Sumário: 1.1. Dos crimes contra a vida: 1.1.1. Fundamento constitucional; 1.1.2. Crimes contra a vida: espécies, competência e ação penal; 1.1.3. Art. 121 – Homicídio; 1.1.4. Art. 122 – Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio; 1.1.5. Art. 123 – Infanticídio; 1.1.6. Arts. 124 A 128 – aborto – 1.2. Das lesões corporais: 1.2.1. Dispositivo legal; 1.2.2. Estrutura do crime; 1.2.3. Noções gerais; 1.2.4. Art. 129 – Lesão corporal dolosa – 1.3. Da periclitação da vida e da saúde: 1.3.1. Art. 130 – Perigo de contágio venéreo; 1.3.2. Art. 131 – Perigo de contágio de moléstia grave; 1.3.3. Art. 132 – Perigo para a vida ou saúde de outrem; 1.3.4. Art. 133 – Abandono de incapaz; 1.3.5. Art. 134 – Exposição ou abandono de recém-nascido; 1.3.6. Art. 135 – Omissão de socorro; 1.3.7. Art. 135-A – condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial; 1.3.8. Art. 136 – Maus-tratos – 1.4. Da rixa: 1.4.1. Dispositivo legal; 1.4.2. Conceito; 1.4.3. Objetividade jurídica; 1.4.4. Objeto material; 1.4.5. Núcleo do tipo; 1.4.6. Sujeitos do crime: ativo e passivo; 1.4.7. Elemento subjetivo; 1.4.8. Consumação; 1.4.9. Tentativa; 1.4.10. Rixa qualificada: art. 137, Parágrafo único; 1.4.11. Rixa e legítima defesa; 1.4.12. Ação penal; 1.4.13. Lei 9.099/1995; 1.4.14. Classificação doutrinária – 1.5. Dos crimes contra a honra: 1.5.1. Introdução; 1.5.2. Conceito de honra; 1.5.3. Espécies de honra; 1.5.4. Art. 138 – Calúnia; 1.5.5. Art. 139 – Difamação; 1.5.6. Art. 140 – Injúria; 1.5.7. Arts. 141 A 145 – apontamentos comuns aos crimes contra a honra – 1.6. Dos crimes contra a liberdade individual: 1.6.1. Dos crimes contra a liberdade pessoal; 1.6.2. Dos crimes contra a inviolabilidade do domicílio; 1.6.3. Dos crimes contra a inviolabilidade de correspondência; 1.6.4. Dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos – 1.7. Questões.
O direito à vida está consagrado no art. 5.º, caput, da Constituição Federal como direito fundamental do ser humano. Trata-se de direito supraestatal, inerente a todos os homens e aceito por todas as nações, imprescindível para a manutenção e para o desenvolvimento da pessoa humana.
É, por esse motivo, um direito fundamental em duplo sentido: formal e materialmente constitucional. Formalmente constitucional, porque enunciado e protegido por normas com valor constitucional formal (normas que, independente do seu conteúdo, possuem status constitucional por terem sido elaboradas por meio de um processo legislativo mais complexo que o processo legislativo ordinário).1 E também materialmente constitucional, porque seu conteúdo se refere à estrutura do Estado, à organização dos poderes e aos direitos e garantias fundamentais.
E, se não bastasse a previsão expressa pelo art. 5.º, caput, o direito à vida teve sua proteção constitucional reforçada pelos arts. 227, caput, e 230, caput.
Mas, nada obstante sua dimensão, o direito à vida é relativo, a exemplo dos demais direitos. Pode sofrer limitações, desde que não sejam arbitrárias e possam ser sustentadas por interesses maiores do Estado ou mesmo de outro ser humano. É o que se convencionou chamar de “possibilidade lógica de restrições a direitos fundamentais”.2 Com efeito, a própria Constituição Federal autoriza a privação da vida humana quando admite a pena de morte em tempo de guerra (art. 5.º, inc. XLVII, alínea “a”).
No tocante à relatividade dos direitos fundamentais, assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal em clássica decisão:
Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.3
Ademais, o Código Penal afasta a ilicitude do fato típico praticado em legítima defesa (art. 25), justificando, exemplificativamente, a morte daquele que agride uma pessoa com a intenção de matá-la, além de apontar expressamente as hipóteses em que o aborto é permitido (art. 128). Em tais casos, uma vida pode ser sacrificada para preservar outra, em face da ausência momentânea do Estado para a proteção de bens jurídicos, ou então para preservar a vida da gestante ou a sua dignidade, quando a gravidez resulta de estupro.
O Código Penal arrola quatro crimes contra a vida:
(1) homicídio;
(2) induzimento, instigação ou auxílio a suicídio;
(3) infanticídio; e
(4) aborto.
Buscou, desse modo, proteger integralmente o direito à vida do ser humano, desde a sua concepção, ou seja, previamente ao seu nascimento.
No tocante à competência, salvo o homicídio culposo (CP, art. 121, § 3.º), cuja ação penal tramita perante o juízo singular (justamente pelo fato de ser culposo), todos os demais crimes são julgados pelo Tribunal do Júri, em atendimento à regra prevista no art. 5.º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da Constituição Federal.
E a ação penal, como consectário lógico da indisponibilidade do direito à vida, sempre será pública incondicionada, circunstância que não impede, em caso de inércia do Ministério Público, a utilização da ação penal privada subsidiária da pública, garantida pelo art. 5.º, inciso LIX, da Constituição Federal.
A análise do art. 121 do Código Penal permite a seguinte visualização esquemática do crime de homicídio e de suas variantes.
O crime de homicídio simples encontra-se definido pelo art. 121, caput: “Matar alguém”. A essa conduta – que não aloja elementos normativos ou subjetivos –, composta por um núcleo (“matar”) e um elemento objetivo (“alguém”), é cominada a pena de reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
É a supressão da vida humana extrauterina praticada por outra pessoa.4
Esse conceito permite uma importante conclusão: a eliminação da vida humana não acarreta na automática tipificação do crime de homicídio. De fato, se a vida humana for intrauterina estará caracterizado o delito de aborto. Além disso, se já iniciado o trabalho de parto, a morte do feto configura homicídio ou infanticídio, dependendo do caso concreto, mas não aborto. Se não bastasse, “matar alguém” pode resultar no crime de infanticídio, se presentes as demais elementares tipificadas pelo art. 123 do Código Penal, quais sejam, a vítima deve ser o filho nascente ou recém-nascido, além de ser a conduta praticada pela própria mãe durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal.
Cuida-se de um dos primeiros crimes conhecidos pela humanidade, razão pela qual se sustenta que a história do homicídio pode ser confundida com a própria história do direito penal. Em todos os tempos e em todas as civilizações, a vida humana sempre foi o primeiro bem jurídico a ser tutelado.
O homicídio simples, em regra, não é crime hediondo. Será assim entendido, contudo, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por um só agente (Lei 8.072/1990, art. 1.º, inc. I, 1.ª parte). Essa hipótese, entretanto, é de difícil configuração prática.
Em verdade, a atividade típica de grupo de extermínio, mesmo sem a efetiva existência deste, normalmente enseja a aplicação da qualificadora do motivo torpe (art. 121, § 2.º, inc. I). Exemplo: matança generalizada de moradores de rua para valorização de uma área urbana. Nesse caso, o crime será hediondo (Lei 8.072/90, art. 1.º, inc. I, in fine).
Por outro lado, se um agente matar outras pessoas em atividade típica de grupo de extermínio, sem realmente integrá-lo, mas com relevante valor social, estará caracterizado o homicídio privilegiado (CP, art. 121, § 1.º), que não é crime hediondo. Exemplo: policial que, durante sua folga, sai à caça de ladrões que aterrorizavam uma pacata cidade, matando-os.
O bem jurídico protegido é a vida humana exterior ao útero materno, assegurado pelo art. 5.º, caput, da Constituição Federal. Em face da importância desse bem, o homicídio é um dos crimes mais graves que se pode cometer, com pena máxima de 30 anos, quando presente alguma qualificadora.
A vida extrauterina inicia-se com o processo respiratório autônomo do organismo da pessoa que está nascendo, que a partir de então não depende mais da mãe para viver. Esse acontecimento pode ser demonstrado por prova pericial, por meio das docimasias respiratórias.
É irrelevante a viabilidade do ser nascente. Não importa se tinha ou não possibilidade de permanecer vivo. Basta o nascimento com vida para autorizar a incidência desse tipo penal, ainda que o recém-nascido, em decorrência de anomalias, apresente características monstruosas (no direito civil brasileiro, mesmo o monstrum vel prodigium, do direito romano, adquire personalidade civil ao nascer com vida – CC, art. 2.°).
É o ser humano que suporta a conduta criminosa. Exemplo: “A” efetua disparos de arma de fogo contra “B”, matando-o. A objetividade jurídica é a vida humana sacrificada com a conduta homicida, ao passo que “B” é o objeto material.
O núcleo do tipo é o verbo “matar”. Trata-se de crime de forma livre. Admite qualquer meio de execução e pode ser praticado por ação ou por omissão, desde que presente o dever de agir, por enquadrar-se o agente em alguma das hipóteses previstas no art. 13, § 2.º, do Código Penal, como a mãe que mata o filho ao negar-lhe alimentação por diversos dias. Ou então, em hipótese reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal:
Em tese, o único médico plantonista, procurado mais de uma vez durante o exercício de sua atividade profissional na unidade de saúde, cientificado da gravidade da doença apresentada pelo paciente que lhe é apresentado (com risco de vida), ao se recusar a atendê-lo, determinando o retorno para casa, sem ao menos ministrar qualquer atendimento ou tratamento, pode haver deixado de impedir a ocorrência da morte da vítima, sendo tal conduta omissiva penalmente relevante devido à sua condição de garante.5
O crime pode ser praticado de forma direta, quando o meio de execução é manuseado diretamente pelo agente (exemplo: golpes com uma barra de ferro), ou também de forma indireta, quando o meio de execução é manipulado indiretamente pelo homicida (exemplo: ataque por um cão feroz).
O homicídio também pode ser praticado por meio de relações sexuais ou atos libidinosos. É o que ocorre com a Aids (síndrome da imunodeficiência adquirida), doença fatal e incurável. Se um portador do vírus HIV, consciente da letalidade da moléstia, efetua intencionalmente com terceira pessoa ato libidinoso que transmite a doença, matando-a, responderá por homicídio doloso consumado. E, se a vítima não falecer, a ele deverá ser imputado o crime de homicídio tentado. Nesse caso, não há falar no crime de perigo de contágio venéreo (CP, art. 130), uma vez que o dolo do agente dirige-se à morte da vítima.6
Igual raciocínio se aplica à hipótese em que alguém, fazendo uso de uma seringa contendo sangue com o vírus HIV, injeta o líquido em outra pessoa, contaminando-a. Em qualquer dos casos, o crime será o de homicídio, consumado ou tentado, dependendo da produção ou não do resultado naturalístico morte. Há quem entenda, todavia, tratar-se de lesão corporal gravíssima em face da enfermidade incurável (CP, art. 129, § 2.º, inc. II).7 Não concordamos com essa posição, pois enfermidade incurável é a doença que não possui solução no atual estágio da ciência médica, mas que não leva à morte, como ocorre na Aids.
Os meios de execução podem ser materiais, quando assolam a integridade física do ofendido (exemplo: ferimentos com uma faca), ou morais, nas hipóteses em que a morte é produzida por um trauma psíquico na vítima, agravando uma doença preexistente, que a conduz à morte, ou provocando-lhe reação orgânica que a conduza a uma enfermidade, e daí à morte (exemplo: depressão que acarreta na morte em face do uso excessivo de medicamentos de ação controlada).
O meio de execução pode caracterizar uma qualificadora, como se dá no emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum (CP, art. 121, § 2.º, inc. III).
O homicídio é crime comum, pois pode ser praticado por qualquer pessoa, isoladamente ou em concurso com outro indivíduo. Comporta coautoria e participação.
E se o crime for praticado por xifópagos (irmãos siameses ou indivíduos duplos)?
Esta situação curiosa tem a resposta fornecida por Euclides Custódia da Silveira:
Dado que a deformidade física não impede o reconhecimento da imputabilidade criminal, a conclusão lógica é que responderão como sujeitos ativos. Assim, se os dois praticarem um homicídio, conjuntamente ou de comum acordo, não há dúvida que responderão ambos como sujeitos ativos, passíveis de punição. Todavia, se o fato é cometido por um, sem ou contra a vontade do outro, impor-se-á a absolvição do único sujeito ativo, se a separação cirúrgica é impraticável por qualquer motivo, não se podendo excluir sequer a recusa do inocente, que àquela não está obrigado. A absolvição se justifica, como diz Manzini, porque conflitando o interesse do Estado ou da sociedade com o da liberdade individual, esta é que tem de prevalecer. Se para punir um culpado é inevitável sacrificar um inocente, a única solução sensata há de ser a impunidade.8
Pode ser qualquer pessoa humana, após o nascimento e desde que esteja viva.
Em caso de vítimas que sejam irmãos xifópagos, haverá duplo homicídio. Se com uma única conduta estiver presente a intenção de matar a ambos (dolo direto), restará caracterizado o concurso formal imperfeito, na forma do art. 70, caput, 2.ª parte, do Código Penal. Mas, se o desejo do agente era matar apenas um deles, mas ambos morrerem, por se tratar de consequência lógica e natural da conduta inicial, existirá dolo direto quanto a um, e dolo de segundo grau ou de consequências necessárias9 relativamente ao outro, novamente em concurso formal imperfeito. E, finalmente, se o sujeito quiser matar um deles, atingindo-o, e o outro for salvo pela eficiente atuação médica, haverá também concurso formal imperfeito, agora entre um homicídio consumado e uma tentativa de homicídio.
Se a pessoa já estava morta, não há falar em homicídio, pois a impropriedade absoluta do objeto material conduz ao crime impossível, afastando a tipicidade, nos moldes do art. 17 do Código Penal.
A tipificação do homicídio pode ser transferida do Código Penal para leis extravagantes em decorrência das características da vítima. Nesses termos, quem mata dolosamente o Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal incide no crime definido pelo art. 29 da Lei 7.170/1983 – Crimes contra a Segurança Nacional.
Já aquele que, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matar membros do grupo, pratica genocídio (Lei 2.889/1956, art. 1.º, a). Ao contrário do homicídio, trata-se de crime contra a humanidade, e não contra a vida. Nas lições do Supremo Tribunal Federal:
Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido. Tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo ou transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executórias. Inteligência do art. 1.º da Lei n.º 2.889/56, e do art. 2.º da Convenção contra o Genocídio, ratificada pelo Decreto n.º 30.822/52. O tipo penal do delito de genocídio protege, em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou transindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a qual é posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a liberdade de locomoção etc.10
É o dolo, denominado de animus necandi ou animus occidendi. Não se reclama nenhuma finalidade específica.
Admite-se o dolo eventual, quando o agente não quer o resultado morte, mas assume o risco de produzi-lo. É o que se dá no “racha” entre veículos automotores praticado em via pública.11 Esse fato, mesmo sem resultar a morte, é tipificado como crime autônomo pelo art. 308 da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro (participação em competição não autorizada). Também há dolo eventual quando a morte resulta de acidente de trânsito provocado pela embriaguez do condutor.12 No mesmo diapasão, assim se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
A Turma denegou ordem de habeas corpus em que há indícios de que os ocupantes do utilitário sinistrado estavam alcoolizados, enquanto o motorista (supostamente, o prefeito) avançou o semáforo na luz vermelha, causando a colisão com outro veículo, o que causou o falecimento da motorista do automóvel abalroado. Não se exclui a possibilidade de o condutor, seja ele quem for, ter assumido o risco de provocar lesão grave em alguém que pudesse vir a ser atingido por seu veículo, ocasionando-lhe a morte.13
Em nossa opinião, a embriaguez ao volante pode caracterizar dolo eventual ou culpa consciente, dependendo da análise do caso concreto. Vejamos dois exemplos: (a) O sujeito visita um amigo no horário de almoço, e acaba ingerindo uma pequena quantidade de álcool. No caminho de volta ao trabalho, atropela e mata um transeunte; e (b) Uma pessoa passa a noite em uma festa “open bar”, e consome exageradamente diversas bebidas alcoólicas. Na madrugada, sai com seu carro em via pública, invade um ponto de ônibus e mata diversas pessoas. No primeiro exemplo, não se pode descartar a culpa consciente, ao passo que no outro caso o dolo eventual é manifesto.
O motivo que leva o agente a ceifar a vida alheia pode caracterizar uma qualificadora (exemplo: motivo torpe ou fútil) ou causa de diminuição da pena (exemplo: relevante valor social ou moral).14
Dá-se com a morte (crime material), a qual se verifica com a cessação da atividade encefálica, como determina o art. 3.º, caput, da Lei 9.434/1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.
Para a Sociedade Americana de Neurorradiologia, morte encefálica é o “estado irreversível de cessação de todo o encéfalo e funções neurais, resultante de edema e maciça destruição dos tecidos encefálicos, apesar da atividade cardiopulmonar poder ser mantida por avançados sistemas de suporte vital e mecanismos de ventilação”.15
A prova da materialidade realiza-se pelo exame necroscópico, que, além de atestar a morte, indica também suas causas.
Cuida-se de crime instantâneo, pois se consuma em um momento determinado, sem continuidade no tempo. Há quem sustente, porém, ser o homicídio um crime instantâneo de efeitos permanentes, pois, embora a consumação ocorra em um único momento, seus efeitos são imutáveis.
É possível a tentativa (conatus) de homicídio.
Na tentativa branca ou incruenta a vítima não é atingida,16 enquanto na tentativa vermelha ou cruenta a vítima é alcançada pela conduta criminosa e sofre ferimentos.
O homicídio é crime simples (atinge um único bem jurídico); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); material (o tipo contém conduta e resultado naturalístico, exigindo este último – morte – para a consumação); de dano (reclama a efetiva lesão do bem jurídico); de forma livre (admite qualquer meio de execução); comissivo (regra) ou omissivo (impróprio, espúrio ou comissivo por omissão, quando presente o dever de agir); instantâneo (consuma-se em momento determinado, sem continuidade no tempo), mas há também quem o considere instantâneo de efeitos permanentes; unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (praticado por um só agente, mas admite concurso); em regra plurissubsistente (a conduta de matar pode ser fracionada em diversos atos); e progressivo (para alcançar o resultado final o agente passa, necessariamente, pela lesão corporal, crime menos grave rotulado nesse caso de “crime de ação de passagem”).
É a modalidade de homicídio prevista no art. 121, § 1.º, do Código Penal: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.
A denominação “homicídio privilegiado” é fruto de criação doutrinária e jurisprudencial. Na verdade, não se trata de privilégio, mas de causa de diminuição da pena.
Crime privilegiado é a modalidade em que a lei penal diminui, em abstrato, os limites da pena, mínimo e máximo. No caso em apreço, vale-se o legislador da pena do homicídio simples, diminuída de um sexto a um terço. Por esse motivo, fala o Código Penal em “caso de diminuição da pena”.
As hipóteses legais de privilégio apresentam caráter subjetivo. Relacionam-se ao agente, que atua imbuído por relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, e não ao fato. Por corolário, a causa de diminuição da pena não se comunica aos demais coautores ou partícipes, em consonância com a regra prevista no art. 30 do Código Penal.
Vejamos um exemplo: “A”, ao chegar à sua casa, depara-se com sua filha chorando copiosamente. Pergunta-lhe o motivo da tristeza, vindo a saber que fora ela recentemente estuprada por “B”. Pede então a “C”, seu amigo, que mate o estuprador, no que é atendido. “A” responde por homicídio privilegiado (relevante valor moral), enquanto a “C” deve ser atribuído o crime de homicídio, simples ou qualificado (dependendo do caso concreto), mas nunca o privilegiado, pois o relevante valor moral a ele não se estende.
Estabelece o art. 121, § 1.º, do Código Penal que, presente o privilégio, “o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. Com base nisso, questiona-se: pode ou deve diminuir a pena?
Deve diminuir a pena, obrigatoriamente. Sua discricionariedade (“pode”) limita-se ao quantum da diminuição, que deve ser suficientemente motivado. Portanto, deve diminuir a pena, podendo tão somente decidir sobre a quantidade de diminuição, dentro dos parâmetros legais. E o motivo desse dever é simples.
Os crimes dolosos contra a vida, aí se incluindo o homicídio, são de competência do Tribunal do Júri (CF, art. 5.º, inc. XXXVIII, d). E, se os jurados, depois de condenarem o acusado, em conformidade com o disposto pelo art. 483, § 3.º, inciso I, do Código de Processo Penal, afirmarem a presença de causa de diminuição da pena, como é o caso do privilégio, não restará ao juiz presidente outra via senão a sua aplicação. Entendimento diverso violaria a soberania dos veredictos constitucionalmente consagrada (art. 5.º, inc. XXXVIII, c).
Em síntese, ao juiz togado não se assegura o arbítrio de impor a sua opinião particular contra a dos jurados, pois, se assim fosse, a própria Constituição Federal não poderia ter previsto o princípio da soberania dos veredictos.
O homicídio privilegiado não é crime hediondo, por ausência de amparo legal. A Lei 8.072/1990 – Lei dos Crimes Hediondos, em seu art. 1.º, inciso I, elencou somente as formas simples e qualificadas do homicídio no rol dos crimes alcançados pela hediondez, nada dispondo acerca da figura privilegiada.
O Código Penal aponta em seu art. 121, § 1.º, as três circunstâncias que ensejam o privilégio no crime de homicídio: motivo de relevante valor social, motivo de relevante valor moral e domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.
O Direito Penal é o ramo do ordenamento jurídico que mais possui raízes e preocupações éticas, e, por esse motivo, acentua-se cada vez mais a significação dos motivos determinantes do crime. O motivo é o antecedente psíquico da ação, a força que põe em movimento o querer e o transforma em ato: uma representação que impele à ação.17
O motivo de relevante valor social ou moral já foi previsto no art. 65, inciso III, alínea “a”, do Código Penal como circunstância que sempre atenua a pena, no tocante aos crimes em geral. No homicídio, contudo, eleva-se à categoria de causa de diminuição da pena, tornando-o privilegiado, nos termos do art. 121, § 1.º.
Mas há uma importante diferença entre a atenuante genérica e a causa de diminuição da pena: naquela (atenuante) é suficiente seja o crime cometido por motivo de relevante valor social ou moral, isto é, há influência do motivo, em menor grau. Nesse (privilégio), por sua vez, o agente atua impelido por motivo de relevante valor social ou moral, isto é, por ele é impulsionado em elevado grau.
Motivo de relevante valor social é o pertinente a um interesse da coletividade. Não diz respeito ao agente individualmente considerado, mas à sociedade como um todo. Exemplo: matar um perigoso estuprador que aterroriza as mulheres e crianças de uma pacata cidade interiorana.
Motivo de relevante valor moral é aquele que se relaciona a um interesse particular do responsável pela prática do homicídio, aprovado pela moralidade prática e considerado nobre e altruísta. Exemplo: matar aquele que estuprou sua filha ou esposa.
E, como observado pelo item 39 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal, é típico exemplo do homicídio privilegiado pelo motivo de relevante valor moral “a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico)”.
A eutanásia, em sentido amplo, pode ser fracionada em duas espécies distintas. E ambas tipificam o crime de homicídio privilegiado. A vida é um direito indisponível, razão pela qual não se admite a construção de causa supralegal de exclusão da ilicitude fundada no consentimento do ofendido.
a) Eutanásia em sentido estrito: é o modo comissivo de abreviar a vida de pessoa portadora de doença grave, em estado terminal e sem previsão de cura ou recuperação pela ciência médica. É também denominada de homicídio piedoso, compassivo, médico, caritativo ou consensual.
b) Ortotanásia: é a eutanásia por omissão, também chamada de eutanásia omissiva, eutanásia moral ou eutanásia terapêutica. O médico deixa de adotar as providências necessárias para prolongar a vida de doente terminal, portador de moléstia incurável e irreversível.
No anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, em trâmite no Congresso Nacional, prevê-se como causa de exclusão da ilicitude a possibilidade de realização da ortotanásia. Acrescenta-se um § 4.º ao art. 121 do Código Penal: “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão”.
Por sua vez, no campo médico o art. 41 do Código de Ética Médica – Resolução 1.931/2009 –, do Conselho Federal Medicina, situado no capítulo inerente às relações do médico com pacientes e familiares, proíbe expressamente a abreviação da vida do enfermo, ainda que a pedido deste ou do seu representante legal. Mas, em respeito à dignidade da pessoa humana, o médico não pode utilizar no tratamento meios terapêuticos ou diagnósticos inúteis ou desnecessários, capazes de atentar ainda mais contra a debilitada condição do portador de doença incurável e em estado terminal.18
Distanásia é a morte vagarosa e sofrida de um ser humano, prolongada pelos recursos oferecidos pela medicina. Não é crime, por se tratar de meio capaz de arrastar a existência da vida humana, ainda que com sofrimento, até o seu fim natural.
O homicídio também é privilegiado quando cometido “sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”.
O Código Penal filiou-se a uma concepção subjetivista. Leva-se em conta o aspecto psicológico do agente que, dominado pela emoção violenta, não se controla. Sua culpabilidade é reduzida, refletindo na diminuição da pena a ser cumprida.
A emoção, como ensina Nélson Hungria, é “um estado de ânimo ou de consciência caracterizado por uma viva excitação do sentimento. É uma forte e transitória perturbação da efetividade, a que estão ligadas certas variações somáticas ou modificações particulares da vida orgânica”.19 Pode ser estênica ou astênica, conforme determine um estado de excitação ou de depressão.20
Mas não basta a emoção. O Código Penal reclama a presença de três requisitos cumulativos para autorizar a incidência da causa de diminuição da pena:
a) domínio de violenta emoção: a emoção deve ser violenta, intensa, capaz de alterar o estado de ânimo do agente a ponto de tirar-lhe a seriedade e a isenção que ordinariamente possui. Não se confundem emoção e paixão, especialmente no tocante à duração. Como a paixão é mais duradoura, o crime praticado sob seu domínio não comporta a aplicação do privilégio, até porque estaria ausente a reação imediata exigida pelo art. 121, § 1.º, do Código Penal.
b) injusta provocação da vítima: o privilégio se contenta com a provocação injusta, que pode ser, mas não necessariamente há de ser criminosa. Provocação injusta é o comportamento apto a desencadear a violenta emoção e a consequente prática do crime. Não se exige por parte da vítima o propósito direto e específico de provocar, sendo suficiente que o agente sinta-se provocado injustamente. Exemplos: brincadeiras indesejadas e inoportunas, falar mal do agente, encontrar sua esposa em flagrante adultério, injúria real, etc. Não é necessário seja a provocação dirigida ao homicida. É possível a provocação injusta contra um terceiro (exemplo: ofender sua mãe com palavras de baixo calão) e até contra um animal (exemplo: chutar seu cão de estimação), de forma a tirar do sério o agente. Entretanto, se existir agressão injusta por parte da vítima, o sujeito que a matou estará acobertado pela legítima defesa, afastando-se a ilicitude do fato, desde que presentes os demais requisitos previstos no art. 25 do Código Penal.
c) reação imediata: o art. 121, § 1.º, do Código Penal impõe a relação de imediatidade entre a provocação injusta e a conduta homicida. É indispensável seja o fato praticado “logo em seguida”, momentos após a injusta provocação da vítima. A lei não previu um hiato temporal fixo ou um critério rígido. O decisivo é o caso concreto. É vedada, porém, uma relevante interrupção entre o momento da injusta provocação e o cometimento do homicídio. Ademais, deve-se considerar o instante em que o sujeito toma ciência da provocação injusta e não aquele em que ela realmente ocorreu. É possível, destarte, tenha a provocação injusta se verificado até mesmo em um momento longínquo, desde que o homicida somente tenha dela tido conhecimento pouco antes do homicídio. Estará configurado o privilégio.
Essa modalidade de privilégio diferencia-se da atenuante genérica arrolada pelo art. 65, inciso III, alínea “c”, do Código Penal, em quatro pontos:
a) o privilégio é aplicável exclusivamente ao homicídio doloso, ao passo que é possível a incidência da atenuante genérica no tocante a qualquer crime (inclusive no homicídio doloso, na ausência de um ou mais requisitos do privilégio);
b) no privilégio exige-se seja o crime cometido sob o domínio de violenta emoção, enquanto na atenuante genérica basta a mera influência;
c) o privilégio pressupõe a injusta provocação da vítima, e para a atenuante genérica é suficiente o ato injusto da vítima; e
d) diferem-se finalmente quanto ao fator temporal. O privilégio depende da relação de imediatidade. O homicídio deve ser praticado logo em seguida à injusta provocação da vítima. Na atenuante genérica não se impõe essa relação de imediatidade.
Privilégio: art. 121, § 1.º |
Atenuante genérica: art. 65, inc. III, “c” |
Homicídio doloso |
Qualquer crime |
Domínio de violenta emoção |
Influência de violenta emoção |
Injusta provocação da vítima |
Ato injusto da vítima |
Reação de imediatidade: logo em seguida |
Em qualquer momento |
O Supremo Tribunal Federal assim se manifestou acerca do assunto:
A causa especial de diminuição de pena do § 1.º do art. 121 não se confunde com a atenuante genérica da alínea “a” do inciso III do art. 65 do Código Penal. A incidência da causa especial de diminuição de pena do motivo de relevante valor moral depende da prova de que o agente atuou no calor dos fatos, impulsionado pela motivação relevante. A atenuante incide, residualmente, naqueles casos em que, comprovado o motivo de relevante valor moral, não se pode afirmar que a conduta do agente seja fruto do instante dos acontecimentos.21
Essa modalidade de privilégio é compatível com a aberratio ictus. Exemplificativamente, admite-se que o sujeito, depois de injustamente provocado, efetue disparos de arma de fogo contra o provocador, mas atinja terceira pessoa. Subsiste o homicídio privilegiado, em conformidade com a regra contida no art. 73 do Código Penal.
A premeditação do homicídio é incompatível com essa hipótese de privilégio. A tarefa de arquitetar minuciosamente a execução do crime não se coaduna com o domínio da violenta emoção, seja pela existência de ânimo calmo e refletido, seja pela ausência de relação de imediatidade entre eventual injusta provocação da vítima e a prática da conduta criminosa.
O privilégio é compatível com a figura do dolo eventual. É o caso daquele que, logo depois de ser injustamente provocado pela vítima, e encontrando-se sob o domínio de violenta emoção, decide reagir agressivamente e acaba matando-a. Exemplo: o filho maior de idade, depois de ser humilhado injustamente pelo pai, começa a agredi-lo em situação de descontrole. Assume o risco de, com socos e pontapés, matá-lo, daí resultando a morte do genitor.
Com base no tipo fundamental descrito no caput do art. 121 do Código Penal, o legislador a ele agrega circunstâncias que elevam em abstrato a pena do homicídio. Formam-se no § 2.º do art. 121 as hipóteses de homicídio qualificado. A pena do homicídio simples – 6 (seis) a 20 (vinte) anos de reclusão – é sensivelmente majorada. Passa a ser de 12 (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão.
O homicídio qualificado é crime hediondo, qualquer que seja a qualificadora. É o que consta do art. 1.º, inciso I, in fine, da Lei 8.072/1990.
Importante destacar que, ao entrar em vigor, a Lei 8.072/1990, em sua redação original, não previa o homicídio qualificado, nem o homicídio simples praticado em atividade típica de grupo extermínio, ainda que por um só agente, como crimes hediondos. Essa modificação ocorreu em razão da Lei 8.930/1994 (Lei Glória Perez). Atualmente o homicídio qualificado e o homicídio simples praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por um só agente, consumados ou tentados, revestem-se da hediondez.
O § 2.º do art. 121 do Código Penal contém cinco incisos e, por corolário, cinco qualificadoras. Esses incisos, por sua vez, alojam quatro espécies distintas de qualificadoras. Os incisos I e II relacionam-se aos motivos do crime. Os incisos III e IV dizem respeito aos meios e modos de execução do homicídio. Finalmente, o inciso V refere-se à conexão, caracterizada por uma especial finalidade almejada pelo agente.
As qualificadoras previstas nos incisos I, II e V são de índole subjetiva. Pertencem à esfera interna do agente, e não ao fato. Em caso de concurso de pessoas, não se comunicam aos demais coautores ou partícipes, em face da regra delineada pelo art. 30 do Código Penal. Se, exemplificativamente, “A” e “B” cometem um homicídio, agindo aquele por motivo fútil, circunstância ignorada e desvinculada deste, somente o primeiro suportará a qualificadora.
Por outro lado, as qualificadoras descritas pelos incisos III e IV (meios e modos de execução) são de natureza objetiva, por serem atinentes ao fato praticado, e não ao aspecto pessoal do agente. Destarte, comunicam-se no concurso de pessoas, desde que tenham ingressado na esfera de conhecimento de todos os envolvidos. É imprescindível a ciência de todos os coautores e partícipes sobre a circunstância qualificadora, para afastar a responsabilidade penal objetiva. Exemplo: “A” e “B” matam “C” com emprego de fogo. A ambos será imputado o homicídio qualificado.
Importante ressaltar que as qualificadoras de natureza objetiva devem integrar o dolo do responsável pelo homicídio, sob pena de configuração da responsabilidade penal objetiva. Com efeito, o dolo deve abranger todos os elementos objetivos da conduta criminosa, aí incluindo-se as qualificadoras de natureza objetiva. Assim, exemplificativamente, não basta valer-se de meio cruel para a prática do delito. O agente deve saber que está agindo de forma cruel.
Confira-se, a propósito, a apresentação esquematizada do assunto:
O legislador fez uso da interpretação analógica. O dispositivo encerra uma fórmula casuística (“mediante paga ou promessa de recompensa”) seguida de uma fórmula genérica (“ou por outro motivo torpe”). Deixa nítido que a paga e a promessa de recompensa encaixam-se no conceito de motivo torpe, mas que outras circunstâncias de igual natureza, impossíveis de serem definidas taxativamente pela lei em abstrato, são de provável ocorrência prática.
Paga e promessa de recompensa caracterizam o homicídio mercenário ou homicídio por mandato remunerado, motivado pela cupidez, isto é, pela ambição desmedida, pelo desejo imoderado de riquezas.
Na paga o recebimento é prévio. O executor recebe a vantagem e depois pratica o homicídio. Incide a qualificadora se o sujeito recebe somente parte do valor acertado com o mandante. Já na promessa de recompensa o pagamento é convencionado para momento posterior à execução do crime. Nesse caso, não é necessário que o sujeito efetivamente receba a recompensa. É suficiente a sua promessa. E também não se exige tenha sido a recompensa previamente definida, podendo ficar à escolha do mandante.
O pagamento, em ambos os casos, pode ser em dinheiro ou qualquer outra espécie de bem, tal como uma joia ou um automóvel. E, por se tratar de crime contra a vida, e não contra o patrimônio, a vantagem não precisa obrigatoriamente ser econômica, como é o caso da prestação de favores sexuais, promessa de casamento etc.
Cuida-se de crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário. Devem existir ao menos duas pessoas: o mandante (quem paga ou promete a recompensa) e o executor.
Aplica-se a qualificadora, imediatamente, ao executor, pois é ele quem atua movido pela paga ou pela promessa de recompensa. Questiona-se: A qualificadora é também aplicada ao mandante?
Não. Por se tratar de circunstância manifestamente subjetiva, não se comunica ao partícipe (como o mandante) nem a eventual coautor. É o que se extrai do art. 30 do Código Penal. Contudo, se a situação concreta revelar que o motivo que levou o mandante a encomendar o homicídio também é torpe, incidirá a qualificadora, não em razão da paga ou promessa de recompensa, mas sim da torpeza genérica. Ressalte-se, porém, o entendimento diverso de Nélson Hungria, seguido por diversos penalistas pátrios, para quem “a incomunicabilidade das circunstâncias pessoais cessa quando estas entram na própria noção do crime. No homicídio qualificado, por exemplo, as qualificativas de caráter pessoal, ex capite executoris, se estendem aos partícipes”.22
Com o merecido respeito, essa posição não tem sustentação legal, uma vez que o art. 30 do Código Penal não contempla essa hipótese: tratamento diferenciado para circunstâncias subjetivas que integram o conceito do crime. Com efeito, elementares e circunstâncias são dados distintos que, por esse motivo, receberam disciplina jurídica diversa pelo legislador.
Convém ainda observar que, na prática, é possível ser o mandante condenado por homicídio privilegiado e o executor, por homicídio qualificado. Veja-se a situação em que um pai, ao notar que sua filha fora estuprada, contrata um pistoleiro. Este, em obediência à ordem, mata o autor do crime sexual. Os jurados, ao votarem os quesitos, reconhecem o privilégio para o mandante, e, assim agindo, impedem para ele a discussão sobre a qualificadora. Com efeito, a causa de diminuição da pena é votada previamente à qualificadora (CPP, art. 483, § 3.º, incs. I e II), e, se afirmada sua presença, impede a votação do motivo torpe. Em seguida, condenam o executor por homicídio qualificado.
Motivo torpe é o vil, repugnante, abjeto, moralmente reprovável. Exemplo: matar um parente para ficar com sua herança. Fundamenta-se a maior quantidade de pena pela violação do sentimento comum de ética e de justiça.
A vingança não caracteriza automaticamente a torpeza. Será ou não torpe, dependendo do motivo que levou o indivíduo a vingar-se de alguém, o qual reclama avaliação no caso concreto.23 Exemplos:
(1) Não é torpe a conduta do marido que mata o estuprador de sua esposa. Ao contrário, trata-se de relevante valor moral (privilégio), nos moldes do art. 121, § 1.º, do Código Penal; e
(2) É torpe o ato de um traficante consistente em matar outro vendedor de drogas que havia, no passado, dominado o controle do tráfico na favela então controlada pelo assassino.
O ciúme não é considerado motivo torpe. Quem mata por amor, embora criminoso, não pode ser taxado de vil ou ignóbil, e tratado à semelhança de quem mata por questões repugnantes, tais como rivalidade profissional, pagamento para a prática do homicídio etc.24
Motivo fútil é o insignificante, de pouca importância, completamente desproporcional à natureza do crime praticado. Exemplo: Age com motivo fútil o marido que mata a esposa por não passar adequadamente uma peça do seu vestuário. Fundamenta-se a elevação da pena na resposta estatal em razão do egoísmo, da atitude mesquinha que alimenta a atuação do responsável pela infração penal.
O motivo fútil, revelador de egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até a insensibilidade moral, deve ser apreciado no caso concreto, de acordo com o id quod plerumque accidit, ou seja, levando em conta as máximas da experiência, os fenômenos que normalmente acontecem na vida humana.
A ausência de motivo não deve ser equiparada ao motivo fútil, pois todo crime tem sua motivação. Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Na hipótese em apreço, a incidência da qualificadora prevista no art. 121, § 2º, inciso II, do Código Penal, é manifestamente descabida, porquanto motivo fútil não se confunde com ausência de motivos, de tal sorte que se o crime for praticado sem nenhuma razão, o agente somente poderá ser denunciado por homicídio simples.25
Destarte, o desconhecimento acerca do móvel do agente não deve ser colocado no mesmo nível do motivo de somenos importância. Há, todavia, adeptos de posição contrária, os quais alegam que, se um motivo ínfimo justifica a elevação da pena, com maior razão deve ser punida mais gravemente a infração penal imotivada.
O ciúme não pode ser enquadrado como motivo fútil. Esse sentimento, que destrói o equilíbrio do ser humano e arruína sua vida, não deve ser considerado insignificante ou desprezível. Para o Supremo Tribunal Federal:
O mesmo não ocorre no tocante à futilidade do motivo: ainda que não baste a excluir a criminalidade do fato ou a culpabilidade do agente, a vingança da mulher enciumada, grávida e abandonada não se pode tachar de insignificante.26
A embriaguez, por sua vez, é incompatível com o motivo fútil. O embriagado não tem pleno controle do seu modo de agir, afastando assim a futilidade da força que o impele a transgredir o Direito Penal. Mas há quem diga que, em face da norma prevista no art. 28, inciso II, do Código Penal (embriaguez voluntária ou culposa não exclui a imputabilidade penal), essa qualificadora pode ser aplicada ao ébrio.
Anote-se ainda que motivo fútil e motivo injusto não se confundem: todo crime é injusto, pois o sujeito passivo não é obrigado a suportá-lo, embora nem sempre seja fútil.
Ressalte-se que, por absoluta incompatibilidade, um motivo não pode ser simultaneamente fútil e torpe. Uma motivação exclui a outra. É fútil ou torpe, obrigatoriamente.
Em regra, não se aplica essa qualificadora quando a razão do crime é um entrevero, uma acirrada discussão entre autor e vítima, ainda que todo esse incidente tenha surgido em decorrência de uma causa desproporcional ao resultado produzido. O motivo do crime seria a intensa troca de impropérios e ofensas, e não aquele que ensejou o início da discussão. Exemplo: Depois de discutirem futebol, “A” e “B” passam a proferir diversos palavrões, um contra o outro. Em seguida, “A” cospe na face de “B”, que, de imediato, saca um revólver e contra ele atira, matando-o. Nada obstante o início do problema seja fútil (discussão sobre futebol), a razão que levou à prática da conduta homicida não apresenta essa característica.27
Como leciona Euclides Custódio da Silveira:
A futilidade do motivo deve prender-se imediatamente à conduta homicida em si mesma: quem mata no auge de uma discussão oriunda de motivo fútil, já não o faz somente por este motivo imediato, de que se originou aquela.28
Dessa lição extrai-se que existem duas espécies de futilidade: a imediata ou direta, que qualifica o homicídio, e a mediata ou indireta, que não o qualifica.
Meio insidioso é o que consiste no uso de estratagema, de perfídia, de uma fraude para cometer um crime sem que a vítima o perceba. Exemplo: retirar o óleo de direção do automóvel para provocar um acidente fatal contra seu proprietário.
Meio cruel é o que proporciona à vítima um intenso e desnecessário sofrimento físico ou mental, quando a morte poderia ser provocada de forma menos dolorosa. Exemplo: matar alguém lentamente com inúmeros golpes de faca, com produção inicial dos ferimentos em região não letal do seu corpo.
Não incide a qualificadora quando o meio cruel é empregado após a morte da vítima, pois a crueldade que caracteriza a qualificadora é somente aquela utilizada para matar. O uso de meio cruel após a morte caracteriza, em regra, o crime de homicídio (simples ou com outra qualificadora, que não a do meio cruel), em concurso com o crime de destruição, total ou parcial, de cadáver (CP, art. 211).
A reiteração de golpes isoladamente considerada não configura a qualificadora do meio cruel. Depende da produção de intenso e desnecessário sofrimento à vítima.
Meio de que possa resultar perigo comum é aquele que expõe não somente a vítima, mas também um número indeterminado de pessoas a uma situação de probabilidade de dano. Exemplos:
(1) diversos tiros certeiros contra a vítima quando se encontrava em movimentada via pública; e
(2) conduzir um veículo automotor em via pública a 165 km/h.29
Pelo fato de a redação desse inciso ter sido formulada de forma hipotética (“meio de que possa resultar perigo comum”), entende-se que para a incidência da qualificadora basta a possibilidade de o meio de execução utilizado pelo agente provocar perigo a um número indeterminado de pessoas. Em suma, não se reclama prova da situação de perigo a outras pessoas.
Contudo, se restar provado que o meio de execução, além de dirigir-se à morte da vítima, também causou perigo a um número indeterminado de pessoas, ao agente serão imputados os crimes de homicídio qualificado e de perigo comum (CP, arts. 250 a 259), em concurso formal, nos termos do art. 70 do Código Penal.30
O legislador mais uma vez utilizou-se da interpretação analógica. Depois da fórmula casuística (“com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura”) encerra uma fórmula genérica (“ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum”). Portanto, esse “outro meio” deve ter natureza semelhante àqueles previstos na parte exemplificativa.
Há, portanto, três gêneros de qualificadoras: meio insidioso, meio cruel e meio de que possa resultar perigo comum. E tais gêneros dividem-se em cinco espécies: veneno, fogo, explosivo, asfixia e tortura.
Veneno é a substância de origem química ou biológica capaz de provocar a morte quando introduzida no organismo humano.
Determinadas substâncias, inócuas para as pessoas em geral, podem ser tratadas como veneno quando, em particular no organismo da vítima individualmente considerada, sejam aptas a levar à morte, em razão de alguma doença ou como resultado de eventual reação alérgica. Exemplos:
(1) injetar glicose em diabético; ou
(2) ministrar anestésicos em alérgico de modo a nele provocar choque anafilático.
Destarte, o conceito genérico de veneno pode, de acordo com o caso concreto, ser ampliado para hipóteses específicas. Não se olvide, porém, que essa extensão conceitual somente é possível quando o autor do homicídio conhecer a incompatibilidade entre o organismo da vítima e a substância por ele ministrada, para afastar a responsabilidade penal objetiva.
Quando empregado de forma sub-reptícia, isto é, sem o conhecimento do ofendido, o veneno representará meio insidioso. Exemplo: colocar veneno no chá da vítima. De outro lado, se for utilizado com violência, proporcionando ao ofendido um sofrimento exagerado, estará caracterizado o meio cruel. Exemplo: amarrar a vítima e injetar o veneno em seu sangue.
O homicídio praticado com emprego de veneno é denominado de venefício, e depende de prova pericial (exame toxicológico) para comprovar a existência da qualificadora.
Fogo é o resultado da combustão de produtos inflamáveis, da qual decorrem calor e luz. Trata-se, em geral, de meio cruel. Exemplo: queimar a vítima até a morte. Todavia, se do seu emprego um número indeterminado de pessoas puder ser exposto a perigo de dano, o crime será qualificado pelo meio de que possa resultar perigo comum. Exemplo: matar uma pessoa mediante o incêndio de seu imóvel, situado ao lado de diversas outras moradias.
Explosivo é o produto com capacidade de destruir objetos em geral, mediante detonação e estrondo. Caracteriza, normalmente, meio de que possa resultar perigo comum. Exemplo: explodir o automóvel da vítima que trafegava em movimentada via pública. Nada impede, porém, a configuração do meio cruel. Exemplo: amarrar a vítima em uma árvore e prender uma bomba ao seu corpo, de forma a matá-la com a força da explosão.
Nesses dois meios de execução – fogo e explosivo –, pode acontecer de serem destruídas, inutilizadas ou deterioradas coisas alheias. No conflito aparente de normas penais, entretanto, o crime de dano qualificado pelo emprego de substância inflamável ou explosiva será afastado, por tratar-se de hipótese de subsidiariedade expressa. De fato, o art. 163, parágrafo único, inciso II, do Código Penal é peremptório ao determinar a ocorrência do dano qualificado somente “se o fato não constitui crime mais grave”. E, evidentemente, o homicídio qualificado pelo emprego de fogo ou explosivo é delito mais grave.
Asfixia é a supressão da função respiratória, com origem mecânica ou tóxica.
A asfixia mecânica pode ocorrer pelos seguintes meios:
a) estrangulamento: constrição do pescoço da vítima por meio de instrumento conduzido pela força, do agente ou de outra fonte qualquer, desde que não seja o próprio peso do ofendido (exemplos: utilização de corda ou arame apertado pelo homicida). Se for utilizado o peso da vítima, será caso de enforcamento;
b) esganadura: aperto do pescoço da vítima provocado diretamente pelo agressor, que se vale do seu próprio corpo (exemplos: mãos, pés, antebraços etc.);
c) sufocação: emprego de objetos que vedam o ingresso de ar pelo nariz ou pela boca da vítima (exemplo: colocação de um saco plástico na garganta do ofendido);
d) enforcamento: constrição do pescoço da vítima provocada pelo seu próprio peso, em razão de estar envolvido por uma corda ou outro aparato de natureza similar (exemplo: forca);
e) afogamento: inspiração excessiva de líquidos, não se exigindo a imersão da vítima (exemplos: afundar alguém em uma piscina ou fazê-la ingerir água até a morte);
f) soterramento: submersão em meio sólido (exemplo: enterrar uma pessoa com vida); e
g) imprensamento: impedimento da função respiratória pela colocação de peso sobre o diafragma da vítima, de modo que, em decorrência desse peso ou da exaustão por ele provocada, ela não mais seja capaz de efetuar o movimento respiratório. Esse meio é também conhecido como sufocação indireta.
Por sua vez, a asfixia tóxica pode verificar-se pelas seguintes formas:
a) uso de gás asfixiante ou inalação. Exemplo: prender a vítima em um ambiente fechado e abrir a torneira do gás de cozinha; e
b) confinamento: colocação da vítima em recinto fechado em que não há renovação do oxigênio por ela consumido. E, atenção, se a vítima for colocada em um caixão e enterrada viva, a causa da morte será a asfixia tóxica por confinamento, e não a asfixia mecânica por soterramento.
A asfixia pode constituir meio cruel (exemplos: afogamento ou soterramento, entre outros) ou insidioso (exemplo: uso de gás tóxico, inalado pela vítima sem notá-lo).
Tortura é “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”.31
A tortura, que pode ser física ou moral, constitui-se nitidamente em meio cruel. E, com base no conceito mencionado, o art. 1.º da Lei 9.455/1997 define o crime de tortura:
Art. 1.º Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
§ 1.º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2.º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
E o § 3.º do art. 1.º da Lei 9.455/1997 prevê uma hipótese de crime qualificado pelo resultado: tortura com resultado morte, com pena de reclusão de oito a dezesseis anos.
Essa situação cria uma polêmica. Com efeito, em um contexto no qual coexistam a morte da vítima e a tortura, quando incidirá a figura do Código Penal e quando deverá ser aplicada a figura prevista no art. 1.º, § 3.º, da Lei de Tortura?
O homicídio qualificado pela tortura (CP, art. 121, § 2.º, inc. III) caracteriza-se pela morte dolosa. O agente utiliza a tortura (meio cruel) para provocar a morte da vítima, causando-lhe intenso e desnecessário sofrimento físico ou mental. Depende de dolo (direto ou eventual) no tocante ao resultado morte. Esse crime é de competência do Tribunal do Júri, e apenado com 12 (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão.
Já a tortura com resultado morte (Lei 9.455/1997, art. 1.º, § 3.º) é crime essencialmente preterdoloso. O sujeito tem o dolo de torturar a vítima, e da tortura resulta culposamente sua morte. Há dolo na conduta antecedente e culpa em relação ao resultado agravador. Essa conclusão decorre da pena cominada ao crime: 8 (oito) a 16 (dezesseis) anos de reclusão. Com efeito, não seria adequada uma morte dolosa, advinda do emprego de tortura, com pena máxima inferior ao homicídio simples. Além disso, esse crime é da competência do juízo singular.
A diferença repousa, destarte, no elemento subjetivo. Se o uso da tortura tinha como propósito a morte da vítima, o crime será de homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2.º, inc. III). Por sua vez, se a finalidade almejada pelo agente era exclusivamente a tortura, mas dela resultou culposamente a morte da vítima, aplicar-se-á o tipo penal delineado pelo art. 1.º, § 3.º, da Lei 9.455/1997.
E ainda é possível a ocorrência de uma terceira hipótese. Imagine o seguinte exemplo: “A” constrange “B”, com emprego de violência, causando-lhe sofrimento físico, para dele obter uma informação. “A”, em seguida, com a finalidade de assegurar a impunidade desse crime, mata “B”. Há dois crimes: tortura simples (Lei 9.455/1997, art. 1.º, inc. I, a) e homicídio qualificado pela conexão (CP, art. 121, § 2.º, inc. V), em concurso material. Não incide, no homicídio, a qualificadora da tortura, pois não foi tal meio de execução que provocou a morte da vítima.
Nessa hipótese, o homicídio é qualificado pelo modo de execução. E mais uma vez o legislador valeu-se da interpretação analógica. Depois de descrever uma fórmula casuística (“traição, emboscada ou dissimulação”), encerra uma fórmula genérica (“ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”). Dessa forma, não apenas a traição, a emboscada e a dissimulação qualificam o crime, por dificultarem ou impossibilitarem a defesa da vítima. Qualquer outro modo também pode acarretar na elevação da pena em abstrato, desde que sejam semelhantes àqueles e dificultem ou impossibilitem a defesa do ofendido.32
A traição pode ser física (exemplo: atirar pelas costas) ou moral (atrair a vítima para um precipício). Nessa qualificadora, o agente se vale da confiança que o ofendido nele previamente depositava para o fim de matá-lo em momento em que ele se encontrava desprevenido e sem vigilância. Por esse motivo, não será aplicada se, no caso concreto, a vítima teve tempo para fugir. E também não será cabível essa qualificadora na hipótese de ataque frontal e de repentino, que poderá caracterizar a surpresa (meio genérico que dificulta a defesa do ofendido).
Ressalte-se que na traição a relação de confiança preexiste ao crime e o sujeito dela se aproveita para executar o delito. De fato, se o agente, para se aproximar da vítima, faz nascer esse vínculo de confiança, a qualificadora será a da dissimulação.
O homicídio qualificado pela traição é doutrinariamente conhecido como homicidium proditorium.33
Emboscada é a tocaia. O agente aguarda escondido, em determinado local, a passagem da vítima, para matá-la quando ali passar. A emboscada pode ser praticada tanto em área urbana como em área rural. O homicídio por ela qualificado é também conhecido como homicidium ex-insidiis (“agguato”, dos italianos, ou “guet-apens”, dos franceses).34
Dissimulação é a atuação disfarçada, hipócrita, que oculta a real intenção do agente. O agente aproxima-se da vítima para posteriormente matá-la, valendo-se das facilidades proporcionadas pelo seu modo de agir. A dissimulação pode ser material (emprego de algum aparato, tal como uma farda policial) ou moral (demonstração de falsa amizade ou simpatia pela vítima, para, exemplificativamente, levá-la a um local ermo e matá-la).
Finalmente, outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima é uma fórmula genérica indicativa de meio análogo à traição, à emboscada e à dissimulação. Como exemplos destacam-se a conduta de matar a vítima com surpresa, enquanto dorme, quando se encontra em estado de embriaguez, em manifesta superioridade numérica de agentes (linchamentos) etc.
Cumpre destacar que a atitude inesperada é inerente ao crime de homicídio, pois do contrário estaria configurado o duelo. Destarte, a qualificadora depende de uma dose especial de imprevisão, necessária e suficiente para dificultar ou impossibilitar a defesa do ofendido. Para Guilherme de Souza Nucci: “É indispensável a prova de que o agente teve por propósito efetivamente surpreender a pessoa visada, enganando-a, impedindo-a de se defender ou, ao menos, dificultando-lhe a reação. É a presença do elemento subjetivo abrangente”.35
A surpresa é incompatível com o dolo eventual, pois o sujeito deve dirigir sua vontade em uma única direção: matar a vítima de modo imprevisível. Cumpre destacar que não ocorre surpresa se o crime foi precedido de desavença (vias de fato ou calorosa discussão).36
A superioridade de armas, ou então o emprego de arma contra vítima desarmada, por si só, não qualifica o homicídio. Exige-se também a surpresa no ataque.
Cuida-se de qualificadora de natureza subjetiva, relacionada à motivação do agente, que pratica um homicídio para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro delito. A doutrina convencionou chamá-la de conexão, em face da ligação entre dois ou mais crimes.
O inciso V do § 2.º do art. 121 do Código Penal admite duas espécies de conexão: teleológica e consequencial.
Na conexão teleológica o homicídio é praticado para assegurar a execução de outro crime. O sujeito primeiro mata alguém e depois pratica outro delito. Exemplo: Matar o segurança de um empresário para em seguida sequestrá-lo.
Veja-se que, pela redação legal, não é obrigatório que o sujeito realmente assegure a execução de outro delito. Basta essa intenção.
O agente deve responder por dois crimes: pelo homicídio qualificado e pelo crime cuja execução se buscava assegurar, em concurso material.
Se o sujeito cometer o homicídio com o propósito de assegurar a execução de outro delito, e depois desistir de praticar este último, terá incidência a qualificadora. Considera-se, em consonância com a teoria da atividade adotada pelo art. 4.º do Código Penal, o tempo do crime. E, nesse momento, estava presente a qualificadora, pois o homicídio foi cometido para assegurar a execução de outro delito.
Entretanto, não tem cabimento a qualificadora quando o homicida desejava assegurar a execução de uma contravenção penal, pois o dispositivo legal fala apenas em crime (princípio da taxatividade e vedação da analogia in malam partem). Na mesma linha de raciocínio, não incide a qualificadora quando o agente buscava assegurar a execução de um crime impossível37 ou de um crime putativo, pois nos dois casos não há falar propriamente em crime, mas em fato atípico. Em ambos os casos, porém, é possível a configuração das qualificadoras do motivo torpe ou do motivo fútil.
Em situações expressamente previstas em lei, há crimes específicos e que afastam a qualificadora do homicídio quando o sujeito elimina a vida de alguém para assegurar a execução de outro crime. É o que ocorre, exemplificativamente, no latrocínio, em que o agente mata para roubar a vítima (CP, art. 157, § 3.º, in fine): responderá por esse delito, e não por roubo em concurso com homicídio. Resolve-se o conflito aparente de normas penais com o princípio da especialidade.
Em síntese, o “outro crime” referido pelo inciso V do § 2.º do art. 121 do Código Penal não forma unidade complexa com o homicídio. Há simples conexão entre eles, aplicando-se cumulativamente as penas respectivas, e não somente a do homicídio qualificado. Não se trata de crime complexo, como no latrocínio, em que há unificação de penas.
Conexão consequencial, por sua vez, é a qualificadora em que o homicídio é cometido para assegurar a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime. O sujeito comete um crime e só depois o homicídio.
Na ocultação o agente pretende impedir que se descubra a prática de outro crime. Exemplo: depois de furtar um estabelecimento comercial, o larápio, que estava encapuzado, mata uma testemunha que presenciara a prática do crime.
Na impunidade, por sua vez, o agente deseja evitar a punibilidade do crime anterior. Exemplo: estuprar uma mulher e depois matá-la para não ser reconhecido como o autor do crime contra a liberdade sexual.
Fica nítida, portanto, a diferença entre ocultação e impunidade. De fato, aquela diz respeito ao crime, pois o agente almeja impedir a ciência acerca da sua prática. Essa última, por sua vez, relaciona-se ao sujeito, já que o crime é conhecido, mas busca-se evitar a identificação do seu responsável.
Em ambos os casos (ocultação e impunidade) não é necessário tenha sido o homicida o responsável pelo outro crime, que pode ter sido praticado por terceiro (um parente ou amigo, por exemplo).
Finalmente, a vantagem é tudo o que se auferiu com o outro crime, aí se compreendendo seu produto, seu preço e também seu proveito, que pode ser material ou moral. Exemplo: matar o coautor de extorsão mediante sequestro para ficar com todo o valor recebido a título de resgate.
Nessa qualificadora, em todas as suas hipóteses, é irrelevante o tempo decorrido entre o homicídio e o outro crime. Dessa forma, incide a conexão se um delito tiver sido cometido há muito tempo e, anos depois, o agente matar uma testemunha até então desconhecida e que iria contra ele depor.
E, como se extrai do art. 108, 2.ª parte, do Código Penal, “nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não impede, quanto aos outros, a agravação da pena resultante da conexão”. Assim, mesmo se o crime anterior já tiver sido atingido pela prescrição, a título de exemplo, ainda assim a pena do homicídio será aumentada.
Além das situações expressamente previstas em lei (conexão teleológica e consequencial), a doutrina criou a figura da conexão ocasional, que estaria configurada quando um crime é cometido em face da ocasião proporcionada pela prática de outro delito. Exemplo: depois de furtar uma loja, o agente decide matar seu proprietário, em razão de desavenças que tiveram no passado.
A conexão ocasional não qualifica o homicídio, pois não foi prevista em lei. Raciocínio contrário ofenderia o princípio da reserva legal. Opera-se unicamente o concurso material entre o homicídio e o outro crime.
Discute-se se é possível a configuração de uma figura híbrida de homicídio, simultaneamente privilegiado e qualificado. Formaram-se, basicamente, duas posições sobre o assunto. Vejamos.
1.ª posição: Não é possível o homicídio privilegiado-qualificado
Sustenta ser impossível essa conjugação, pois a causa de diminuição de pena não se aplica ao homicídio qualificado. A interpretação geográfica ou topográfica da figura do privilégio (§ 1.º) não autoriza sua incidência no tocante às qualificadoras (§ 2.º), mas somente ao caput do art. 121 do Código Penal. Além disso, aplicando-se analogicamente o art. 67 do Código Penal, conclui-se ser o privilégio uma circunstância preponderante em relação às qualificadoras, afastando-as. É, entre outras, a posição de Euclides Custódio da Silveira.38
2.ª posição: É possível o homicídio privilegiado-qualificado
Essa posição admite a compatibilidade entre o privilégio e as qualificadoras, desde que sejam de natureza objetiva.
Com efeito, o homicídio doloso é crime de competência do Tribunal do Júri. E, na ordem de elaboração dos quesitos, deve o juiz-presidente, desde que os jurados tenham decidido pela condenação, formular inicialmente quesitos sobre causas de diminuição de pena alegadas pela defesa, e, só após, proceder à votação dos quesitos inerentes às qualificadoras ou causas de aumento da pena (CPP, art. 483, § 3.º, incs. I e II). Destarte, o privilégio (causa de diminuição da pena) é votado previamente às qualificadoras.
Logo, se os jurados reconhecerem o privilégio, sempre de natureza subjetiva, o juiz, em respeito ao princípio constitucional da soberania dos veredictos, estará proibido de indagar aos jurados acerca de qualificadoras de natureza subjetiva que tenham sido confirmadas na pronúncia. Seria ilógico e contraditório, por exemplo, considerar um homicídio simultaneamente cometido por motivo de relevante valor moral e, posteriormente, indagar aos jurados se esse motivo também é torpe ou fútil. Esta é a posição do Supremo Tribunal Federal:
A jurisprudência do STF é assente no sentido da conciliação entre homicídio objetivamente qualificado e, ao mesmo tempo, subjetivamente privilegiado. Dessa forma, salientou que, tratando-se de circunstância qualificadora de caráter objetivo (meios e modos de execução do crime), seria possível o reconhecimento do privilégio, o qual é sempre de natureza subjetiva.39
Anote-se que o § 2.º do art. 121 do Código Penal prevê cinco espécies de qualificadoras. Dessas, três são de índole subjetiva, relacionadas aos motivos do crime (incisos I, II e V), enquanto duas outras são de natureza objetiva, ligadas aos meios e modos de execução do crime (incisos III e IV).
Em resumo, o privilégio é incompatível com as qualificadoras subjetivas (incisos I, II e V), mas compatível com as qualificadoras objetivas (incisos III e IV).
Essa é a regra geral, atualmente dominante em sede doutrinária e jurisprudencial.
Mas cuidado! Há situações em que uma qualificadora objetiva é incompatível com a figura do privilégio. O decisivo é o caso concreto, sempre guiado pelo bom senso. Imagine-se, por exemplo, um homicídio praticado sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (CP, art. 121, § 1.º, in fine), mediante emboscada (CP, art. 121, § 2.º, inc. IV). Trata-se de hipótese inadmissível, porque a emboscada não se coaduna com o domínio de violenta emoção. Em igual sentido a lição de Dirceu de Mello:
Inexpugnável é a contradição entre o homicídio privilegiado e a qualificadora do uso de recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido. Isto porque, naquele, a execução é subitânea, imprevista, tempestuosa, circunstâncias que não se compadecem com os temperamentos racionais que ditam o método ou o meio de execução sempre precedidos de processo mental ordenado.40
Aceita a figura do homicídio privilegiado-qualificado, questiona-se: Esse crime é hediondo?
Não, de acordo com o entendimento dominante. Fundamenta-se esse raciocínio na redação do art. 1.º, inciso I, da Lei 8.072/1990, que indicou como hediondos somente o homicídio simples, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por um só agente (caput), e o homicídio qualificado (§ 2.º), não fazendo referência alguma ao privilegiado (§ 1.º). Se não bastasse, as benesses do privilégio afastam a gravidade da hediondez.41
Mas há quem sustente posição contrária. Para essa corrente, o homicídio híbrido é crime hediondo, pois a qualificadora lhe confere inevitavelmente esse perfil, enquanto o privilégio limita-se, unicamente, a diminuir a pena de 1/6 a 1/3. Seria um homicídio qualificado e hediondo, embora com a pena reduzida.
Na hipótese de estarem presentes duas ou mais qualificadoras (exemplo: homicídio qualificado pelo motivo torpe, pelo meio cruel e pelo recurso que dificultou a defesa do ofendido), o magistrado deve utilizar uma delas para qualificar o crime, e as demais como agravantes genéricas, na segunda fase, pois as qualificadoras do homicídio encontram correspondência no art. 61, inciso II, a, b, c e d, do Código Penal. É a posição do Supremo Tribunal Federal:
Homicídio duplamente qualificado. Ao contrário do que ocorre com o concurso das causas propriamente de aumento da pena – as em que a pena é acrescida de um tanto a tanto – e em que elas devem ser consideradas todas como tal para que o aumento se faça, na terceira etapa do método trifásico, acima do acréscimo mínimo em virtude do maior grau de reprovabilidade da conduta do agente, quando o concurso é de qualificadoras em sentido estrito – e isso se dá quando se eleva a pena cominada em abstrato tanto no mínimo quanto no máximo –, para que o crime seja qualificado basta uma delas, devendo as outras (ou apenas a outra), que não podem ser tidas como causas de aumento para serem consideradas nessa terceira etapa do método trifásico, ser levadas em conta como circunstâncias agravantes genéricas, se cabíveis, ou residualmente como circunstâncias judiciais.42
Mas também há posicionamentos sustentando que as demais qualificadoras devem atuar como circunstâncias judiciais desfavoráveis, influenciando na dosimetria da pena-base (1.ª fase). E, finalmente, há entendimento minoritário no sentido de que, na pluralidade de qualificadoras, somente uma pode ser empregada pelo julgador. Desprezam-se as demais, pois a função a elas correlata (aumentar a pena em abstrato) já foi desempenhada.
A circunstância do parentesco não qualifica o homicídio, constituindo mera agravante genérica (CP, art. 61, inc. II, e). Destarte, a conduta de matar o próprio pai (parricídio), a mãe (matricídio), o cônjuge varão (conjucídio), o cônjuge virago (uxoricídio), o filho (filicídio), o irmão (fratricídio), embora mais reprovável sob os prismas ético e moral, não qualifica o homicídio.
Todas as qualificadoras do homicídio são compatíveis com a forma tentada.
Em regra, as qualificadoras podem ser realizadas com dolo direto ou eventual. Algumas delas, porém, não se coadunam com o dolo eventual. É o que ocorre com o motivo torpe, o motivo fútil e a emboscada. Esta é a posição consolidada em sede doutrinária.
Entretanto, recentemente o Supremo Tribunal Federal concluiu a possibilidade de coexistência do dolo eventual com as qualificadoras do motivo torpe ou do motivo fútil no crime de homicídio:
Concluiu-se pela mencionada compossibilidade, porquanto nada impediria que o paciente – médico –, embora prevendo o resultado e assumindo o risco de levar os seus pacientes à morte, praticasse a conduta motivado por outras razões, tais como torpeza ou futilidade.43
De igual modo, o Superior Tribunal de Justiça também decidiu pela compatibilidade, no crime de homicídio, entre o dolo eventual e o motivo fútil.44
A premeditação não qualifica o homicídio por falta de amparo legal. Em alguns casos, inclusive, a preordenação criminosa, antes de revelar uma conduta mais reprovável, demonstra resistência do agente à prática delituosa. Em qualquer hipótese, entretanto, deve funcionar como circunstância judicial para dosimetria da pena-base, nos termos do art. 59, caput, do Código Penal.
O art. 121, § 4.º, 2.ª parte, do Código Penal prevê duas causas de aumento de pena aplicáveis exclusivamente ao homicídio doloso, em qualquer de suas modalidades: simples, privilegiado ou qualificado, consumado ou tentado. São circunstâncias legais, especiais, de natureza objetiva e de aplicação obrigatória. Ensejam o surgimento do denominado homicídio doloso circunstanciado.
Critica-se a inserção dessas causas de aumento da pena nesse dispositivo, localizado em parágrafo que cuida inicialmente da exasperação da pena no homicídio culposo. Além disso, encontra-se situado entre os §§ 3.º e 5.º, inerentes à figura culposa do delito.
Dizem respeito à idade da vítima ao tempo do crime: menor de 14 ou maior de 60 anos de idade. Esse raciocínio decorre da adoção da teoria da atividade pelo art. 4.º do Código Penal. Destarte, é imprescindível para incidência de cada uma das causas de aumento que a vítima tenha suportado a conduta criminosa quando possuía menos de 14 anos ou mais de 60 anos de idade.
Portanto, se o ofendido foi atacado quando tinha menos de 14 anos, sobrevindo a morte depois de completada esta idade, será aplicável a causa de aumento. Por outro lado, se ao tempo do crime a vítima tinha menos de 60 anos de idade, mas vem a falecer quando ultrapassada a mencionada idade, não incidirá o aumento da pena.
A causa de aumento de pena deve ser compreendida pelo dolo do agente. Logo, o desconhecimento da idade ou o erro de tipo sobre tal circunstância impedem sua aplicação. Exemplo: “A” mata “B”, de 13 anos de idade, acreditando sinceramente ter a vítima 15 anos de idade. Não incide a causa de aumento da pena.
Recorde-se que, em face da proibição da dupla punição pelo mesmo fato (ne bis in idem), a configuração da causa de aumento de pena afasta as agravantes genéricas delineadas pelo art. 61, inciso II, h, do Código Penal, no tocante ao crime cometido contra criança ou maior de 60 anos.
Vejamos cada uma delas.
a) Crime praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos
Trata-se de norma instituída pela Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, e que encontra fundamento no art. 227, § 4.º, da Constituição Federal: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.
Com base na regra constitucional, percebe-se que o legislador incidiu em grave equívoco. Deveria ter criado um dispositivo mais amplo, no sentido de punir mais gravemente todo crime praticado contra criança (período que engloba desde o nascimento até os 12 anos incompletos) ou adolescente (dos 12 aos 18 anos de idade).45 Só assim teria obedecido à risca o mandamento da Constituição Federal.
b) Crime praticado contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos
Essa causa de aumento de pena foi criada pela Lei 10.741/2003 – Estatuto do Idoso. Fundamenta-se no art. 230, caput, da Constituição Federal: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
Matar ou tentar matar um idoso constitui-se em conduta revestida de maior reprovabilidade. Esta é a razão da majoração da pena.
Como estatui o art. 121, § 6.º, do Código Penal, com a redação conferida pela Lei 12.720/2012: “A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio”.
Cuida-se de causa especial de aumento da pena, incidente na terceira e última fase da dosimetria da pena privativa de liberdade, aplicável exclusivamente ao homicídio doloso, simples ou qualificado, de competência do Tribunal do Júri. Consequentemente, a análise da sua presença incumbe aos jurados, nos termos do art. 5.º, inc. XXXVIII, d, da Constituição Federal.
Na seara do homicídio, antes da edição da Lei 12.720/2012 a expressão “grupo de extermínio” já permitia a incidência das regras da Lei dos Crimes Hediondos. Bastava a prática do delito “em atividade típica de grupo de extermínio” – não se falava em “milícia privada” - ainda que por um só agente (Lei 8.072/1990, art. 1.º, inc. I). Esta circunstância também era utilizada na fixação da pena-base, como circunstância judicial desfavorável, com fundamento no art. 59, caput, do Código Penal.
Embora não exista disposição expressa nesse sentido, é evidente que o homicídio cometido por milícia privada será classificado como crime hediondo. Com efeito, não há como se imaginar uma execução desta natureza sem a presença de alguma qualificadora, notadamente o motivo torpe (paga ou promessa de recompensa) ou o recurso que dificulta ou impossibilita a defesa do ofendido. E, como se sabe, o homicídio qualificado é crime hediondo (Lei 8.072/1990, art. 1.º, inc. I).
Milícia privada é o agrupamento armado e estruturado de civis – inclusive com a participação de militares fora das suas funções – com a pretensa finalidade de restaurar a segurança em locais controlados pela criminalidade, em face da inoperância e desídia do Poder Público. Para tanto, seus integrantes apresentam-se como verdadeiros “heróis” de uma comunidade carente e fragilizada, e como recompensa são remunerados por empresários e pelas pessoas em geral.
Contudo, a realidade é diversa do romantismo que cerca o discurso dos novos “guerreiros da paz”. Diversas pessoas são coagidas à colaboração financeira, mediante violência física ou grave ameaça. Se não o fizerem, suportam castigos físicos, torturas e, aos mais rebeldes, impõe-se até mesmo a pena capital, para demonstração da autoridade do poder paralelo imposto na dominação do território.46
A majoração da pena reclama seja o homicídio cometido pela milícia privada “sob o pretexto de prestação de serviço de segurança”. Em outras palavras, é suficiente a alegação de prestar segurança em determinado local, ainda que os assassinos não tenham sido realmente contratados para desempenhar esta função.
Grupo de extermínio é a associação de matadores, composta de particulares e muitas vezes também por policiais autointitulados de “justiceiros”, que buscam eliminar pessoas deliberadamente rotuladas como perigosas ou inconvenientes aos anseios da coletividade. Sua existência se deve à covardia e à omissão do Estado, bem como à simpatia e não raras vezes ao financiamento de particulares e de empresários, que contam com a ajuda destes exterminadores para enfrentar supostos ou verdadeiros marginais, sem a intervenção do Poder Público.
Após definir o homicídio doloso no art. 121, caput, do Código Penal, o legislador valeu-se de um tipo penal aberto (como normalmente acontece nos crimes culposos) para descrever o homicídio culposo: “Se o homicídio é culposo”.
A culpa constitui-se em elemento normativo do tipo.47 Sua presença deve ser obtida por meio de um juízo de valor. O magistrado, colocando-se na posição do homem médio, constata se o resultado naturalístico produzido pelo agente era ou não previsível a um ser humano dotado de inteligência e prudência medianas. Tratando-se de resultado involuntário, a pena é sensivelmente menor àquela cominada para o homicídio doloso. Com efeito, nada obstante seja idêntico o desvalor do resultado tanto na figura dolosa como na modalidade culposa, nesta última é deveras inferior o desvalor da conduta.
Configura-se o homicídio culposo quando o sujeito realiza uma conduta voluntária, com violação do dever objetivo de cuidado a todos imposto, por imprudência, negligência ou imperícia, e assim produz um resultado naturalístico (morte) involuntário, não previsto nem querido, mas objetivamente previsível, que podia com a devida atenção ter evitado.
Imprudência, ou culpa positiva, consiste na prática de um ato perigoso. Exemplo: manusear arma de fogo carregada em local com grande concentração de pessoas.
Negligência, ou culpa negativa, é deixar de fazer aquilo que a cautela recomendava. Exemplo: deixar uma arma de fogo carregada ao alcance de outras pessoas.
Imperícia, ou culpa profissional, é a falta de aptidão para o exercício de arte, profissão ou ofício para a qual o agente, em que pese autorizado a exercê-la, não possui conhecimentos teóricos ou práticos para tanto. Exemplo: cirurgião plástico que mata sua paciente por falta de habilidade para realizar o procedimento médico.
Lembre-se que o crime culposo (salvo em relação à culpa imprópria) é incompatível com a tentativa. Com efeito, é impossível conceber a não produção de um resultado naturalístico indesejado por circunstâncias alheias à vontade do agente. O dolo da tentativa, como se sabe, é idêntico ao dolo da consumação. E no crime culposo não há dolo.
Finalmente, é importante destacar que para o homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor aplica-se o crime definido pelo art. 302 da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro. Cuida-se de regra especial que, no conflito aparente de normas, afasta a regra geral (princípio da especialidade). Tal delito tem pena superior (detenção, de 2 a 4 anos) àquela prevista para o crime culposo tipificado pelo Código Penal (detenção, de 1 a 3 anos). Esse tratamento legislativo diferenciado não viola o princípio da isonomia, consagrado pelo art. 5.º, caput, da Constituição Federal. Conforme o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
Considerou-se que o princípio da isonomia não impede o tratamento diversificado das situações quando houver um elemento de discrímen razoável, pois inegável a existência de maior risco objetivo em decorrência da condução de veículos nas vias públicas. Enfatizou-se que a maior frequência de acidentes de trânsito, acidentes graves, com vítimas fatais, ensejou a aprovação de tal projeto de lei, inclusive com o tratamento mais rigoroso contido no art. 302, parágrafo único, do CTB. Destarte, a majoração das margens penais – comparativamente ao tratamento dado pelo art. 121, § 3.º, do CP – demonstra o enfoque maior no desvalor do resultado, notadamente em razão da realidade brasileira, envolvendo os homicídios culposos, provocados por indivíduos na direção de veículos automotores.48
O art. 121, § 4.º, 1.ª parte, do Código Penal arrola quatro causas de aumento de pena aplicáveis somente ao homicídio culposo. Alguns doutrinadores, valendo-se do critério que enquadra as causas de aumento de pena entre as qualificadoras em sentido amplo, denominam essa modalidade do delito de homicídio culposo qualificado. Fala-se, ainda, em homicídio culposo circunstanciado.
Passemos à análise de cada uma delas.
a) Inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício
Essa inobservância regulamentar não se confunde com a imperícia. Nesta, o sujeito não reúne conhecimentos teóricos ou práticos para o exercício de arte, profissão ou ofício (exemplo: médico ortopedista que mata o paciente ao efetuar uma cirurgia cardíaca), enquanto naquela o agente é dotado das habilidades necessárias para o desempenho da atividade, mas por desídia não as observa (exemplo: cardiologista que não segue as regras básicas de uma cirurgia do coração).49
E, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, é perfeitamente possível, pois não há bis in idem, a incidência conjunta da causa de aumento da pena definida pelo art. 121, § 4.º, do Código Penal, relativa à inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, no homicídio culposo cometido com imperícia médica. Embora o Direito Penal pátrio não tenha previsto a figura do homicídio culposo qualificado pela inobservância de regra técnica, nada impede a aplicação da causa de aumento de pena ao homicídio culposo fundado em imperícia, desde que presente a concorrência de duas condutas distintas: uma para fundamentar a culpa, e outra para configurar a majorante.50
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já afastou o bis in idem até mesmo quando presente uma única conduta, apta a caracterizar, simultaneamente, a modalidade da culpa e também a causa de aumento da pena:
É possível a aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 121, § 4º, do CP no caso de homicídio culposo cometido por médico e decorrente do descumprimento de regra técnica no exercício da profissão. Nessa situação, não há que se falar em bis in idem. Isso porque o legislador, ao estabelecer a circunstância especial de aumento de pena prevista no referido dispositivo legal, pretendeu reconhecer maior reprovabilidade à conduta do profissional que, embora tenha o necessário conhecimento para o exercício de sua ocupação, não o utilize adequadamente, produzindo o evento criminoso de forma culposa, sem a devida observância das regras técnicas de sua profissão. De fato, caso se entendesse caracterizado o bis in idem na situação, ter-se-ia que concluir que essa majorante somente poderia ser aplicada se o agente, ao cometer a infração, incidisse em pelo menos duas ações ou omissões imprudentes ou negligentes, uma para configurar a culpa e a outra para a majorante, o que não seria condizente com a pretensão legal.51
Somente incide essa causa de aumento de pena para o profissional (quem exerce a arte, profissão ou ofício), pois é nessa hipótese que se impõe um mais elevado dever objetivo de cuidado, revelando a maior gravidade da conduta em seu descumprimento. Na esteira da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “a causa de aumento de pena referente à inobservância de regra técnica de profissão se situa no campo da culpabilidade, demonstrando que o comportamento do agente merece uma maior censurabilidade”.52
b) Deixar de prestar imediato socorro à vítima
Essa figura relaciona-se intimamente com os crimes culposos praticados na direção de veículo automotor. É o que se extrai do item 39 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal. Mas, atualmente, para essas hipóteses existe a causa de aumento de pena prevista no art. 302, parágrafo único, da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro, razão pela qual não se aplica o dispositivo do Código Penal.
Esta causa de aumento da pena, fundada na solidariedade humana, relaciona-se unicamente às pessoas que por culpa contribuíram para a produção do resultado naturalístico, e não tenham prestado imediato socorro à vítima. Exemplo: “A” deixa uma arma de fogo municiada em local acessível a uma criança, que dela se apodera e efetua um disparo contra a própria cabeça. “A” não conduz a vítima ao hospital, e ela vem a morrer. Nesse caso, deve responder por homicídio culposo com a pena aumentada (CP, art. 121, §§ 3.º e 4.º, 1.ª parte), e não por homicídio culposo em concurso com omissão de socorro, em decorrência da subsidiariedade tácita deste último delito.
Mas, se no caso concreto, o agente não agiu de forma culposa, mas deixou de prestar socorro, responde pelo crime de omissão de socorro com a pena majorada pela morte (CP, art. 135, parágrafo único, in fine). Exemplo: Na situação narrada, “C” ouve o disparo, presencia a vítima ferida e não a socorre.
Basta, para a causa de aumento de pena, o dolo de perigo. Não se exige a vontade de matá-la depois de provocados culposamente os ferimentos que a levaram à morte.
Não tem cabimento a causa de aumento de pena na hipótese de morte instantânea incontestável. Contudo, se houver dúvida quanto à morte, a solidariedade impõe a prestação de socorro, pois a majoração da pena se deve à moralidade da conduta do agente, e não ao resultado naturalístico, inerente a todo e qualquer homicídio.
De igual modo, não incide o aumento da pena quando o sujeito deixou de prestar socorro porque não tinha condições de fazê-lo, seja por questões físicas (exemplo: também foi gravemente ferido pela conduta que matou a vítima), seja porque o comportamento exigido em lei a ele representava risco pessoal (exemplo: ameaça de linchamento). E, na linha de raciocínio do Superior Tribunal de Justiça:
É inviável a desconsideração do aumento de pena pela omissão de socorro, se verificado que o réu estava apto a acudir a vítima, não existindo nenhuma ameaça a sua vida nem a sua integridade física. A prestação de socorro é dever do agressor, não cabendo ao mesmo levantar suposições acerca das condições físicas da vítima, medindo a gravidade das lesões que causou e as consequências de sua conduta, sendo que a determinação do momento e causa da morte compete, em tais circunstâncias, ao especialista legalmente habilitado.53
A doutrina sustenta ser inadmissível a causa de aumento de pena na hipótese de socorro prestado por terceiros. Aqui é necessário estabelecer uma ressalva. Não pode ser aumentada a pena quando o sujeito deixou de prestar socorro se existiam pessoas mais capacitadas para tanto (exemplo: depois de ferir a vítima em via pública com disparo acidental de arma de fogo, surge um médico para socorrê-la). Mas aplica-se o aumento quando a vítima só foi socorrida por terceiros porque o responsável pela conduta deixou voluntariamente de fazê-lo (exemplo: fugiu depois de atingir acidentalmente o ofendido).
Finalmente, quando o responsável pelo homicídio culposo presta socorro à vítima, não se aplica a atenuante genérica definida pelo art. 65, inciso III, b, do Código Penal (“ter o agente, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências”). Em consonância com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
No homicídio culposo, a ausência de imediato socorro à vítima é causa de aumento de pena (art. 121, § 4.º, do CP), e não há que se cogitar na aplicação da atenuante genérica do art. 65, III, b, daquele mesmo código quando tal socorro for efetivamente prestado, pois se cuida, sim, de dever legal do agente causador do delito, anotado que seu cumprimento não importa mitigação da sanção.54
c) Não procurar diminuir as consequências do seu ato
Trata-se de desdobramento normal da causa de aumento de pena anterior (deixar de prestar socorro imediato à vítima). Exemplo: O agente, ameaçado de linchamento, não prestou imediato socorro ao ofendido, o que era justificável. Entretanto, afastou-se do local do crime e não pediu auxílio da autoridade pública, abrindo espaço para o aumento da pena.
d) Fugir para evitar prisão em flagrante
O espírito da lei é aumentar a pena do criminoso que, fugindo para evitar a prisão em flagrante, visa a assegurar a impunidade do seu ato, dificultando a ação da justiça, e, por isso merece, também, punição mais severa do que o outro que dessa maneira não procede. É claro que não se aplica o aumento quando o agente assim agiu diante de sérias ameaças de populares contra a sua vida ou integridade física.
Essa causa de aumento reveste-se de frágil constitucionalidade. De fato, não se pode punir alguém pelo fato de deixar de apresentar-se à autoridade policial para ser presa. Esse comportamento, dispensável em relação aos responsáveis por crimes dolosos, não pode ser exigido de autores de crimes menos graves, como são os culposos.
Em conformidade com o art. 121, § 5.º, do Código Penal: “Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”. Há regra idêntica para a lesão corporal culposa (CP, art. 129, § 8.º).
O legislador foi taxativo: somente se admite o perdão judicial para o homicídio culposo.
Trata-se de causa de extinção da punibilidade (CP, art. 107, inc. IX) aplicável nos casos em que o sujeito produz culposamente a morte de alguém, mas as consequências desse crime lhe são tão graves que a punição desponta como desnecessária. Em outras palavras, o próprio resultado naturalístico já exerceu a função retributiva da sanção penal.
A gravidade e a extensão das consequências da infração devem ser analisadas na situação concreta, levando em conta as condições pessoais do agente e da vítima. Podem atingir o próprio autor da conduta culposa (exemplo: ficar paraplégico), seus familiares (exemplo: pai que por negligência esquece seu filho de pouca idade no interior do automóvel, matando-o) ou ainda pessoas que lhe são próximas e queridas (exemplo: noiva, noivo, amigos íntimos etc.).
O perdão judicial somente pode ser concedido na sentença. Depende da análise do mérito, pois, se não existirem provas da autoria e/ou da materialidade do fato, o réu há de ser absolvido. Além disso, se comprovada a responsabilidade do agente pelo resultado morte, deve estar demonstrada a desnecessidade da imposição da pena, circunstância que reclama o término da instrução criminal.
Essa sentença é declaratória da extinção da punibilidade, em consonância com a Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça, não subsistindo qualquer efeito condenatório. Destarte, não gera reincidência, não autoriza o lançamento do nome do réu no rol dos culpados e não configura a obrigação de reparar o dano provocado pelo crime.
Nada obstante o dispositivo legal estabeleça que “o juiz poderá deixar de aplicar a pena”, o benefício não poderá ser negado se estiverem presentes seus requisitos legais. Cuida-se de direito subjetivo do réu.
O perdão judicial é ato unilateral, isto é, não precisa ser aceito pelo réu para surtir efeitos. É diferente do perdão do ofendido, aplicável somente à ação penal privada e dependente de aceitação pelo responsável pela infração penal.
O homicídio culposo é crime que se processa mediante ação penal pública incondicionada. Submete-se ao rito sumário, como determina o art. 394, § 1.º, inciso II, do Código de Processo Penal.
Somente o Ministério Público pode iniciar a ação penal. Trata-se de função institucional privativa, nos moldes do art. 129, inciso I, da Constituição Federal, que não recepcionou o art. 1.º da Lei 4.611/1965, o qual permitia ao juiz e à autoridade policial deflagrar a ação penal no crime de homicídio culposo (procedimento judicialiforme).
Em face da pena mínima cominada ao delito (1 ano), o homicídio culposo comporta o benefício da suspensão condicional do processo, desde que presentes os demais requisitos previstos no art. 89 da Lei 9.099/1995.
Suicídio é a destruição deliberada da própria vida. É também chamado de autocídio ou autoquíria.
No Brasil, a conduta suicida não é criminosa. Nem poderia sê-la, pois, como corolário do princípio da alteridade, o Direito Penal só está autorizado a punir os comportamentos que transcendem a figura do seu autor. Não são puníveis as condutas que lesionam ou expõem a perigo bens jurídicos pertencentes exclusivamente a quem a praticou. Ainda que assim não fosse, o Estado não poderia punir o suicida, pois com sua morte estaria extinta sua punibilidade, nos termos do art. 107, inciso I, do Código Penal.
Por último, na hipótese de sobrevivência da pessoa que buscou destruir sua própria vida, o legislador não tipificou essa conduta por questões humanitárias. Quem tentou suicidar-se não merece castigo, mas sim tratamento, amparo e proteção. A imposição da pena traria ainda mais prejuízos àquele que considera sua vida como bem de pouca ou nenhuma importância.
Essa conclusão, contudo, não permite falar em licitude do suicídio, em face da indisponibilidade do direito à vida. Essa é a inteligência do Código Penal, ao estatuir em seu art. 146, § 3.º, inciso II, que não caracteriza constrangimento ilegal a coação exercida para impedir suicídio. O suicídio é ilícito, embora não seja criminoso.
Anote-se, ainda, um requisito fundamental para a configuração do suicídio: a destruição da vida humana por seu titular deve ser voluntária. Logo, se alguém elimina sua própria vida inconscientemente, por ter sido manipulado por outra pessoa (fraude), ou em decorrência de violência ou grave ameaça, estará tipificado o crime de homicídio.
É crime, no Brasil, o induzimento, a instigação ou auxílio a suicídio, ou, como prefere a doutrina, a participação em suicídio. Vedou-se a conduta de concorrer para que outrem destrua voluntariamente sua própria vida. O consentimento da vítima é irrelevante, em face da indisponibilidade do bem jurídico penalmente tutelado.
Tutela-se a vida humana, direito fundamental constitucionalmente consagrado (art. 5.º, caput).
É o ser humano que suporta a conduta criminosa, isto é, aquele contra quem se dirige o induzimento, a instigação ou o auxílio ao suicídio.
A participação em suicídio pode ser moral, nos núcleos induzir e instigar alguém ao suicídio, ou material, na conduta de auxiliar outrem a suicidar-se. Não se admite a provocação indireta ao suicídio.55
Induzir significa incutir na mente alheia a ideia do suicídio, até então inexistente. Exemplo: “A” procura “B”, perguntando-lhe como solucionar seus problemas financeiros, no que obtém a seguinte resposta: “Suicide-se e tudo estará resolvido”.
Não há participação em suicídio por parte de quem pede a um cidadão para, como herói nacional, ir à guerra lutar por seu país.
Instigar é reforçar o propósito suicida preexistente. A vontade suicida, que já habitava a mente da vítima, é estimulada pelo agente. Exemplo: “A” diz à “B” que, em face de problemas conjugais, pretende suicidar-se. Este, por sua vez, incentiva aquele a assim agir.
Nessas duas espécies de participação moral exige-se seriedade na conduta do agente. Se em nítido tom de brincadeira alguém sugere a outrem o suicídio, que de fato ocorre, o fato é atípico por ausência de dolo.
Auxiliar, por sua vez, é concorrer materialmente para a prática do suicídio. Exemplo: Ciente de que “A” deseja suicidar-se, e querendo que isso se concretize, “B” lhe empresta uma arma de fogo municiada.
Esse auxílio, porém, deve constituir-se em atividade acessória, secundária. O sujeito não pode, em hipótese alguma, realizar uma conduta apta a eliminar a vida da vítima. É o ofendido quem deve destruir sua própria vida. Destarte, se o agente, exemplificativamente, atendendo aos anseios de outra pessoa, aperta o gatilho da arma de fogo que ela apontava rumo à sua própria cabeça, provocando sua morte, responde por homicídio, e não por participação em suicídio. De fato, realizou conduta capaz por si só de matar alguém, nada obstante o inválido consentimento do ofendido.
O auxílio deve ser eficaz, isto é, precisa contribuir efetivamente para o suicídio. Assim, se “A” empresta a “B” um revólver, mas ela se mata fazendo uso de veneno, àquele não será imputado o crime previsto no art. 122 do Código Penal.
Observe, ainda, que o auxílio ao suicídio não se confunde com a omissão de socorro ao suicida. Em verdade, se após o ato suicida, praticado sem a influência de quem quer que seja, um terceiro injustificadamente deixar de prestar socorro a outrem, responderá pelo crime definido pelo art. 135 do Código Penal.
É possível, ainda, o auxílio por omissão, desde que presente o dever de agir para evitar o resultado, na forma delineada pelo art. 13, § 2.º, do Código Penal. É o caso do psiquiatra que presta serviços em um manicômio, e, consciente da intenção suicida de um dos pacientes, nada faz para preservar sua vida. Comungam desse entendimento, entre outros, E. Magalhães Noronha, Julio Fabbrini Mirabete e Nélson Hungria. Essa posição, entretanto, não é pacífica. Diversos autores, como Damásio E. de Jesus e José Frederico Marques, sustentam ser incabível essa modalidade de auxílio, porque a expressão legal “prestar auxílio” é indicativa de conduta comissiva. Responderia o agente, mesmo presente o dever de agir, por omissão de socorro com resultado morte (CP, art. 135, p. único).
Trata-se de tipo misto alternativo, também chamado de crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, pois o agente pode praticar o delito contra uma mesma vítima mediante duas ou mais condutas, e em qualquer hipótese haverá crime único. Mas a realização de duas ou mais condutas produzirá reflexos na dosimetria da pena-base, em conformidade com o art. 59, caput, do Código Penal.
Além disso, a participação em suicídio deve dirigir-se à pessoa determinada ou pessoas determinadas. Com efeito, não é punível a participação genérica, tal como na obra Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774, obra-prima da literatura mundial e marco inicial do romantismo, escrita por Johann Wolfgang von Goethe, que em sua época levou a uma onda de suicídios em toda a Europa, em face da paixão marcada pelo fim trágico que envolve seu protagonista. Igual raciocínio se aplica às músicas ou profecias que anunciam o fim dos tempos.
A participação em suicídio é crime comum. Pode ser cometido por qualquer pessoa.
Qualquer pessoa que possua um mínimo de capacidade de resistência e de discernimento quanto à conduta criminosa, pois, se a vítima apresentar resistência nula, o crime será de homicídio. Exemplo: Caracteriza o crime tipificado pelo art. 121 do Código Penal a conduta de induzir uma criança de tenra idade ou um débil mental a pular do alto de um edifício, argumentando que assim agindo poderia voar.
É o dolo, direto ou eventual. Não há modalidade culposa.
A consumação do crime de participação em suicídio reclama a morte da vítima (pena: reclusão de dois a seis anos) ou no mínimo a produção de lesão corporal de natureza grave (pena: reclusão de um a três anos). A expressão “lesão corporal de natureza grave” abrange a grave propriamente dita e também a gravíssima (CP, art. 129, §§ 1.º e 2.º). No caso da lesão corporal grave em sentido amplo, como corolário da pena mínima cominada, é cabível o benefício da suspensão condicional do processo, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Destarte, não há crime quando, nada obstante o induzimento, a instigação ou o auxílio, a vítima não tenta suicidar-se, ou, mesmo o fazendo, suporta somente lesão corporal de natureza leve, pois para essas hipóteses não se previu a imposição de pena.
É irrelevante o intervalo temporal entre a conduta criminosa e o suicídio da vítima. Estará tipificado o crime com a mera relação de causalidade entre a participação em suicídio e a destruição da própria vida. Se, por exemplo, alguém induz outra pessoa ao suicídio, e apenas após dois anos, movida pela participação, ela se mata, estará caracterizado o crime em estudo. E, frise-se, somente a partir desse momento (morte da vítima) terá início o curso da prescrição, eis que se trata da consumação do crime, nos termos do art. 111, inciso I, do Código Penal.
Não é possível a tentativa da participação em suicídio, pois a lei só pune o crime se o suicídio se consuma, ou se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Cuida-se de crime condicionado, em que a punibilidade está sujeita à produção de um resultado legalmente exigido.
Cuidado com duas coisas distintas:
(1) tentativa de suicídio, que existe, pois a vítima tentou eliminar sua própria vida; e
(2) tentativa de crime de participação em suicídio, vedada pelo Código Penal.
No pacto de morte, também conhecido como ambicídio ou suicídio a dois,56 isto é, o acordo celebrado entre duas pessoas que desejam se matar, as hipóteses em que há sobrevivência de uma delas ou de ambas resolvem-se da seguinte maneira:
a) se o sobrevivente praticou atos de execução da morte do outro (exemplo: ministrar veneno), a ele será imputado o crime de homicídio;
b) se o sobrevivente somente auxiliou o outro a suicidar-se, responderá pelo crime de participação em suicídio;
c) se ambos praticaram atos de execução, um contra o outro, e ambos sobreviveram, responderão os dois por tentativa de homicídio;
d) se ambos se auxiliaram mutuamente e ambos sobreviveram, a eles será atribuído o crime de participação em suicídio, desde que resultem lesões corporais de natureza grave;
e) se um deles praticou atos de execução da morte de ambos, mas ambos sobreviveram, aquele responderá por tentativa de homicídio, e este por participação em suicídio, desde que o executor, em razão da tentativa, sofra lesão corporal de natureza grave.
Se várias pessoas fazem, simultaneamente, roleta-russa ou duelo americano, aos sobreviventes será imputado o crime de participação em suicídio. Na roleta-russa, a arma de fogo é municiada com um único projétil, e deve ser acionado o gatilho pelos participantes cada um em sua vez, rolando o tambor que estava vazio. No duelo americano, por sua vez, existem duas armas de fogo, uma municiada e outra desmuniciada, e os participantes devem escolher uma delas para posteriormente apertarem o gatilho contra eles mesmos.
Se no contexto da roleta-russa ou do duelo americano, porém, um dos envolvidos, que não sabia se a arma de fogo estava ou não apta a efetuar o disparo, aciona seu gatilho, apontando-a a direção de outrem, e assim agindo provoca sua morte, o crime será de homicídio, com dolo eventual.
A participação em suicídio é crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); de dano (depende da efetiva lesão ao bem jurídico); comissivo ou omissivo (com divergência doutrinária quanto à omissão); material (exige a produção do resultado naturalístico morte ou lesão corporal de natureza grave); condicionado (não admite tentativa); de forma livre (admite qualquer meio de execução); simples (ofende um único bem jurídico, a vida humana); instantâneo (consuma-se com a morte da vítima ou com a lesão corporal de natureza grave, em momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (cometido por uma só pessoa, mas admite o concurso); e, em regra, plurissubsistente (conduta divisível em diversos atos).
O art. 122, parágrafo único, do Código Penal dispõe que a pena é duplicada: I – se o crime é praticado por motivo egoístico; e II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. São causas de aumento da pena e incidem na terceira fase da aplicação da pena privativa de liberdade.
Motivo egoístico é o que revela individualismo exagerado, ou seja, aquele que evidencia excessivo apego próprio em detrimento dos interesses alheios (nesse caso, a vida humana de terceira pessoa). Justifica-se a mais rigorosa punição porque o agente almeja alcançar algum proveito, econômico ou não, como consequência do suicídio da vítima. Exemplo: O sujeito estimula um colega de trabalho que enfrenta problemas depressivos a suicidar-se, e assim ficar com seu cargo na empresa.
Vítima menor é a pessoa humana com idade entre 14 anos e 18 anos. Possui capacidade de discernimento, embora reduzida em face do incompleto desenvolvimento mental. A causa de aumento de pena fundamenta-se na maior facilidade que pessoas nessa faixa etária apresentam para serem convencidas por outrem a suicidarem-se.
Aplica-se analogicamente o art. 217-A do Código Penal (e também os arts. 218 e 218-A), com a redação dada pela Lei 12.015/2009. Com efeito, se a pessoa com idade inferior a 14 anos não tem maturidade suficiente para a prática de um ato sexual, também não a possui para dispor da sua própria vida. Além disso, deve apresentar certo grau de discernimento, pois em caso contrário estará configurado crime de homicídio. Destarte, se a conduta for praticada contra indivíduo com idade inferior a 14 anos, o crime será de homicídio.
Vítima que, por qualquer causa, tem diminuída a capacidade de resistência é a pessoa mais propensa a ser influenciada pela participação em suicídio. Deve ser maior de 18 anos de idade, pois, se ainda não atingiu essa idade, e desde que possua 14 anos de idade ou mais, a causa de aumento de pena será a anterior.
Essa menor resistência pode ser provocada por enfermidade física ou mental, e também por efeitos do álcool ou de drogas. Deve, todavia, ser de conhecimento do agente, para afastar a responsabilidade penal objetiva. Exemplo: estimular uma pessoa parcialmente embriagada a eliminar sua própria vida. Se, por outro lado, o ébrio estiver completamente inconsciente, o crime será de homicídio.
Em síntese, a análise do art. 122, parágrafo único, do Código Penal permite as seguintes ilações:
1) vítima maior de 18 anos de idade, com plena capacidade de resistência: participação em suicídio simples (art. 122, caput);
2) vítima maior de 18 anos, com reduzida capacidade de resistência: participação em suicídio agravada ou circunstanciada (art. 122, p. único, inc. II, 2.ª parte);
3) vítima com idade igual ou superior a 14 anos, mas menor de 18 anos de idade: participação em suicídio agravada ou circunstanciada (art. 122, p. único, inc. II, 1.ª parte);
4) vítima menor de 14 anos de idade ou sem capacidade de resistência, qualquer que seja sua idade: homicídio (art. 121).
O infanticídio, que em seu sentido etimológico significa a morte de um infante, é uma forma privilegiada de homicídio. Trata-se de crime em que se mata alguém, assim como no art. 121 do Código Penal. Aqui a conduta também consiste em matar. Mas o legislador decidiu criar uma nova figura típica, com pena sensivelmente menor, pelo fato de ser praticado pela mãe contra seu próprio filho, nascente ou recém-nascido, durante o parto ou logo após, influenciada pelo estado puerperal.
Possui, pois, iguais elementares do crime de homicídio, mas a elas foram agregados outros elementos especializantes, atinentes aos sujeitos, ao tempo e à motivação do crime. Não se exige, entretanto, nenhuma finalidade especial para favorecer a mãe com a figura típica privilegiada, tal como o motivo de honra. É suficiente esteja ela influenciada pelo estado puerperal.
É a vida humana.
É a criança, nascente ou recém-nascida, contra quem se dirige a conduta criminosa.
O art. 123 do Código Penal preceitua que o infanticídio pode ser praticado durante o parto ou logo após. Nesse último caso, a distinção com o aborto é nítida: a criança nasceu com vida e encerrou-se o trabalho de parto. A dúvida reside na situação em que o infanticídio é praticado durante o parto, pois é nessa hipótese que se exige cuidado na identificação do momento preciso em que o feto passa a ser tratado como nascente.57 É preciso saber quando tem início o parto, pois o fato se classifica como aborto (antes do parto) ou infanticídio (durante o parto) dependendo do momento da prática delituosa. Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Iniciado o trabalho de parto, não há crime de aborto, mas sim homicídio ou infanticídio, conforme o caso. Para configurar o crime de homicídio ou infanticídio, não é necessário que o nascituro tenha respirado, notadamente quando, iniciado o parto, existem outros elementos para demonstrar a vida do ser nascente, por exemplo, os batimentos cardíacos.58
O parto tem início com a dilatação, instante em que se evidenciam as características das dores e da dilatação do colo do útero. Em seguida, passa-se à expulsão, na qual o nascente é impelido para fora do útero. Finalmente, há a expulsão da placenta, e o parto está terminado. A morte do ofendido, em qualquer dessas fases, tipifica o crime de infanticídio. Daí falar, com razão, que “o infanticídio é a destruição de uma pessoa, o aborto é a destruição de uma esperança”.59
Cuida-se de crime próprio, pois somente pode ser praticado pela mãe. Admite, todavia, coautoria e participação. Como a mãe é detentora do dever legal de agir (CP, art. 13, § 2.º, a), é possível que cometa o crime por omissão. Exemplo: deixar de amamentar o recém-nascido para que morra desnutrido.
Nélson Hungria sustentou, após a entrada em vigor do Código Penal de 1940, a existência de elementares personalíssimas, que não se confundiam com as pessoais. Essas seriam transmissíveis, aquelas não. Em síntese, seriam fatores que, embora integrassem a descrição fundamental de uma infração penal, jamais se transmitiriam aos demais coautores ou partícipes. Confira-se:
Deve-se notar, porém, que a ressalva do art. 2660 não abrange as condições personalíssimas que informam os chamados delicta excepta. Importam elas um privilegium em favor da pessoa a quem concernem. São conceitualmente inextensíveis e impedem, quando haja cooperação com o beneficiário, a unidade do título do crime. Assim, a “influência do estado puerperal” no infanticídio e a causa honoris no crime do art. 134: embora elementares, não se comunicam aos cooperadores, que responderão pelo tipo comum do crime.61
Para ele, na hipótese em que o pai ou qualquer outra pessoa auxiliasse a mãe, abalada pelo estado puerperal, a matar o próprio filho, durante o parto ou logo após, não seria justo nem correto que o terceiro fosse beneficiado pelo crime de infanticídio, pois o puerpério não lhe atinge. Portanto, somente a mãe responderia pelo crime previsto no art. 123 do Código Penal, imputando-se ao terceiro, coautor ou partícipe, a figura do homicídio.62
Humilde, porém, Nélson Hungria posteriormente constatou seu equívoco e alterou seu entendimento, levando em consideração a redação do Código Penal: “salvo quando elementares do crime”. Concluiu, então, que todos os terceiros que concorrem para um infanticídio por ele também respondem.63
Destarte, justa ou não a situação, a lei fala em elementares, e, seja qual for sua natureza, é necessário que se estendam a todos os coautores e partícipes. Essa é a posição atualmente pacífica, que somente será modificada com eventual alteração legislativa.
É o nascente ou recém-nascido (neonato), dependendo do tempo da prática do fato criminoso, ou seja, durante o parto ou logo após. Em decorrência da inadmissibilidade do bis in idem, não incidem as agravantes genéricas previstas no art. 61, inciso II, e (crime contra descendente) e h (crime contra criança), do Código Penal, pois tais circunstâncias já funcionam como elementares da descrição típica.
Se a mãe, influenciada pelo estado puerperal e logo após o parto, mata outra criança, que acreditava ser seu filho, responde por infanticídio. É o chamado infanticídio putativo.
Se, contudo, a mãe matar um adulto, ainda que presentes as demais elementares previstas no art. 123 do Código Penal, o crime será de homicídio.
É o dolo, direto ou eventual. Não se admite a modalidade culposa.
E por qual crime responde a mãe que, durante o parto ou logo após, e sob a influência do estado puerperal, mata culposamente o filho nascente ou recém-nascido?
O assunto é polêmico. Diversos autores sustentam que a genitora deve responder por homicídio culposo, como corolário de sua imprudência ou negligência. Parece-nos, contudo, estar a razão com Damásio E. de Jesus, para quem a mãe não responde por crime nenhum, nem por homicídio culposo nem por infanticídio.64 Isso porque a previsibilidade objetiva do crime culposo, aferida de acordo com o juízo do homem médio, é incompatível com os abalos psicológicos do estado puerperal. De fato, uma pessoa assim afetada não pode ser considerada detentora de inteligência e prudência medianas.
Mas é claro que, se a mulher matar a criança culposamente, sem a influência do estado puerperal, o crime será de homicídio culposo.
Estado puerperal é o conjunto de alterações físicas e psíquicas que acometem a mulher em decorrência das circunstâncias relacionadas ao parto, tais como convulsões e emoções provocadas pelo choque corporal, as quais afetam sua saúde mental.
Prevalece o entendimento no sentido de ser desnecessária perícia para constatação do estado puerperal, por se tratar de efeito normal e inerente a todo e qualquer parto.
Não basta, porém, seja o crime cometido durante o período do estado puerperal. Exige-se relação de causalidade subjetiva entre a morte do nascente ou recém-nascido e o estado puerperal, pois a conduta deve ser criminosa sob sua influência. É o que se extrai da leitura do art. 123 do Código Penal. Ausente essa elementar (“influência do estado puerperal), o crime será de homicídio.
A prática de crime sob a influência do estado puerperal não se confunde com inimputabilidade penal ou semi-imputabilidade. Nada obstante o estado puerperal altere a saúde mental da mulher, é vedado confundi-lo com doença mental ou com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, na forma prevista no art. 26, caput, e parágrafo único, do Código Penal.
De fato, a mulher responde pelo crime cometido, o que desde já indica a opção do legislador em rechaçar a inimputabilidade penal. E a ela será aplicada uma pena, e não medida de segurança. Além disso, não terá a pena diminuída de um a dois terços, circunstância que evidenciaria a semi-imputabilidade. Em consonância com o critério biopsicológico adotado pelo Código Penal para aferição da inimputabilidade e da semi-imputabilidade, reclama-se para a isenção da pena ou sua diminuição a presença de uma causa mental deficiente, e, além disso, que ao tempo do crime a pessoa não tenha nenhuma capacidade (inimputabilidade) ou possua reduzida capacidade (semi-imputabilidade) para compreender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento.
Criou-se um delito especial em razão do estado puerperal que atinge a genitora, além de outros fatores específicos (a vítima é o filho nascente ou recém-nascido e a conduta é praticada durante o parto ou logo após), mas a mulher obviamente foi tratada como pessoa imputável. Raciocínio diverso levaria a uma temerária conclusão: toda e qualquer mulher, durante o parto ou logo após, deveria ser considerada inimputável ou semi-imputável, recebendo consequentemente o tratamento penal dispensado a tais pessoas.65
O infanticídio deve ser praticado durante o parto ou logo após. Essa última expressão (“logo após”) precisa ser interpretada no caso concreto. Enquanto subsistirem os sinais indicativos do estado puerperal, bem como sua influência no tocante ao modo de agir da mulher, será possível a concretização do crime de infanticídio.
Mas é possível concluir que, se presente a relação de imediatidade entre o parto e o crime, presumir-se-á o estado puerperal, e, se acusação com isso não concordar, deverá indicar provas idôneas que afastem essa ilação. Ao contrário, na medida em que o tempo passa, a situação fática também se inverte, e se o delito for cometido em momento significativamente posterior ao parto será tarefa da defesa demonstrar a influência do estado puerperal na conduta da genitora.
Dá-se com a morte do nascente ou neonato.
É possível.
Estará configurado crime impossível, por impropriedade absoluta do objeto material (CP, art. 17), se a criança é expulsa morta do útero, e a mãe, supondo-a viva, realiza atos de matar.
De igual modo, se a mãe, sob a influência do estado puerperal, praticar alguma conduta visando à morte o filho, nascente ou recém-nascido, acometido de anencefalia, estará caracterizado crime impossível, em razão da impropriedade absoluta do objeto material, nos termos do art. 17 do Código Penal. Com efeito, não há vida apta a justificar a intervenção penal, em sintonia com a decisão lançada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 54/DF.
O infanticídio é crime próprio (deve ser praticado pela mãe, mas permite o concurso de pessoas); de forma livre (admite qualquer meio de execução); comissivo ou omissivo; material (somente se consuma com a morte); instantâneo (consuma-se em momento determinado, sem continuidade no tempo); de dano (o bem jurídico deve ser lesado); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); plurissubsistente (conduta divisível em vários atos); e progressivo (antes de alcançar a morte, a vítima necessariamente suporta ferimentos).
Aborto é a interrupção da gravidez, da qual resulta a morte do produto da concepção. Para Giuseppe Maggiore, “é a interrupção violenta e ilegítima da gravidez, mediante a ocisão de um feto imaturo, dentro ou fora do útero materno”.66
Fala-se também em abortamento, pois alguns sustentam que o aborto significa na verdade o produto morto ou expelido do interior da mulher.67
É com a fecundação que se inicia a gravidez. A partir de então já existe uma nova vida em desenvolvimento, merecedora da tutela do Direito Penal. Há aborto qualquer que seja o momento da evolução fetal. A proteção penal ocorre desde a fase em que as células germinais se fundem, com a constituição do ovo ou zigoto, até aquela em que se inicia o processo de parto, pois a partir de então o crime será de homicídio ou infanticídio.
Há posições no sentido de que só há falar em gravidez após a nidação, isto é, implantação do óvulo fecundado no útero. Justificam esse entendimento no fato de algumas pílulas anticoncepcionais, e também do DIU (dispositivo intrauterino), admitidos no Brasil, agirem depois da fecundação, com a finalidade de impedir o alojamento do ovo no útero. Consequentemente, se a gravidez tem início com a fecundação, mulheres que se valem desses métodos anticoncepcionais cometem o crime de aborto.
Esse raciocínio deve ser refutado. A medicina é pacífica ao indicar a fecundação como o termo inicial da gravidez. E, como o Brasil permite o uso de tais meios de controle da natalidade, as mulheres que deles se utilizam não praticam crime nenhum, pois atuam sob o manto do exercício regular de direito, causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 23, inciso III, in fine, do Código Penal.
O aborto pode ser de uma das seguintes espécies:
a) natural: é a interrupção espontânea da gravidez. Exemplo: O organismo da mulher, por questões patológicas, elimina o feto. Não há crime.
b) acidental: é a interrupção da gravidez provocada por traumatismos, tais como choques e quedas. Não caracteriza crime, por ausência de dolo.
c) criminoso: é a interrupção dolosa da gravidez. Encontra previsão nos arts. 124 a 127 do Código Penal.
d) legal ou permitido: é a interrupção da gravidez de forma voluntária e aceita por lei. O art. 128 do Código Penal admite o aborto em duas hipóteses: quando não há outro meio para salvar a vida da gestante (aborto necessário ou terapêutico) e quando a gravidez resulta de estupro (aborto sentimental ou humanitário). Não há crime por expressa previsão legal.
e) eugênico ou eugenésico: é a interrupção da gravidez para evitar o nascimento da criança com graves deformidades genéticas. Discute-se se configura ou não crime de aborto. A questão será analisada quando estudarmos o art. 128 do Código Penal.
f) econômico ou social: mata-se o feto para não agravar a situação de miserabilidade enfrentada pela mãe ou por sua família. Trata-se de modalidade criminosa, pois não foi acolhida pelo direito penal brasileiro.
Protege-se a vida humana. No aborto provocado pela gestante (autoaborto), no aborto provocado com o consentimento da gestante (consentimento para o aborto), ambos tipificados pelo art. 124 do Código Penal, e no aborto com o consentimento da gestante (aborto consentido), definido pelo art. 126 do Código Penal, somente existe um único bem tutelado: o direito à vida, do qual o feto é titular.
No aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante (art. 125), protege-se também, além da vida do feto, a integridade física e psíquica da gestante.
Nada obstante seja também eliminada uma vida humana, a pena do aborto, em qualquer de suas modalidades, é sensivelmente inferior à sanção penal cominada ao homicídio. A justificativa desse diferente tratamento penal é esclarecida por Francesco Carrara:
Mas este delito, por mais odioso e reprovável que seja, nunca pode equiparar-se em gravidade ao homicídio, pois a vida que nele se extingue não pode ser considerada como definitivamente adquirida; é mais uma esperança do que uma certeza; e entre o estado de feto e o de homem há um grande intervalo e se interpõem tantos obstáculos e perigos, que sempre se pode ficar em dúvida se, ainda sem a expulsão violenta, essa vida esperada poderia realmente chegar a converter-se em uma realidade.68
É o feto, em todas as modalidades de aborto criminoso. Anote-se, porém, que o Código Penal não estabelece qualquer distinção entre óvulo fecundado, embrião ou feto. Todos são merecedores da tutela penal.
Deve haver prova da gravidez, decorrente de normal desenvolvimento fisiológico, pois o aborto depende da morte do feto. Destarte, se a mulher não estava grávida, ou se o feto já havia morrido por outro motivo qualquer, estará configurado crime impossível por absoluta impropriedade do objeto (CP, art. 17). Além disso, o feto deve estar alojado no útero materno. Logo, não haverá aborto, por exemplo, na destruição de um tubo de ensaio que contém um óvulo fertilizado in vitro.
Não se exige tenha o feto viabilidade. Basta que esteja vivo antes da prática da conduta criminosa.
Mas não há proteção do Direito Penal na gravidez molar, na qual se opera o desenvolvimento anormal do ovo (“mola”), nem na gravidez extrauterina, que representa uma situação patológica.
É a gestante, nas modalidades tipificadas pelo art. 124 do Código Penal (crimes próprios), e qualquer pessoa, nos demais casos (crimes comuns).
Os crimes previstos no art. 124 do Código Penal são ainda de mão própria, pois somente a gestante pode provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque. Não admitem coautoria, mas apenas participação.
É o feto, sempre. E, no aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (CP, art. 125), há duas vítimas: o feto e a gestante.
Julio Fabbrini Mirabete entende que o feto não é titular de bem jurídico ofendido, apesar de ter seus direitos de natureza civil resguardados. Para ele, portanto, sujeito passivo é o Estado ou a comunidade nacional.69
O crime de aborto é de forma livre. Admite qualquer meio de execução, comissivo (exemplo: ingerir medicamentos abortivos) ou omissivo (exemplo: deixar dolosamente de ingerir medicamentos necessários para preservação da gravidez), físico (exemplo: golpes no útero) ou psíquico (exemplo: provocar depressão que leva ao aborto).
A omissão, para ser penalmente relevante, depende da existência do dever de agir (CP, art. 13, § 2.º). É o caso da mãe que deixa de alimentar-se adequadamente para que ocorra o aborto, ou ainda do médico contratado para acompanhar a gravidez problemática que, propositadamente, deixa de adotar as medidas necessárias para preservar o feto.
Se, contudo, o meio de execução for absolutamente ineficaz, estará caracterizado crime impossível (exemplo: despachos, rezas e simpatias).
É o dolo, direto ou eventual. Não existe aborto culposo como crime contra a vida.
Quem provoca aborto por culpa responde por lesão corporal culposa contra a gestante, pois os ferimentos nela provocados são consequência natural da manobra abortiva. Se, por outro lado, a própria gestante agir culposamente e ensejar o aborto, o fato será atípico, pois o princípio da alteridade veda a punição da autolesão.
Finalmente, se o sujeito agride uma mulher, que sabe estar grávida, com a exclusiva intenção de lesioná-la, mas produz culposamente o aborto, responde por lesão corporal gravíssima (CP, art. 129, § 2.º, inc. V).
Dá-se com a morte do feto, resultante da interrupção dolosa da gravidez. Pouco importa tenha a morte se produzido no útero materno ou depois da prematura expulsão provocada pelo agente. É prescindível a expulsão do produto da concepção.
É possível, em todas as modalidades de aborto criminoso.
Se, praticada a conduta criminosa tendente ao aborto, o feto for expulso com vida, o crime será de tentativa de aborto. Mas, se a intenção do agente era ferir a gestante, e não provocar o aborto, o crime será de lesão corporal grave em face da aceleração do parto (CP, art. 129, § 1.º, inc. IV)
Por outro lado, se o procedimento abortivo acarretar na expulsão do feto com vida e, em seguida, o agente realizar nova conduta contra o recém-nascido, para matá-lo, haverá concurso material entre tentativa de aborto e homicídio (ou infanticídio, se presentes as elementares do art. 123 do Código Penal).
Finalmente, se o agente praticar a conduta abortiva e o feto for expulso com vida, morrendo posteriormente em decorrência da manobra realizada, o crime será de aborto consumado.
O aborto é crime material (somente se consuma com a morte do feto); próprio e de mão própria (art. 124) ou comum (arts. 125 e 126); instantâneo (consumação em momento determinado, sem continuidade no tempo); comissivo ou omissivo; de dano (depende da efetiva lesão ao bem jurídico); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (em regra praticado por uma única pessoa, mas admite o concurso); ou então plurissubjetivo ou de concurso necessário (no aborto provocado com o consentimento da gestante, nada obstante a diversidade de crimes para os envolvidos: art. 124 para a gestante e art. 126 para o terceiro); em regra plurissubsistente (conduta divisível em vários atos); de forma livre (admite qualquer meio de execução); e progressivo (o feto é ferido antes de morrer).
Em conformidade com o art. 20 do Decreto-lei 3.688/1941, constitui contravenção penal a conduta de “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”.
O art. 124 do Código Penal contém duas figuras típicas distintas:
a) Provocar aborto em si mesma: 1.ª parte
Trata-se do autoaborto, em que a gestante efetua contra si própria o procedimento abortivo por qualquer modo capaz de levar à morte do feto (exemplos: golpes com instrumento contundente, quedas propositais, ingestão de medicamentos abortivos etc.)
Não há tentativa de aborto quando a mulher busca suicidar-se, mas permanece viva, pois não se pune a autolesão (princípio da alteridade). Todavia, se da tentativa de suicídio resultar o aborto, à mulher deve ser imputado o autoaborto, como corolário do seu dolo eventual. Há quem entenda, porém, não existir crime quando em tal hipótese se produz o aborto, pois seria consequência lógica da autolesão.
Esse crime é compatível com o concurso de pessoas, na modalidade participação.70 Destarte, se, exemplificativamente, uma mulher grávida ingere medicamento abortivo, que lhe fora fornecido pelo seu namorado, e em razão dessa conduta provoca a morte do feto, o enquadramento típico será o seguinte:
(1) a mulher é autora de autoaborto; e
(2) o namorado é partícipe do crime de autoaborto, definido como delito de mão própria e compatível com a conduta de induzir, instigar ou auxiliar, de forma secundária, a gestante a provocar aborto em si mesma. Se o namorado, contudo, tivesse executado qualquer ato de provocação do aborto, seria autor do crime descrito pelo art. 126 do Código Penal (aborto com o consentimento do gestante).
O partícipe do autoaborto, além de responder por este delito, pratica ainda homicídio culposo ou lesão corporal de natureza culposa, se ocorrer morte ou lesão corporal de natureza grave em relação à gestante, sendo inaplicável o art. 127 do Código Penal, uma vez que este dispositivo não incide, por expresso mandamento legal, aos casos do art. 124.
Quanto à gestante que provoca em si mesmo o aborto legal ou permitido, duas situações podem ocorrer:
(1) tratando-se de aborto necessário ou terapêutico (CP, art. 128, inc. I), não há crime, em face da exclusão da ilicitude pelo estado de necessidade; e
(2) na hipótese de aborto sentimental ou humanitário, o fato é típico e ilícito, pois nessa modalidade somente é autorizado o aborto praticado por médico. É de se reconhecer, contudo, a incidência de uma dirimente, em face da inexigibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade).
b) Consentir para que terceiro lhe provoque o aborto: 2.ª parte
Cuida-se do consentimento para o aborto. A grávida não pratica em si mesma o aborto, mas autoriza um terceiro qualquer, que não precisa ser médico, a fazê-lo. O Código Penal abre uma exceção à teoria monista ou unitária adotada pelo art. 29, caput, no tocante ao concurso de pessoas: a gestante é autora do crime tipificado pelo art. 124, 2.ª parte, enquanto o terceiro que provoca o aborto é autor do crime definido pelo art. 126.
Esse crime é de mão própria, pois somente a gestante pode prestar o consentimento. Não admite coautoria, mas somente a participação. Exemplo: Uma amiga da mulher grávida a induz a consentir um médico em si provoque o aborto.
A gestante deve ter capacidade e discernimento para consentir, o que se evidencia por sua integridade mental e por sua idade (maior de 14 anos). Além disso, o consentimento deve ser válido, ou seja, exige-se seja isento de fraude, e que não tenha sido obtido por meio de violência ou grave ameaça, sob pena de caracterização do crime previsto no art. 125 do Código Penal.
Em face da pena mínima cominada ao autoaborto e ao consentimento para o aborto (um ano), esses crimes admitem a suspensão condicional do processo, desde que presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
O Código Penal elenca dois crimes sob a rubrica “aborto provocado por terceiro”: um primeiro, mais grave, sem o consentimento da gestante (art. 125), e um segundo mais brando, como consectário do seu consentimento (art. 126).
Esse crime pode concretizar-se em duas hipóteses:
a) não houve realmente o consentimento da gestante. Exemplos: agressão pelo antigo namorado que a engravidou, terceiro que coloca medicamento abortivo em sua comida etc.; ou
b) a vítima prestou consentimento, mas sua anuência não surte efeitos válidos, por se enquadrar em alguma das situações indicadas pelo art. 126, parágrafo único, do Código Penal: gestante não maior de 14 anos ou alienada ou débil mental (dissenso presumido) ou consentimento obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (dissenso real).
Trata-se de crime de dupla subjetividade passiva. Há duas vítimas: o feto e a gestante.
Se a mulher estiver grávida de gêmeos (ou trigêmeos), e essa circunstância for do conhecimento do terceiro, haverá dois (ou três) crimes de aborto, em concurso formal impróprio ou imperfeito (CP, art. 70, caput, parte final). Contudo, se ele ignorar esse fato, responderá por um único crime, afastando-se a responsabilidade penal objetiva.
Quando um aborto é realizado por terceira pessoa com o consentimento da gestante, os dois deveriam responder pelo mesmo crime, pois agiram com unidade de desígnios em busca de um fim comum: a morte do feto. A gestante e o terceiro concorreram cada um a seu modo para o crime, na forma delineada pelo art. 29, caput, do Código Penal.
O legislador, entretanto, abriu uma exceção à teoria unitária ou monista no concurso de pessoas, e criou crimes distintos. A gestante que presta o consentimento incide na pena da parte final do art. 124 do Código Penal (consentimento para o aborto), ao passo que o terceiro que provoca o aborto com o seu consentimento é enquadrado no art. 126 do Código Penal (aborto consentido ou consensual). Decidiu-se tratar a mulher de forma mais branda em decorrência dos abalos físicos e mentais que ela enfrenta com o aborto, nada obstante criminoso.
E o partícipe, por qual crime responde?
Depende da sua conduta. Se vinculada ao consentimento da gestante, ao partícipe será imputado o crime definido pelo art. 124 do Código Penal. É o que se dá com os familiares que auxiliam financeiramente a gestante para custear as despesas do aborto em uma clínica médica. Por outro lado, se o partícipe concorrer para a conduta do terceiro que provoca o aborto, responderá pelo crime tipificado pelo art. 126 do Código Penal, tal como na hipótese da enfermeira que auxilia o médico durante a cirurgia abortiva.
O consentimento da gestante deve subsistir até a consumação do aborto. Se durante o procedimento abortivo ela se arrepender e solicitar ao terceiro a interrupção das manobras letais, mas não for obedecida, para ela o fato será atípico, e o terceiro responderá pelo crime delineado pelo art. 125 do Código Penal.
Ademais, o consentimento pode ser prestado verbalmente ou por escrito, ou resultar da própria conduta da gestante, tal como quando ela coopera com o terceiro nas manobras abortivas mediante movimentos corpóreos. Cumpre frisar que a validade do seu consentimento reclama a não configuração de qualquer das hipóteses contidas no art. 126, parágrafo único, do Código Penal.
Se o terceiro comete o fato por incidir em erro sobre o consentimento da gestante, plenamente justificado pelas circunstâncias, a conduta deve reputar-se praticada com o seu consentimento.
Se três ou mais pessoas associarem-se para o fim específico de cometer abortos (exemplo: instalação de uma clínica médica com esse propósito), responderão pelo crime tipificado pelo art. 288 do Código Penal em concurso material com os abortos que tenham efetivamente realizado.
Diante da pena mínima cominada ao crime de aborto praticado por terceiro com o consentimento da gestante (um ano), é cabível a suspensão condicional do processo, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Nada obstante o legislador tenha utilizado a expressão “formas qualificadas”, o art. 127 do Código Penal contém, em verdade, duas “causas de aumento de pena”. Não foram modificados os limites das penas em abstrato, o que evidenciaria qualificadoras. Ao contrário, limitou-se o Código Penal a prever percentuais que majoram a pena, na terceira fase de sua dosimetria, caracterizando causas de aumento.
As “formas qualificadas” somente são aplicáveis ao aborto praticado por terceiro, sem ou com o consentimento da gestante (arts. 125 e 126), por expressa previsão legal: “as penas cominadas nos dois artigos anteriores...”. Nem poderia ser diferente, pois se a mulher, cometendo autoaborto, produz em si própria lesão corporal de natureza grave, ou então se mata, incide o princípio da alteridade, com a proibição da punição da autolesão no direito brasileiro. Portanto, as causas de aumento têm incidência apenas ao terceiro, mas nunca à gestante.
Destarte, se um terceiro concorre para que a gestante realize autoaborto, daí resultando na mulher lesão corporal grave ou morte, o terceiro responde pelo crime tipificado pelo art. 124 do Código Penal, como partícipe, e por lesão corporal culposa ou homicídio culposo, se provada sua culpa no tocante aos ferimentos ou à morte. Não se aplicam as formas qualificadas do art. 127, pois o legislador somente permitiu sua utilização para os crimes definidos pelos arts. 125 e 126 do Código Penal.
O art. 127 do Código Penal previu duas hipóteses de crimes qualificados pelo resultado, de natureza preterdolosa. Pune-se o primeiro crime (aborto) na modalidade dolosa, e o resultado agravador, que pode ser morte ou lesão corporal de natureza grave, a título de culpa. O agente quer matar o feto, mas por culpa acaba produzindo lesão corporal de natureza grave ou mesmo a morte da gestante. Segue-se à risca o princípio consagrado pelo art. 19 do Código Penal: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”.
Se, no entanto, o terceiro tinha dolo (direto ou eventual) no tocante a ambos os crimes, responde por aborto e por lesão corporal de natureza grave ou homicídio, em concurso (material ou formal imperfeito, dependendo do caso concreto).
Por outro lado, aquele que mata dolosamente uma mulher, ciente da sua gravidez, e assim provoca a morte do feto, responde por homicídio doloso e também por aborto, ainda que reste provada a ausência de intenção de provocar a morte do feto. De fato, quando se mata uma mulher grávida há pelo menos dolo eventual quanto ao aborto. Mas, se o terceiro mata dolosamente uma mulher, ignorando sua gravidez, daí resultando também o aborto, a ele será imputado apenas o homicídio doloso. Exclui-se o aborto, sob risco de caracterização da responsabilidade penal objetiva.
Se em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo a gestante sofre lesão corporal de natureza leve, o terceiro responde somente pelo aborto simples, sem ou com o seu consentimento, restando absorvida a lesão corporal.
Em que pese a previsão legal de hipóteses preterdolosas, nada impede o aumento da pena quando o aborto não se consuma, mas a gestante sofra lesão corporal de natureza grave ou morra. Extrai-se essa ilação da interpretação literal do art. 127 do Código Penal, que determina a majoração da reprimenda quando o resultado agravador ocorra “em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo”. Assim sendo, a expressão “em consequência do aborto” vincula-se à morte do feto, enquanto a expressão “em consequência dos meios empregados para provocá-lo” relaciona-se ao aborto tentado.
Nas “formas qualificadas” segue-se a mesma linha de raciocínio de todas as espécies de aborto criminoso: é imprescindível a prova da gravidez.71
Destarte, se uma mulher imagina estar grávida e, por esse motivo, solicita a um terceiro que nela faça o aborto, no que é atendida, e em consequência dos meios empregados resulta sua morte, provando-se posteriormente que ela não estava grávida, o terceiro responde unicamente por homicídio culposo. A ausência da gravidez afasta o crime de aborto e, consequentemente, a incidência do art. 127 do Código Penal.
Em que pese a utilização pelo legislador da fórmula “não se pune”, o art. 128 do Código Penal arrola duas causas especiais de exclusão da ilicitude. Embora o aborto praticado em tais situações constitua fato típico, não há crime pelo fato de serem hipóteses admitidas pelo ordenamento jurídico.
A permissão legal do aborto encontra seu nascedouro na Constituição Federal.
No aborto necessário há conflito entre dois valores fundamentais: a vida da gestante e a vida do feto. E o legislador dá preferência àquela, por se tratar de pessoa madura e completamente formada, sem a qual dificilmente o próprio feto poderia seguir adiante. Em verdade, não se pode rotular como inconstitucional o sistema penal em que a proteção à vida do não nascido cede, diante de situações conflitivas, em mais hipóteses do que aquelas em que cede a proteção penal outorgada à vida humana independente.72
Por sua vez, no aborto em caso de gravidez resultante de estupro o Código Penal encontra seu fundamento de validade na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, inc. III). Entendeu o legislador que seria atentatório à mulher exigir a aceitação em manter uma gravidez e criar um filho decorrente de uma situação trágica e covarde que somente lhe traria traumas e péssimas recordações.
Mas há quem sustente que, nesse caso, o aborto seria inconstitucional: o feto não é culpado pelo estupro, e por esse motivo sua vida não poderia ser ceifada. Como destacava Afrânio Peixoto: “É santo o ódio da mulher forçada ao bruto que a violou. Concluir daí que este ódio se estenda à criatura que sobreveio a essa violência, é dar largas ao amor-próprio ciumento do homem, completamente alheio à psicologia feminina. Um filho é sempre um coração de mãe que passa para um novo corpo”.73 Levantam-se também argumentos constitucionais baseados na evolução histórica do tratamento do direito à vida para justificar essa posição:
Entendo que a Constituição Federal não admitiu a hipótese do aborto sentimental, porque, pela primeira vez, faz menção “a inviolabilidade do direito à vida”. O discurso atual é direto e claríssimo, ao determinar que a inviolabilidade é do direito à vida, e não apenas o respeito a direitos concernentes à vida.74
Esse raciocínio não deve ser aceito. O direito à vida, como qualquer outro direito, pode ser relativizado quando o princípio da proporcionalidade o recomendar. Se assim não fosse, seriam inconstitucionais as causas de exclusão da ilicitude. Não se poderia, exemplificativamente, matar em legítima defesa. Por outro lado, a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, tem valor absoluto e não pode ser mitigada. Não se justifica uma vida indigna por parte da mulher para manter uma gravidez resultante de crime contra ela perpetrado. Há, no fundo, colisão entre duas vidas, e é razoável a preferência pela vida da mulher. Vida sem dignidade equivale, para a Constituição Federal, a inexistência de vida humana.
Importante destacar a existência de entendimento doutrinário no sentido de ser o aborto sempre inconstitucional. Consequentemente, o Código Penal não poderia permiti-lo em nenhuma situação, por afrontar o direito à vida, cláusula pétrea consagrada pelo art. 5.º, caput, da Constituição Federal.75 Essa posição, contudo, é minoritária e não encontra eco na jurisprudência.
O art. 128 do Código Penal prevê duas hipóteses de aborto permitido: aborto necessário e aborto no caso de gravidez resultante de estupro. Em ambas, o aborto há de ser praticado por médico, pois é somente ele o profissional habilitado para, com segurança, interromper a gravidez sem ofender a vida ou a integridade corporal da gestante.
O aborto necessário ou terapêutico depende de dois requisitos:
(1) a vida da gestante corra perigo em razão da gravidez; e
(2) não exista outro meio de salvar sua vida. Destarte, há crime de aborto quando interrompida a gravidez para preservar a saúde da gestante.
O risco para a vida da gestante não precisa ser atual. Basta que exista, isto é, que no futuro possa colocar em perigo a vida da mulher, e seja atestado por profissional da medicina. Se o médico, contudo, supõe erroneamente o perigo em razão das circunstâncias do caso concreto, não responde pelo crime em face da descriminante putativa prevista no art. 20, § 1.º, do Código Penal.
Como a vida é bem indisponível, não se exige o consentimento da gestante para o aborto. Não há crime quando a gestante se recusa a fazê-lo e o médico provoca o aborto necessário. E não são puníveis as lesões corporais resultantes do procedimento cirúrgico.
É desnecessária a autorização judicial para o aborto. É o médico, e só ele, quem decide sobre a imprescindibilidade da interrupção da gravidez.
Se o aborto necessário for realizado por enfermeira, ou por qualquer outra pessoa diversa do médico, duas situações podem ocorrer:
(1) se presente o perigo atual para a gestante, o fato será lícito, como corolário do estado de necessidade (CP, art. 24); e
(2) ausente o perigo atual, subsistirá o crime de aborto, com ou sem o consentimento da gestante, dependendo do caso concreto.
É também chamado de aborto sentimental, humanitário, ético ou piedoso. Depende de três requisitos:
(1) ser praticado por médico;
(2) consentimento válido da gestante ou de seu responsável legal, se for incapaz; e
(3) gravidez resultante de estupro.
Nesse caso, como não há perigo atual para a vida da gestante, se a interrupção da gravidez for praticada pela própria gestante ou por outra pessoa qualquer, que não o médico, o fato será típico e ilícito. Porém, é de se reconhecer a incidência de uma dirimente, fundada na inexigibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade).
É imprescindível o consentimento válido da gestante ou de seu representante legal, quando incapaz, pois somente ela tem conhecimento da dimensão da rejeição que possui contra o feto.
Além disso, a gravidez deve ser consequência de crime de estupro cometido contra a mulher (CP, art. 213). Pouco importa o meio de execução do delito: violência à pessoa ou grave ameaça. Em qualquer caso será possível o aborto, mesmo que a gravidez resulte da prática do sexo anal ou de qualquer outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, situação admitida pela medicina com fulcro na mobilidade dos espermatozoides.
Entende-se ser também cabível, por analogia in bonam partem, o aborto quando a gravidez resultar de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A). Há lacuna na lei e os fundamentos são idênticos: gravidez indesejada e efeitos traumáticos a serem provocados na mulher com o nascimento e a criação da criança. Além disso, o estupro de vulnerável, definido como crime pela Lei 12.015/2009, não existia quando foi redigido o art. 128, inc. II, do Código Penal, razão pela qual era impossível ter sido prevista esta hipótese legal de aborto.
É prescindível a condenação e até mesmo a ação penal pelo crime de estupro. Basta ao médico a presença de provas seguras acerca da existência do crime, tais como boletim de ocorrência, declaração da mulher e depoimentos de testemunhas, inquérito policial, etc. Em suma, não se exige autorização judicial para a exclusão da ilicitude. Tratando-se de norma favorável ao médico, deve ser interpretada restritivamente. O dispositivo legal não faz essa exigência, razão pela qual as condições do aborto não podem ser aumentadas.
Se, após o aborto, ficar provado que a gestante apresentou ao médico um boletim de ocorrência com conteúdo falso, o profissional da medicina não responderá por crime algum, pois presente uma descriminante putativa (CP, art. 20, § 1.º). À mulher, por seu turno, serão imputados os crimes de aborto e de comunicação falsa de crime (CP, art. 340).
O direito brasileiro não contempla regra permissiva do aborto nas hipóteses em que os exames médicos pré-natais indicam que a criança nascerá com graves deformidades físicas ou psíquicas. Não autoriza, pois, o aborto eugênico ou eugenésico. O fundamento dessa opção é a tutela da vida humana no mais amplo sentido. O Direito Penal protege a vida humana desde a sua primeira manifestação. Basta a vida, pouco importando as anomalias que possa apresentar. Como lembra Nélson Hungria em relação ao homicídio, em citação perfeitamente aplicável ao crime de aborto:
É suficiente a vida. Não importa o grau da capacidade de viver. Igualmente não importam, para a existência do crime, o sexo, a raça, a nacionalidade, a casta, a condição ou valor social da vítima. Varão ou mulher, ariano ou judeu, parisiense ou zulu, brâmane ou pária, santo ou bandido, homem de gênio ou idiota, todos representam vidas humanas. O próprio monstro (abandonada a antiga distinção entre ostentum e monstrum) tem sua existência protegida pela lei penal.76
Anencefalia é a malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16.º e o 26.º dia de gestação, caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Um anencéfalo é assim visualizado pelos exames médicos:77
O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera o anencéfalo um natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco.78 Consequentemente, sua eliminação em intervenção cirúrgica constitui-se em fato atípico, pois o anencéfalo não possui vida humana que legitima a intervenção do Direito Penal. O raciocínio é o seguinte: o art. 3.º, caput, da Lei 9.434/1997 admite a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano para fins de transplante ou tratamento somente após a morte encefálica. Em outras palavras, o ser humano morre quando cessam suas atividades cerebrais. E, no tocante ao anencéfalo, é razoável concluir que, se nunca teve atividade cerebral, nunca viveu. Não se trata, portanto, de aborto, e sim de antecipação de parto em razão da anencefalia ou de antecipação de parto de feto inviável.
A questão sempre se revestiu de intensa polêmica, por envolver diversas concepções: filosóficas, morais, ideológicas e, notadamente, religiosas. Nosso objetivo, contudo, é analisá-la sob o enfoque estritamente jurídico-penal. E, nesse campo, não há crime de aborto por ausência de vida humana. O produto da concepção apresenta batimentos cardíacos que derivam exclusivamente da sua ligação com o corpo da mulher grávida.
Poder-se-ia argumentar que em algumas hipóteses – raríssimas, embora existentes – a criança nasceu com vida e permaneceu viva por vários dias, quiçá meses. Foi o que aconteceu com a menina Marcela de Jesus Ferreira, nascida com anencefalia em Patrocínio Paulista, Estado de São Paulo, e que faleceu depois de 1 (um) ano, 8 (oito) meses e 12 (doze) dias.
Nesse exemplo, é discutível falar em vida humana, pelos motivos acima expostos. Além disso, não serve como parâmetro para o Direito Penal. Com efeito, trata-se de exceção, e o ordenamento jurídico deve se amparar na normalidade, e nunca na excepcionalidade. Daí ser composto por “normas”, isto é, regras criadas com o propósito de disciplinarem situações normais na vida humana. E o normal é o não nascimento de anencéfalos, ou, na melhor das hipóteses, a “sobrevivência” por poucos minutos.
Essa antecipação do parto encontra seu fundamento de validade no art. 1.º, inciso III, da Constituição Federal: dignidade da pessoa humana. De fato, a mulher não pode ser obrigada à retirada do anencéfalo, mas, se o desejar, não pode ser impedida pelo legislador ordinário.79 Não seria digno exigir da gestante a postergação de um sofrimento: no lugar das roupas da criança, a aquisição do vestuário para o velório; em vez do berço, a compra de um caixão; imaginando a cerimônia de batismo, substituí-la pela missa de sétimo dia.
A regra constitucional deve ser interpretada com efetividade, compreendida como a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social.80 Como destaca Maíra Costa Fernandes:
(...) a dignidade da pessoa humana é a fonte da qual irradiam valores que norteiam a formação dos princípios relativos a todas as espécies de direitos fundamentais, notadamente os chamados direitos civis, entre os quais se inserem os direitos à vida, à integridade física e psíquica, ao próprio corpo. Impor à mulher a continuidade da gestação de um feto anencéfalo é uma afronta a todos esses princípios. De fato, frequentes são os relatos de gestantes que afirmavam ter pesadelos terríveis, dores físicas e forte quadro de depressão.81
No julgamento da ADPF 54/DF, ajuizada pela CNTS – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, incs. I e II, do Código Penal. Desta forma, a Corte reconheceu o direito da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado.
A decisão do Excelso Pretório baseou-se, em síntese, nas seguintes razões:
a) Os fundamentos jurídico-constitucionais que autorizam a medida são a laicidade do Estado brasileiro, a dignidade da pessoa humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o pleno reconhecimento dos direitos individuais, especialmente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres;
b) Anencefalia é a malformação do tubo neural, a caracterizar-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento embrionário. O diagnóstico desta anomalia reclama a ausência dos hemisférios cerebrais, do cerebelo e de um tronco cerebral rudimentar ou a inexistência total ou parcial do crânio. Pode ser diagnosticada clinicamente na 12.ª semana de gestação, mediante o exame de ultrassonografia;
c) Os anencéfalos são natimortos cerebrais, e jamais podem se tornar pessoas. Não há vida em potencial, e sim a certeza da morte (incompatibilidade com a vida extrauterina), razão pela qual não se pode falar em aborto. Em síntese, os fetos com anencefalia não gozam do direito à vida, posição em sintonia com as disposições elencadas pela Lei 9.434/1997, a qual versa sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento; e
d) A obrigatoriedade de preservar a gestação produz danos à gestante, muitas vezes levando-as a uma situação psíquica devastadora, pois na maioria dos casos predominam quadros mórbidos de dor, angústia, luto, impotência e desespero, em face da certeza do óbito.82
Conclui-se, pois, que não se permite o aborto quando o feto apresentar graves anomalias físicas ou psíquicas, ou mesmo quando possuir características monstruosas (aborto eugênico ou eugenésico). Este raciocínio, entretanto, não impede a antecipação terapêutica do parto de feto comprovadamente anencéfalo, em face da impossibilidade de natural vida extrauterina, por ser inevitável a morte com o desligamento de aparelhos médicos ou com a libertação do ventre materno.
No dia 10 de maio de 2012, atendendo à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54/DF, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM 1.989/2012, disciplinando a atuação prática dos médicos no tocante à interrupção da gravidez baseada na anencefalia do feto, independentemente de autorização do Estado.
Se a gestante ou um terceiro praticar manobras abortivas no sentido de eliminar o feto anencéfalo, estará caracterizado crime impossível, em razão da impropriedade absoluta do objeto material, nos termos do art. 17 do Código Penal.
Aborto econômico, miserável ou social é a interrupção da gravidez fundada em razões econômicas ou sociais, quando a gestante ou sua família não possuem condições financeiras para cuidar da criança, ou até mesmo por políticas públicas baseadas no controle da natalidade. Há crime, pois o sistema jurídico em vigor não autoriza o aborto nessas situações.
Lesão corporal é a ofensa humana direcionada à integridade corporal ou à saúde de outra pessoa. Como bem definido pelo item 42 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal: “o crime de lesão corporal é definido como ofensa à integridade corporal ou saúde, isto é, como todo e qualquer dano ocasionado à normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer do ponto de vista fisiológico ou mental”.
Depende da produção de algum dano no corpo da vítima, interno ou externo, englobando qualquer alteração prejudicial à sua saúde, inclusive problemas psíquicos. É prescindível a produção de dores ou a irradiação de sangue do organismo do ofendido. E a dor, por si só, não caracteriza lesão corporal.
Não se exige o emprego de meio violento: o crime pode ser cometido com emprego de grave ameaça (exemplo: promessa de morte que provoca perturbações mentais na pessoa intimidada) ou ainda mediante ato sexual consentido. Também não é necessário seja a vítima portadora de saúde perfeita. O crime consiste tanto em prejudicar uma pessoa plenamente saudável, bem como em agravar os problemas de saúde de quem já se encontrava enfermo.
São exemplos de ofensa à integridade física (modificação anatômica prejudicial do corpo humano) as fraturas, fissuras, escoriações, queimaduras e luxações. A equimose (roxidão resultante do rompimento de pequenos vasos sanguíneos sob a pele ou sob as mucosas) e o hematoma (equimose com inchaço) constituem lesões corporais, ao contrário dos eritemas (vermelhidão decorrente de uma bofetada, por exemplo), que não ingressam no conceito do delito.
O corte de cabelo ou da barba sem autorização da vítima pode configurar, dependendo da motivação do agente, lesão corporal ou injúria real, se presente a intenção de humilhar a vítima.
A pluralidade de lesões contra a mesma vítima e no mesmo contexto temporal caracteriza crime único, mas deve influenciar na dosimetria da pena-base, pois o art. 59, caput, do Código Penal prevê as consequências do crime como circunstância judicial.
A ofensa à saúde, por seu turno, compreende as perturbações fisiológicas ou mentais. Perturbação fisiológica é o desarranjo no funcionamento de algum órgão do corpo humano. Exemplos: vômitos, paralisia momentânea etc. Perturbação mental é a alteração prejudicial da atividade cerebral. Exemplos: convulsão, depressão etc.
Tutela-se a incolumidade física em sentido amplo: a integridade corporal e a saúde da pessoa humana.
É a pessoa humana que suporta a conduta criminosa.
O núcleo do tipo é “ofender”, aqui compreendido como prejudicar alguém no tocante à sua integridade corporal (corpo humano) ou à sua saúde (funções e atividades orgânicas, físicas e mentais da pessoa). Pode ser praticado por ação e, excepcionalmente, por omissão, quando presente o dever de agir para evitar o resultado, nos termos do art. 13, § 2.º, do Código Penal (exemplo: mãe que deixa o filho de pouca idade sozinho na cama desejando que ele se machuque em decorrência da queda).
É crime de forma livre, pois admite qualquer meio de execução.
Trata-se de crime comum, pois pode ser praticado por qualquer pessoa. Mas, se o agente for autoridade pública e praticar o delito no exercício das suas funções, responderá também por abuso de autoridade (Lei 4.898/1965, art. 3.º, i).
Qualquer pessoa. Em alguns casos, todavia, o tipo penal exige uma situação diferenciada em relação à vítima. É o que ocorre na lesão corporal grave ou gravíssima em que a vítima deve ser mulher grávida para possibilitar a aceleração do parto ou o aborto (CP, art. 129, § 1.º, inc. IV, e § 2.º, inc. V), e também na lesão qualificada pela violência doméstica, na qual a vítima precisa ser ascendente, descendente, irmã, cônjuge ou companheira do agressor.
Em geral é o dolo, direto ou eventual, conhecido como animus laedendi ou animus nocendi. É o que se dá no caput (simples) e nos §§ 1.º (graves), 2.º (gravíssimas) e 9.º (violência doméstica e familiar contra a mulher). Mas há também a culpa no § 6.º (lesão corporal culposa) e o preterdolo no § 3.º (lesão corporal seguida de morte).
Cuida-se de crime material ou causal e de dano: consuma-se com a efetiva lesão à integridade corporal ou à saúde da vítima.
É possível em todas as modalidades de lesão corporal dolosa. Mas é incabível na lesão culposa e na lesão corporal seguida de morte, pois a involuntariedade do resultado naturalístico que envolve a culpa é incompatível com o conatus.
A tentativa de lesão corporal não se confunde com a contravenção penal de vias de fato (Decreto-lei 3.688/1941). Naquela, o dolo do agente é de ofender a integridade física ou a saúde de outrem, não alcançando esse resultado por circunstâncias alheias à sua vontade (exemplo: desferir um soco, mas não atingir a pessoa visada); nesta, por sua vez, sua vontade limita-se a agredir o ofendido, sem lesioná-lo (exemplo: empurrão).
A lesão corporal é crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); material (a consumação depende da produção do resultado naturalístico); de dano (exige a efetiva lesão do bem jurídico); unilateral, unissubjetivo ou de concurso eventual (cometido em regra por um único agente, mas admite o concurso de pessoas); comissivo ou omissivo; instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); de forma livre (admite qualquer meio de execução); e, em regra, plurissubsistente (a conduta é divisível em vários atos).
A realidade atual demonstra que as pessoas podem dispor, e efetivamente dispõem de sua integridade física, seja ingressando em situações perigosas (exemplo: treinamento em artes marciais), seja submetendo-se a lesões desejadas (exemplos: colocação de piercings e tatuagens). Além disso, não pode o Estado invadir a esfera estritamente privada das pessoas (exemplo: lesões consentidas decorrentes da atividade sexual entre adultos).
O próprio legislador compartilha deste entendimento, ao definir a lesão corporal dolosa de natureza leve como crime de ação penal pública condicionada à representação do ofendido (Lei 9.099/1995, art. 88). Nada impede, portanto, a utilização no campo das lesões corporais do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude, desde que presentes os seguintes requisitos cumulativos:
(a) deve ser expresso, pouco importando sua forma (oral ou por escrito, solene ou não);
(b) não pode ter sido concedido em razão de coação ou ameaça, nem de paga ou promessa de recompensa. Em suma, há de ser livre;
(c) é necessário ser moral e respeitar os bons costumes;
(d) deve ser manifestado previamente à consumação da infração penal. A anuência posterior à consumação do crime não afasta a ilicitude; e
(e) o ofendido deve ser capaz para consentir, ou seja, deve ter completado 18 anos de idade e não padecer de nenhuma anomalia suficiente para retirar sua capacidade de entendimento e autodeterminação.
Anote-se, porém, ser irrelevante o consentimento do ofendido nos crimes de lesão corporal grave, gravíssima e seguida de morte, em face da indisponibilidade do bem jurídico protegido pela lei penal.
O princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela, originário do Direito Romano (mininus non curat pretor) e introduzido no Direito Penal por Claus Roxin, é aceito atualmente como causa de exclusão da tipicidade. O fato encontra enquadramento na lei penal (tipicidade formal), mas não é capaz de lesar ou de oferecer perigo ao bem jurídico. Daí falar em ausência de tipicidade material.
É possível sua incidência na lesão corporal dolosa de natureza leve e na lesão corporal culposa (CP, art. 129, caput, e § 6.º), quando a conduta acarreta em ofensa ínfima à integridade corporal ou à saúde da pessoa humana.83 Exemplos:
(1) pequenas lesões derivadas de um acidente de trânsito;84 e
(2) espetar a vítima com um alfinete.
Em razão do princípio da alteridade, não se pune a autolesão. Mas esse fenômeno pode caracterizar crime autônomo quando violar outro bem jurídico. É o que ocorre no crime de fraude para recebimento do valor de seguro, tipificado pelo art. 171, § 2.º, inciso V, do Código Penal (exemplo: jogador de futebol quebra a própria perna para receber o valor do seguro) e também na criação ou simulação de incapacidade física, definida pelo art. 184 do Código Penal Militar (exemplo: cortar um braço para não ir à guerra depois de regularmente convocado). Nesses casos, obviamente, o sujeito passivo não é aquele que se feriu por vontade própria, mas a seguradora ou o Estado.
Nos esportes em que os ferimentos decorrem naturalmente da sua prática, tais como lutas marciais e boxe, não há crime em razão da exclusão da ilicitude pelo exercício regular do direito. O Estado fomenta a atividade esportiva, mas suas regras devem ser seguidas à risca, sob pena de caracterização do delito de lesão corporal. Há crime, contudo, quando o agredido é o árbitro.
A Lei 9.434/1997 autoriza a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano de pessoa viva, para fins de transplante e tratamento. O doador, maior e capaz, deve anuir ao ato, que não pode causar graves prejuízos à sua saúde. Reclama-se ainda o cumprimento de todos os demais requisitos legais (arts. 1.º e 9.º).
O não cumprimento desses mandamentos tipifica o crime delineado pelo art. 14 da Lei 9.434/1997, com penas de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa. Além disso, os §§ 2.º, 3.º e 4.º descrevem qualificadoras idênticas às previstas no art. 129 do Código Penal para a lesão corporal grave, gravíssima e seguida de morte.
Nas cirurgias de emergência, dotadas de risco concreto de morte do paciente, não há crime na conduta do médico que atua sem o consentimento do operado ou de seus representantes legais, pois se encontra amparado pelo estado de necessidade de terceiro, qual seja da pessoa submetida ao procedimento cirúrgico. Por outro lado, se ausente a situação de emergência, a cirurgia dependerá da prévia anuência do paciente ou do seu representante legal para afastar o crime pelo exercício regular do direito.
Em sentido contrário, sustenta Heleno Cláudio Fragoso que em qualquer caso não há crime por ausência de tipicidade. São suas palavras:
Na intervenção cirúrgica com êxito (inclusive as que se destinam a corrigir deformações) não há tipicidade. Lesão corporal é dano à integridade corporal ou à saúde, que não existe quando a intervenção se faz restituindo a saúde, melhorando-a ou mesmo sem alterá-la (desde que praticada lege artis). Típico só pode ser o resultado que prejudica, ou seja, o resultado de dano.85