Lei de Transplantes, que prevê a possibilidade de transplante depois da morte desde que se constate a morte encefálica. Logo, para a lei, o fim da vida dar-se-ia com a morte cerebral e, novamente, sem cérebro, não haveria vida e, portanto, nessa linha, o conceito de vida estaria ligado (segundo o STF) ao surgimento do cérebro.
Outro argumento utilizado foi a ideia de dignidade da pessoa humana e paternidade responsável, lembrando o art. 226, § 7.º.
De fato, o Estado não pode, constitucionalmente, restringir a quantidade de filhos por casal. A Constituição, contudo, determina o dever de orientação em relação ao planejamento familiar.
Dessa forma, afirmou o Ministro Relator, se não se define o número de filhos, feita a fertilização in vitro o casal pode optar pela quantidade de embriões a serem introduzidos no útero. Se eventualmente não quiserem introduzir todos, os embriões poderão ser congelados.
E se o casal não tiver como congelar (até porque isso gera custo)? Respondeu outro Ministro, indagando: serão os embriões jogados como lixo hospitalar? Então, que se admita a pesquisa, dentro dos critérios éticos fixados na lei e consagrando a ideia de uma sociedade fraterna (preâmbulo e art. 3.º, I, além da ideia de direitos de 3.a dimensão), objetivando a cura das pessoas com doenças degenerativas (e nos parece que, nesse ponto, bastante acertada a decisão).
Outros argumentos poderiam ser mencionados, como o direito à saúde (arts. 196-200) e o incentivo ao desenvolvimento e à pesquisa científica (arts. 218-219).
Desconsiderando os aspectos moral, ético ou religioso, tecnicamente, em relação à interrupção da gravidez de feto anencefálico,28 desde que se comprove, por laudos médicos, com 100% de certeza, que o feto não tem cérebro e não há perspectiva de sobrevida (situação não imaginada na década de 1940 — quando o Código Penal foi elaborado — e, atualmente, totalmente viável em razão da evolução tecnológica), nessa linha de desenvolvimento, o STF, para seguir a lógica do julgamento anterior (célula-tronco), teria de autorizar a possibilidade de antecipação terapêutica do parto.
Esse tema, como todos sabem, foi enfrentado pelo STF no julgamento da ADPF 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde — CNTS.
Conforme anotou o Min. Marco Aurélio em seu voto, “não se coaduna com o princípio da proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não tem sequer expectativa de vida extrauterina, aniquilando, em contrapartida, os direitos da mulher, impingindo-lhe sacrifício desarrazoado. A imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final será irremediavelmente a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais precisamente à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade, ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido”.
Dessa forma, em 12.04.2012, por maioria de votos, o Plenário do STF, enaltecendo o direito à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde (arts. 1.º, III; 5.º, caput, e incisos II, III e X; e 6.º, caput, da CF/88), julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, I e II, todos do Código Penal (cf. Inf. 661/STF).
Dentro da ideia de vida digna, a eutanásia ganha destaque, pois o direito à vida quer significar, também, o direito de viver com dignidade (tema, inclusive, que está sendo discutido no Projeto de Novo Código Penal — pendente).
A eutanásia passiva vem adquirindo vários defensores (o desligamento de aparelhos que apenas prolongam a vida de doentes em estágio terminal, sem diagnóstico de recuperação), assim como o suicídio assistido. Alguns falam que a eutanásia ativa (o Estado — médico — provocando a morte) seria homicídio.
O tema está lançado e precisa ser mais bem desenvolvido pela sociedade, inclusive em audiências públicas.29
A ideia de bom senso, prudência e razoabilidade deve ser considerada.
A vida deve ser vivida com dignidade. Definido o seu início (tecnicamente, pelo STF), não se pode deixar de considerar o sentimento de cada um. A decisão individual terá de ser respeitada. A fé e a esperança não podem ser menosprezadas e, portanto, a frieza da definição não conseguirá explicar e convencer os milagres da vida. Há situações que não se explicam matematicamente e, dessa forma, a decisão pessoal (dentro da ideia de ponderação) deverá ser respeitada. O radicalismo não levará a lugar algum. A Constituição garante, ao menos, apesar de ser o Estado laico, o amparo ao sentimento de esperança e fé que, muitas vezes, dá sentido a algumas situações incompreensíveis da vida.
O art. 5.º, caput, consagra serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material.
Isso porque, no Estado social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada em face da lei.
Essa busca por uma igualdade substancial, muitas vezes idealista, reconheça-se, eterniza-se na sempre lembrada, com emoção, Oração aos Moços, de Rui Barbosa, inspirada na lição secular de Aristóteles, devendo-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Em diversas hipóteses a própria Constituição se encarrega de aprofundar a regra da isonomia material: a) art. 3.º, I, III e IV; b) art. 4.º, VIII; c) art. 5.º, I, XXXVII, XLI e XLII; d) art. 7.º, XX, XXX,30 XXXI, XXXII e XXXIV; e) art. 12, §§ 2.º e 3.º; f) art. 14, caput; g) art. 19, III; h) art. 23, II e X; i) art. 24, XIV; j) art. 37, I e VIII; k) art. 43, caput; l) art. 146, III, “d” (EC n. 42/2003 — Reforma Tributária); m) art. 150, II; n) art. 183, § 1.º, e art. 189, parágrafo único; o) art. 203, IV e V; p) art. 206, I; q) art. 208, III; r) art. 226, § 5.º; s) art. 231, § 2.º etc.
Em outras, é o próprio constituinte quem estabelece as desigualdades, por exemplo, em relação à igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, nos termos da Constituição, destacando-se as seguintes diferenciações: a) art. 5.º, L (condições às presidiárias para que possam permanecer com os seus filhos durante o período de amamentação); b) art. 7.º, XVIII e XIX (licença-maternidade e licença-paternidade); c) art. 143, §§ 1.º e 2.º (serviço militar obrigatório); d) arts. 201, § 7.º, I e II; 201, § 8.º; art. 9.º da EC n. 20/98; art. 40 da CF/88; art. 8.º da EC n. 20/98; arts. 2.º e 6.º da EC n. 41/2003 — Reforma da Previdência — dentre outros (regras sobre aposentadoria).
Além dessas e de outras hipóteses expressamente previstas na CF/88, a grande dificuldade consiste em saber até que ponto a desigualdade não gera inconstitucionalidade.
Celso Antônio Bandeira de Mello parece ter encontrado parâmetros sólidos e coerentes em sua clássica monografia sobre o tema do princípio da igualdade, na qual fala em três questões a serem observadas, a fim de se verificar o respeito ou desrespeito ao aludido princípio. O desrespeito a qualquer delas leva à inexorável ofensa à isonomia. Resta, então, enumerá-las: “a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados”.31
Destacamos, antes das ações afirmativas, a teoria dos Separate but equal, que vigorou durante muito tempo nos Estados Unidos e consistia na separação (separate) de brancos e negros, porém, assegurando uma prestação de serviços idênticos (equal). Assim, por exemplo, existiam escolas para negros e escolas para brancos, mas, embora separados, a qualidade de ensino deveria ser igual. O mesmo acontecia em relação ao transporte, ou seja, vagões para brancos e vagões para negros.
Essa teoria, que veio a ser superada pela do Treatment as an equal, precisou, em vários casos, das ações afirmativas para afastar o sentimento de discriminação que vigorou por muitos anos. Atualmente, as próprias ações afirmativas estão sendo revistas, no sentido de que a igualdade já está assegurada de modo substancial, não havendo mais necessidade de interferência do Estado.
Esses critérios podem servir de parâmetros para a aplicação das denominadas discriminações positivas, ou affirmative actions,32 tendo em vista que, segundo David Araujo e Nunes Júnior, “... o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições”.33
Passamos a destacar importantes precedentes estabelecidos pelo STF.
Em primeiro lugar, lembramos, em 26.04.2012, o julgamento das cotas raciais, notadamente a discussão travada na ADPF 186, que considerou constitucional a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB) (para um outro precedente, cf. julgamento do RE 597.285 que discute o sistema de cotas adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Conforme ponderou o Min. Lewandowski, relator do caso, “as experiências submetidas ao crivo desta Suprema Corte têm como propósito a correção de desigualdades sociais, historicamente determinadas, bem como a promoção da diversidade cultural na comunidade acadêmica e científica. No caso da Universidade de Brasília, a reserva de 20% de suas vagas para estudantes negros e de ‘um pequeno número’ delas para ‘índios de todos os Estados brasileiros’, pelo prazo de 10 anos, constitui providência adequada e proporcional ao atingimento dos mencionados desideratos. Dito de outro modo, a política de ação afirmativa adotada pela UnB não se mostra desproporcional ou irrazoável, afigurando-se, também sob esse ângulo, compatível com os valores e princípios da Constituição” (fls. 46-47 de seu voto).
Ainda, o STF declarou o reconhecimento da proclamação na Constituição da igualdade material, sendo que, para assegurá-la, “o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho universalista — a abranger número indeterminado de indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas — a atingir grupos sociais determinados — por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas particulares. Certificou-se que a adoção de políticas que levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da isonomia integraria o cerne do conceito de democracia. Anotou-se a superação de concepção estratificada da igualdade, outrora definida apenas como direito, sem que se cogitasse convertê-lo em possibilidade” (Inf. 663/STF).
A partir desse julgamento, devemos destacar, em momento seguinte, a aprovação da Lei n. 12.990/2014 que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Na medida em que a legislação é explícita ao estabelecer a reserva de vagas apenas no âmbito do Poder Executivo Federal, muitos vêm discutindo a extensão dessas regras para o âmbito dos demais entes federativos e, ainda, para os concursos realizados no Judiciário e no Legislativo.
Procurando minimizar essa polêmica, em 18.03.2015, levando em consideração a decisão firmada na ADPF 186, bem como a Lei n. 12.990/2014 e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010), o presidente do STF e do CNJ, Min. Lewandowski, assinou atos normativos instituindo a reserva de vagas dentro do limite fixado na citada Lei n. 12.990/2014, qual seja, 10 anos a partir de sua publicação, para os concursos de provimento de cargos efetivos nos âmbitos do STF (Res. n. 548/2015) e do CNJ (IN n. 63/2015).
Durante a solenidade, o Min. Lewandowski afirmou que em breve o CNJ vai analisar a implantação das regras para os concursos públicos de todo o Judiciário brasileiro. Conforme afirmou, “‘O que o Supremo Tribunal Federal faz hoje é um primeiro passo, mas que em breve deverá ser estendido, por meio de decisão do Conselho Nacional de Justiça, para toda a magistratura’, afirmou durante a cerimônia. O presidente do STF destacou que segundo dados do último censo realizado pelo IBGE, em toda a magistratura brasileira figuram apenas 1,4% de negros” (Notícias STF de 18.03.2015).
Em segundo lugar, dentro dessa ideia de política de cotas e diante de toda a problemática gerada por outras iniciativas, o Governo Federal, através da MP n. 213, de 10.09.2004, instituiu o PROUNI — Programa Universidade para Todos, que foi regulamentado pelo Decreto n. 5.493/2005. A Medida Provisória n. 213 foi objeto das ADIs 3.314 e 3.379, apensadas à ADI 3.330, e, posteriormente, convertida na Lei n. 11.096/2005.
O art. 1.º da Lei, ao instituir o PROUNI, dispõe tratar-se de programa destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais de 50% ou de 25% para estudantes de cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos.
O art. 2.º destina a bolsa para: a) estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; b) estudante portador de deficiência, nos termos da lei; c) professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia, destinados à formação do magistério da educação básica, independentemente da renda a que se referem os §§ 1.º e 2.º do art. 1.º desta Lei.
Por maioria de votos, o STF, em 03.05.2012, julgou constitucional o PROUNI, como importante fator de inserção social e cumprimento do art. 205 da CF/88, que estatui ser a educação direito de todos e dever do Estado e da família.
Ainda, o programa encontra-se em sintonia com diversos dispositivos da Constituição que estabelecem a redução de desigualdades sociais.
Não se poderia sustentar violação ao princípio da autonomia universitária, previsto no art. 207 da CF/88, na medida em que a adesão ao programa é facultativa (art. 5.º, caput, da Lei n. 11.096/2005).
Também, não se acatou a argumentação de violação ao princípio da livre-iniciativa (art. 170, parágrafo único), tendo em vista “a ociosidade de vagas nas instituições de ensino superior, a favorecer a manutenção de suas atividades, frente aos benefícios tributários de que passariam a usufruir” (Inf. 664/STF).
No mais, a isonomia substancial mostra-se fortalecida, uma vez que o programa permite o cumprimento da regra contida no art. 206, I: princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.
Finalmente, destacamos decisão do STF pela qual se adotaram interpretações mais protetivas às mulheres em relação a dispositivos da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), em nítida ação afirmativa com o objetivo de intimidar a prática de violência doméstica.
O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, em 09.02.2012, julgou procedente a ADC 19, para declarar a constitucionalidade dos arts. 1.º, 33 e 41 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), tendo por fundamento o princípio da igualdade, bem como o combate ao desprezo às famílias, sendo considerada a mulher a sua célula básica.
Na mesma assentada, por maioria e nos termos do voto do Relator, o STF julgou procedente a ADI 4.424, para, dando interpretação conforme os arts. 12, I, e 16, ambos da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), declarar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico (cf. item 19.9.5).
Temos, ainda, 2 exemplos de ações afirmativas, quais sejam, a indicação de uma mulher e de um negro para o STF, isso depois de mais de 200 anos e 289 Ministros nomeados (quantidade até o fechamento desta edição), considerando que o STF tem a sua origem histórica no início do século XIX (Casa da Suplicação do Brasil — ainda na fase colonial, em 10.05.1808, e Supremo Tribunal de Justiça, em 09.01.1829 — vide item 11.8.1).
Como se sabe, Ellen Gracie Northfleet foi a primeira mulher a integrar o STF, tendo tomado posse em 14.12.2000. Conforme asseverou o Ministro Celso de Mello, “o ato de escolha da Ministra Ellen Gracie para o Supremo Tribunal Federal — além de expressar a celebração de um novo tempo — teve o significado de verdadeiro rito de passagem, pois inaugurou, de modo positivo, na história judiciária do Brasil, uma clara e irreversível transição para um modelo social que repudia a discriminação de gênero, ao mesmo tempo em que consagra a prática afirmativa e republicana da igualdade”.34
Em relação à indicação de um Ministro negro, conforme noticiado pelo STF, “o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, pretende indicar um ministro negro para uma das próximas vagas que abrirão para o Supremo Tribunal Federal. A informação foi dada na manhã de hoje (7/4/03) pela secretária Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio, com quem esteve em audiência. A secretária disse que conversou com Marco Aurélio sobre ações afirmativas, e declarou, após o encontro: ‘Estamos vivendo um período bastante positivo em que este governo está, de fato, sendo propositivo e indicando pessoas que não tiveram acesso ao poder, considerando que o nosso país é bastante discriminatório e racista’. A secretária afirmou também que o debate desse tema ‘deve ser aprofundado’”.35
Essa pretensão do Presidente Lula, como todos sabem, foi confirmada pela indicação do Ministro Joaquim Barbosa, que, juntamente com Cezar Peluso e Carlos Britto, tomou posse no STF em 25.06.2003.
Outro assunto causou muita polêmica, a qual foi vivenciada pelos amigos do Distrito Federal.
O art. 49 da Lei n. 9.394/96 (que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional) prescreve que as instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas e mediante processo seletivo.
O parágrafo único do aludido dispositivo, por seu turno, prescreve que as transferências ex officio dar-se-ão na forma da lei.
A Lei n. 9.536/97 regulamenta o assunto. O seu art. 1.º prevê que a transferência ex officio será efetivada, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independentemente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida por motivo de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o Município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima desta, não se aplicando essa regra quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança.
Em virtude dessa regra e de Parecer AGU/RA 02/2004, o Conselho Universitário da Universidade de Brasília (UnB) decidiu suspender o vestibular para o curso de Direito tamanha a quantidade de pedidos de transferência, sobretudo de filhos de militares. A situação se agrava haja vista ser a Capital Federal, sem dúvida, um grande centro de concentração do oficialato militar.
Diante de toda essa polêmica, foi proposta a ADI 3.324, pelo PGR, questionando a aludida sistemática, especialmente a transferência de militares e dependentes estudantes em universidades particulares para públicas.
O Plenário do STF, por unanimidade, julgou procedente, em parte, a Ação Direta de Inconstitucionalidade, acompanhando o voto do relator, Ministro Marco Aurélio, “que decidiu dar ao artigo 1.º da Lei 9.536/1997 interpretação conforme a Constituição Federal, de modo a autorizar a transferência obrigatória desde que a instituição de destino seja congênere à de origem, ou seja, de pública para pública ou de privada para privada” (j. 16.12.2004).
“O Ministro Gilmar Mendes, que também acompanhou o voto do relator, disse que ‘o critério da congeneridade é estritamente proporcional ao caso porque garante o ingresso ex officio, como garante a integridade da autonomia universitária, além de preservar minimamente o interesse daqueles que não são servidores públicos civis ou militares ou seus dependentes, ou seja, a grande maioria da população brasileira’” (Notícias STF, 16.12.2004 — 18h34).
Em relação ao servidor público federal civil, cabe destacar, no mesmo sentido do julgamento da ADI 3.324, o art. 99 da Lei n. 8.112/90, que garante a “matrícula em instituição de ensino congênere”.36
A orientação firmada na ADI 3.324 tem sido aplicada em diversas decisões da Corte, sejam colegiadas ou monocráticas, inclusive em reclamações constitucionais em razão do efeito vinculante da ação direta.37
Destacando voto do Min. Teori Zavascki na Rcl 11.920, o Min. Celso de Mello, no julgamento da Rcl 23.849, explicitou o critério da congeneridade das instituições de ensino: “de instituição particular para instituição particular ou, então, de instituição pública para instituição pública, sendo indiferente, neste último caso, que se trate de instituição federal, estadual, distrital ou municipal”. Tratava-se de matrícula na Faculdade de Direito da USP (de natureza pública estadual) de aluna oriunda da UNIRIO (de natureza pública federal), em razão de manter união estável com integrante das Forças Armadas transferido ex officio do Rio de Janeiro para São Paulo, em razão de interesse da Administração Pública (j. 16.06.2016).
Finalmente, cabe alertar que o STJ tem admitido uma exceção a essa regra da congeneridade (universidade pública para pública ou privada para privada), qual seja, “se não houver curso correspondente em estabelecimento congênere no local da nova residência ou em suas imediações, hipótese em que deve ser assegurada a matrícula em instituição não congênere” (AgRg no REsp 1.161.861-RS, DJe 04.02.2010, e AgRg no REsp 1.335.562-RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 06.11.2012).
Essa particularidade (inexistência de curso correspondente em estabelecimento congênere no local da nova residência ou em suas imediações) não foi apreciada pelo STF na ADI 3.324 e em outros julgados sobre a matéria. Há tema de repercussão geral em debate ainda não decidido pela Suprema Corte que estamos acompanhando: “possibilidade de servidor público militar transferido ingressar em universidade pública, na falta de universidade privada congênere à de origem” (tema 57 — leading case: RE 601.580, pendente).
O STF, em discutível decisão, analisando a regra contida no art. 100, I, do CPC/73, que determina ser competente o foro da residência da mulher para a ação de separação dos cônjuges e a conversão desta em divórcio, e para a anulação de casamento, entendeu não haver afronta ao princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5.º, I, CF/88), nem mesmo à isonomia entre os cônjuges (art. 226, § 5.º, da CF/88), declarando, então, a sua recepção pela Constituição (RE 227.114, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 22.11.2011, 2.ª T., DJE de 16.02.2012).
O CPC/2015, modificando a regra do CPC/73, não mais prevê o foro privilegiado da residência da mulher, pois estabelece como premissa a vulnerabilidade do guardião e do filho incapaz (conjuntamente considerados).
Pela nova regra contida no art. 53, I, para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável, é competente o foro de domicílio do guardião de filho incapaz. Caso não haja filho incapaz, o do último domicílio do casal. Se nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal, o do réu.
O tema da isonomia entre homens e mulheres (art. 5.º, I) foi retomado na discussão sobre a recepção ou não do art. 384 da CLT, que, tratando da proteção do trabalho da mulher, estabeleceu, para a hipótese de prorrogação do horário normal, a obrigatoriedade de descanso de 15 minutos, no mínimo, antes do início do período extraordinário.
Analisando os artigos da Carta Magna, não há qualquer regra expressa sobre a hipótese tratada na CLT, que destina a proteção exclusivamente para a mulher. Encontramos apenas a previsão genérica do art. 7.º, XX, que assegura a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei.
Essa garantia exclusiva da trabalhadora mulher, muito embora polêmica diante do princípio da isonomia, desde 17.11.2008, já vinha sendo reconhecida pelo TST desde o julgamento de questão de ordem resolvida pelo Pleno em recurso de revista (TST-IIN-RR-1.540/2005-046-12-00.5).
O STF, por maioria apertada (5 x 4), referendou esse entendimento, reconhecendo a recepção do art. 384 da CLT no julgamento do RE 658.312 (j. 27.11.2014, DJE de 03.09.2015).
Para o Min. Dias Toffoli, Relator, dois foram os argumentos a ensejar o tratamento desigual entre os gêneros: a) existência de componente orgânico e biológico a justificar a desigualação, inclusive diante de menor resistência física da mulher; b) existência de componente social justificado pela dita dupla jornada da mulher, no lar e no ambiente de trabalho.
Contra essa decisão foram interpostos embargos declaratórios, sustentando a nulidade do julgamento por ausência de intimação dos defensores do embargante. O Pleno, em 05.08.2015, acolhendo o pedido, conferiu efeito modificativo e anulou o acórdão, determinando a inclusão em pauta para novo julgamento (até o fechamento desta edição ainda não havia sido realizado).
Realmente, um tema bastante delicado e que ainda poderá ser repensado no futuro diante da nova posição que, felizmente, a mulher vem adquirindo na sociedade. Nesse caso, a alteração poderá ocorrer tanto por mudança de entendimento da Corte (lembramos que o citado recurso extraordinário foi decidido por 5 x 4 e será objeto de nova discussão), como em razão de modificação do citado artigo da CLT por lei a ser editada pelo Congresso Nacional. Nessa hipótese de alteração normativa, podemos pensar tanto a revogação do art. 384 da CLT, como a ampliação do direito consagrado também para os homens trabalhadores.
O princípio da legalidade surgiu com o Estado de Direito, opondo-se a toda e qualquer forma de poder autoritário, antidemocrático.
Esse princípio já estava previsto no art. 4.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No direito brasileiro vem contemplado nos arts. 5.º, II; 37; e 84, IV, da CF/88.
O inciso II do art. 5.º estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Mencionado princípio deve ser lido de forma diferente para o particular e para a administração. Vejamos:
No âmbito das relações particulares, pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, vigorando o princípio da autonomia da vontade, lembrando a possibilidade de ponderação desse valor com o da dignidade da pessoa humana e, assim, a aplicação horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, conforme estudado.
Já no que tange à administração, esta só poderá fazer o que a lei permitir. Deve andar nos “trilhos da lei”, corroborando a máxima do direito inglês: rule of law, not of men. Trata-se do princípio da legalidade estrita, que, por seu turno, não é absoluto! Existem algumas restrições, como as medidas provisórias, o estado de defesa e o estado de sítio, já analisados por nós neste trabalho.
Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, sendo que a lei considerará crime inafiançável a prática da tortura (art. 5.º, XLIII, CF/88). A Lei n. 9.455/97 integrou a referida norma constitucional, definindo os crimes de tortura. Por sua vez, a Lei n. 12.847/2013, além de instituir o Siste-ma Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Conforme jurisprudência do STF, “o uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (HC 89.429, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 22.08.2006, DJ de 02.02.2007).
Nesse sentido, devemos destacar a SV 11/2008, com a seguinte redação: “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Outro tema importante diz respeito à análise da recepção da chamada Lei da Anistia (Lei n. 6.683/79) pelo novo ordenamento, levado ao STF pela OAB na ADPF 153, que pretendia fosse anulado o perdão dado aos policiais e militares acusados de praticar atos de tortura, durante o regime militar, e que encontrava respaldo no art. 1.º da referida lei, com a seguinte redação:
“É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02.09.61 e 15.08.79, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.
O STF, por 7 x 2, entendeu como não admitida a revisão jurisdicional da Lei da Anistia, sustentando ter sido “... uma decisão política assumida naquele momento — o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. A Lei n. 6.683/1979 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes — adotada pela Assembleia Geral em 10.12.1984, vigorando desde 26.06.87 — e a Lei n. 9.455, de 07.04.1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo art. 5.º, XLIII, da Constituição — que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes — não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente à sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido” (ADPF 153).
A Constituição assegurou a liberdade de manifestação do pensamento, vedando o anonimato. Caso durante a manifestação do pensamento se cause dano material, moral ou à imagem, assegura-se o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização.
Tem razão Ingo Sarlet ao afirmar que a regra contida no referido art. 5.º, IV, CF/88, estabelece uma espécie de “cláusula geral” que, em conjunto com outros dispositivos, asseguram a liberdade de expressão nas suas diversas manifestações:
■ liberdade de manifestação do pensamento (incluindo a liberdade de opinião);
■ liberdade de expressão artística;
■ liberdade de ensino e pesquisa;
■ liberdade de comunicação e de informação (liberdade de “imprensa”);
■ liberdade de expressão religiosa.38
Isso posto, nessa parte, passamos a tecer alguns comentários pontuais, destacando-se precedentes do STF, lembrando que os temas da divisão apontada acima serão estudados em tópicos próprios. Vejamos.
A problemática do hate speech (discurso do ódio) evidencia-se em precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos ao fazer interpretações da primeira emenda à Constituição (first amendment), que assegurou a liberdade de expressão nos seguintes termos: “Congress shall make no law (...) abridging the freedom of speech, or of the press” (“o Congresso não pode elaborar nenhuma lei limitando — cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa”).
Conforme anotou Daniel Sarmento em trabalho de fôlego (produzido durante a sua estadia como visiting scholar na Universidade de Yale — EUA, durante o primeiro semestre de 2006), a análise do hate speech está relacionada à liberdade de expressão e às “manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, dentre outros fatores...”.39
Em suas conclusões, o Brasil, inclusive o nosso STF, não adotou o entendimento de que a garantia da liberdade de expressão abrangeria o hate speech. Ou seja, muito embora a “posição de preferência”40 que o direito fundamental da liberdade de expressão adquire no Brasil (com o seu especial significado para um país que vivenciou atrocidades a direitos fundamentais durante a ditadura), assim como em outros países, a liberdade de expressão não é absoluta, encontrando restrições “voltadas ao combate do preconceito e da intolerância contra minorias estigmatizadas”.41
Mas o autor alerta: “... num país como o nosso, em que a cultura da liberdade de expressão ainda não deitou raízes, há que se ter cautela e equilíbrio no percurso deste caminho, para que os nobres objetivos de promoção da tolerância e de defesa dos direitos humanos dos excluídos não resvalem para a perigosa tirania do politicamente correto”.42
Para tanto, o modelo de solução parece ser, conforme sugere e com o qual concordamos, o da ponderação, pautada pelo princípio da proporcionalidade e a ser analisado no caso concreto, como se observou, para se ter um exemplo, no julgamento da ADPF 130 (não recepção da lei de imprensa).43
Ainda, outra orientação importante sobre o tema é a de que eventual restrição prévia à liberdade de expressão somente seria admitida por meio de decisão judicial e “em hipóteses absolutamente excepcionais... em favor da tutela de direitos ou outros bens jurídicos contrapostos”.44
No tocante à limitação legislativa prévia à liberdade de expressão, muito embora o voto condutor proferido pelo Min. Ayres Britto no julgamento da ADPF 130, negando-a, em outro julgado, que entendeu como inconstitucional a exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, estabeleceu o Min. Gilmar Mendes, no item 6 da ementa do acórdão: “as liberdades de expressão e de informação e, especificamente, a liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas pela lei em hipóteses excepcionais, sempre em razão da proteção de outros valores e interesses constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à personalidade em geral. Precedente do STF: ADPF n. 130, Rel. Min. Carlos Britto” (RE 511.961, j. 17.06.2009).
Essa limitação, conforme sustenta Sarmento, deve se dar “de forma geral e abstrata, desde que respeitados os ‘limites dos limites’ dos direitos fundamentais, notadamente o princípio da proporcionalidade”.45
Nessa mesma linha sugerida por Sarmento, Ingo Sarlet estabelece: “doutrina e jurisprudência, notadamente o STF, embora adotem a tese da posição preferencial da liberdade de expressão, admitem não se tratar de direito absolutamente infenso a limites e restrições, desde que eventual restrição tenha caráter excepcional, seja promovida por lei e/ou decisão judicial (visto que vedada toda e qualquer censura administrativa) e tenha por fundamento a salvaguarda da dignidade da pessoa humana (que aqui opera simultaneamente como limite e limite aos limites de direitos fundamentais) e de direitos e bens jurídicos-constitucionais individuais e coletivos fundamentais, observados os critérios da proporcionalidade e da preservação do núcleo essencial dos direitos em conflito”.46
Essa perspectiva em relação à liberdade de expressão, para se ter um exemplo, verifica-se no art. 1947 da Lei n. 12.965/2014 (conhecida como “marco civil da internet”) que assegurou a liberdade de expressão na rede mundial de computadores, salvo ordem judicial específica, com exceção apenas aos conteúdo de nudez ou de atos sexuais de caráter privado (art. 21).48
Conforme vimos, muito embora a “posição de preferência” que pode ser reconhecida na doutrina e jurisprudência em relação à liberdade de expressão, esse direito fundamental não é absoluto.
Em caso concreto, discutia-se a prática ou não de crime de racismo cometido por escritor e editor de livros por suposta discriminação contra os judeus (art. 5.º, XLII) ao pregar ideias antissemitas, preconceituosas e discriminatórias. Absolvido em primeira instância, a 3.ª Câmara Criminal do TJRS, por unanimidade, reformou a sentença e o condenou. Impetrado HC no STJ, a ordem foi denegada. Houve nova impetração de habeas corpus no STF, ora em análise (HC 82.424).
O STF, por 8 x 3, em julgamento finalizado em 17.09.2003, manteve a condenação imposta pelo TJRS por crime de racismo, flexibilizando a amplitude da liberdade de expressão. Em razão da importância do tema (o Min. Marco Aurélio, que ficou vencido e defendeu a tese da liberdade de expressão, definiu o julgamento como um dos mais importantes da Corte desde a sua chegada há 13 anos), pedimos vênia para transcrever a ementa:
“1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comunidade judaica (Lei n. 7.716/89, art. 20, na redação dada pela Lei n. 8.081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, art. 5.º, XLII). (...). 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando ideias antissemitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrimen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas consequências históricas dos atos em que se baseiam. (...). 15. (...). Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem” (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício Corrêa, j. em 17.09.2003, Plenário, DJ de 19.03.2004).
A maioria dos Ministros, apesar de pequenas distinções metodológicas, justificou os seus votos com base na ideia de ponderação (sopesamento) entre a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa de um lado e a dignidade da pessoa humana e o direito à honra de outro.
Sem discutir a problemática sobre a possibilidade de sopesamento da dignidade da pessoa humana, Virgílio Afonso da Silva apresenta críticas à metodologia da decisão. Para o autor, como já existe a previsão de mediação normativa — no caso, a criminalização da prática de racismo prevista na lei —, não haveria sentido falar-se em colisão de direitos fundamentais. A escolha já foi feita pelo legislador ao prestigiar a dignidade da pessoa humana contra a liberdade de expressão. Portanto, o autor sugere que o modelo da decisão não foi o mais adequado. No caso, eventual discordância sobre o acerto ou não do legislador ao fazer a escolha deveria ser analisada em incidente de inconstitucionalidade, sustentando-se a invalidade da tipificação penal da manifestação racista (esse raciocínio, ainda que não tenha expressado, parece ter sido o adotado pelo Min. Marco Aurélio, vencido no julgamento).49
Em interessante julgado, o Min. Celso de Mello aduziu não ser possível a utilização da denúncia anônima, pura e simples, para a instauração de procedimento investigatório, por violar a vedação ao anonimato, prevista no art. 5.º, IV.
Em seu voto ele declara que “(...) os escritos anônimos não podem justificar, só por si, desde que isoladamente considerados, a imediata instauração da persecutio criminis, eis que peças apócrifas não podem ser incorporadas, formalmente, ao processo, salvo quando tais documentos forem produzidos pelo acusado, ou, ainda, quando constituírem, eles próprios, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no delito de extorsão mediante sequestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o crimen falsi, p. ex.). Nada impede, contudo, que o Poder Público (...) provocado por delação anônima — tal como ressaltado por Nélson Hungria, na lição cuja passagem reproduzi em meu voto — adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, com prudência e discrição, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da persecutio criminis, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas” (Inq. 1.957, Rel. Min. Carlos Velloso, voto do Min. Celso de Mello, j. 11.05.2005 — grifamos).50
Deixamos claro que referida decisão não afasta a importância e a constitucionalidade da delação anônima que, inclusive, vem sendo relevante instrumento para que a autoridade tome conhecimento do fato criminoso, bem como forte arma no combate à corrupção.
No último caso, destacamos o art. 13, item 2, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,51 ao estabelecer que “cada Estado-Parte adotará medidas apropriadas para garantir que o público tenha conhecimento dos órgãos pertinentes de luta contra a corrupção mencionados na presente Convenção, e facilitará o acesso a tais órgãos, quando proceder, para a denúncia, inclusive anônima, de quaisquer incidentes que possam ser considerados constitutivos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção”.
Ressaltamos a importante decisão do STF sobre a constitucionalidade da “marcha da maconha”, que consistia em eventos nos quais havia manifestação no sentido da descriminalização da droga (no caso, a maconha).
O STF, em 15.06.2011, por 8 x 0, no julgamento da ADPF 187, considerou legítimo o movimento, encontrando respaldo nos direitos fundamentais de livre manifestação do pensamento (art. 5.º, IV) e de reunião (art. 5.º, XVI), assegurando, inclusive, o direito das minorias (função contramajoritária da Corte).
Ainda, a manifestação evidenciava a “interconexão entre as liberdades constitucionais de reunião — direito-meio — e de manifestação do pensamento — direito-fim” (Inf. 631/STF).
De acordo com o entendimento do STF, “a mera proposta de descriminalização de determinado ilícito penal não se confundiria com ato de incitação à prática do crime,52 nem com o de apologia de fato criminoso.53 Concluiu-se que a defesa, em espaços públicos, da legalização das drogas ou de proposta abolicionista a outro tipo penal, não significaria ilícito penal, mas, ao contrário, representaria o exercício legítimo do direito à livre manifestação do pensamento, propiciada pelo exercício do direito de reunião” (Inf. 631/STF).
Assim, foi dada interpretação conforme a Constituição, com efeito vinculante, ao art. 287 do CP, afastando qualquer interpretação que caracterizasse a criminalização da manifestação de pensamento no sentido da descriminalização das drogas, mesmo que em eventos públicos.
O Min. Luiz Fux, contudo, estabeleceu interessantes parâmetros, tais como:
■ a reunião deve ser pacífica, sem armas, previamente noticiada às autoridades públicas quanto à data, ao horário, ao local e ao objetivo, e sem incitação à violência;
■ não se pode admitir a incitação, incentivo ou estímulo ao consumo de entorpecentes na sua realização;
■ naturalmente, não poderá haver consumo de entorpecentes na ocasião da manifestação ou evento público;
■ nas manifestações, está proibida a participação de crianças e adolescentes.
Cabe lembrar que o STF, em outra oportunidade, no julgamento da ADI 4.274, ao analisar o art. 33, § 2.º, da Lei n. 11.343/2006,54 também seguiu o mesmo entendimento firmado na ADPF 187, dando interpretação conforme a Constituição para “excluir qualquer significado que ensejasse a proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou da legalização do uso de drogas ou de qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico, ou então viciado, das suas faculdades psicofísicas” e, claro, dentro dos limites já colocados no julgamento anterior (cf. Inf. 649/STF, j. 23.11.2011).
Na verdade, o posicionamento do STF encontra fundamento nas garantias dos direitos à informação e de liberdade de expressão, viabilizados pelo direito de reunião e como emanação da dignidade da pessoa humana, da democracia e da cidadania.
Finalmente, devemos ficar atentos: a tipicidade do porte de droga para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/2006) está em debate no STF e pendente de julgamento (RE 635.659, com repercussão geral — tema 506).
Assegura-se a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta (como o serviço militar obrigatório, nos termos do art. 143, §§ 1.º e 2.º) e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
A prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva é assegurada nos termos da lei.
Partindo dessa premissa, achamos interessante apontar alguns de seus desdobramentos:
■ ensino religioso nas escolas;
■ feriados religiosos;
■ casamento perante autoridades religiosas;
■ transfusão de sangue nas Testemunhas de Jeová;
■ curandeirismo;
■ fixação de crucifixos em repartições públicas;
■ imunidade religiosa;
■ guarda sabática;
■ a expressão “Deus seja louvado” nas cédulas de real.
Na jurisprudência do STF, o tema passou a ser analisado quando se questionou sobre a obrigatoriedade ou não da expressão “sob a proteção de Deus” no preâmbulo das Constituições estaduais.
Como se sabe, desde o advento da República (Decreto n. 119-A, de 07.01.1890), há separação entre Estado e Igreja, sendo o Brasil um país leigo, laico ou não confessional, não existindo, portanto, nenhuma religião oficial da República Federativa do Brasil. Apesar dessa realidade, a CF/88 foi promulgada “sob a proteção de Deus”, conforme se observa no preâmbulo do texto de 1988.
Todas as Constituições pátrias, exceto as de 1891 e 1937, invocaram a “proteção de Deus” quando promulgadas. Em âmbito estadual essa realidade se repetiu, com exceção do Estado do Acre. Referida omissão foi objeto de questionamento no STF pelo Partido Social Liberal. O STF, definindo a questão, além de estabelecer e declarar a irrelevância jurídica do preâmbulo, assinalou que a invocação da “proteção de Deus” não é norma de reprodução obrigatória na Constituição Estadual (ADI 2.076-AC, Rel. Min. Carlos Velloso).55
O preâmbulo não tem relevância jurídica, não tem força normativa, não cria direitos ou obrigações, não tem força obrigatória; serve, apenas, como norte interpretativo das normas constitucionais. Por essas características e, ainda, por ser o Estado brasileiro laico, podemos afirmar que a invocação à divindade não é de reprodução obrigatória nos preâmbulos das Constituições Estaduais e leis orgânicas do DF e dos Municípios. Conforme aprofundamos no item 3.10.1.3, o Brasil é um país leigo, laico ou não confessional, lembrando que Estado laico não significa Estado ateu.
Partindo dessa interpretação, o art. 5.º, VI, da CF/88 enaltece o princípio da tolerância e o respeito à diversidade.
Anota José Afonso da Silva que “na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo”.56
Nesse contexto, outro dia, certo aluno em uma palestra indagou: “professor, então, será que não seria possível eu fumar muita maconha, mas muita maconha mesmo, professor, e, quando estiver já bem fora de mim, eu cheiraria muita cocaína e, assim, em estado de êxtase, encontraria Deus, o meu Deus, professor?”.
Foi quando respondemos trazendo um caso concreto que havia sido noticiado: uma pessoa, em verdadeiro ritual, orientado por uma vidente e alegando crença religiosa, havia sacrificado crianças recém-nascidas para oferecer o sangue à “divindade”. Então perguntei ao aluno: será que, assim como cheirar cocaína ou fumar maconha, poderia aquela pessoa ter praticado o homicídio?
Não há dúvida de que o direito fundamental da liberdade de crença, da liberdade de culto e suas manifestações e prática de ritos não é absoluto. Um direito fundamental vai até onde começa outro e, diante de eventual colisão, ponderando interesses, um deverá prevalecer em face do outro, se não for possível harmonizá-los.
É claro que, na primeira situação, a liberdade de culto não pode justificar o consumo de droga ilícita, assim como, no segundo exemplo, o homicídio, com todas as suas qualificadoras, está configurado.
O tema é extremamente palpitante e vários outros desdobramentos podem ser estudados.
O art. 210, § 1.º, estabelece que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Dessa forma, uma escola não poderá reprovar aluno pelo fato de não frequentar a aula de ensino religioso, já que o ensino religioso será de matrícula facultativa e, a nosso ver, muito embora o texto fale apenas em “escola pública”, em razão na natureza do ensino, deve ser aplicado também às particulares.
Lembramos que, quando da vinda do Papa Bento XVI, no ano de 2007, para o Brasil, pretendia-se declarar 11 de maio, dia da canonização de Frei Galvão, feriado religioso.
A matéria foi bastante discutida no Congresso Nacional e, ao final, a Lei n. 11.532, de 25.10.2007, sem conotação religiosa, acabou instituindo o dia 11 de maio como o Dia Nacional do Frei Sant’Anna Galvão, passando referida data a constar oficialmente no calendário histórico-cultural brasileiro, mas não se reconhecendo, em razão da laicidade, o feriado religioso. E como ficam os feriados religiosos que já constam de nosso calendário? A única resposta para esse questionamento é afirmar o seu caráter histórico-cultural.
O casamento é civil e gratuita a celebração (art. 226, § 1.º).
O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei (art. 226, § 2.º).
Portanto, se, conforme visto, não existe religião oficial e se a liberdade de crença religiosa está assegurada, podemos afirmar que o casamento em centro espírita ou mesmo em templo, catedral, sinagoga, terreiro, casa religiosa, enfim, o casamento celebrado por líder de qualquer religião ou crença tem o mesmo efeito civil do casamento realizado na religião católica, aplicando-se, por consequência, o art. 226, § 2.º.
O STF ainda não enfrentou o tema. Contudo, há importantes julgados proferidos por Tribunais de Justiça, como o da Bahia (MS 34.739-8/2005) e o do Rio Grande do Sul (AC 70003296555, 8.ª C. Cív., Rel. Des. Rui Portanova, j. 27.06.2002) no sentido de dar o correto efeito civil.
Não deve ser reconhecido o crime de constrangimento ilegal (art. 146, § 3.º, I, do CP) na hipótese das testemunhas de Jeová se estiver o médico diante de urgência ou perigo iminente, ou se o paciente for menor de idade, pois, fazendo uma ponderação de interesses, não pode o direito à vida ser suplantado diante da liberdade de crença, até porque a Constituição não ampara ou incentiva atos contrários à vida.
Segundo noticiado pela Assessoria de Comunicação Social do TRF1, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 2009.01.00.010855-6/GO (26.02.2009), o Desembargador Federal Fagundes de Deus “... registrou que no confronto entre os princípios constitucionais do direito à vida e do direito à crença religiosa importa considerar que atitudes de repúdio ao direito à própria vida vão de encontro à ordem constitucional — interpretada na sua visão teleológica. Isso posto, exemplificou o magistrado que a legislação infraconstitucional não admite a prática de eutanásia e reprime o induzimento ou auxílio ao suicídio. Dessa forma, entende o magistrado que deve prevalecer ‘o direito à vida, porquanto o direito de nascer, crescer e prolongar a sua existência advém do próprio direito natural, inerente aos seres humanos, sendo este, sem sombra de dúvida, primário e antecedente a todos os demais direitos’”.
O art. 284 do Código Penal tipifica o exercício do curandeirismo, que é crime contra a saúde pública:
■ prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
■ usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
■ fazendo diagnósticos.
O tema ainda não chegou ao STF, mas, conforme vem sendo decidido por alguns tribunais estaduais, em casos concretos e específicos, não estará configurado o crime se a promessa de cura decorrer de crença religiosa e dentro de um contexto individual de razoabilidade.
Outro ponto bastante polêmico foi a questão dos crucifixos em repartições públicas. Como admiti-los diante da regra de ser o Brasil um país leigo, laico ou não confessional? A única “saída”, que vem sendo adotada por algumas decisões (cf. Pedidos de Providências ns. 1.344, 1.345, 1.346 e 1.362/CNJ, no âmbito do Judiciário, j. 29.05.2007), é a ideia de se tratar de símbolo cultural, e não religioso.
O entendimento, reconhecemos, não se mostra convincente, tanto é assim que uma das determinações do Presidente do TJ/RJ, em sua posse em 03.02.2009, foi a retirada dos crucifixos e a desativação da capela.
Ainda, também em contraposição ao decidido pelo CNJ, o Conselho da Magistratura do TJRS, no julgamento do processo n. 0139-11/000348-0, em 06.03.2012, determinou fossem retirados os crucifixos e símbolos das dependências do TJRS.
Contra essa decisão, foi instaurado no CNJ o PP 0001058-48.2012.2.00.0000, que está sendo julgado em conjunto com o PCA 0001418-80.2012.2.00.0000. Incluído na pauta de 11.02.2014, foi adiado em razão do término da sessão.57 Dessa forma, o CNJ poderá rediscutir a matéria, revendo o posicionamento anteriormente estabelecido em 2007.
Contempla o art. 150, VI, “b”, a denominada imunidade religiosa ao estabelecer, sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, a vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios de instituir impostos sobre templos de qualquer culto (assunto que deve ser aprofundado em direito tributário).
Essa regra se mostra de grande relevância, pois impede que o Estado utilize, eventualmente, de seu poder de tributar para embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos ou igrejas (art. 19, I).
Conforme estabeleceu o STF, “a imunidade prevista no art. 150, VI, ‘b’, CF, deve abranger não somente os prédios destinados ao culto, mas, também, o patrimônio, a renda e os serviços ‘relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas’. O § 4.º do dispositivo constitucional serve de vetor interpretativo das alíneas ‘b’ e ‘c’ do inciso VI do art. 150 da CF...” (RE 325.822, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, j. 15.12.2002, Plenário, DJ de 14.05.2004).
Isso posto, surge a questão: a maçonaria tem imunidade tributária religiosa?
Não.
Decidiu o Min. Ricardo Lewandowski, acompanhado pela unanimidade dos Ministros do STF, que “... a maçonaria é uma ideologia de vida e não uma religião, assim, a entidade não poderia ser isenta de pagar o IPTU. Segundo ele, a prática maçom não tem dogmas, não é um credo, é uma grande família. ‘Ajudam-se mutuamente aceitando e pregando a ideia de que o homem e a humanidade são passíveis de melhoria, aperfeiçoamento. Como se vê é uma grande confraria que antes de mais nada prega e professa uma filosofia de vida, apenas isso’, disse” (Notícias STF, 13.04.2010. Cf., também, Inf. 582/STF — RE 562.351, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 04.09.2012, 1.ª T., DJE de 14.12.2012).
Outro ponto polêmico é a obrigatoriedade ou não de o Estado ter de designar data alternativa para a realização de concursos públicos quando a data da prova tiver sido fixada em dias que devam ser guardados, como acontece com os Adventistas do Sétimo Dia (sábado — dia de repouso e de culto) e com os Judeus (Shabat — do pôr do sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado).
O tema está para ser aprofundado pelo STF no julgamento da ADI 3.714, ajuizada em 20.04.2006 pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), contra a Lei paulista n. 12.142/2005, que assegura a “guarda sabática” se houver alegação de motivo de crença religiosa (convém lembrar que, apesar de a referida lei ter sido totalmente vetada pelo Governador do Estado de São Paulo, a Assembleia Legislativa derrubou o veto, restabelecendo o ato normativo) (matéria pendente de julgamento pelo STF).
A questão foi retomada, no julgamento da STA 389,58 que buscava a suspensão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) marcado para os dias 5 e 6 de dezembro de 2009.
O STF, por maioria, manteve o dia da prova e não fixou dia alternativo, até porque, no edital, havia a possibilidade de pedido de “atendimento a necessidades especiais”, além do que a prova poderia ser realizada no mesmo dia, após as 18h, caso em que deveriam os candidatos que guardam os sábados, contudo, apresentar-se com os demais, ficando isolados e aguardando para a realização da prova.
O STF, naquele momento, entendeu que a previsão regimental era suficiente e, então, não determinou a designação de dia alternativo (vencido o Min. Marco Aurélio).
Essa tem sido a “saída” de alguns concursos que permitem a realização da prova após as 18h do sábado, mas exigem que os candidatos permaneçam isolados e no local, devendo apresentar-se no dia marcado para todos (para se ter um exemplo, o vestibular da Universidade do Estado do Amazonas — UEA, 2012, organizado pela VUNESP, estabeleceu essa regra de confinamento).
O tema ainda vai ser definido pelo STF, mas, para nós, ante o risco de provas com graus distintos e possíveis favorecimentos de um lado ou do outro, parece que essa tem sido a melhor alternativa, pelo menos em uma análise inicial. Vamos aguardar a decisão do STF, e ainda estamos refletindo sobre esse palpitante assunto!
Em ação civil pública ajuizada pelo MPF/SP em face da União e do BACEN, pretende-se a condenação dos réus à obrigação de fazer consubstanciada na retirada da expressão “Deus seja louvado” das cédulas de dinheiro nacional.
O pedido foi julgado improcedente em primeira instância e os autos encontravam-se, no momento do fechamento desta edição, no TRF3.59
O tema é bastante interessante e achamos que a decisão de primeira instância de não acolher o pedido está correta, pois, muito embora o Brasil seja um país laico, isso não significa um Estado ateu. O que se exige do Estado brasileiro e decorre da noção de laicidade (contraposta ao laicismo — cf. item 3.10.1.3) é a neutralidade, o respeito ao pluralismo, e não a atitude de intolerância e de hostilidade.
Dentro de uma ideia de bom senso, prudência e razoabilidade, a Constituição assegura a todos o direito de aderir a qualquer crença religiosa, ou recusá-las, ou, ainda, de seguir qualquer corrente filosófica, ou de ser ateu e exprimir o agnosticismo, garantindo a liberdade de descrença ou a mudança da escolha já feita.
Portanto, não podemos discriminar ou reprimir. O preconceito deve ser afastado, a sociedade tem de conviver e se harmonizar com as escolhas antagônicas sem que o radicalismo egoísta suplante a liberdade constitucionalmente assegurada.
É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Veda-se a censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, § 2.º), porém, apesar da liberdade de expressão acima garantida, lei federal deverá regular as diversões e os espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.
Deverá, outrossim, estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (art. 220, § 3.º, I e II).
Se, durante as manifestações acima expostas, houver violação da intimidade, vida privada, honra e imagem de pessoas, será assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da violação (art. 5.º, X), destacando-se a Lei n. 13.188/2016, que disciplina o exercício do direito de resposta ou retificação do ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social.
Selecionamos três temas importantes já apreciados pelo STF, estando um outro pendente:
■ ADPF 130 — “Lei de Imprensa” — j. 30.04.2009: o STF entendeu que a Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67) não foi recepcionada pelo novo ordenamento, uma vez que marcada por aspectos não democráticos;
■ ADI 4.451 — “Lei Eleitoral sobre o Humor” — j. 02.09.2010: o STF entendeu, referendando a liminar do Min. Ayres Britto, que o art. 45, II e III, e §§ 4.º e 5.º da Lei n. 9.504/97 (Lei das Eleições) violam a liberdade de imprensa, visto que o humor pode ser considerado imprensa. Referidos dispositivos afrontam, também, a plena liberdade de informação jornalística, nos termos do art. 220, § 1.º, da CF/88. Ainda, a manifestação, mesmo que seja pelo humor, não pode ser restringida, já que ela instrumentaliza e permite o direito de crítica, de opinião (mérito pendente de julgamento pelo STF). Nesse sentido:
“EMENTA: A liberdade de imprensa assim abrangentemente livre não é de sofrer constrições em período eleitoral. Ela é plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias. Tanto em período não eleitoral, portanto, quanto em período de eleições gerais. Se podem as emissoras de rádio e televisão, fora do período eleitoral, produzir e veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos políticos, pré-candidatos e autoridades em geral, também podem fazê-lo no período eleitoral” (ADI 4.451-MC-REF).
■ ADI 4.815 — “Biografias não autorizadas”: ação movida pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL). O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, em 10.06.2015, julgou procedente o pedido para dar interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, de produção científica, de liberdade de informação e de proibição de censura (CF, arts. 5.º, IV, V, IX, X e XIV; e 220), declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas). Ainda, reafirmando o direito à inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa, nos termos do art. 5.º, X, CF/88, deixou claro que em caso de transgressão haverá o direito de resposta proporcional ao agravo e o dever de indenizar, podendo-se pensar, em último caso, também na responsabilidade penal, nos termos da lei.
■ ARE 833.248 — “Direito ao Esquecimento”: o STF vai analisar o denominado “direito ao esquecimento” na esfera civil, discutindo a possibilidade de serem reavivados fatos criminosos do passado e que já teriam sido esquecidos pela sociedade. No caso concreto, em 2004, o programa “Linha Direta Justiça”, da TV Globo, veiculou informações sobre homicídio praticado em 1958 e que, à época, teve grande repercussão social. Discute-se a colisão entre os princípios constitucionais da liberdade de expressão e do direito à informação com aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da intimidade.
De acordo com o art. 5.º, X, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Passemos a analisar o importante tema da intimidade e da vida privada e a quebra de sigilo bancário.
O STF, em um primeiro momento, determinou a necessidade de autorização judicial para a quebra do sigilo bancário no julgamento do RE 389.808 (Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15.12.2010, Plenário, DJE de 10.05.2011).
A discussão surgiu em razão de comunicado feito pelo Banco Santander a determinada empresa, informando que a Delegacia da Receita Federal do Brasil, partindo de mandado de procedimento fiscal e com base na LC n. 105/2001, havia solicitado àquela instituição financeira a entrega de informações sobre movimentação bancária da empresa durante o período de 1998 a julho de 2001.
Diante dessa notícia, a empresa buscou o Judiciário e, após várias medidas, a decisão final coube ao STF, que, no caso concreto, estabeleceu a necessidade de autorização judicial para a quebra de sigilo bancário, por se tratar de verdadeira cláusula de reserva de jurisdição, não tendo, portanto, o Fisco esse poder.
Em seu voto, o Min. Celso de Mello fala em um verdadeiro “‘estatuto constitucional do contribuinte’ — consubstanciador de direitos e limitações oponíveis ao poder impositivo do Estado”, destacando-se, no caso, o direito à intimidade e à privacidade.
Celso de Mello afirma, ainda, que as garantias não são absolutas. Aliás, nenhum direito e garantia fundamental é absoluto, devendo, na hipótese de colisão, ser feito juízo de ponderação.
Portanto, para eventual quebra de sigilo bancário, é imprescindível “... a existência de causa provável, vale dizer, de fundada suspeita quanto à ocorrência de fato cuja apuração resulte exigida pelo interesse público. Na realidade, sem causa provável, não se justifica, sob pena de inadmissível consagração do arbítrio estatal e de inaceitável opressão do indivíduo pelo Poder Público, a ‘disclosure’ das contas bancárias, eis que a decretação da quebra do sigilo não pode converter-se num instrumento de indiscriminada e ordinária devassa da vida financeira das pessoas em geral”.
CUIDADO: em momento seguinte, o Pleno do STF, por 9 x 2, mudou o entendimento sobre a situação específica envolvendo a Receita Federal: não se trata de situação de quebra de sigilo, mas, no fundo, de transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, para que a administração tributária possa, então, cumprir o comando previsto no art. 145, § 1.º, CF/88.
Nesse sentido, a Corte, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 225 da repercussão geral, firmou a seguinte tese: “o art. 6.º da LC n. 105/2001 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal” (RE 601.314, j. 24.02.2016, pendente a publicação do acórdão).
Esse entendimento foi firmado, também, no julgamento das ADIs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859 (acórdão pendente).
A Corte destacou que “os Estados-Membros e os Municípios somente poderiam obter as informações previstas no art. 6.º da LC n. 105/2001, uma vez regulamentada a matéria de forma análoga ao Decreto n. 3.724/2001, observados os seguintes parâmetros: a) pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado; b) prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos, garantido o mais amplo acesso do contribuinte aos autos, permitindo-lhe tirar cópias, não apenas de documentos, mas também de decisões; c) sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; d) existência de sistemas eletrônicos de segurança que fossem certificados e com o registro de acesso; e, finalmente, e) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios” (Inf. 815/STF).
Assim, podemos esquematizar:
■ possibilidade de “quebra” do sigilo bancário: o Poder Judiciário e as CPIs (federais, estaduais e distritais), que têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (cf. aprofundamento no item 9.8.3.14). A Administração Tributária também tem poderes para requisitar, por ato próprio, o envio de informações bancárias, desde que na forma do art. 6.º da LC n. 105/2001, o que deve ser entendido como translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal;
■ não podem “quebrar” o sigilo bancário, devendo solicitar autorização judicial: Ministério Público e Polícia Judiciária e as CPIs municipais.
Por todo o exposto, a tendência do STF é manter, conforme estudado nos precedentes citados e como já vinha julgando, a quebra do sigilo bancário não somente pelo Judiciário como, também, pela CPI (nesse caso, haveria transferência de sigilo, devendo a CPI e seus integrantes responsabilizar-se pela manutenção do sigilo, só podendo utilizar as informações nos limites de sua atuação e nos termos da lei e da Constituição, sob pena de serem responsabilizados).
De acordo com a Lei n. 13.271/2016, as empresas privadas, os órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, estão proibidos de adotar qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias e de clientes do sexo feminino.
A justificação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) n. 583/2007, de autoria da Deputada Federal Alice Portugal, funda-se na luta das mulheres brasileiras por igualdade, caracterizando-se como uma das várias reivindicações femininas, tendo por fundamento o art. 5.º, X, CF/88 (intimidade).
Muito embora extremamente relevante o objetivo da referida lei, temos de lembrar que a Lei n. 9.799/99, ao introduzir o art. 373-A, VI, na CLT, já vedava expressamente ao empregador ou preposto proceder a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias.
A Justiça do Trabalho, de maneira correta, também já havia consagrado que essa garantia não era exclusiva das mulheres — empregadas ou funcionárias (dentre vários, por exemplo, RR 1498-85.2011.5.02.0319, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, 3.ª T., DEJT de 17.10.2014), na medida em que a proteção da intimidade deve ser observada independentemente do sexo ou mesmo da opção sexual, destacando-se:
■ a dignidade da pessoa humana;
■ a igualdade material entre homens e mulheres (art. 5.º, caput);
■ a prescrição de que “ninguém será submetido (...) a tratamento desumano e degradante” (art. 5.º, III).
Assim, entendemos que, 17 anos depois, a lei poderia ter sido mais abrangente. Esse “encurtamento” normativo, contudo, não impedirá que a proteção da intimidade em seu sentido mais amplo e nos termos expostos continue sendo respeitada.
O poder fiscalizatório (ou poder de controle) do empregador, que deve assumir os riscos do seu negócio, não pode superar a dignidade dos trabalhadores (ser humano), havendo outros meios de controle que não a vexatória e combatida revista íntima.
Finalmente, deve-se mencionar que o art. 3.º da Lei, que admitia a revista íntima em ambientes prisionais e sob investigação policial nos casos previstos em lei e que prescrevia que seria realizada unicamente por funcionários servidores femininos, foi vetado.
Em suas razões ao veto (mensagem 146, de 15.04.2016), a Presidente da República observa que o dispositivo caracterizaria hipótese de contrariedade ao interesse público, apresentando a seguinte justificativa: “a redação do dispositivo possibilitaria interpretação no sentido de ser permitida a revista íntima nos estabelecimentos prisionais. Além disso, permitiria interpretação de que quaisquer revistas seriam realizadas unicamente por servidores femininos, tanto em pessoas do sexo masculino quanto do feminino”.
Alertamos, em sentido diverso, para a existência de julgados no STJ prestigiando a segurança pública: “o direito à intimidade (...) não pode servir de escudo protetivo para a prática de ilícitos penais, como o tráfico de entorpecentes no interior de estabelecimentos prisionais, notadamente quando, em casos como o presente, há razoabilidade e proporcionalidade na revista íntima, realizado por agente do sexo feminino e sem qualquer procedimento invasivo (precedente)” (HC 328.843/SP, Rel. Min. Felix Fischer, 5.ª T., DJe de 09.11.2015).
Esse entendimento do STJ em relação à revista íntima em ambientes prisionais, contudo, sofre forte resistência por parte dos movimentos de direitos humanos, por se caracterizar ato vexatório, cruel, desumano e degradante.
Lembramos o caso “Complexo Penitenciário de Curado, em Pernambuco”, pelo qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou, pela Resolução de 22.05.2014, que o Brasil elimine a prática de revistas humilhantes que afetem a intimidade e a dignidade dos visitantes.60
Entendemos que o veto aposto ao art. 3.º da lei federal em análise sinaliza essa tendência a não se admitir a revista íntima em estabelecimentos prisionais, havendo, inclusive, projeto de lei tramitando nesse sentido no Congresso Nacional (PLS n. 480/2013) e algumas leis estaduais já aprovadas, como a Lei n. 15.552/2014 do Estado de São Paulo.
Outros métodos de controle e de fiscalização em razão da necessidade de segurança nos estabelecimentos prisionais, diversos e distintos da revista íntima61, devem ser priorizados, em respeito à dignidade da pessoa humana, como, a exemplo do que prescreve a lei paulista, a revista mecânica (e não íntima), por meio da utilização de equipamentos capazes de garantir segurança ao estabelecimento prisional, tais como: “scanners corporais, detectores de metal, aparelhos de raio X, outras tecnologias que preservem a integridade física, psicológica e moral do visitante revistado”.
O tema, sem dúvida, merecerá apreciação mais detida pelo STF (pendente).
“A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”; ou seja, sem o consentimento do morador só poderá nela penetrar:
■ por determinação judicial:62 somente durante o dia;
■ em caso de flagrante delito, desastre, ou para prestar socorro: poderá penetrar sem o consentimento do morador, durante o dia ou à noite, não necessitando de determinação judicial.
O que deve ser entendido por dia ou noite? Concordamos com Alexandre de Moraes que o melhor critério seria conjugar a definição de parte da doutrina (das 6 às 18h) com a posição de Celso de Mello, que utiliza um critério físico-astronômico: a aurora e o crepúsculo.63
E o que devemos entender por casa? Segundo a doutrina e a jurisprudência, casa abrange não só o domicílio, como também o escritório, oficinas, garagens etc. (RT 467/385), ou, até, os quartos de hotéis. Vejamos:
“Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5.º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4.º, II), compreende, observada essa específica limitação espacial, os quartos de hotel (...).” (RHC 90.376, Rel. Min. Celso de Mello, j. 03.04.2007, DJ de 18.05.2007).
Cabe lembrar, ainda, que o STF, ao julgar o tema 280 da repercussão geral, firmou a seguinte tese: “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados” (RE 603.616, j. 05.11.2015, DJE de 10.05.2016).
“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” Vejamos:
■ sigilo de correspondência: como regra, o sigilo de correspondência é inviolável, salvo nas hipóteses de decretação de estado de defesa e de sítio, quando poderá ser restringido (arts. 136, § 1.º, I, “b”, e 139, III). Cumpre observar, também, que esse direito não é absoluto e poderia, de acordo com a circunstância do caso concreto, ser afastado, por exemplo, na interceptação de uma carta enviada por sequestradores. A suposta prova ilícita convalida-se em razão do exercício da legítima defesa;
■ sigilo das comunicações telegráficas: também inviolável, salvo nas hipóteses de decretação de estado de defesa e de sítio, que poderá ser restringido (arts. 136, § 1.º, I, “c”, e 139, III);
■ sigilo bancário (comunicação de dados): no tocante ao sigilo bancário, o art. 38 (parcialmente recepcionado) da Lei n. 4.595/64, que foi recepcionada pela CF/88, com status de lei complementar (art. 192, caput), permitia a quebra do sigilo bancário por: autorização judicial, determinação de CPI (art. 58, § 3.º), ou requisição do Ministério Público (art. 129, VI), para objeto de investigação criminal. Referido art. 38 foi expressamente revogado pela LC n. 105, de 10.01.2001, que passou a disciplinar as regras sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. Além das regras anteriores, o art. 6.º da LC n. 105/2001, inovando, permitiu às autoridades e agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente, devendo o resultado dos exames, as informações e os documentos ser conservados em sigilo, observada a legislação tributária. Mencionada regra foi regulamentada pelo Decreto n. 3.724, de 10.01.2001, cujo art. 1.º, § 1.º, estabelece que o procedimento de fiscalização somente terá início por força de ordem específica denominada Mandado de Procedimento Fiscal (MPF), instituído em ato da Secretaria da Receita Federal, ressalvado o disposto nos §§ 3.º e 4.º do aludido artigo. O art. 4.º, § 1.º, do decreto estabelece, ainda, que a requisição será formalizada mediante documento denominado Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) e será dirigida, conforme o caso, ao: a) Presidente do Banco Central do Brasil, ou a seu preposto; b) Presidente da Comissão de Valores Mobiliários, ou a seu preposto; c) presidente de instituição financeira, ou entidade a ela equiparada, ou a seu preposto; d) gerente de agência. Conforme visto, o STF entendeu como constitucional essa disposição por se tratar, em verdade, não de quebra, mas de transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, havendo o dever de o fisco manter o sigilo (cf. ADIs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859; RE 601.314, todos julgados em 24.02.2016, pendente a publicação dos acórdãos);
■ quebra de sigilo e Ministério Público: na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito — CPMI dos Correios, o STF considerou ilegal o pedido de quebra feito diretamente pelo MP. Assim, estabeleceu que a prova utilizada pelo MP tem de vir de CPI ou de autorização do juiz (Inq. 2.245, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 28.08.2007, DJ de 09.11.2007 — dada a sua importância, recomendamos a leitura);
■ sigilo fiscal (comunicação de dados): no tocante ao sigilo fiscal, faculta-se à administração tributária identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte (art. 145, § 1.º). Assim, deve haver expressa individualização do investigado e do objeto da investigação e a indispensabilidade dos dados em poder da Receita Federal. O art. 198, CTN, em sua redação original, vedava a divulgação, para qualquer fim, por parte da Fazenda Pública ou de seus funcionários, de qualquer informação, obtida em razão do ofício, sobre a situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros e sobre a natureza e o estado dos seus negócios ou atividades, havendo a necessidade de autorização judicial. Essa regra foi alterada pela LC n. 104/2001, que passou a admitir um intercâmbio de informação sigilosa, mediante solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa. Conforme observações feitas acima sobre o sigilo bancário, o STF entendeu como constitucional a referida lei complementar por se tratar de transferência de sigilo e o dever de sua manutenção, havendo procedimento formal específico e responsabilidades na hipótese de eventual vazamento das informações (ADIs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859 — acórdão pendente);
■ sigilo das comunicações telefônicas: a quebra será permitida nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer e para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Assim, o procedimento deverá seguir as regras traçadas pela Lei n. 9.296/96, sob pena de constituir prova obtida por meio ilícito (art. 5.º, LVI);64
■ habeas corpus: “O habeas corpus é medida idônea para impugnar decisão judicial que autoriza a quebra de sigilos fiscal e bancário em procedimento criminal, haja vista a possibilidade destes resultarem em constrangimento à liberdade do investigado (...)” (AI 573.623, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 31.10.2006, Inf. 447/STF);
■ comunicações em meios eletrônicos: a garantia constitucional da inviolabilidade abrange, naturalmente, as comunicações privadas também em meios eletrônicos, pela internet, pelos tradicionais e-mails ou ainda pelos meios de comunicações proporcionados pelas redes sociais, como direct message (DM) no Twitter, Instagram Direct, conversas privadas por meio de WhatsApp, Facebook etc. No caso, destacamos a regulamentação da matéria no denominado marco civil da internet, qual seja, a Lei n. 12.965/2014 que estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determinou as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria.
A Constituição assegura a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Trata-se, portanto, de norma constitucional de eficácia contida, podendo lei infraconstitucional limitar o seu alcance, fixando condições ou requisitos para o pleno exercício da profissão.
É o que acontece com o Exame de Ordem (art. 8.º, IV, da Lei n. 8.906/94), cuja aprovação é um dos requisitos essenciais para que o bacharel em direito possa inscrever-se junto à OAB como advogado e que, inclusive, foi declarado constitucional pelo STF no julgamento do RE 603.583 (Rel. Min. Marco Aurélio, j. 26.10.2011, Plenário, DJE de 25.05.2012, com repercussão geral, Inf. 646/STF e item 12.5.3, deste trabalho).
Outro tema interessante está relacionado à exigência do diploma de jornalista para o exercício da profissão. Em 17.06.2009, por 8 x 1, o STF derrubou esse requisito (cf. RE 511.961, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.06.2009, Plenário, DJE de 13.11.2009 e item 19.7.1).
Cabe observar que tramita no Senado Federal a PEC n. 33/2009 que, com algumas ressalvas, passa a exigir o diploma de jornalista (matéria pendente). Assim, no momento da leitura, checar se referida PEC foi aprovada.
Em outro precedente interessante, o STF entendeu que a profissão de músico não exige a inscrição em conselho de fiscalização, deixando claro essa necessidade apenas quando houver potencial lesivo na atividade. A regra, portanto, é a liberdade, e, ademais, a atividade de músico encontra garantia na liberdade de expressão, enquanto manifestação artística (cf. RE 414.426, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 1.º.08.2011, Plenário, DJE de 10.10.2011).
Finalmente, dentre tantos outros julgados, destacamos, especialmente para as provas da importante carreira da defensoria pública, aquele segundo o qual o STF analisou a suposta prática do delito de exercício ilegal da profissão por parte de “flanelinhas”, denunciados com base no art. 47 da Lei das Contravenções Penais, por não preencherem as condições estabelecidas na Lei n. 6.242/75, que, regulamentando o exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, exige o registro na Delegacia Regional do Trabalho competente.
Conforme entendeu a 2.ª T. do STF, a não observância da “disposição legal pelos pacientes não gerou lesão relevante ao bem jurídico tutelado pela norma, bem como não revelou elevado grau de reprovabilidade, razão pela qual é aplicável, à hipótese dos autos, o princípio da insignificância”, levando ao reconhecimento do crime de bagatela. Assim, a ordem foi concedida para cassar o acórdão do STJ (HC 239.643) que determinou o prosseguimento da ação penal e restabelecer a sentença de primeiro grau que rejeitou a denúncia, em face da atipicidade da conduta imputada (HC 115.046, j. 19.03.2013).
É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. Trata-se do direito de informar e de ser informado.
Completando tal direito fundamental, o art. 5.º, XXXIII, estatui que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Regulando o acesso a informações previsto no art. 5.º, XXXIII, temos a Lei n. 12.527, de 18.11.2011, com vacatio legis de 180 dias.65
Dentro do tema da liberdade de informação, pedimos vênia para citar interessante decisão do Ministro Gilmar Mendes — envolvendo a exigência do exame psicotécnico em concursos públicos, lembrando que, de acordo com a SV 44, “só por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato a cargo público” (j. 08.04.2015):
“... Trata-se de recurso extraordinário interposto com fundamento no art. 102, III, ‘a’, da Constituição Federal, contra acórdão assim ementado: ‘Administrativo. Constitucional. Concurso público. Exame psicotécnico. Sigilo e irrecorribilidade do resultado. 1. A Constituição afasta de pronto o caráter sigiloso das decisões administrativas, em primeiro lugar porque a todos é assegurado o direito de exigir do órgão público o esclarecimento de situação de interesse pessoal, além do que é assegurada qualquer informação que seja do exclusivo interesse do cidadão, salvo quando o sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado... A possibilidade de interpretação errônea de dados psicológicos, eis que a Psicologia não é uma ciência absoluta em termos de fixação dos aspectos inerentes à personalidade e condições emocionais do indivíduo, não permite a ausência de possibilidade de reapreciação dos atos administrativos’. Alega-se violação aos artigos 1.º; 2.º; 5.º, XXXV, LIV, LV, LXIX; 18; 37, caput e I; e, 93, IX, da Carta Magna. Esta Corte firmou entendimento segundo o qual o exame psicotécnico não pode ter critério sigiloso, sob pena de infringir o princípio da publicidade. Nesse sentido o RE 342.074, 2.ª T., Rel. Maurício Corrêa, DJ 17.09.2002, assim ementado: ‘EMENTA: Agravo regimental em recurso extraordinário. Constitucional. Concurso público. Exame psicotécnico. Exame psicotécnico com caráter eliminatório. Avaliação realizada com base em critérios não revelados. Ilegitimidade do ato, pois impede o acesso ao Poder Judiciário, para conhecer de eventual lesão ou ameaça de direito ocasionada pelos critérios utilizados. Agravo regimental a que se nega provimento’. No mesmo sentido o RE 243.926, 1.ª T., Rel. Moreira Alves, DJ 16.05.2000. Assim, nego seguimento ao recurso (art. 557, caput, do CPC/73). Publique-se. Brasília, 24 de novembro de 2003. Ministro Gilmar Mendes, Relator” (RE 348.494, DJ de 11.12.2003, p. 51).
Por fim, como será comentado adiante, a garantia da liberdade de informação é complementada pelo direito de obtenção de certidões fixado no art. 5.º, XXXIV, “b”.
A locomoção no território nacional em tempo de paz é livre, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. Nesse sentido, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (art. 5.º, LXI).
Esse direito poderá ser restringido na vigência de estado de defesa, quando se cria a possibilidade de prisão por crime de Estado determinada pelo executor da medida (art. 136, § 3.º, I), exceção à regra acima exposta (flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente).
Também ocorrerá restrição à liberdade de locomoção na vigência do estado de sítio, nos termos do art. 139, I, podendo ser tomadas contra as pessoas (nas hipóteses do art. 137, I) medidas visando obrigá-las a permanecer em localidade determinada, bem como medidas restritivas também em caso de guerra declarada ou agressão armada estrangeira (art. 137, II).
O direito de reunião está assegurado a todos, e, muito embora seja um direito pessoal, o seu exercício se dá de modo coletivo (havendo uma finalidade comum entre os participantes a atraí-los), devendo ser observados os seguintes requisitos constitucionais:
■ reunião pacífica: conforme anotou António Francisco de Sousa, “o caracter pacífico equivale ao estado de tranquilidade ou de ausência de desordem e de perturbação, em termos que não ponham em causa a ordem e a segurança públicas e que garantam aos demais participantes e ao público em geral condições de exercício em liberdade dos seus direitos. Assim, o carácter pacífico não implica a ausência de pequenas perturbações que possam ser consideradas aceitáveis, toleráveis ou mesmo ‘naturais’ nos ajuntamentos de (muitas) pessoas”;66
■ sem armas: isso quer dizer, “vedação à reunião de bandos armados com intenções belicosas, porque só se admitem reuniões com fins pacíficos”. E continua José Afonso da Silva: “mas não quer isto dizer que a autoridade possa submeter todos os participantes, ou qualquer deles, à revista, para verificar ou não a existência de armas. ‘Sem armas’ significa sem armas brancas ou de fogo que denotem, a um simples relance de olhos, atitudes belicosas ou sediciosas”.67 Entendemos que o termo “armas” tem um sentido amplo, englobando não apenas a arma de fogo e a arma branca como também a utilização de instrumentos que, desvirtuados de sua função, possam trazer risco para os participantes da reunião ou para o patrimônio público ou privado, como, por exemplo, um taco de beisebol, barras de ferro, correntes etc.;
■ em locais abertos ao público: a previsão de reuniões em locais abertos ao público (logradouros públicos ou, por exemplo, um estádio de futebol) não exclui as reuniões privadas, que devem ser entendidas como “amparadas por outros direitos fundamentais, como a inviolabilidade do lar ou a liberdade de associação em cuja sede se realizem”.68 Diferente da Constituição anterior, que permitia à lei designar o local da reunião, a CF/88 assegurou a liberdade de escolha do local da manifestação, havendo apenas a proibição de frustrar outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local;
■ independentemente de autorização: basta o mero aviso prévio, pois, assim, o Estado poderá assegurar os meios indispensáveis para a realização do direito, organizando o trânsito, mandando reforço policial e garantindo a ordem;
■ desde que não frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local: o direito fundamental de um grupo não pode ser frustrado pela manifestação de grupo com ideias diametralmente opostas ou conflitantes. Aliás, o Estado tem o dever (de prestação) de assegurar e proteger os manifestantes, impedindo, inclusive, que um grupo entre em choque com o outro. Conforme anotou Paulo Branco, reconhecendo certo grau de eficácia horizontal do direito de reunião, “mesmo sendo reunião aberta ao público, nela não se há de exigir que sejam ouvidas ideias contrárias ao objetivo da manifestação”. Citando caso da Corte Europeia de Direitos Humanos, assentou que “numa democracia o direito de contramanifestar não pode ter tal extensão a ponto de inibir o exercício do direito de manifestação”;69
■ sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente: nesse sentido, o exercício do direito não está condicionado a um pedido de autorização ou a uma licença prévia. Basta comunicar.
Conforme bem anotou António Francisco de Sousa, “o tema da liberdade de reunião e de manifestação é, sem dúvida, um dos temas centrais do Estado de direito democrático, pois é através do exercício desta liberdade que os cidadãos podem exprimir livremente a sua opinião, criticar o poder, fazer exigências, enfim, erguer a voz contra a injustiça e a opressão. Sem liberdade de reunião e de manifestação não há verdadeira democracia: diz-me que liberdade de reunião e de manifestação praticas no teu país e dir-te-ei que democracia alcançaste”.70
Celso de Mello, por sua vez, em interessante julgado que entendeu como inadequada, desnecessária e desproporcional a proibição, pelo Decreto distrital n. 20.098/99, de manifestações públicas que utilizem carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes, prescreveu: “a liberdade de reunião traduz meio vocacionado ao exercício do direito à livre expressão das ideias, configurando, por isso mesmo, um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar” (ADI 1.969, j. 28.06.2007, Plenário, DJ de 31.08.2007).
José Afonso da Silva completa: a liberdade de reunião caracteriza-se como verdadeira “liberdade-condição”, “porque, sendo um direito em si, constitui também condição para o exercício de outras liberdades: de manifestação do pensamento, de expressão de convicção filosófica, religiosa, científica e política e de locomoção (liberdade de ir, vir e ficar)”.71
Nesse sentido, podemos citar a discussão sobre a “marcha da maconha” (cf. item 14.10.5.4), que o STF analisou no julgamento da ADPF 187 e da ADI 4.224.
Conforme visto, o direito de reunião, neste importante precedente, caracterizou-se como “direito-meio” para se viabilizar a manifestação do pensamento no sentido da descriminalização da droga, claro, dentro dos limites que a Corte fixou e já foram apontados no referido item, ao qual remetemos nosso ilustre leitor para leitura.
Finalmente, é de lembrar que, ainda que exercido no seio das associações, o direito de reunião poderá ser restringido na vigência de estado de defesa (art. 136, § 1.º, I, “a”), podendo ser suspensa a liberdade de reunião durante o estado de sítio (art. 139, IV).
A liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar, é plena. Portanto, ninguém poderá ser compelido a associar-se e, uma vez associado, será livre, também, para decidir se permanece associado ou não.
A criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento. Têm elas autonomia para formular seus estatutos.
A única forma de se dissolver compulsoriamente uma associação já constituída será mediante decisão judicial transitada em julgado, na hipótese de finalidade ilícita.
Também a suspensão de suas atividades se dará por decisão judicial, não sendo necessário aguardar o trânsito em julgado; pode-se implementá-la por meio de provimentos antecipatórios ou cautelares.
Quando expressamente autorizadas, as entidades associativas têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente, podendo, como substitutas processuais, defender, em nome próprio, o direito alheio de seus associados.
Conforme estabeleceu o STF, a simples previsão estatutária de autorização geral para a associação é insuficiente para lhe conferir legitimidade ativa para a defesa de seus associados. Assim, tem sido exigida a declaração expressa “manifestada por ato individual do associado ou por assembleia geral da entidade. Por conseguinte, somente os associados que apresentaram, na data da propositura da ação de conhecimento, autorizações individuais expressas à associação, podem executar título judicial proferido em ação coletiva” (RE 573.232, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, j. 14.05.2014, Plenário, DJE de 19.09.2014).
Como regra geral, assegura-se o direito de propriedade, que deverá atender à sua função social, nos exatos termos dos arts. 182, § 2.º, e 186 da CF/88.
Esse direito não é absoluto, visto que a propriedade poderá ser desapropriada por necessidade ou utilidade pública e, desde que esteja cumprindo a sua função social, será paga justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5.º, XXIV). Por outro lado, caso a propriedade não esteja atendendo a sua função social, poderá haver a chamada desapropriação-sanção pelo Município com pagamentos em títulos da dívida pública (art. 182, § 4.º, III) ou com títulos da dívida agrária, pela União Federal, para fins de reforma agrária (art. 184), não abrangendo, nesta última hipótese de desapropriação para fins de reforma agrária, a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, e não tendo o seu proprietário outra, e a propriedade produtiva (art. 185, I e II).
No tocante à propriedade urbana, a desapropriação-sanção é a última medida, já que, primeiro, procede-se ao parcelamento ou edificação compulsórios e, em seguida, à imposição de IPTU progressivo no tempo, para, só então, passar-se à desapropriação-sanção.
Importante destacar, embora matéria a ser indagada normalmente nas provas de tributário, que até o advento da EC n. 29/2000, que deu nova redação ao § 1.º do art. 156, acrescentando-lhe dois incisos, o STF admitia a progressividade do IPTU exclusivamente para a hipótese do art. 182, § 4.º, II, entendimento esse, inclusive, pacificado na S. 668/STF: “é inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.72
Com a nova redação conferida ao art. 156, § 1.º, I e II, pela EC n. 29/2000, sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4.º, II, o IPTU poderá ser progressivo em razão do valor do imóvel (progressividade fiscal — art. 145, § 1.º, c/c o art. 156, § 1.º, I) e ter alíquotas diferentes, de acordo com a localização e o uso do imóvel, dependendo, para esta última hipótese (art. 156, § 1.º, II), de caráter nitidamente extrafiscal, da edição de plano diretor estabelecendo as exigências fundamentais de ordenação da cidade.
Nessa linha, convém verificar a nova redação conferida ao art. 153, § 4.º, I, pela Reforma Tributária (EC n. 42/2003), explicitando a progressividade do ITR.
O direito de propriedade, ainda, poderá ser restringido através de requisição, no caso de iminente perigo público, podendo a autoridade competente usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.
Lembramos, também, as limitações administrativas, as servidões e a expropriação. Nesse último caso, as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo, na forma da lei, serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5.º. Ainda, todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei (cf. art. 243, CF/88, na redação dada pela EC n. 81/2014).
Por fim, a garantia assegurada à pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, no sentido de não ser objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento.
Para as provas de concursos, especialmente em matéria de direito administrativo, sugerimos um estudo mais aprofundado do tema desapropriação e suas diversas modalidades. Nesse sentido, regulamentando os arts. 182 e 183 da CF/88, foi elaborada a Lei n. 10.257, de 10.07.2001, denominada Estatuto da Cidade, que trouxe profundas inovações a respeito da matéria, refletindo inclusive no campo do direito civil, processual civil, na Lei de Improbidade Administrativa e na Lei da Ação Civil Pública, para citar alguns exemplos. Dessa forma, sugerimos uma leitura atenta do referido dispositivo legal na preparação dos candidatos (obs.: a lei pode ser obtida no site <www.planalto.gov.br>).
Como corolário do direito de propriedade, o art. 5.º, XXX, garante o direito de herança.
Ensina Maria Helena Diniz que “o objeto da sucessão causa mortis é a herança, dado que, com a abertura da sucessão, ocorre a mutação subjetiva do patrimônio do de cujus, que se transmite aos seus herdeiros, os quais se sub-rogam nas relações jurídicas do defunto, tanto no ativo como no passivo até os limites da herança”.73
O Ministro Maurício Corrêa observou que “... a Constituição garante o direito de herança, mas a forma como esse direito se exerce é matéria regulada por normas de direito privado” (ADI 1.715-MC/DF, DJ de 30.04.2004, p. 27). De fato, sobre esse assunto, remetemos o leitor para os compêndios de direito civil.
Por fim, a Constituição traz regra específica no art. 5.º, XXXI, sobre a sucessão de bens de estrangeiros situados no País, que será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus.
Ou seja, conforme anotou Celso de Mello, “a sucessão de estrangeiro domiciliado no Brasil reger-se-á, como é óbvio, pela lei brasileira (critério do jus domicilii). Contudo, se a lei nacional do de cujus estrangeiro, aqui domiciliado, for mais favorável ao cônjuge supérstite ou aos filhos brasileiros, aplicar-se-á aquele ordenamento jurídico (critério do jus patriae). De outro lado, não sendo, o de cujus, estrangeiro domiciliado no Brasil, nem o seu estatuto pessoal mais favorável ao cônjuge ou aos filhos brasileiros, reger-se-á a sucessão dos bens aqui localizados pelo direito brasileiro (critério do forum rei sitae)... Isso significa que, em nosso direito, prevalece, como regra geral, o princípio da unidade da sucessão ou do estatuto sucessório. Os diversos elementos ou circunstâncias de conexão, já referidos, de natureza pessoal (jus domicilii e jus patriae) e real (forum rei sitae), tornam possível solucionar o problema dos conflitos de leis no espaço, ensejando, dessa forma, a aplicação do estatuto jurídico pertinente”.74
Os incisos em referência garantem o direito de propriedade intelectual, quais sejam, a propriedade industrial e os direitos do autor. A Constituição os define da seguinte maneira:75
■ aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
■ são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;
■ a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
Sem dúvida foi a Constituição portuguesa de 1976 que, de maneira pioneira, acolheu diversas normas de proteção aos consumidores. Essa realidade reflete, acima de tudo, a recente preocupação do Estado com os problemas da sociedade de massa, especialmente a partir do Estado Social de Direito.76
A Constituição espanhola, na mesma linha, buscando inspiração nas disposições da portuguesa, também, de modo amplo, tratou da proteção dos consumidores no art. 51:1.
Influenciada por ambas (portuguesa e espanhola), a Constituição Federal de 1988 assegurou regras protetivas para o consumidor, destacando-se os seguintes dispositivos legais:
■ Art. 5.º, XXXII: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
■ Art. 24: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) VIII — responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”.
■ Art. 129: “São funções institucionais do Ministério Público: (...) III — promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
■ Art. 150, § 5.º: “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”.77
■ Art. 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V — defesa do consumidor”.
■ Art. 48 (ADCT): “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.
Conforme aponta José Afonso da Silva, muito embora reconheça a Constituição portuguesa como a pioneira no estabelecimento das regras protetivas dos consumidores, “(...) as constituições brasileiras, desde 1946, inscreveram um dispositivo que poderia servir de base à proteção do consumidor, se fosse eficaz. Referimo-nos à repressão ao abuso de poder econômico, que, na Constituição de 1988, aparece com enunciado menos eficaz ainda, porque o fez depender da lei. Esta é que ‘reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros’ (art. 173, § 4.º)”.78
Em relação à previsão contida na CF/88, concordamos com José Afonso da Silva que a sua inserção entre os direitos fundamentais erigiu os consumidores à categoria de titulares de direitos constitucionais fundamentais. Conjugando essa previsão à do art. 170, V, que eleva a defesa do consumidor à condição de princípio da ordem econômica, “(...) tem-se o relevante efeito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. Isso naturalmente abre larga brecha na economia de mercado, que se esteia, em boa parte, na liberdade de consumo, que é a outra face da liberdade do tráfico mercantil fundada na pretensa lei da oferta e da procura (...)”.79
No tocante ao direito brasileiro, os conceitos gerais de consumidor e fornecedor e a noção de produto e serviço, atendendo aos preceitos constitucionais, foram regulados pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078, de 11.09.1990, inegável microssistema das relações de consumo. Excepcionalmente, contudo, desde que não haja conflito, havendo espaço, aplicar-se-ão as regras do Código Civil e de legislações extravagantes pertinentes à matéria.
O atual Código Civil, Lei n. 10.406, de 10.01.2002 (DOU de 11.01.2002), que entrou em vigor em 12.01.2003 (vacatio legis de 1 ano, de acordo com o seu art. 2.044), por seu turno, reafirmou a sua aplicação subsidiária no tocante às relações de consumo. Para se ter um exemplo, destacamos o art. 593: “a prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou à lei especial (no caso, exemplifique-se, o CDC), reger-se-á pelas disposições deste Capítulo”.
O art. 1.º do CDC estabelece que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social. Por consequência, conforme anotam Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, “(...) o juiz deve apreciar de ofício qualquer questão relativa às relações de consumo, já que não incide nesta matéria o princípio dispositivo. Sobre elas não se opera a preclusão e as questões que delas surgem podem ser decididas e revistas a qualquer tempo e grau de jurisdição”.80
Por fim, cabe referir que o STF decidiu que as relações de consumo de natureza bancária ou financeira estão protegidas pelo Código de Defesa do Consumidor. “Entendeu-se não haver conflito entre o regramento do sistema financeiro e a disciplina do consumo e da defesa do consumidor, haja vista que, nos termos do disposto no art. 192 da CF, a exigência de lei complementar refere-se apenas à regulamentação da estrutura do sistema financeiro, não abrangendo os encargos e as obrigações impostos pelo CDC às instituições financeiras, relativos à exploração das atividades dos agentes econômicos que a integram — operações bancárias e serviços bancários —, que podem ser definidos por lei ordinária” (ADI 2.591/DF, Rel. orig. Min. Carlos Velloso, Rel. p/ acórdão Min. Eros Grau, j. 07.06.2006, Inf. 430/STF).
Assegura-se a todos, independentemente do pagamento de taxas:
■ o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
■ a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.
Vislumbrado na Magna Carta de 1215, o direito de petição nasceu por meio do right of petition, na Inglaterra, consolidando-se no Bill of Rights de 1689. Consistia, nesse primeiro momento, no simples direito de o Grande Conselho, depois o Parlamento, pedir que o Rei sancionasse as leis. Fortaleceu-se na Constituição francesa de 1791 ao se ampliarem os peticionários e o objeto da petição.
Segundo José Afonso da Silva, “o direito de petição define-se ‘como o direito que pertence a uma pessoa de invocar a atenção dos poderes públicos sobre uma questão ou situação’, seja para denunciar uma lesão concreta, e pedir a reorientação da situação, seja para solicitar uma modificação do direito em vigor no sentido mais favorável à liberdade... Há, nele, uma dimensão coletiva consistente na busca ou defesa de direitos ou interesses gerais da coletividade”.81
Esse direito pode ser exercido por qualquer pessoa, física ou jurídica, nacional ou estrangeira e independe do pagamento de taxas.
Na Constituição anterior (1967 e EC n. 1/69) vinha atrelado ao direito de representação, que não mais se repete na de 1988. Parece-nos, no entanto, que o constituinte teve a intenção de unir os dois direitos, até porque a representação se manifesta por intermédio de uma petição.
Pode-se, então, afirmar estar ainda em vigor a Lei n. 4.898/65 (Lei de Abuso de Autoridade), que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal contra autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos, podendo a petição ser dirigida a qualquer autoridade do Executivo, Legislativo ou Judiciário.
Assim, o objetivo do direito de petição nada mais é que, em nítido exercício das prerrogativas democráticas, levar ao conhecimento do Poder Público a informação ou notícia de um ato ou fato ilegal, abusivo ou contra direitos, para que este tome as medidas necessárias.
Diferentemente do direito de ação, não tem o peticionário de demonstrar lesão ou ameaça de lesão a interesse, pessoal ou particular. Trata-se de nítida participação política por intermédio de um processo.
Embora a Constituição não fixe nenhuma sanção em caso de negativa ou omissão, parece-nos perfeitamente cabível a utilização do mandado de segurança para a obtenção de algum pronunciamento do Poder Público.
Enfim, não se pode confundir direito de petição com a necessidade de preenchimento da capacidade postulatória para a obtenção de pronunciamento judicial a respeito da pretensão formulada (salvo as exceções permitidas pelo ordenamento, como no habeas corpus), conforme muito bem vem destacando a jurisprudência do STF. Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello observa que “... ninguém, ordinariamente, pode postular em juízo sem a assistência de Advogado, a quem compete, nos termos da lei, o exercício do jus postulandi. A exigência de capacidade postulatória constitui indeclinável pressuposto processual de natureza subjetiva, essencial à válida formação da relação jurídico-processual. São nulos de pleno direito os atos processuais, que, privativos de Advogado, venham a ser praticados por quem não dispõe de capacidade postulatória. O direito de petição qualifica-se como prerrogativa de extração constitucional assegurada à generalidade das pessoas pela Carta Política (art. 5.º, XXXIV, ‘a’). Traduz direito público subjetivo de índole essencialmente democrática. O direito de petição, contudo, não assegura, por si só, a possibilidade de o interessado — que não dispõe de capacidade postulatória — ingressar em juízo, para, independentemente de Advogado, litigar em nome próprio ou como representante de terceiros...” (AR 1.354 AgR/BA, DJ de 06.06.1997, p. 24873).
Em relação ao direito de obtenção de certidões, também independentemente do pagamento de taxa, o art. 1.º da Lei n. 9.051/95 dispõe que “as certidões para a defesa de direitos e esclarecimentos de situações, requeridas aos órgãos da administração centralizada ou autárquica, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às fundações públicas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, deverão ser expedidas no prazo improrrogável de quinze dias, contado do registro do pedido no órgão expedidor”.
Parece razoável o art. 2.º da referida lei ao estabelecer que, “nos requerimentos que objetivam a obtenção das certidões a que se refere esta lei, deverão os interessados fazer constar esclarecimentos relativos aos fins e razões do pedido”. Condenável, portanto, o pedido genérico de certidão, devendo o interessado discriminar o objeto de seu interesse.
Registrado o pedido de certidão, e não atendido de forma ilegal ou por abuso de poder, o remédio cabível será o mandado de segurança, e não o habeas data. Trata-se de direito líquido e certo de obter certidões expedidas pelas repartições públicas, seja para a defesa de direitos, seja para esclarecimento de situações de interesse pessoal, próprio ou de terceiros. Como exemplo, o direito de o funcionário público obter certidão perante a autoridade administrativa para requerer a sua aposentadoria. Havendo negativa, o remédio cabível será o mandado de segurança, e não o habeas data.
Por fim, inegável que o direito de certidão não é absoluto, podendo ser negado em caso de o sigilo ser imprescindível à segurança da sociedade ou do Estado. Nesse sentido, regulando o art. 23 da Lei n. 8.159/91, destaca-se o Decreto n. 7.845/2012.
O princípio da inafastabilidade da jurisdição é também nominado direito de ação, ou princípio do livre acesso ao Judiciário, ou, como assinalou Pontes de Miranda, princípio da ubiquidade da Justiça.
O inciso XXXV do art. 5.º da CF/88 estabelece que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Criticamos essa forma indireta de apresentação da garantia ao direito à jurisdição (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), que, provavelmente, foi adotada como reação a atos arbitrários que, aproveitando a inexistência de prescrição constitucional expressa (lembrar que referido direito só adquiriu o status de preceito constitucional com a Constituição de 1946), muitas vezes, por intermédio de lei ou decreto-lei, excluíam da apreciação do Poder Judiciário lesão a direito.
Muito melhor seria se referido princípio fosse prescrito na forma direta, como se verifica, dentre outras, nas Constituições da Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, na Declaração Universal dos Direitos Humanos etc.
Conforme já observamos, apesar dessa crítica terminológica, o inciso XXXV do art. 5.º da CF/88 veio sedimentar o entendimento amplo do termo “direito”, dizendo que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, não mais restringindo a sua amplitude, como faziam as Constituições anteriores, ao “direito individual” (vide arts. 141, § 4.º, da CF/46; 150, § 4.º, da Constituição de 1967; 153, § 4.º, da EC n. 1/69; 153, § 4.º, na redação determinada pela EC n. 7/77). A partir de 1988, passa a se assegurar, de forma expressa e categórica, em nível constitucional, a proteção de direitos, sejam eles privados, públicos ou transindividuais (difusos, coletivos ou individuais homogêneos).82
Prefere-se, ainda, seguindo a doutrina mais abalizada, a expressão “acesso à ordem jurídica justa” a “acesso à Justiça” ou “ao Judiciário”.
Isso porque, segundo a feliz distinção de Watanabe, “a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”.83
Nesse sentido, Cappelletti e Garth produziram interessante ensaio para o “Projeto de Florença”, ao qual já nos referimos nesta obra, identificando três grandes ondas renovatórias no processo evolutivo de acesso à ordem jurídica justa. A primeira onda teve início em 1965, concentrando-se na assistência judiciária.84 A segunda referia-se às “... reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses ‘difusos’, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor”. O terceiro movimento ou onda foi pelos autores chamado de “enfoque de acesso à justiça”, reproduzindo as experiências anteriores, mas indo além, buscando “... atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo”.85
As expressões “lesão” e “ameaça a direito” garantem o livre acesso ao judiciário para postular tanto a tutela jurisdicional preventiva como a repressiva.
Apesar de ter por destinatário principal o legislador (que ao elaborar a lei não poderá criar mecanismos que impeçam ou dificultem o acesso ao judiciário), também se direciona a todos, de modo geral.
Não se confunde com o direito de petição (já visto no art. 5.º XXXIV, “a”), este um direito de participação política, não sendo necessário demonstrar qualquer interesse processual ou lesão a direito pessoal. “Enquanto o direito de ação é um direito público subjetivo, pessoal, portanto, salvo nos casos dos direitos difusos e coletivos, onde os titulares são indetermináveis e indeterminados, respectivamente, o direito de petição, por ser político, é impessoal, porque dirigido à autoridade para noticiar a existência de ilegalidade ou abuso de poder, solicitando as providências cabíveis”.86
Em decorrência do princípio em análise, não mais se admite no sistema constitucional pátrio a chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, tal como se verificava no art. 153, § 4.º, da EC n. 1/69, na redação dada pela EC n. 7, de 13.04.1977.87 Para ingressar (“bater às portas”) no poder judiciário não é necessário, portanto, o prévio esgotamento das vias administrativas.
Exceção a essa regra, a esse direito e garantia individual (cláusula pétrea), só admissível se introduzida pelo poder constituinte originário, como acontece com a Justiça desportiva (art. 217, §§ 1.º e 2.º).88
Como veremos ao estudar o habeas data, situação semelhante também foi prevista pela Lei n. 9.507/97. Remetemos o leitor para o referido estudo (item 14.11.6 deste capítulo), onde expomos nosso entendimento sobre esse ponto específico da matéria.
Também destacamos o art. 7.º, § 1.º, da Lei n. 11.417/2006 (súmula vinculante) ao estabelecer que “contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas”.
Trata-se, conforme anotamos no item 11.14.11.9, de instituição, por parte da lei, de contencioso administrativo atenuado e sem violar o princípio do livre acesso ao Judiciário (art. 5.º, XXXV), na medida em que o que se veda é somente o ajuizamento da reclamação, e não de qualquer outra medida cabível, como a ação ordinária, o mandado de segurança etc.
Outro tema interessante já enfrentado pelo STF diz respeito à exigibilidade de prévio requerimento administrativo como condição para o regular exercício do direito de ação, a fim de que se postule judicialmente a concessão de benefício previdenciário.
Em razão da definição de parâmetros muito particulares, pedimos vênia para esquematizar as principais regras definidas pela Corte no julgamento do RE 631.240 (Rel. Min. Roberto Barroso, j. 03.09.2014, DJE de 10.11.2014):
■ “a instituição de condições para o regular exercício do direito de ação é compatível com o art. 5.º, XXXV, da Constituição. Para se caracterizar a presença de interesse em agir, é preciso haver necessidade de ir a juízo. A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise”;
■ essa exigência de prévio requerimento administrativo “não deve prevalecer quando o entendimento da Administração for notório e reiteradamente contrário à postulação do segurado”, bem como nas hipóteses de “revisão, restabelecimento ou manutenção de benefício anteriormente concedido, considerando que o INSS tem o dever legal de conceder a prestação mais vantajosa possível”, podendo, então, “o pedido ser formulado diretamente em juízo — salvo se depender da análise de matéria de fato ainda não levada ao conhecimento da Administração”.
Em razão da prolongada oscilação da jurisprudência sobre o assunto, o STF estabeleceu uma fórmula de transição para as ações em curso e ajuizadas até a conclusão do referido julgamento (03.09.2014):
■ “(i) caso a ação tenha sido ajuizada no âmbito de Juizado Itinerante, a ausência de anterior pedido administrativo não deverá implicar a extinção do feito;
■ (ii) caso o INSS já tenha apresentado contestação de mérito, está caracterizado o interesse em agir pela resistência à pretensão”.
Não sendo o caso das hipóteses estabelecidas acima, o STF determinou o sobrestamento das ações para as seguintes providências:
■ “o autor será intimado a dar entrada no pedido administrativo em 30 dias, sob pena de extinção do processo”;
■ “comprovada a postulação administrativa, o INSS será intimado a se manifestar acerca do pedido em até 90 dias, prazo dentro do qual a Autarquia deverá colher todas as provas eventualmente necessárias e proferir decisão”;
■ “se o pedido for acolhido administrativamente ou não puder ter o seu mérito analisado devido a razões imputáveis ao próprio requerente, extingue-se a ação. Do contrário, estará caracterizado o interesse em agir e o feito deverá prosseguir”.
Por fim, a permissibilidade conferida pela Lei n. 9.307/96 (Lei da Arbitragem), com as profundas ampliações introduzidas pela Lei n. 13.129/2015, para as pessoas capazes de contratar valerem-se da arbitragem (de direito ou de equidade) para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
A citada Lei n. 13.129/2015, apesar de existirem algumas poucas leis esparsas e pontuais sobre o tema, consolidou, de modo bastante avançado, a possibilidade de a administração pública direta e indireta utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. A autoridade ou o órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a que teria a atribuição para a realização de acordos ou transações. Em atenção ao art. 37, caput, CF/88 (princípio da legalidade), a arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.
Submetendo a solução do litígio a juízo arbitral, mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral, não se abre mão do direito de ação; apenas se autoriza a opção por uma jurisdição privada.
“O que não se pode tolerar por flagrante inconstitucionalidade é a exclusão, pela lei, da apreciação de lesão a direito pelo Poder Judiciário, que não é o caso do juízo arbitral. O que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Não se poderá ir à justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça arbitral. Em ambas há, por óbvio, a atividade jurisdicional”.89
Lembrar que a arbitragem não é obrigatória, mas facultativa (fica a cargo das partes escolher quem deve solucionar a lide — juiz estatal ou privado), e, mesmo havendo a sua escolha, o art. 32 da Lei n. 9.307/96 admite seja declarada a nulidade da sentença arbitral por decisão do Judiciário nos casos previstos na lei.
Como regra, conferindo estabilidade às relações jurídicas, o constituinte originário dispôs que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.90
O art. 6.º da LINDB — Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657/42) assim define os institutos:
■ direito adquirido: direito que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aquele cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem;
■ ato jurídico perfeito: ato já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou;
■ coisa julgada: decisão judicial de que não caiba mais recurso.
No tocante ao direito adquirido, como já comentamos ao tratar da teoria do poder constituinte, não se poderá alegá-lo em face da manifestação do poder constituinte originário, uma vez que este é incondicionado e ilimitado juridicamente. No entanto, em se tratando de manifestação do poder constituinte derivado reformador, em virtude do limite material da cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4.º, IV, entendemos que os direitos adquiridos deverão ser preservados.91 Não se pode confundir “direito adquirido” com mera “expectativa de direito”. Celso de Mello fala, de maneira interessante, em “ciclos de formação”: “a questão pertinente ao reconhecimento, ou não, da consolidação de situações jurídicas definitivas há de ser examinada em face dos ciclos de formação a que esteja eventualmente sujeito o processo de aquisição de determinado direito. Isso significa que a superveniência de ato legislativo, em tempo oportuno — vale dizer, enquanto ainda não concluído o ciclo de formação e constituição do direito vindicado — constitui fator capaz de impedir que se complete, legitimamente, o próprio processo de aquisição do direito (RTJ 134/1112 — RTJ 153/82 — RTJ 155/621 — RTJ 162/442, v.g.), inviabilizando, desse modo, ante a existência de mera ‘spes juris’, a possibilidade de útil invocação da cláusula pertinente ao direito adquirido” (RE 322.348-AgR/SC, Rel. Min. Celso de Mello).
Nesse sentido, em várias oportunidades, consolidou-se a jurisprudência do STF pela inexistência de direito adquirido a regime jurídico instituído por lei para os funcionários públicos (ADI 255/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 02.05.2003; RE 368.715/MS — AgRg, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 22.08.2003; RE 340.896/SC, Moreira Alves, DJ de 19.12.2002; RE 346.655/PR, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 08.11.2002).
O STF entendeu perfeitamente possível que a lei traga novas regras e preserve a mera expectativa de direito em benefício de cidadãos, por exemplo, o parágrafo único do art. 1.º da Lei estadual n. 200/74 (SP), que, ao revogar a legislação que concedia benefício de complementação de aposentadoria, ressalvou os direitos dos empregados admitidos até a data de sua vigência. Nesse sentido, a S. 654/STF: “a garantia da irretroatividade da lei, prevista no art. 5.º, XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado”.
Lembramos, ainda, no tocante ao direito penal, do princípio da retroatividade da lei mais benéfica, previsto no art. 5.º, XL, da CF.
No que tange ao ato jurídico perfeito, destacamos a Súmula Vinculante 1: “ofende a garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão que, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a eficácia de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei Complementar n. 110/2001” (30.05.2007).
Assim, os acordos feitos com base na LC n. 110/2001 estão mantidos (tendo em vista o princípio constitucional do ato jurídico perfeito), não se podendo presumir, para todos os casos, aplicando-se regra em abstrato, que tenha havido vício de consentimento em algum dos elementos formadores da vontade do trabalhador comum ao assinar o acordo com a CEF em relação aos expurgos inflacionários do FGTS.92
Finalmente (cf. item 6.7.1.17.4.2), analisando o instituto da coisa julgada, em situação excepcionalíssima, o STF afastou a alegação de segurança jurídica (coisa julgada) para fazer valer o direito fundamental de que toda pessoa tem de conhecer as suas origens (princípio da busca da identidade genética), especialmente se, à época da decisão que se procura rescindir, não se pôde fazer o exame de DNA.
A decisão foi tomada, em 02.06.2011, por 7 x 2, no julgamento do RE 363.889, concedendo à recorrente o direito de, depois de mais de 10 anos, voltar a pleitear, perante o suposto pai, a realização do exame de DNA, tendo em vista que, na primeira decisão, muito embora beneficiária da assistência judiciária, a recorrente não podia arcar com as custas para a sua realização.
Já foi visto neste estudo que o acusado tem o direito e a garantia constitucional de somente ser processado por um órgão independente do Estado, vedando-se, por consequência, a designação arbitrária, inclusive, de promotores ad hoc ou por encomenda (art. 5.º, LIII, e art. 129, I, c/c o art. 129, § 2.º).
O STF aceitou a ideia de promotor natural no julgamento do HC 67.759 (leading case).
Para aprofundamento, remetemos o nosso querido leitor para o item 12.2.6 da presente obra.
A Constituição estabelece que não haverá juízo ou tribunal de exceção, não podendo ninguém ser processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
Segundo a doutrina, “o conteúdo jurídico do princípio pode ser resumido na inarredável necessidade de predeterminação do juízo competente, quer para o processo, quer para o julgamento, proibindo-se qualquer forma de designação de tribunais para casos determinados. Na verdade, o princípio em estudo é um desdobramento da regra da igualdade. Nesse sentido Pontes de Miranda aponta que a ‘proibição dos tribunais de exceção representa, no direito constitucional contemporâneo, garantia constitucional: é direito ao juízo legal comum’, indicando vedação à discriminação de pessoas ou casos para efeito de submissão a juízo ou tribunal que não o recorrente por todos os indivíduos”.93
Nery, em interessante estudo, caracteriza a garantia do juiz natural como tridimensional:
■ “não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção;
■ todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei;
■ o juiz competente tem de ser imparcial”.94
Assim, o que se veda é a designação ou criação, por deliberação legislativa ou outra, de tribunal (de exceção) para julgar, através de processo (civil, penal ou administrativo), determinado caso, tenha ele já ocorrido ou não, irrelevante a já existência de tribunal,95 não abrangendo na aludida proibição a Justiça especializada, nem tampouco tribunais de ética, como o da OAB, cujas decisões administrativas (disciplinares) poderão ser revistas pelo Judiciário.
Acrescentamos, ainda, que a prerrogativa de foro não afronta o princípio do juiz natural ou legal (gesetzlicher Richter). No mesmo sentido, nas hipóteses de competência relativa, por convenção das partes e dentro dos limites legais, não há nenhuma vedação em relação aos foros de eleição. Conforme vimos (item 14.10.21), também não se caracteriza nenhuma violação ao princípio do juiz natural a instituição do juízo arbitral.
Outro ponto bastante polêmico, especialmente depois de terem sido fixadas metas de julgamento em razão da Reforma do Judiciário, tem sido a convocação de juízes de primeiro grau para atuar em Tribunal.
A argumentação de afronta ao princípio do juiz natural é bem razoável e consistente (cf. arts. 93, III, 94 e 98, I), mas o STF, diante da ideia de efetividade e celeridade processual (art. 5.º, LXXVIII), nessa ponderação de valores, vem fazendo prestigiar a agilidade, até porque, segundo analisado, as convocações estão sendo feitas com base em lei (cf. item 11.9 e Inf. 581/STF — HC 96.821, Rel. Min. Lewandowski, j. 08.04.2010, Plenário, DJE de 25.06.2010).
Com o justo objetivo de garantir a segurança dos magistrados, resta alertar sobre a inconveniência e inconstitucionalidade de adoção da figura do “juiz sem rosto”, motivada, à época da discussão, pela onda de violência e assassinatos de juízes das execuções criminais de São Paulo e Espírito Santo, defendendo a omissão dos nomes dos juízes durante a tramitação do processo e na sentença.
Com todo o respeito, a figura do “juiz sem rosto” implica inconteste afronta à garantia do juiz natural, direito fundamental consagrado no Estado Democrático de Direito.96
Por fim, destacamos a importante novidade introduzida pela EC n. 45/2004 ao estabelecer que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão” (art. 5.º, § 4.º).
A nova regra, sem dúvida, surge em total consonância e em fortalecimento ao princípio do juiz natural.
Consoante assinalou Luiz Flávio Gomes, “o TPI terá uma grande vantagem em relação aos atuais Tribunais (ad hoc) criados pelo Conselho de Segurança da ONU, que é constituído de quinze membros (15 países, dos 189 que a integram). Terá legitimidade, força moral e poder jurídico, o que não ocorre hoje com os Tribunais em funcionamento que estão julgando os crimes ocorridos na antiga Iugoslávia, Ruanda etc. Esses Tribunais satisfazem o senso de justiça, sinalizam oposição clara às arbitrariedades e atrocidades cometidas em praticamente todo o planeta, porém, não são Cortes predeterminadas em lei nem constituídas previamente (viola-se, assim, o princípio do juiz natural). A criação do TPI, dessa forma, significa respeito à garantia do princípio do juiz natural, que possui duas dimensões: a) juiz previamente previsto em lei ou Constituição (juiz competente); b) proibição de juízos ou tribunais de exceção, isto é, ad hoc (cfr. CF, art. 5.º, XXXVII e LIII)”.97
Como acabamos de assinalar, a Reforma do Judiciário estabeleceu a submissão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.98
Já dispunha o art. 7.º do ADCT da CF/88 que o Brasil lutaria em defesa da formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
O Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, foi aprovado em 17.07.1998. O Brasil assinou o aludido estatuto em 07.02.2000 e o Congresso Nacional o aprovou, por meio do Decreto Legislativo n. 112, em 06.06.2002, promulgado, em 26.09.2002, pelo Decreto presidencial n. 4.388. A carta de ratificação fora depositada em 20.06.2002, entrando em vigor em 1.º.07.2002. Para o Brasil, internacionalmente (art. 126), passou a vigorar em 1.º de setembro de 2002.
O “TPI” será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional (fixados nos termos do Estatuto), e será complementar às jurisdições penais nacionais (art. 1.º do Estatuto).
Consagra-se, dessa forma, o princípio da complementaridade, preservando-se o sistema jurídico interno, na medida em que o “TPI” só exercerá jurisdição em caso de incapacidade ou omissão dos Estados.
Em respeito à soberania nacional (art. 1.º, I), há sérias dúvidas sobre a aplicação, por exemplo, do art. 77, 1, “b”, do Estatuto, que prevê a prisão perpétua, em contraposição ao art. 5.º, XLVII, “b”, da CF/88. Se nem mesmo por emenda constitucional se poderia instituir a pena de caráter perpétuo (art. 60, § 4.º, IV), o que dizer por tratado sobre direitos humanos que terá, no máximo, a teor do art. 5.º, § 3.º, equivalência às emendas se aprovado, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros?99
Outros vários pontos polêmicos precisam ser resolvidos pelo STF, como a previsão de reexame de questões já decididas pelo TPI (art. 17 do Estatuto de Roma), em afronta à coisa julgada, direito fundamental previsto na CF/88.
Outrossim, a distinção que deve ser feita entre extradição e entrega (surrender) ao TPI.
Em nosso entender, existiriam, basicamente, 3 jurisdições: a) a brasileira, cujos órgãos estão previstos no art. 92; b) a do TPI em relação à qual o Brasil a ela se submete; e c) a de Tribunais estrangeiros, cujas decisões deverão passar por um processo de homologação da sentença, já que estrangeira, e concessão de exequatur às cartas rogatórias.
Esse processo de homologação não deverá ser observado em relação às decisões do TPI, porque o Brasil a elas se submete. Ainda, a entrega de brasileiro ou estrangeiro para o TPI não seguirá o mesmo procedimento da extradição, pois a entrega será para julgamento em Tribunal a cuja jurisdição o Brasil se submete.
Contudo, alguns limites deverão existir, como a questão da comutação da pena, não se admitindo, por exemplo, a prisão perpétua etc., tema a ser resolvido pelo STF na Pet. 4.625, interposta pelo TPI em 16.07.2009, e que requer a eventual prisão e entrega do Presidente do Sudão, caso ele entre no território brasileiro, acusado de ter cometido crimes contra a humanidade e de guerra.100
De acordo com o art. 3.º do Estatuto, o Tribunal tem sede em Haia, Países Baixos (“o Estado anfitrião”), podendo funcionar em outro local sempre que se entender conveniente e nos termos do Estatuto.
O art. 86 consagra o princípio da cooperação na medida em que os Estados-partes deverão cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes da competência deste.
Por fim, cabe destacar que a competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves que afetem a comunidade internacional no seu conjunto.
O art. 5.º do Estatuto estabelece que o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes:
■ de genocídio;
■ contra a humanidade;
■ de guerra;
■ de agressão.
O tema deverá ser aprofundado em compêndios de direitos humanos e em obras de direito penal e processual penal, imaginando os questionamentos nos concursos estarem mais nessas áreas do que na constitucional!
Como sabemos, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1.º, III), que, em suas relações internacionais, rege-se, dentre outros, pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4.º, II, VIII e IX).
Os direitos da pessoa humana, nos termos do art. 34, VII, “b”, foram erigidos a princípios sensíveis, a ensejar até mesmo a intervenção federal nos Estados que os estiverem violando.
Outrossim, nos termos do art. 21, I, a União é que se responsabiliza, em nome da República Federativa do Brasil, pelas regras e preceitos fixados nos tratados internacionais. Assim, na hipótese de descumprimento e afronta a direitos humanos no território brasileiro, a única e exclusiva responsável, no plano internacional, será a União, não podendo invocar a cláusula federativa, nem mesmo “lavar as mãos” dizendo ser problema do Estado ou do Município. Isso não é aceito no âmbito internacional.
Acontece que, na maioria dos casos, antes da Reforma do Judiciário, a União não tinha competência para apurar, processar e julgar tais crimes.
Essa problemática foi muito bem apontada pela Associação Nacional dos Procuradores da República — ANPR, que apresentou importantes sugestões aos membros da Comissão de Reforma, após avaliar o relatório do Deputado Aloysio Nunes Ferreira.
Conforme sugerido pela ANPR, “... é a União, na qualidade de ente federado com personalidade jurídica na esfera internacional, que tem o poder de contrair obrigações jurídicas internacionais em matéria de direitos humanos, mediante a ratificação de tratados. Consequentemente, a sistemática de monitoramento e fiscalização de tais obrigações recai na pessoa jurídica da União. Deste modo, por coerência, há de caber à União a responsabilidade para apurar, processar e julgar casos de violação de direitos humanos, uma vez que, por comandos internacionais, obrigou-se a fazer valerem tais direitos em todo o território nacional. Daí a imperiosidade de se atribuir à Justiça Federal competência para o julgamento das violações mais sérias aos direitos humanos”.101
Adequando o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos, a EC n. 45/2004 fez a seguinte previsão:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
V-A — as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5.º deste artigo;
(...)
§ 5.º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal” (original sem grifos).
Segundo o STJ (na decisão proferida no IDC 2), o deslocamento da competência do juízo estadual para o federal vai depender do preenchimento dos seguintes pressupostos:
■ existência de grave violação a direitos humanos;
■ risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais;
■ incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.
Ainda, conforme ficou anotado na ementa do acórdão do IDC 5, “o incidente de deslocamento de competência não pode ter o caráter de prima ratio, de primeira providência a ser tomada em relação a um fato (por mais grave que seja). Deve ser utilizado em situações excepcionalíssimas, em que efetivamente demonstrada a sua necessidade e a sua imprescindibilidade, ante provas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais e⁄ou materiais das instituições — ou de uma ou outra delas — responsáveis por investigar, processar e punir os responsáveis pela grave violação a direito humano, em levar a cabo a responsabilização dos envolvidos na conduta criminosa, até para não se esvaziar a competência da Justiça Estadual e inviabilizar o funcionamento da Justiça Federal”.
Dessa forma, a fixação da competência da Justiça Federal parece-nos muito bem-vinda e acertada. O grande problema está no procedimento de deslocamento de competência da Justiça Estadual (ou Distrital) para a Federal.
Perceba-se que isso acontecerá somente se o PGR, e exclusivamente ele, conseguir demonstrar que no âmbito Estadual ou Distrital está havendo descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte e, por consequência, grave violação de direitos humanos. Mas o que é grave violação de direitos humanos? E mais, sabendo que se trata de incidente de deslocamento de competência, nitidamente será fixado o Tribunal após a ocorrência do fato, em desrespeito ao princípio do juiz natural, já estudado (art. 5.º, XXXVII e LIII).
Nesse sentido, uma outra redação, vaga e indeterminada, ainda em tramitação na Câmara (que pode ser aqui aproveitada), já tinha sido objeto de críticas do Deputado Jarbas Lima: “a norma proposta rompe, nesse passo, com a melhor tradição democrática de nossas cartas constitucionais, cria insegurança jurídica e, o que é mais grave, consagra juízos de exceção na medida em que atribui a determinada autoridade ou órgão, de forma discricionária, a escolha do juízo ou tribunal para, caso a caso, julgar um ou mais processos dados”.102
No Relatório já citado, a ANPR assim se manifestou: “tal indeterminação de critérios para o deslocamento de competência, e, no mínimo, as candentes dúvidas quanto à constitucionalidade da proposta (à luz dos incs. XXXVII e LIII do art. 5.º, CF, c/c o art. 60, § 4.º, IV) trazem a probabilidade de que, se aprovada tal proposta, a CF será, no tocante a essa matéria, alterada inocuamente, perdendo-se uma oportunidade ímpar de o Brasil adotar uma solução mais efetiva para o gravíssimo quadro de desrespeito sistemático aos direitos humanos”.103
Em referido relatório, levando em consideração as diversas convenções sobre direitos humanos de que o País já é parte, destacando, ainda, o reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos,104 a aludida Associação chegou a propor uma nova redação, definindo, previamente, o que entenderia por hipóteses de grave violação de direitos humanos e, também, permitindo que a lei ordinária, no futuro, em face de novas convenções que viessem a ser celebradas, estabelecesse outras hipóteses de crimes contra direitos humanos. Haveria, dessa forma, total respeito ao juiz natural.
Apenas para exemplificar, o que poderá servir de norte para a interpretação dos estudiosos, foram considerados, pela ANPR, crimes contra direitos humanos os seguintes delitos:
■ tortura;
■ homicídio doloso praticado por agente de quaisquer dos entes federados no exercício de suas funções ou por grupo de extermínio;
■ crimes praticados contra as comunidades indígenas ou seus integrantes;
■ homicídio doloso, quando motivado por preconceito de origem, raça, sexo, opção sexual, cor, religião, opinião política, idade ou quaisquer outras formas de discriminação, ou quando decorrente de conflitos fundiários de natureza coletiva;
■ uso, intermediação e exploração de trabalho escravo ou de crianças e adolescentes, em quaisquer das formas previstas em tratados internacionais.
Tirando todos esses detalhes e desde que o STF não conteste a constitucionalidade da nova regra, concordamos inteiramente com Piovesan nos seguintes termos: “para os Estados, ao revés, cujas instituições mostrarem-se falhas ou omissas, restará configurada a hipótese de deslocamento de competência para a esfera federal, o que:
a) assegurará maior proteção à vítima;
b) estimulará melhor funcionamento das instituições locais em casos futuros;
c) gerará a expectativa de resposta efetiva das instituições federais;
d) se ambas as instituições — estadual/federal — mostrarem-se falhas ou omissas, daí, sim, será acionável a esfera internacional — contudo, com a possibilidade de, ao menos, dar-se a chance à União de responder ao conflito, esgotando-se a responsabilidade primária do Estado (o que ensejaria a responsabilidade subsidiária da comunidade internacional). Isto equacionará, ademais, a posição da União no contexto de responsabilidade internacional em matéria de direitos humanos”.105
Finalmente, informamos (até o fechamento desta edição), os julgamentos dos IDCs ns. 1 (negado), 2 (acolhido), 3 (acolhido em parte) e 5 (acolhido):
■ IDC 1/PA — assassinato de Dorothy Stang: superando a preliminar que discutia a constitucionalidade da nova regra, a 3.ª Seção do STJ “... indeferiu o pedido no incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal do processo e julgamento do crime de assassinato da religiosa Irmã Dorothy Stang, ocorrido em Anapu-PA, por considerar descabível a avocatória ante a equivocada presunção vinculada, mormente pela mídia, de haver, por parte dos órgãos institucionais da segurança e judiciário do Estado do Pará, omissão ou inércia na condução das investigações do crime e sua efetiva punição pela grave violação dos direitos humanos, em prejuízo ao princípio da autonomia federativa (EC n. 45/2004)” (3.ª Seção, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 08.06.2005, DJ de 10.10.2005);
■ IDC 2/DF — assassinato de Manoel Bezerra de Mattos Neto: “... o advogado e vereador pernambucano Manoel Bezerra de Mattos Neto foi assassinado em 24.01.2009, no Município de Pitimbu/PB, depois de sofrer diversas ameaças e vários atentados, em decorrência, ao que tudo leva a crer, de sua persistente e conhecida atuação contra grupos de extermínio que agem impunes há mais de uma década na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, entre os Municípios de Pedras de Fogo e Itambé”. No caso concreto, o STJ entendeu preenchidos os requisitos para o deslocamento, especialmente a omissão e “incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas”. Assim, determinou o deslocamento de competência para a Justiça Federal no Estado da Paraíba, devendo a ação ser distribuída ao Juízo Federal Criminal com jurisdição no local do fato principal (3.ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 27.10.2010 — DJe de 22.11.2010);
■ IDC 3/GO — suspeita de atuação, em Goiânia, de grupo de extermínio com a suposta participação de policiais militares na prática dos crimes de homicídio e de tortura: o STJ determinou o deslocamento de competência para a Justiça Federal de dois inquéritos policiais e de um procedimento inquisitivo envolvendo policiais militares que teriam supostamente cometido graves violações aos direitos humanos no estado de Goiás. Assim, “o Colegiado determinou a transferência imediata à Polícia Federal, sob a fiscalização do Ministério Público Federal e sob a jurisdição do juízo federal criminal, do inquérito policial envolvendo o desaparecimento de Célio Roberto; do procedimento inquisitivo que trata do crime de tortura contra Michel Rodrigues da Silva; e do inquérito policial que apura o desaparecimento de Pedro Nunes da Silva e Cleiton Rodrigues” (Notícias STJ de 10.12.2014) (3.ª Seção, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 10.12.2014, DJE de 02.02.2015);
■ IDC 5/PE — morte do promotor Thiago Faria Soares: de acordo com os itens 8 e 9 da ementa, há “indicativos de que o assassinato provavelmente resultou da ação de grupos de extermínio que atuam no interior do Estado de Pernambuco (como tantos outros que ocorreram na região conhecida como ‘Triângulo da Pistolagem’, situada no agreste pernambucano), bem como ao certo e notório conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e a persecução penal dos ainda não identificados autores do crime noticiado. A falta de entendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público estadual ensejou um conjunto de falhas na investigação criminal que arrisca comprometer o resultado final da persecução penal, com possibilidade, inclusive, de gerar a impunidade dos mandantes e dos executores do citado crime de homicídio” (3.ª Seção, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 13.08.2014, DJE de 1.º.09.2014).
A CF/88 reconhece a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurando: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Essa regra de competência, contudo, não é absoluta. Isso porque, sempre que houver instituição de competência especial por prerrogativa de função no texto maior (CF/88), haverá afastamento da norma geral. É o que acontece nos arts. 29, X (Prefeito julgado pelo TJ); 96, III (Juízes e Promotores — TJ); 102, I, “b” e “c” (o crime comum engloba o crime doloso contra a vida); 105, I, “a”, e 108, I.
Fazemos, então, amigo, “guerreiro” que se prepara para os “concursos da vida”, uma pergunta: será que a Constituição de um Estado pode retirar competência do Tribunal do Júri na hipótese de prática de crime doloso contra a vida fora das exceções previstas na própria CF? Ou seja, será que a Constituição de um Estado pode atribuir, por exemplo, competência para o TJ julgar Vereador pela prática de crime doloso contra a vida (homicídio), sabendo que a CF não traz essa exceção à regra geral do art. 5.º, XXXVIII? A resposta é negativa, e o STF já pacificou o entendimento no enunciado da S. 721, convertida na SV 45 (j. 08.04.2015), nos seguintes termos: “a competência constitucional do tribunal do júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual”.
Caso o crime doloso contra a vida tenha sido praticado em coautoria, tendo um dos réus foro por prerrogativa de função e o outro não, haverá separação dos processos; aquele que não tem a prerrogativa, certamente, deverá ser julgado pelo Tribunal do Júri.
Nesta parte do trabalho limitamo-nos a transcrever os direitos previstos, de maneira sistematizada, na medida em que o questionamento, em maior profundidade, aparece nas provas de direito penal e direito processual penal; remetemos, pois, os candidatos para os livros especializados nesses assuntos.
No tocante à matéria criminal, destacamos a importante criação, no âmbito do STF, de um Núcleo de Acompanhamento de Ações Penais originárias.
Segundo Gilmar Mendes, a ideia “... é exatamente evitar que exista demora na tramitação dos processos, principalmente nas fases em que são ‘utilizados’ juízes federais para auxiliar na instrução do processo, ouvindo réus e testemunhas. A ação penal do mensalão foi um exemplo disso, salientou. Houve um acompanhamento rigoroso, e os interrogatórios acabaram acontecendo de forma bastante célere, lembrou” (Notícias STF, 1.º.07.2008 — 17h40).
Nessa linha, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves procura, em vez de caminhar para uma proposta muitas vezes de abolição penal e que poderíamos chamar de direito penal mínimo, ou, no extremo oposto, acolher a ideia de um direito penal máximo, o faz dentro de uma perspectiva moderna e “antenado” com a ideia de uma Constituição Social, desenvolvendo a tendência para o direito penal proporcional.
Em suas conclusões, observa o autor que “entre os desafios para a implementação dos direitos fundamentais encontra-se o uso proporcional do Direito Penal: de adversárias daqueles direitos, viram-se as sanções penais alçadas a instrumento necessário para sua proteção. Esta transposição não foi retilínea, nem está acabada. A busca por um Direito Penal Proporcional, que não descure das garantias fundamentais das pessoas investigadas, acusadas e sancionadas, nem deixe à míngua vítimas de graves ofensas a direitos, é incessante. O caminho que se apresenta para este fim é o da exegese constitucional, de onde se pode haurir a normativa que há de dirigir a atuação do Estado”.106
O art. 5.º, XXXIX, consagra a regra do nullum crimen nulla poena sine praevia lege. Assim, de uma só vez, assegura tanto o princípio da legalidade (ou reserva legal), na medida em que não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal, como o princípio da anterioridade, visto que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Por sua vez, a regra do inciso XL do art. 5.º consagra, duplamente, a:
■ irretroatividade da lei penal in pejus;
■ retroatividade da lei penal mais benéfica.
A) Irretroatividade da lei penal in pejus
Para se ter um exemplo importante da regra da irretroatividade da lei penal menos benéfica, o STF discutia a constitucionalidade do art. 2.º da Lei de Crimes Hediondos que determinava o cumprimento da pena integralmente no regime fechado.
Em um caso concreto (HC 82.959), entendeu que a proibição da progressão violaria o princípio da individualização da pena, garantido no art. 5.º, XLVI.
O STF passou, então, a admitir a progressão, aplicando a Lei de Execuções Penais, desde que, entre outros requisitos, fosse cumprido pelo menos 1/6 da pena (“até que norma legal específica venha a ser editada. Norma que, agora sim, cuide de forma particularizada o tema da progressão no regime de cumprimento de pena pela prática de crime hediondo. Isto, lógico, desde que também sejam preenchidos os requisitos subjetivos que a própria lei já estabelece, o que será analisado, in concreto, pelo Juízo da execução” — voto do Min. Carlos Britto, fls. 712 do acórdão).
Posteriormente, a Lei n. 11.464/2007, norma legal específica, alterou o art. 2.º da Lei de Crimes Hediondos e passou a exigir o requisito temporal de 2/5, se primário ou 3/5, se reincidente.
A dúvida consistia em saber se deveria ser aplicada a Lei de Crimes Hediondos (1/6) ou a novatio legis (2/5, se primário ou 3/5, se reincidente). A resposta vai depender do momento em que o crime foi praticado e se já vigorava ou não a nova lei. Assim, se o crime foi praticado antes da Lei n. 11.464/2007, aplica-se 1/6, já que a novatio legis se implementou in pejus. Se, porém, o crime foi praticado já na vigência da nova lei, aplica-se 2/5 ou 3/5.
Isso porque, 1/6 é menor que 2/5, que é menor que 3/5 e, então, a nova lei sobreveio de forma menos benéfica (como se percebe, trata-se de tese interessante a ser adotada nas provas da defensoria pública).
Apenas para compreender bem a análise “matemática” (e aqui eu falo com os ilustres leitores que não gostam muito das “exatas” — porque sei que engenheiros, contadores e tantos “guerreiros” das áreas “não jurídicas” estão lendo o trabalho — o que muito me honra), vou socorrer-me do “MMC” e, assim, comparar as frações sob um múltiplo comum. Vejamos:
Destacamos a SV 26/2009, transcrita abaixo e que passa a ser um interessante exemplo prático para a aplicação do princípio da irretroatividade da lei menos benéfica:
“Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2.º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.
Cabe lembrar que o entendimento acima exposto está consagrado na S. 471/STJ: “os condenados por crimes hediondos ou assemelhados cometidos antes da vigência da Lei n. 11.464/2007 sujeitam-se ao disposto no art. 112 da Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) para a progressão de regime prisional”, bem como em diversos precedentes do STF, como no RE 579.167/AC (j. 16.05.2013).
Finalmente, apenas a título de informação (o tema é aprofundado em direito penal), devemos alertar que o STF declarou, incidentalmente, com efeito ex nunc, a inconstitucionalidade da regra fixada pela Lei n. 11.464/2007 ao art. 2.º, § 1.º, da Lei de Crimes Hediondos.
Vamos lembrar como era a redação original e como ficou com a nova lei:
REDAÇÃO ORIGINAL DA LEI N. 8.072/90 |
REDAÇÃO DADA PELA LEI N. 11.464/2007 |
“Art. 2.º, § 1.º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado”. |
“Art. 2.º, § 1.º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado”. |
Ou seja, o STF, ao enfrentar o tema, decidiu que a obrigatoriedade de imposição do regime inicial fechado, fora das regras do Código Penal, é inconstitucional por violar o princípio da individualização da pena (art. 5.º, XLVI). A definição do regime inicial de cumprimento de pena deve ser justificada e declarada pelo magistrado em cada caso concreto, ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado (art. 33 c/c o art. 59, do CP).
Esse entendimento foi firmado no julgamento do HC 111.840 (Pleno, j. 27.06.2012) e tem sido a orientação da Corte (no mesmo sentido, cf. HC 113.442, 2.ª T., j. 25.06.2013, HC 107.084, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 24.09.2013, 2.ª T., DJE de 08.10.2013 etc.).
A dúvida surge: os juízes do Brasil estão obrigados a seguir essa interpretação? Não. A decisão foi estabelecida em controle difuso, que não possui efeitos erga omnes e vinculante.
Na prática, diante do ajuizamento de reclamações (art. 102, I, “l”, CF) contra decisões que estão determinando a obrigatoriedade do cumprimento de pena inicialmente no regime fechado (aplicando, assim, a literalidade da nova lei, mesmo quando a pena for inferior a 8 anos de reclusão — art. 33, § 2.º, “a”, CP), alguns Ministros, por não se admitir o efeito vinculante da declaração de inconstitucionalidade em controle difuso, embora não conheçam da reclamação, estão, de ofício, concedendo habeas corpus.107
Essa situação, sem dúvida, propiciará (e seria conveniente) a edição de súmula vinculante sobre a matéria, até porque a Corte (8 votos contra 2) não reconheceu a tese da mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88, não aceitando, assim, a pretendida abstrativização do controle difuso que vinha sendo sustentada pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau (cf. RCL 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20.03.2014, DJE de 22.10.2014 e comentários no item 6.6.5 deste trabalho).
B) Retroatividade da lei penal mais benéfica
Agora, passamos a analisar a segunda hipótese, qual seja, a regra da retroatividade da lei penal mais benéfica.
Como se sabe, a Lei n. 12.015/2009, ao modificar os arts. 213 e 214 do Código Penal, deixou de fazer distinção entre crimes de estupro e atentado violento ao pudor, unificando os dois crimes no art. 213, podendo, assim, o estupro, na nova regra, ser praticado por homem ou mulher (crime comum).
Em suma, o estupro está caracterizado na hipótese de se constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Não se trata de abolitio criminis, porque as condutas do crime de atentado violento ao pudor, apesar de revogado o art. 214 do CP, continuam previstas no crime de estupro (agora no art. 213 do CP). A conduta, portanto, continua sendo punida.
Contudo, o STF vem aceitando a tese da continuidade delitiva por ter a nova lei unificado os arts. 213 e 214 do CP em um mesmo tipo e, assim, vale a nova regra já que mais benéfica. Nesse sentido:
“EMENTA: AÇÃO PENAL. Estupro e atentado violento ao pudor. Mesmas circunstâncias de tempo, modo e local. Crimes da mesma espécie. Continuidade delitiva. Reconhecimento. Possibilidade. Superveniência da Lei n. 12.015/09. Retroatividade da lei penal mais benéfica. Art. 5.º, XL, da Constituição Federal. HC concedido. Concessão de ordem de ofício para fins de progressão de regime. A edição da Lei n. 12.015/09 torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima” (HC 86.110, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02.03.2010, 2.ª Turma, DJE de 23.04.2010).108